dezembro 31, 2012

Do além, recomendações do velho Armando pra sua BICA (Banda Independente Confraria do Armando)


"O silêncio não existe", por Eliane Brum

PICICA: "Ser surdo a si mesmo é uma surdez sem nenhuma deficiência auditiva, mas muito, muito triste. O que chamamos de silêncio, afinal, talvez seja apenas a nossa voz." 

O silêncio não existe

Ser surdo a si mesmo não é uma deficiência auditiva, mas causa deformação

ELIANE BRUM
 

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)

Uma amiga me emprestou sua casa no meio do mato para eu escrever uma história. Eu andava acuada na cidade, atordoada com o excesso de barulho dentro e fora de mim. Às vezes tenho essa sensação, a de que a barreira do dentro e do fora se rompe e já não consigo distinguir se o ônibus cheio de som, fúria e fumaça preta sobe a Teodoro Sampaio ou sobe alguma rua que passa raspando pelo meu pulmão direito. Viro eu mesma um pedaço maltratado de São Paulo e preciso partir em busca de outras geografias que me curem o corpo. Eu pensava buscar silêncio, só para descobrir mais uma vez que o silêncio não existe.

É curiosa essa ilusão que compartilhamos de que o campo, o mato, a praia escondida, a natureza menos tocada são paisagens de silêncio. Nem o deserto é silencioso, descobri anos atrás, ao passar 20 dias na Mauritânia, acompanhando Toco Lenzi, um aventureiro que atravessava o Saara sozinho e a pé, puxando um riquixá. Ali descobri que o próprio silêncio não é silencioso. Ao contrário, a ausência de som rugia no meu ouvido num tom desconhecido.
Perturbada por essa voz sem voz, eu lia sem parar à noite na minha barraca, quando lá fora a temperatura despencara dos mais de 40 graus do meio-dia para abaixo de zero. Lia histórias sobre as grandes expedições do passado porque a minha pequena aventura estava me assombrando. Eu não temia os beduínos nômades que às vezes surgiam como que materializados da areia, nem os animais que deixavam marcas no acampamento pela manhã. Eu temia esse som que eu não decifrava, mas que falava com partes de mim que eu também não sabia onde moravam.
Dois anos depois dessa experiência, passei dez dias num retiro de meditação vipássana, no interior do Rio de Janeiro, em que era proibido falar e até mesmo olhar para as outras pessoas. Aprendi a ouvir o meu lado de dentro e descobri que eu era tão silenciosa quanto uma lagoa habitada pela família inteira do Monstro do Lago Ness, incluindo primos distantes. Dias depois de ter voltado, eu ainda era despertada no meio da noite pelo barulho que continuava ressoando dentro de mim e que agora eu tinha aprendido a escutar. Levantava da cama e ia me postar diante do meu marido, notívago como um vampiro, que lia na poltrona. “Meu corpo não cala a boca”. Depois, com o tempo e o abandono da disciplina de meditação, perdi a capacidade de me ouvir e agora só escuto os roncos do meu estômago sempre esfomeado.

Neste fim de ano, me enfiei no meio do mato em busca de silêncio. De novo. Eu precisava descobrir as palavras que nadavam em mim como peixes não muito dispostos a serem pescados, para contar uma história de ficção com prazo para entregar. Um grande escritor, não lembro qual, disse que as palavras são peixes que nadam no nosso lago inconsciente, mas eu tenho minhas dúvidas. Me parecem mais criaturas não nomeadas que rastejam no lodo de um fundo falso. Mas, seja o que forem as palavras, eu esperava atiçá-las com iscas de silêncio.

Logo ao chegar, experimentei o estranhamento de entrar em qualquer casa que pertença a um outro. É como um mapa que fala de caminhos que só fazem sentido para alguém que não está ali. Não falo apenas dos livros e dos CDs, dos móveis e da disposição dos objetos no banheiro ou da decoração, mas do que restou esquecido. É o esquecimento, mais do que a lembrança, que fala de nós.

De imediato fui registrando as aranhas, muitas aranhas de tipos diferentes, que só extermino se chegarmos ao ponto do ou eu ou ela, o passarinho que fez ninho na janela do banheiro, as formigas carregando um besouro morto. Esse tipo de besouro tem a conformação física de um tanque de guerra e, ao voar, faz o barulho de uma Harley-Davidson. (Ouvi dizer que o ronco das Harleys é patenteado. Se não for mais uma lenda, devem royalties ao “rola-bosta”, o nome popular desse besouro.) Me identifico com ele, que está sempre caindo de costas, pernas pra cima. Me dá a impressão de que gasta a vida tentando virar do lado certo, ficar em pé, como eu também.

E então... o vi. Um confete de carnaval entranhado no piso de cimento queimado. O que ele contava? Me enterneceu mais do que qualquer outra coisa aquele confete esquecido ali. A marca humana. Um carnaval, uma busca de felicidade, teria dado certo, teria sido alegre? E lá estava ele, um bailarino sem pernas. Caído ao final de um movimento.

Quando eu ainda vivia em Porto Alegre, uma leitora me enviou um álbum de fotografias que havia sido encontrado no lixo. Ela não pôde suportar a ideia de uma vida jogada fora, como se fosse uma casca de banana, e despachou o álbum envolto em papel-manteiga, para que eu desse um sentido à memória de um outro. Vi estranhos nascendo, crescendo, sumindo, casando, tendo filhos, envelhecendo. Na última página, a longa saga familiar se encerrava, sem explicação alguma, com a foto de duas coristas em pose sensual. Como a avisar que a vida é desacerto, como se dissesse: “Cuidado, não me entenda rápido demais”. Durante boa parte da minha vida, essa foi a minha frase preferida. Cuidado, não me entenda rápido demais. E era o que o confete parecia dizer, deslocado naquele ambiente. Eu sabia que, se ele falasse, falaria de mim, não de si mesmo, não de como havia restado ali.

Deixei-o e me sentei no lado de fora. Essa casa que falava comigo é quase orgânica, tem a postura de quem pede desculpas por estar ali. Só a enxerga quem chega perto da sua porta, porque tem a cor ocre da terra vermelha e as árvores a apertam. É uma casa quase natureza. Fico sempre tentando me enfiar na pele dos outros, para entender como se sentem e por que dizem o que dizem e fazem o que fazem. Mas desta vez fui compelida a tentar algo novo, ao olhar para as árvores e perceber que elas não estavam ali como um cenário. Aquelas árvores, cuja respiração eu acreditava ouvir, estavam ali possivelmente antes de mim e estarão para além de mim. Se uma delas pudesse me ver, o que veria? Qual seria a sua perspectiva?

Talvez a árvore me percebesse só como um relance, uma cor fugaz, como uma daquelas imagens que a gente faz rodar com muito mais velocidade para adiantar o filme no aparelho de DVD. Para nós ela é uma vida que se inscreve pela imobilidade. Mas não é, seu tempo é que é outro. Ela se move, mas não somos capazes de enxergar. Sem que antes tivéssemos nos encontrado, essa árvore tinha protagonizado um balé que ninguém viu. No meu nascimento seus galhos esboçavam um gesto, agora outro e, quando eu morrer, terão formado um quadro sutilmente diferente. Todo o meu álbum de fotografias cabe em apenas um de seus “pas de valse”. Ela, que é apenas um indivíduo, como eu. E como o besouro que bate a cabeça no tronco e vira de patas pro ar, abreviando suas chances de chegar vivo a 2013. Não há nenhuma hierarquia entre nós. Estamos todos os três apenas vivendo, tentando.

Mas eu escuto o silêncio da árvore e, ao deitar a noite para dormir, sei que a vida do mato é mais barulhenta que a minha esquina em São Paulo. Eu abro os olhos no escuro e há vaga-lumes no quarto. Eu tentando dormir e aqueles moços (ou seriam as moças?) acendendo o traseiro para atrair companhia. “Eu estou aqui!”, aviso, na tentativa de despertar alguma compostura, mas estão acesos. Me ignoram e continuam piscando sobre a minha cabeça: sexo, sexo, sexo. Bem perto, eu tenho certeza, alguma aranha tece a sua teia à espera de presas que serão devoradas lentamente. E logo ali uma fêmea de louva-a-deus pode estar mastigando o pai dos seus filhos e pensando, como no livro de Alessandro Boffa: “Hum... crocante, com fibras”. A sinfonia da natureza de que nos falam os poetas é uma orgia. Às vezes sangrenta.

Talvez eu não seja uma pescadora, afinal, mas uma aranha, tecendo uma armadilha para as palavras e depois mastigando-as com minha boca cheia de dentes. Eu posso ouvir que não há silêncio. O que buscamos, talvez, quando buscamos silêncio, é só a possibilidade de ouvir mais do mundo. Os sons, quando se repetem dia após dia, nos ensurdecem. E a primeira voz que deixamos de escutar é a nossa. Descubro na casa do mato que é da minha voz que tenho saudades na minha esquina de São Paulo, é ela que o ônibus da fumaça preta emudece quando sobe a rua.

Ser surdo a si mesmo é uma surdez sem nenhuma deficiência auditiva, mas muito, muito triste. O que chamamos de silêncio, afinal, talvez seja apenas a nossa voz.

Passo a vassoura sobre o confete. Cutuco um pouco para arrancá-lo dali. Ele não sai.
Fonte: Época

"Comunicação 2012, um balanço: não foi fácil, e nunca será", por Venício Lima

PICICA: "No Brasil, o ano de 2012 foi dominado pelo discurso único da grande mídia –antes, durante e depois das eleições municipais – em torno do julgamento da Ação Penal nº 470 e da CPI do Cachoeira. O macarthismo praticado no tratamento de vozes discordantes confirma ad nauseamo papel da grande mídia de julgar, condenar e/ou omitir, seletiva e publicamente, ignorando o princípio da presunção de inocência e/ou a ausência de provas.

A defesa corporativa e intransigente de jornalistas envolvidos em práticas suspeitas, a transformação do julgamento no STF em espetáculo, o massacre seletivo a determinados políticos e partidos e a mitificação (ou a execração) pública de juízes, reafirmam o papel político/partidário que a grande mídia tem desempenhado em momentos decisivos de nossa história, a rigor, desde o início do século 19.

Numa época em que os impressos atravessam uma crise de variadas dimensões; jornais e revistas tradicionais são fechados (Jornal da Tarde e Newsweek, por exemplo) e “práticas jornalísticas” são questionadas (exemplo: o Inquérito Leveson, na Inglaterra), não deixa de surpreender a intolerância arrogante dos pronunciamentos na reunião anual da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol), ocorrida em outubro, em São Paulo, e manifestações e documentos provenientes dos institutos Millenium e Palavra Aberta (think tankse lobistas do empresariado), como se os donos da imprensa se constituíssem no inquestionável padrão ético de referencia para a liberdade e a democracia." 




Comunicação 2012, um balanço: não foi fácil, e nunca será

Como fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas por uns poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como se fossem o interesse publico? Mais ainda: como esperar que um governo em lua-de-mel com a “opinião pública” corra o risco de enfrentar o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia, capaz de destruir reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira em apenas alguns segundos? O artigo é de Venício Lima.

 
(*) Publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Não há como ignorar certa monotonia nos balanços de fim de ano do setor de comunicações. Sem muito esforço, um observador atento constatará que:

1. Os atores e interesses que interferem, de facto, na disputa pela formulação das políticas públicas são poucos: governo, empresários de mídia (inclusive operadores de telefonia e fabricantes de equipamento eletroeletrônico) e parlamentares.

Há que se mencionar ainda o Judiciário que, por meio de sua mais alta corte, o Supremo Tribunal Federal (STF), tem interpretado a Constituição de 1988 de maneira a legitimar uma inusitada hierarquia de direitos em que prevalece a liberdade da imprensa sobre a liberdade de expressão e os direitos de defesa e proteção do cidadão (acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – nº 130, de 2009).

Aguarda decisão, por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2404 na qual os empresários de radiodifusão, usando a sigla do PTB e representados pelo ex-ministro Eros Grau, pedem a impugnação do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente – vale dizer, questionam a política pública definida pelas portarias 1220/2006 e 1000/2007 do Ministério da Justiça que estabeleceram as normas para Classificação Indicativa de programas de rádio e televisão.

Não me esqueci da chamada “sociedade civil organizada” – movimentos sociais, partidos, sindicatos, ONGs, entidades civis, dentre outros. Todavia, como sua interferência continua apenas periférica no jogo político real, prefiro tratá-la como um não-ator.

2. Alguns atores ocupam posições superpostas, por exemplo: ministro das Comunicações e/ou parlamentar (poder concedente) é, simultaneamente, empresário de mídia (concessionário de radiodifusão); e,

3. As principais regras e normas legais são mantidas ou se reproduzem, ao longo do tempo, mesmo quando há – como tem havido – um processo de radicais mudanças tecnológicas.

Essa realidade pode ser verificada, em seus eixos principais, pelo menos desde a articulação que levou à derrubada dos 52 vetos do então presidente João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT (Lei 4.117/1962) e que deu origem à criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), 50 anos atrás. Depois disso, no que se refere às concessões do serviço de radiodifusão, mais ou menos a cada dez anos as regras se consolidam: primeiro na Lei 5.785/1972; depois no Decreto 88.066/1983 e na Constituição de 1988 e, mais recentemente, no Decreto 7670/2012.

O resultado é que, ano após ano, permanece praticamente inalterada a supremacia de determinados grupos e de seus interesses na condução da politica pública de comunicações.

Creio que as políticas de radiodifusão no Brasil constituem um exemplo daquilo que, em Ciência Política, os institucionalistas históricos chamam de “dependência de trajetória” (path dependency), isto é, “uma vez iniciada uma determinada política, os custos para revertê-la são aumentados. (...) As barreiras de certos arranjos institucionais obstruirão uma reversão fácil da escolha inicial” (Levi).

O eventual leitor(a) poderá constatar esta “dependência de trajetória” nos balanços que tenho publicado neste Observatório desde 2004 (ver “Adeus às ilusões“, “Balanço de muitos recuos e alguns avanços“, “Notas de um balanço pouco animador“, “Balanço provisório de um semestre inusitado“, “Mais recuos do que avanços“ “Algumas novidades e poucos progressos“, “O que se pode esperar para 2009? (1)“, “O que se pode esperar para 2009? (final)“, “Por que a mídia não se autoavalia?“ e “Os avanços de 2011“).

2011 versus 2012
No fim de 2011, escolhi fazer um breve “balanço seletivo” registrando fatos que poderiam ser considerados como avanços no sentido da democratização da comunicação (ver “Os avanços de 2011“). Um ano depois, muito do que se esperava que acontecesse no curto prazo, de fato, não se concretizou. Exemplos:

(a)o marco civil da internet não foi votado pelo Congresso Nacional;

(b)o esperado crescimento e fortalecimento dos movimentos em prol da criação dos conselhos estaduais de comunicação social em vários estados da Federação não ocorreu: o movimento prossegue em Brasília; o conselho da Bahia foi instalado, mas funciona precariamente; e o projeto no Rio Grande do Sul ainda não foi encaminhado à Assembleia Legislativa; e,

(c)a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (Frentecom), que havia sido criada em abril e da qual se esperava um papel relevante no encaminhamento de questões relativas às comunicações na Câmara dos Deputados, apesar do esforço de vários de seus integrantes tem sido ignorada pela direção da Casa.

Por outro lado, 2012 poderá ser lembrado por alguns acontecimentos protagonizados direta ou indiretamente pela grande mídia, no Brasil e no exterior.

Inglaterra e Argentina
O primeiro registro há de ser para Inquérito Leveson (The Leveson Inquiry) cujo relatório final foi apresentado em novembro. Nele está uma descrição/diagnóstico de práticas “jornalísticas” que, infelizmente, não ocorrem apenas na Inglaterra. Há também um conjunto de propostas de ações institucionais para evitar o desvirtuamento completo da liberdade da imprensa, inclusive a criação de uma instância reguladora autônoma, tanto em relação ao governo quanto aos empresários de mídia. Independente dos resultados concretos, o relatório Leveson deveria ser lido e discutido entre nós (ver, neste Observatório, “Um documento com lugar na história“, “Areopagítica, 368 anos depois“ e “O vespeiro do controle externo“).

O segundo registro é a batalha judicial que ocorre na Argentina entre o governo e o Grupo Clarín. Um projeto que surgiu de amplo debate nos mais diferentes segmentos da sociedade foi submetido ao Congresso Nacional – onde tramitou, recebeu emendas, foi aprovado e transformado em lei. Mesmo tendo essa origem, a Ley de Medios de 2009 vem enfrentando, por parte de um dos principais oligopólios de mídia da América Latina e de seus aliados, inclusive no Brasil, uma resistência feroz, como se constituísse uma ameaça – e não uma garantia – à liberdade de expressão. Como afirmou recentemente o relator especial da ONU para liberdade de expressão, a Ley de Medios argentina deveria ser estudada como um exemplo de regulação democrática, protetora da liberdade de expressão plural e diversa.

Discurso único
No Brasil, o ano de 2012 foi dominado pelo discurso único da grande mídia –antes, durante e depois das eleições municipais – em torno do julgamento da Ação Penal nº 470 e da CPI do Cachoeira. O macarthismo praticado no tratamento de vozes discordantes confirma ad nauseamo papel da grande mídia de julgar, condenar e/ou omitir, seletiva e publicamente, ignorando o princípio da presunção de inocência e/ou a ausência de provas.

A defesa corporativa e intransigente de jornalistas envolvidos em práticas suspeitas, a transformação do julgamento no STF em espetáculo, o massacre seletivo a determinados políticos e partidos e a mitificação (ou a execração) pública de juízes, reafirmam o papel político/partidário que a grande mídia tem desempenhado em momentos decisivos de nossa história, a rigor, desde o início do século 19.

Numa época em que os impressos atravessam uma crise de variadas dimensões; jornais e revistas tradicionais são fechados (Jornal da Tarde e Newsweek, por exemplo) e “práticas jornalísticas” são questionadas (exemplo: o Inquérito Leveson, na Inglaterra), não deixa de surpreender a intolerância arrogante dos pronunciamentos na reunião anual da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol), ocorrida em outubro, em São Paulo, e manifestações e documentos provenientes dos institutos Millenium e Palavra Aberta (think tankse lobistas do empresariado), como se os donos da imprensa se constituíssem no inquestionável padrão ético de referencia para a liberdade e a democracia.

Inércia governamental
O ano de 2012 ficará também marcado pela inquietante inércia do governo federal em relação ao setor de comunicações. Salvo o decreto que regulamentou a Lei de Acesso à Informação (Decreto 7.724, de 16/05/2012) e a norma do Ministério das Comunicações que regulamenta o Canal da Cidadania (previsto no Decreto 5820/2006 para a transmissão de programações das comunidades locais, e para a divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal), não há praticamente nada.

Onde estão as propostas (mais de seiscentas) aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e encaminhadas ao governo federal em dezembro de 2009?

Onde está o projeto de marco regulatório elaborado no fim do governo Lula e encaminhado pelo ministro Franklin Martins ao ministro Paulo Bernardo, em janeiro de 2011?

Por outro lado, uma leitura equivocada das normas legais de distribuição de recursos publicitários pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom-PR) vem sufocando financeiramente a chamada mídia alternativa e consolidando ainda mais a concentração de grupos oligopolísticos. A mídia alternativa, por óbvio, não tem condições de competir com a grande mídia se aplicados apenas os chamados “critérios técnicos” de audiência e CPM (custo por mil).

Se fossem cumpridos os princípios constitucionais (muitos ainda não regulamentados), o critério de distribuição de recursos deveria ser “a máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker), isto é, a garantia de que mais vozes fossem ouvidas no espaço público promovendo a diversidade e a pluralidade – vale dizer, mais liberdade de expressão.

E o Parlamento?

Além da não votação do marco civil da internet, impedida pelos poderosos interesses das empresas de telecom em relação à neutralidade da rede, há de se mencionar a reinstalação, em julho, do Conselho de Comunicação Social (CCS), depois de quase seis anos de inatividade ilícita. A mesa diretora do Congresso Nacional, presidida por José Sarney, cuja família é historicamente vinculada a concessões de radiodifusão, ignorou a Frentecom e articulou a nova composição do CCS fazendo que nele prevaleçam interesses oligárquico-empresariais e religiosos.

Os não-atores

Por fim, os não-atores. O destaque é o lançamento pelo renovado coletivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) dacampanha nacional “Para expressar a liberdade – Uma nova lei para um novo tempo”(em abril) e seus vários eventos regionais e locais, incluindo a vinda ao Brasil de Frank La Rue, o relator especial pela liberdade de expressão da ONU (em dezembro). Apesar do boicote sistemático da grande mídia, a atenção que a campanha tem recebido na mídia alternativa constrói um embrionário espaço público onde circulam informações que não estão disponíveis nas fontes dominantes.

Registre-se ainda que partidos políticos – sobretudo a partir do julgamento da Ação Penal nº 470 – finalmente parecem se dar conta da importância fundamental das comunicações no jogo político. Salvo raras exceções, todavia, não se tem até agora resultados concretos na atuação partidária no Congresso Nacional, nem na proposta de projetos e/ou ações junto à sociedade.

Não será fácil

O mundo não acabou, como muitos acreditavam. Os índices de desemprego nunca foram tão baixos e o salário médio tão elevado. A ascensão social fez as classes A e B crescerem 54% na última década e, nos próximos três anos, outras oito milhões de pessoas serão a elas incorporadas. O Corinthians, patrocinado pela Caixa Econômica Federal, é campeão mundial de futebol. O nível de satisfação do brasileiro nunca esteve tão elevado (de acordo com pesquisas do Data Popular, IBGE e Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República).

A novela Avenida Brasil dominou as telas de TV ao longo de seis meses com audiências médias de 50% (Ibope). A grande mídia – sustentada em boa parte por verbas oficiais (70% dos recursos distribuídos nos primeiros 19 meses do atual governo foram destinados a apenas 10 grupos privados, de acordo com a Secom-PR) – celebra a condenação dos “corruptos” na Ação Penal nº 470; se apresenta como defensora da ética pública e das liberdades – sobretudo da liberdade de expressão –; e prossegue na sua obsessão seletiva de mobilizar a “opinião pública” contra determinados políticos e partidos.

As médias de aprovação tanto do governo como da presidente Dilma Rousseff batem recordes após recordes: 62% e 78%, respectivamente, de acordo com a última pesquisa CNI/Ibope (dezembro).

Diante desses fatos, sejamos razoáveis.

Como fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas por uns poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como se fossem o interesse publico?

Mais ainda: como esperar que um governo em lua-de-mel com a “opinião pública” corra o risco de enfrentar o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia, capaz de destruir reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira em apenas alguns segundos?

Em 2013 não será fácil – como, aliás, nunca foi.

(*) Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros
Fonte: Carta Maior

dezembro 30, 2012

TREMEI FARISEUS, A BICA ESTÁ DE VOLTA (uma homenagem ao luso-brasileiro Armando Soares)

PICICA: "Armando tornou-se imortal por saber transpor o humor lusitano para uma terra onde abundava a melancolia." 


TREMEI FARISEUS, A BICA ESTÁ DE VOLTA (uma homenagem ao luso-brasileiro Armando Soares)

(Texto enxuto, depois de várias correções dxs amigxs)

Carxs amigxs, perdoem a pressa dos nossos dias. Findei por não apresentar o personagem da postagem anterior (sobre um certo tema de carnaval): Armando "Brasileiro" Soares. Nunca existiu um português como ele. Com seu humor insuperável tornou-se símbolo do carnaval amazonense, e imortalizou-se com a sua BANDA INDEPENDENTE DA CONFRARIA DO ARMANDO - a BICA. Desencarnou em abril deste ano o ano passado (bem se vê que espiritualmente já estou em 2013, pois que nosso querido personagem nos deixou em abril deste ano de 2012), mas seu espírito permanece no BAR DO ARMANDO, reduto de liberdade que criou e foi tomado pelos boêmios, intelectuais e desocupados de um modo geral em lugar nobre da cidade de Manaus: o largo de São Sebastião, onde está situado o Teatro Amazonas - teatro criticado por um detalhe estético que desagradou nada menos que o uruguaio Eduardo Galeano, que não entendeu o espírito republicano do então governador Eduardo Ribeiro ao perpetuar o lábaro nacional numa abóbada futurista. Nada disso importa ao gosto da turba alegre e irreverente que faz multidão em frente do bar desde 1985 - nas minhas contas, a data em que a banda ameaçou sair mas ficou restrita ao espaço sagrado do próprio bar (trecho acrescentado, pois como esclareci para minha querida Gracionei Medeiros, só tem uma coisa mais rápida que o pensamento: a caganeira, pois ela impede o indíviduo num banheiro escuro de apertar o interruptor antes do desfecho fatal; no meu caso, faltou agilidade nos dedos para acompanhar meus pensamentos); no ano seguinte ameaçamos sair, e ficamos a pular o carnaval somente na frente do bar, ao som das marchinhas da banda "Demônios da Tasmânia"; e em 87 é que a BICA criaria seu próprio percurso. Os temas do carnaval da Banda são memoráveis. Há sempre um político, ou um grupo político, na berlinda. É a sensação do carnaval. Respira-se liberdade de expressão. Não há banda igual. Talvez por saber da importância que a BICA assumiu para o carnaval manauara é que Armando hospitalizado enviou mensagem para a que a Banda saísse no carnaval de 2011. Os mais próximos não suportaram a dor da perda do eminente lusitano, nosso velho e querido Armando. Decidiu-se pela suspensão do carnaval da BICA. Esse ano Armando volta do jeito que o diabo gosta - que não nos ouça Frei Fulgêncio, o capuchinho responsável pela paróquia de São Sebastião. Olha ele aí, pedindo passagem (a fotografia foi feita durante a comemoração de um dos seus aniversários - 28 de fevereiro; ao lado de sua Lourdes, Armando recebe o seu próprio boneco, que rivalizaria com a boneca da Kamélia, outro ícone do carnaval amazonense). Armando tornou-se imortal por saber transpor o humor lusitano para uma terra onde abundava a melancolia. Mas esse é um outro papo, para o qual recomendo a leitura de RETRATO DO BRASIL, cujo link está disponível aqui. Seja bem-vindo, Armando! Seja bem-vinda a sua BICA!

PICICA: Clique aqui para ler texto do 'brother' Simão Pessoa sobre um dos grandes carnavais da BICA: o de 1999, quando todos ainda tínhamos cintura, menos ele: http://amordebica.blogspot.com.br/2011/02/carnaval-1999-armando-brasileiro.html

"'O Início, o Fim e o Meio' - Indignação em estado bruto", por Matheus Pichonelli

PICICA: "O fardo, para ele, foi viver tudo o que cantou – e talvez seja isso o que o torne único na “linha evolutiva da música popular brasileira”.
[...]
Raul foi, de longe, o maior nome do rock brasileiro. Mesmo cantando a dúvida num mundo que pedia (e pede) certezas. Um mundo que manda obedecer e não contestar, limpar a bota de quem está em cima e chutar quem está embaixo para um dia se tornar um dos novos bilionários da Forbes. Para ele, tudo isso era passageiro, inútil. “Um saco”, como passear no jardim zoológico para dar pipoca aos macacos."

Cultura

Matheus Pichonelli

'O Início, o Fim e o Meio'

30.03.2012 12:19

Indignação em estado bruto


Meu pai tinha pedido para acompanhá-lo até a chácara num sábado de manhã. Birrento, queria ficar em casa, na tevê ou coisa assim. Todo sábado era a mesma via crucis: pegava a caminhonetezinha, passava por algumas lojas, comprava ração e alguns utensílios e seguia mato adentro numa estradinha de terra, até um descampado onde só havia duas casas, uma trave de madeira e uns pés de carambola azeda.

Não devia ter mais de seis anos e era a única companhia de meu pai naquele dia. Disse que não queria ir, e meu pai me prometeu que, se eu fosse com ele, me levaria para conhecer o Raul Seixas. Me troquei num pulo e disse: “Vamos!”


Raul Seixas desenha a cruz ansata no corpo durante show em SP

Raul passava naquele tempo pela cidade para fazer um dos seus últimos shows, na famosa turnê com Marcelo Nova (e meu tio se orgulharia até hoje por ter aberto uma latinha de cerveja gelada para ele antes do show, que não conseguiu terminar).

No caminho para a chácara, ele estacionou na frente de uma casa, onde tinha de buscar alguns papéis, e me deixou sozinho na caminhonete, ansioso por conhecer o lendário cantor. Meu pai então veio com toda a cara de pau do mundo e disse: “Não vai dar. Ele está dormindo e não quer ser incomodado”. Obviamente Raul não estava naquela casa. Era um golpe do meu pai, que conseguiu o que queria e me levou para a chácara.

A infância tem seus cheiros e sensações, e a minha tinha também uma trilha sonora. Raul Seixas foi o primeiro som “adulto” que me pegou, e me fazia cantar sem nem bem entender as letras.

Um dia, em agosto de 1989, chegávamos com a mesma caminhonete na garagem de casa quando ouvimos pelo rádio que Raul estava morto, em decorrência do alcoolismo. Não lembro o que senti, mas lembro de ver meu pai se trancar no quarto com uma “garrafa de bebida enrustida” – porque minha mãe não podia ver. Só saiu de lá na década seguinte. Do lado de fora, ninguém mais aguentava aquela choradeira que vinha de dentro enquanto ele ouvia, repetidamente, “Canto para Minha Morte”.

Desde então, deixei de gostar de Raul. Achava tudo aquilo lúgubre demais. Para mim Raul tinha perdido a batalha para ele mesmo, e eu não queria ouvir o som de um sujeito que me mandava tentar outra vez mas falhava ao tentar se salvar.

Leia também:

O Maluco que nunca foi


Muito tempo depois, numa dessas esquinas entre a infância e a adolescência em que tudo parece truncado, recorri a uma velha fita em K7 e revi os sons da minha infância – que só então fariam sentido. Era como se aquelas músicas tivessem uma frágil proteção de vidro pedindo para ser quebrado em casos de emergência. Como a vida é feita de emergências, muitas, o vidro foi quebrado e consertado muitas e muitas vezes.

Lembrando de tudo hoje, depois de assistir ao documentário “O Início, o Fim e o Meio” (e tudo o que podia ser dito sobre o filme está NESTE TEXTO, de Cynara Menezes), listei muitos dos sons (e filmes e livros) que me viraram a cabeça até meus quase 30. Das bandas de rock dos 80 à poesia de Caetano, passando pela rebeldia elegante de Chico Buarque, conheci artistas de obras mais elaboradas e completas, que se reinventaram com o tempo e sobreviveram.

Mesmo assim, nada ainda se compara à pancada certeira de Raul. Sua música é a indignação em estado bruto. Não que lhe falte poesia, mas para ele isso é só um acessório: seu grito é mais agudo, rudimentar, e está em primeiro plano. Por isso, quando bate, derruba. Porque ninguém como ele pegou as regras para se vencer na vida (“uma grande piada”) e virou tudo de ponta-cabeça.

E colocou em xeque, junto com parceiros notáveis (como Paulo Coelho, destaque no filme), valores sacrossantos como a fidelidade (“o amor a dois profana o amor de todos os mortais”), a lealdade (“porque quando eu jurei meu amor eu traí a mim mesmo”), o sucesso (“eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitado e ganho 4 mil cruzeiros por mês”), a amizade (“hoje eu te chamo de careta e você me chama vagabundo”), a família (“eu calço é 37, meu pai me dá 36. Dói, mas, no dia seguinte, aperto meu pé outra vez”), a sabedoria (“antes de ler o livro que o guru te deu você tem que escrever o seu”), a divisão entre o bem e o mal (“o mais puro gosto do mel é apenas defeito do fel”), o Estado (“e sempre que você dorme de toca ele fatura em cima do inimigo”), a religião (“a madre da escola te ensina a reconhecer o pecado e o que você sente é ruim: mas, baby, Deus não é tão mau assim”), a carreira (“é você olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo idiota, saber que é humano, ridículo e limitado e que só usa 10% de sua cabeça animal”), a coerência (“eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”), a obediência (“por que você não para um pouco de fingir e rasga esse uniforme que você não quer? Mas você não quer: prefere dormir e não vê”), a escola (“e o professor não saiu pra lecionar pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar no dia em que a Terra parou”).


Wallpaper do documentário de Walter Carvalho: Foto: Divulgação

O pano de fundo era um só: a derrota cantada num mundo feito para pretensos vencedores. Ele admitia, sem firulas, o tédio, o cansaço, o desencanto. E, em quase todas essas músicas, guardava um questionamento em comum: o que há depois disso tudo? O que realmente importa nessa vida?

Daí a sua predileção pelas coisas do além, os discos voadores, a magia e a morte (“eu te detesto e amo”), em vez das tolices que nos fazem menos gente a cada dia.

O fardo, para ele, foi viver tudo o que cantou – e talvez seja isso o que o torne único na “linha evolutiva da música popular brasileira”.

No filme de Walter Carvalho, essa ideia fica clara quando ele aparece, numa reportagem antiga da tevê, comentando os efeitos de uma ressaca, na orla do Rio, que arremessou seu carro (um Corcel 73?) para longe e provocou estragos na lataria. “A natureza está certa, a onda tá certa: quem não tinha que estar aqui era o homem, é esse aterro, esses prédios aí. Tomara que a onda derrube tudo”. Isso num tempo em que “sustentabilidade” era apenas palavrão.

Em outra cena, o amigo Sylvio Passos, fundador do Raul Rock Club, conta como conheceu o ídolo: ao receber o jovem, Raul pegou o macarrão na mão e jogou no prato do novo amigo, pedindo que ficasse à vontade.

Os relatos sobre esse desapego e a noção exata da finitude humana são uma constante em todo o filme.

Mas nesse encontro entre vida e obra, bebedeiras e abandonos (de sonhos, da família, dos amigos), ainda havia tempo para esperança. Raul se queixava do pessimismo encarnado pelos jornais tomados de “sangue” e garantia: “a gente ainda nem começou”. E, em Ave Maria da Rua, para mim a mais intensa de todas as suas composições, pede: “Segure a minha mão quando ela fraquejar e não deixe a solidão me assustar”.

Raul morreu às portas do Fim da História, decretado após a queda do muro de Berlim, dos anos Collor, do boom da lambada e do axé. Sorte dele, que já não suportava o que via – e vivia em bebedeira eterna para poder ver tudo claramente, sem dor. Sabia dos tempos que estavam por vir.

Morreu em pé, como lembrou Marcelo Nova no documentário, aplaudido e adorado, perto de seu público – apesar do esforço para não desabar, ainda restou o último fôlego para fazer seu último, e brilhante, disco “A Panela do Diabo”.

Raul foi, de longe, o maior nome do rock brasileiro. Mesmo cantando a dúvida num mundo que pedia (e pede) certezas. Um mundo que manda obedecer e não contestar, limpar a bota de quem está em cima e chutar quem está embaixo para um dia se tornar um dos novos bilionários da Forbes. Para ele, tudo isso era passageiro, inútil. “Um saco”, como passear no jardim zoológico para dar pipoca aos macacos.

Por tudo isso, se alguém um dia perguntar quem era o doido, é bom pegar o espelho: não foi Raul que se deslocou do próprio mundo. O mundo é que não estava (nem está) pronto para entender Raul.

Fonte: Carta Capital

"EZLN, en la irrupción de mundos sobre mundos", Luiz Gómez Negrete

PICICA: "El 21 de diciembre marcharon alrededor de cuarenta mil bases de apoyo del EZLN procedentes de comunidades Tzeltales, Tzotziles, Choles, Mames, Tojolabales y Zoques. Marcharon en silencio para manifestar la existencia de lo que en silencio han construido siempre." 



Aumentar tamaño del texto Disminuir tamaño del texto Partir el texto en columnas Ver como pdf 30-12-2012

EZLN, en la irrupción de mundos sobre mundos






“A quien corresponda: ¿Escucharon? Es el sonido de su mundo derrumbándose. Es el del nuestro resurgiendo. El día que fue el día, era noche. Y noche será el día que será el día. ¡Democracia! ¡Libertad! ¡Justicia! 

Desde las montañas del Sureste Mexicano.

Por el Comité Clandestino Revolucionario Indígena-Comandancia General del EZLN.

Subcomandante Insurgente Marcos. México, diciembre del 2012”

Por un lado, el derrumbe del mundo por una silenciosa complicidad; y por otro lado, el silencioso murmullo, el de las cigarras, que aparentemente “no dice nada” pero que mucho transforma y mucho tiene que enseñar.

El 21 de diciembre marcharon alrededor de cuarenta mil bases de apoyo del EZLN procedentes de comunidades Tzeltales, Tzotziles, Choles, Mames, Tojolabales y Zoques. Marcharon en silencio para manifestar la existencia de lo que en silencio han construido siempre. 

Las implicaciones de su misma existencia son de por si una interpelación y un desafío que confronta nuestro mundo desde otro mundo, el que ellos y algunos otros han hecho resurgir. Esto responde la pregunta que muchos se han hecho: ¿Para qué o para quién es el mensaje del EZLN? … Para nuestro mundo.

Nos encontramos viviendo en un mundo que derrumbamos en los dilemas cotidianos de nuestras formas de existir, -léase formas de producción, desproporción, liberalismo, modernidad, consumo, “binestar”, etc.- sin duda, a cuenta gotas, el derrumbe más silencioso. El llamado nos obliga a repensar nuestro mundo, lo que se abandona, se destruye, se erosiona, beneficia a los pocos y en muchas ocasiones bajo nuestra silenciosa complicidad.

La marcha del 21 se llevó a cabo en un contexto en el que: se llega al fin del sexenio y del mal gobierno panista de los últimos doce años; nos encontramos ante el regreso del PRI a la presidencia de la república; la toma de protesta del gobernador priísta del estado de Chiapas Manuel Velasco; en el marco de la simulación de un pacto por México que vuelve a plantear un esquema de gobierno a partir de las élites; en la profundización de una crisis de la izquierda mexicana, sobretodo por su fuerte carga electoral; en la incapacidad de consolidación de una alternativa por parte de los movimientos sociales y en la imposibilidad de generar una articulación amplia para hacer frente a la emergencia nacional; en el contexto de la nueva disputa por las libertades de protesta y manifestación, gravemente asediadas por la llegada del PRI el primero de diciembre. 

En el terreno de lo local y a 15 años de la masacre de Acteal, se consolida la guerra en la frontera sur, se ha evidenciado la reactivación y fortalecimiento de grupos paramilitares, ha aumentado el acoso a las comunidades y el desplazamiento forzado de algunas otras, tales como el Nuevo Poblado Comandante Abel. En el mismo tenor el gobierno federal se posiciona frente a la violenta realidad chiapaneca designando a Chauyffet, responsable de la masacre, como parte del nuevo gabinete. Dicha coyuntura no es referida directamente el 21 de diciembre, sin embargo; frente a ésta se deja de manifiesto una postura contundente.

La marcha y el comunicado nos remiten, casi de manera inmediata, a aquella noche que fue día, el primero de enero de 1994. A semejanza de aquel momento, la bandera mexicana y la bandera del EZLN formaron parte de la misma narrativa; el silencio tomó por sorpresa a nuestro mundo; las comunidades se apropiaron de las cabeceras municipales de San Cristóbal de las Casas, Ocosingo, Palenque, Las Margaritas y Altamirano; se interpeló al unísono al gobierno, al sistema, al mundo y al pueblo mexicano. A diferencia de entonces, no hubieron ni armas ni rifles de palo de por medio, la declaratoria de guerra fue pacífica, los que en su momento eran niños ahora son adultos y los que nacieron en la opresión se formaron en la resistencia.
Hablamos de este 21 de diciembre no solo como la demostración del fortalecimiento organizativo de un movimiento, ni como el perfeccionamiento disciplinario de un ejército, que por cierto fue sorprendente. Sino de la consolidación de una comunidad como “comunidad política” de transformación, es decir, de la correspondencia específica entre territorio, cultura, comunidad, identidad y sujeto político; porque el marchar de la nueva generación, al igual que lo hicieron sus padres, para manifestar su existencia con todas las implicaciones que ello conlleva, nos habla de la consolidación de una forma de vida como alternativa, como lucha, pero sobretodo consolidada como herencia: enseñanza y trascendencia. 

Ya no hablamos, entonces, de una generación con arraigo solamente a la tierra, a la cultura y a la comunidad; sino, con raíces en la comunidad política, el fortalecimiento del arraigo a la rebeldía, al EZLN y al mismo tiempo a los otros mundos posibles.

Es por ello que la manifestación de su existencia -con pocas o ninguna palabra- lleva como correlato el acto más grande de confrontación y subversión de lo instituido; donde el mundo de la autonomía arrastra sus fronteras hasta el nuestro, tejiendo brecha para dimensionar nuestras formas destructivas de existir y otras formas constructivas de seguir existiendo. 

Inclusive revisten de sentido a la cultura maya y al 13 Baktún, porque de la misma manera que desmontan la interpretación judeo-cristiana occidental del cambio o fin del mundo que proviene desde una exterioridad incontrolable, trascendental; ya sea profética, apocalíptica o mesiánica. Nos dicen que, tanto la destrucción del mundo, como su transformación, depende no de una determinación extramundana, sino de todo lo contrario: de nuestras manos, de nuestro caminar cotidiano, de la apertura de nuestros oídos sordos, de los mayas del presente y del trabajo que, independientemente de su realidad o trinchera, construye más allá de la vida inmediata, que forma herencia y que responde a las demandas de las condiciones históricas en las que vivimos, es decir, en la dimensión de la disputa del mundo que cae, el mundo construido para destruirse en beneficio de unos cuantos y el mundo que se construye.

Si algo nos han enseñado los movimientos y pueblos de nuestro país que luchan, también y con especial atención, en el terreno de lo simbólico, como el EZLN y ahora el Movimiento por la Paz con Justicia y Dignidad; es que el silencio no solo es la interrupción de la palabra, sino la espera activa por volver a enunciarla y escucharla nacer. 

En el ciclo por venir de la necesaria irrupción de mundos sobre mundos. 

San Cristóbal de las Casas, Chiapas, México, 28 de diciembre de 2012.

Rebelión ha publicado este artículo con el permiso del autor mediante una licencia de Creative Commons, respetando su libertad para publicarlo en otras fuentes.


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Fuente: Rebelión

dezembro 29, 2012

INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA NÃO... CLÍNICA PARA DROGADOS, TAMBÉM NÃO!

PICICA: Louvável e desejável que um colegiado que reune profissionais das diversas categorias de saúde mental assuma posição crítica contra distorções nas políticas públicas de saúde mental no país. Assino em baixo da moção de repúdio aprovada na XIII reunião do Colegiado de Coordenadores de Saúde Mental, em Brasília, em agosto de 2011, com foco na política higienista da prefeitura do Rio de Janeiro. Seria de bom alvitre que a crítica começasse dentro de casa - na casa do governo federal, que escandalosamente atropelou uma das resoluções da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, justamente a que 'recomendava' a aplicação de recursos financeiros na expansão de serviços de atendimento aos abusadores de drogas - serviços de caráter eminentemente público. Ora direis que o verbo é claro. Tratava-se apenas de uma recomendação. Mas como se explica que uma decisão, vista como um perigoso retrocesso por reconhecidos e qualificados porta-vozes do setor - que vai do campo da pesquisa ao dos serviços, passando pela militância que vem sustentando o discurso da reforma psiquiátrica antimanicomial no país -, seja tomada à revelia desses atores. Sequer tivemos o direito ao contraditório, haja vista a recusa sistemática aos pedidos de audiência com a presidenta da república, que, no entanto, recebeu com pompa e circustância os interessados em por as mãos em generosos recursos do tesouro nacional, a ponto de estabelecerem o texto de uma portaria ministerial de acordo com seus interesses, conforme denúncia amplamente divulgada nas redes sociais. Essa moda pega. Aliás, já pegou. Em Manaus, por exemplo, o prefeito que assume já definiu que pedirá ajuda das igrejas evangélicas para tratar abusadores de drogas, ora, pois! Afinal o exemplo veio de cima. Assino a moção abaixo, mas acrescento: PELA REVISÃO URGENTE DA POLÍTICA DE DROGAS, sob pena de que o mau exemplo se dissemine em todo o território nacional, entre eles a volta das Clínicas Para Drogados, outro retrocesso que vem sendo objeto de crítica por eminentes pesquisadores e pelos praticantes da nova clínica surgida com a reforma psiquiátrica antimanicomial.


MOÇÃO DE REPÚDIO

OS PARTICIPANTES DA XIII REUNIÃO DO COLEGIADO DE COORDENADORES DE SAÚDE MENTAL DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE VÊM MANIFESTAR DE FORMA VEEMENTE SEU INTEGRAL REPÚDIO À POLÍTICA HIGIENISTA E DE DESRESPEITO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA QUE ESTÁ SENDO URDIDA POR SETORES COMPROMETIDOS COM O INSUCESSO DAS POLÍTICAS DE EQUIPARAÇÃO SOCIAL DO NOSSO PAÍS E PERPETRADA PELA PREFEITURA DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO COM O NOME DE ‘INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA’.

ENTENDEMOS QUE ESTE MÉTODO DE SEQUESTRAR PESSOAS COM O ARGUMENTO DE TRATAR DE SUA SAÚDE REPRESENTA UMA ATITUDE INCOMPATÍVEL COM A SOCIEDADE DESENVOLVIDA E DEMOCRÁTICA.

ALÉM DISSO, ESCLARECEMOS QUE ESSA FORMULAÇÃO TRUCULENTA E IMPERATIVA NÃO É ORIUNDA DO CAMPO DA SAÚDE E ALERTAMOS A POPULAÇÃO SOBRE A DESTRUIÇÃO DE TODO O TRABALHO DE CONVENCIMENTO E ADESÃO QUE VEM SENDO PROPOSTO E EXECUTADO PELAS NOSSAS EQUIPES. ESSA PRÁTICA NÃO APRESENTA EFETIVIDADE QUANTO À RECUPERAÇÃO DE USUÁRIOS DE DROGAS.

LUTAMOS PELA AFIRMAÇÃO E CONSTRUÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE; PELA CONSOLIDAÇÃO DA VITORIOSA E RECONHECIDA POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL; POR UMA ATENÇÃO AOS USUÁRIOS DE DROGAS BASEADA EM UMA POLÍTICA INTERSETORIAL COM CUIDADOS PSICOSSOCIAIS INTENSIVOS; POR SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL INTEGRADOS À REDE DE SAÚDE; PELAS AÇÕES DE REDUÇÃO DE DANOS E PELO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITOS.

DESSA MANEIRA, FRENTE AO POVO BRASILEIRO, NOS POSICIONAMOS COMO CONTRÁRIOS A ESSE TIPO DE PROCEDIMENTO.

BRASÍLIA (DF), 10 DE AGOSTO DE 2011.
PLENÁRIA DA XIII REUNIÃO DO COLEGIADO DE
COORDENADORES DE SAÚDE MENTAL

Taxar os ricos (um conto de fadas animado)


"A ditadura da felicidade", por Rita de Cássia de A. Almeida

PICICA: "[...] a bandeira que levanto aqui é a seguinte: Se a felicidade é um direito a infelicidade é uma necessidade. Um brinde a infelicidade nossa de cada dia! Porque infelicidade não é doença, é parte da nossa condição existencial, sem ela perdemos pelo menos a metade da nossa humanidade."

 

A ditadura da felicidade



 











Por Rita de Cássia de A. Almeida
Picóloga/psicanalista da Rede de Saúde Mental do SUS

Há mais de 15 anos que o meu trabalho cotidiano tem sido - para resumir em algumas poucas palavras - escutar o sofrimento alheio e, por opção, atuando na saúde pública. E durante esse percurso profissional testemunhei uma mudança muito interessante na minha prática clínica. Sofremos por diversos motivos e de diferentes formas e, pela minha experiência, o motivo do sofrimento não mudou muito, no entanto, a demanda que as pessoas tem feito quando estão em sofrimento mudou significativamente.

Estudos da psicanálise atual têm tratado nossa época como a era do direito ao gozo. Ou seja, vivemos em uma época que não trata a felicidade como algo a ser construído ou conquistado, mas sim como um direito. Numa caricatura, diríamos que toda criança que nasce, especialmente no ocidente capitalista, recebe em sua certidão de nascimento um carimbo que outorga a ela o direito de ser feliz, de gozar sem restrições, sem qualquer porém.

Me lembrei agora dos versos de uma música do saudoso Tim Maia.
“Essa tal felicidade, hei de encontrar.
Mesmo se eu tiver que aguardar.
Se eu tiver que esperar.”

Nos tempos do Tim Maia a felicidade ainda era uma contingência, quase uma utopia, uma busca na qual poderíamos ou não ter sucesso. Mas hoje a coisa é bem diferente, como a felicidade passou a ser um direito de todos, acabou alcançando também o patamar de uma certa obrigação do sujeito. É como se você tivesse ganhado o direito de, sem nenhum ônus, acessar mais 90 canais de TV e dissesse não. As pessoas te perguntariam: - Como assim, você não quer mais 90 canais de TV? Entendo que essa seja a grande pergunta que permeia o discurso ocidental capitalista: - Como assim, você não é feliz?

Esse modo de entender a felicidade implicou numa mudança radical, como eu disse, no tipo de demanda que as pessoas fazem a nós, trabalhadores da saúde mental. Para os que não estão familiarizados com o fluxo de funcionamento da atenção à saúde do SUS, preciso fazer um parêntese para que compreendam melhor o que vou dizer adiante.

O sistema funciona, ou pelo menos deve funcionar, em rede. A atenção primária é a extremidade da rede mais próxima do usuário, portanto a primeira que ele procura quando apresenta qualquer problema de saúde. A atenção primária - o posto de saúde, unidade de saúde ou estratégia de saúde da família – deve atender e oferecer resolutividade para a maior parte dos casos, cerca de 80% deles. O desafio da atenção primária é não trabalhar em cima das especialidades médicas, mas, intervir no sujeito como um todo, tendo como diretriz a promoção e a prevenção em saúde. Entretanto, a atenção primária pode, em casos mais específicos nos quais a intervenção do chamado especialista seja imprescindível, acionar outros parceiros da rede que possam oferecer suporte e parceria. Os CAPS, modalidade de serviço que trabalho, compõem exatamente este trançado da rede, eles oferecem uma escuta especializada no campo da saúde mental. Sendo assim, quase sempre recebemos encaminhamentos e demandas dos demais parceiros da rede, em especial da atenção primária, apesar de também recebermos demanda espontânea.

Ao chegar no CAPS o sujeito passará por um dispositivo chamado: acolhimento. Como o próprio nome diz, este é o momento que o sujeito será acolhido em sua demanda, será escutado com cuidado por um ou mais profissionais do serviço, não necessariamente o médico, para que se possa, a partir de então, construir uma estratégia de intervenção. E o que temos notado nesses acolhimentos é que as pessoas simplesmente não suportam ficarem infelizes, tristes, frustradas ou enlutadas (e também não suportam ver outras pessoas nesse estado). É como se elas agregassem um plus a mais no próprio sofrimento, sofrem pelo que as fazem sofrer e sofrem porque estão sofrendo, como se não tivessem mais o direito de ficarem infelizes.

Somos procurados para fazer intervenção de saúde mental de alguém que está vivendo uma situação de luto ou perda, por exemplo, e quer ser medicado porque está chorando muito. Como assim? Então o sujeito perdeu um ente amado e precisa estar de bom humor para ir ao cinema depois do enterro?

Mães nos procuram com suas filhas adolescentes por chorarem trancadas no quarto depois de uma desilusão amorosa. Então a famosa “dor de cotovelo” tornou-se um grande mal a ser tratado com antidepressivos?

Certa vez, recebemos o encaminhamento de uma senhora via atenção primária, cuja queixa era insônia persistente e delírios persecutórios. Avaliando o caso com cuidado no acolhimento, entendemos que a tal senhora não dormia porque estava sendo ameaçada pelo marido há meses (ameaça real, não delírio de perseguição). Ele dizia que jogaria água fervente no seu ouvido enquanto ela estivesse dormindo. Alguém, por favor, me diga: como essa mulher poderia dormir? Não dormir, nesse caso, é sinal de saúde e não de doença.

Esses são alguns dos muitos exemplos que têm nos convocado a fazer intervenções muito peculiares, diferentes daquelas que fazíamos há alguns anos atrás. Se, num passado não muito distante, grande parte da nossa intervenção era feita no sentido de autorizar as pessoas a serem felizes, hoje, temos precisado lançar mão de intervenções que autorizem as pessoas a serem infelizes, a chorarem, a sofrerem por um fracasso, uma perda, a mergulharem numa boa “dor de cotovelo”, sem que com isso precisem ser medicadas ou enquadradas em algum diagnóstico de transtorno mental.

Muitas vezes precisamos dizer a essas pessoas que não precisam se envergonhar de chorar a morte de alguém. Que é normal não dormirmos quando estamos endividados, desempregados ou sendo ameaçados. Invariavelmente precisamos lembrar às mães que elas também já choraram uma dor de amor e que sobreviveram. Precisamos dizer que num acesso de raiva não é uma insanidade irreparável quebrar algumas louças e a coleção de CDs. Às vezes precisamos dizer que (quase) todo mundo já pensou em suicídio pelo menos uma vez na vida, e que a imensa maioria nunca chegou a concretizá-lo.

Por isso, a bandeira que levanto aqui é a seguinte: Se a felicidade é um direito a infelicidade é uma necessidade. Um brinde a infelicidade nossa de cada dia! Porque infelicidade não é doença, é parte da nossa condição existencial, sem ela perdemos pelo menos a metade da nossa humanidade.

Então, que todos tenham um 2013 feliz!! Mas se a infelicidade vier, que possamos mergulhar nela em paz...sem pudor.


Fonte: Não sou em quem me navega, quem me navega é o mar

MANAUS, urgente: Coletivo Difusão contra retrocesso na cultura


 
Hoje, dia 29 de dezembro (sábado), às 17h, na sede Coletivo Difusão, agentes e artistas do segmento cultural se reúnem para debater e se posicionar contra a unificação das pastas de Cultura e Turismo, que gerou a criação da Agência Municipal de Promoção Cultural e Turismo. No momento em que o movimento cultural debate o Plano Municipal de Cultura, que o Amazonas é incluso no Sistema Nacional de Cultura, que se discute a regularização do Fundo de Cultura, que os diversos segmentos artísticos começam a interagir e propor mudanças na política cultural da cidade, a nova administração municipal resolve ir de encontro ao que acontece no restante do Brasil. Retrocesso!

Convidamos todos os interessados para o debate, é hora de se posicionar e propor uma solução, uma revisão por parte da nova gestão municipal e que a classe seja ouvida.

#MobilizaCultura
Coletivo Difusão - Rua Monsenhor Coutinho, 801 - Centro
Horário: às 17h
Sábado, día 29 de dezembro

dezembro 28, 2012

"Occupy: da indignação à democracia real", por Bruno Cava

PICICA: "Mais de um ano depois da ocupação de Zuccotti Park, talvez se possa esboçar uma investigação sobre o sentido que se tem falado, e se possa falar, que o Occupy seja inovador. Enquanto forma de organização, pauta política ou engendramento de instituições, até que ponto se pode afirmar que o Occupy traz algo novo?
[...]
    Se o Occupy ensina algo de fundamental para todas as ações que se proponham à transformação radical deste mundo, é que a democracia real não dispensa a imaginação e construção de instituições capazes de lidar com as divisões reais da sociedade e suas violências de classe/raça/gênero, impregnadas na própria estrutura produtiva e no regime político. Essas instituições em construção durante o Occupy e o movimento global de que é expressão, embora autônomas e imaginativas, não deixam de se calcar em conflitos e desafios bastante candentes e sem solução à vista. Enfrentá-los sem culpa ou medo, na ação coletiva, no entanto, é o primeiro passo para outra forma de fazer política e democracia."

Occupy: da indignação à democracia real
O artigo abaixo foi escrito em setembro, a pedidos, para um caderno especial intitulado “democracia virtual” de uma revista. Na revisão, os editores decidiram não publicá-lo, quando não concordei em remover críticas diretas à democracia representativa. A justificativa editorial foi que a democracia representativa constitui um “valor fundamental” do periódico, e seria contraditório veicular críticas tão radicais a ela. A pluralidade e a expressão livre do dissenso não foram consideradas um “valor fundamental”. Não me surpreendeu. É sintomático como aqueles que mais defendem os benefícios da democracia representativa sejam os primeiros a negá-los aos críticos, com o argumento de defender os benefícios da democracia representativa. 

Versão em PDF para impressão aqui: http://www.4shared.com/office/FtCEVm2B/A_democracia_real_como_constru.html




Este é um mundo bem mais infame, não é muito alentador o mundo em que nascemos, mas há outro mundo esperando na barriga deste. É um mundo diferente e de parto difícil e não é fácil que nasça, mas, sim, é certo que já está latindo neste mundo. Eu o reconheço nestes acampamentos.[1]

1. Introdução

            No final de 2011, começando em 17 de setembro com a ocupação de Zuccotti Park, em Nova Iorque, centenas de acampamentos improvisados tomaram praças e espaços públicos pelos Estados Unidos[2]. Auto-organizado e sem líderes anunciados, o movimento adotou o imperativo Ocupar [Occupy] e se alastrou para dezenas de países[3]. Nenhuma bandeira partidária ou eleitoral foi levantada, mas as ocupações compartilharam princípios, ideias e formas organizacionais; adaptando-se às particularidades de cada lugar. Em pouco tempo, esse movimento de protesto impactou irremediavelmente a percepção sobre a realidade política[4], aglutinou forças e movimentos heterogêneos e organizou a primeira greve geral nos EUA desde 1946 (em Oakland, Califórnia). O slogan mais difundido do Occupy, Nós somos os 99% [We are the 99%], pontuou a desigualdade profunda da sociedade, contrastada entre a acumulação e privilégios de uma pequena minoria e a escassez e exploração da grande maioria.
            Mais de um ano depois da ocupação de Zuccotti Park, talvez se possa esboçar uma investigação sobre o sentido que se tem falado, e se possa falar, que o Occupy seja inovador. Enquanto forma de organização, pauta política ou engendramento de instituições, até que ponto se pode afirmar que o Occupy traz algo novo?

2. A indignação e as recusas do Occupy

            Não é difícil identificar as causas negativas do Occupy. Desde 2008, os Estados Unidos sofrem uma crise econômica e financeira[5] que pôs a nu a tremenda desigualdade de sua sociedade. Os efeitos da crise foram sentidos mais severamente pelos mais pobres. Uma onda de insolvência arruinou projetos de vida de muitos que não puderam arcar com as prestações da casa própria e financiamentos de bens duráveis, os próprios estudos ou dos filhos, planos de saúde e previdência, ou simplesmente com as faturas do cartão de crédito. Para a maioria, o padrão de vida conquistado nos últimos anos se tornara simplesmente insustentável. O endividamento geral alimentou uma sensação de isolamento e frustração, destruindo expectativas e sonhos.
            Nesse contexto, o governo norte-americano decidiu salvar os bancos e não as pessoas. Sob o pretexto de evitar a catástrofe, houve transferências massivas do erário público diretamente às instituições bancárias, no maior resgate (“bailout”) da história. Por um lado, a manobra revelou como os governos e o sistema financeiro compartilham lençóis, destroçando a crença que o estado exerceria comando último ou regulação eficaz dos fluxos de capital e investimento. Por outro lado, levou as pessoas à percepção de que havia algo de muito errado no âmago de seu regime político. As dívidas bilionárias do topo eram perdoadas, enquanto as da população implacavelmente cobradas, através de execuções judiciais, cancelamentos de crédito e despejos. A desculpa padrão consistiu em dizer que perdoar as relativamente pequenas dívidas das pessoas significaria corromper os fundamentos da sociedade, um “risco moral” na medida em que elas não se sentiriam mais obrigadas a trabalhar e cumprir seus deveres. O recado implícito era que as pessoas deveriam trabalhar mais e acumular mais empregos porque não era suficiente. Não por acaso, quando das primeiras ocupações nos EUA, críticos reacionários chamaram os manifestantes de fracassados ou vagabundos, e recomendaram que arrumassem um emprego [get a job]. Um passo importante para os protestos consistiu em rejeitar a culpa que o próprio sistema atribui, ao propagar a ideia que cada um é responsável individualmente por seu próprio sucesso e felicidade. No momento da crise, para se autopreservar, os representantes da ordem estabelecida tentaram sobrecarregar as pessoas de ainda mais obrigações, deveres e sacrifícios, manipulando a culpa e usando o medo do colapso, como chantagem para manter-se no poder ou mesmo fortalecer-se em meio às incertezas.
            Com a crise, essa narrativa de tonalidade moral se tornou cínica e insuportável. Ao contrário da explicação oficial, a responsabilidade se evidenciava como do próprio sistema, incompetente para solucionar os problemas que ele mesmo produzira, sempre dependente de recursos públicos colhidos junto da população. Por isso, a primeira e mais audível recusa de um movimento como o Occupy foi desencarregar as pessoas da atribuição de responsabilidade, mudando o sinal da culpa e do medo. Essa moralização se revela funcional para impedir que a pessoa se movimente politicamente, que perceba a sua condição como resultado de um tipo de hierarquia social e regime político, isto é, como uma condição coletiva e que, portanto, pode ser resistida coletivamente. Daí a potência do Occupy como mudança de uma percepção social e política: a culpa está mais enraizada institucionalmente, é culpa de um poder político que conserva e reproduz o sistema econômico-financeiro, e que nos fabrica como indivíduos impotentes e submetidos à moral das cobranças e obrigações. Trata-se então de perceber como esse modo de culpar tem por objetivo a servidão voluntária, o que, no conjunto, tem servido para sustentar determinada estrutura produtiva. Uma que funciona mediante a privatização dos ganhos suportada pela socialização das perdas, numa desigualdade operada e legitimada pelo estado e a democracia representativa.
            Tudo isso, aos poucos, foi ganhando visibilidade e dizibilidade com o aprofundamento da crise disparada em 2008, e a consequente proliferação de lutas e resistências, até culminar na explosão do Occupy.
            Quando se tornou óbvia a conexão entre crise econômico-financeira e a democracia representativa, foi por água abaixo a separação artificiosa entre leis econômicas e a esfera política. Agora, o mercado e a economia não pareciam mais guiados por leis naturais e condições objetivas, entendidas apenas por especialistas e insondáveis ao cidadão, mas por decisões políticas bastante palpáveis. A pretensão de passar por “racionalidade econômica” ou “interesse geral” deixou de ser uma verdade  estabelecida, o que escancarou a escandalosa distância entre as pessoas e seus representantes; entre o poder dos muitos e as instituições que o exercem em nome deles, para favorecer poucos.
            Seis meses antes do Occupy Wall Street (OWS), um protesto de grande escala chegou a reunir 100 mil ativistas[6] de movimentos sociais, sindicatos e alguns setores do Partido Democrata, em Madison, capital do estado norte-americano de Wisconsin, contra as medidas de austeridade propostas pelo governo local, sob o pretexto de sanar o déficit das contas públicas. Embora contasse com uma composição um pouco diferente do Occupy, o protesto em Madison foi um antecedente do movimento, tanto por emergir do mesmo contexto de crise, como também pelas várias ocupações do espaço público por meses a fio. Vale lembrar que as ocupações em Wisconsin já aconteceram sob o pano de fundo das revoluções árabes e da Praça Tahrir, transmitida ao vivo e em cores pela TV Al Jazeera e mídias livres.
            Cercadas por todos os lados pelos constrangimentos causados pela crise, muitas pessoas não se resignaram a esperar que os governos viessem em socorro. Em vez disso, resolveram enfrentar a condição (induzida) de isolamento, por meio da organização política, na alegria da ação coletiva. Se a insegurança econômica e a situação de endividamento tendem a aumentar a sensação de solidão e drenar a motivação política; uma mobilização potente como o Occupy restaura o sentimento de engajamento pessoal, empoderando as pessoas a lutar e fazer da condição precarizada e indignada uma ação concreta de revolta e proposição. A essa altura, essas pessoas não depositavam mais esperança nos representantes governamentais, já que eles próprios haviam sido parte do problema, já que os acontecimentos indicavam que as instituições políticas e o sistema financeiro eram variáveis da mesma equação viciada.
            Ao se decidir começar uma ocupação diante dos arranha-céus das instituições financeiras de Wall Street, o caso não estava simplesmente em ocupar o coração do sistema financeiro global. Mas também o coração do poder político, isto é, o lugar onde as verdadeiras decisões sobre o futuro de todos estão sendo tomadas. Foi caso de retomar o próprio poder político usurpado por financistas e governantes. Ocupar Wall Street não significou, portanto, o alfa e o ômega do movimento, como se estivesse tudo bem com o restante da sociedade, bastando corrigir os desajustes do sistema financeiro. Esse seria o próprio “discurso emergencial” dos governos, que impõem sacrifícios à população, enquanto anunciam um incremento maior da regulamentação sobre o mercado financeiro, — como se o problema por trás da crise não fosse estrutural e sistêmico. A divisão entre os 99% e o 1% é mais profunda e enraizada na sociedade, do que meramente opor Wall Street a Main Street (a “Rua Principal”, o que no uso cultural norte-americano remete aos “valores tradicionais”[7]), o sistema financeiro versus o mundo do trabalho “real”. Não há motivo, aqui, para nostalgia de “bons patrões” ou moral do “bom trabalhador”[8].
            Diante de todo esse quadro, soa extremamente cínica a cobrança quase exasperada com que jornalistas interpelam os militantes do movimento. Por que se revoltam, afinal?
            Como anotou o blogueiro e professor Idelber Avelar:
O que é tão difícil de entender aqui? até mesmo um garoto de nove anos de idade, Sam Kesler, acampava na recém-nomeada Praça Liberdade com total clareza de seus motivos para estar ali: “o nosso sistema está montado para tirar dos pobres e dar aos ricos. É o contrário de Robin Hood. Não faz nenhum sentido!”.[9]
            Além disso, quando reclamam (ou secretamente se comprazem) da falta de uma pauta de reivindicações do movimento, se enganam sobre um aspecto essencial. O Occupy não teria como dirigir-lhes uma pauta de reivindicações, pois não lhes reconhecem como legítimos representantes. Não aceitam, de princípio, as estruturas e mediações da democracia representativa, como hábeis para resolver os problemas. Na realidade, os representantes – nos governos, instituições financeiras ou grande imprensa – simplesmente não têm a menor ideia de como resolver a crise, e mesmo que tivessem, não seriam respostas interessantes aos 99%. Por isso, os ativistas do Occupy não perdem tempo reivindicando a quem nada lhes poderia oferecer, senão reformas cosméticas e promessas insossas de reequilíbrio do sistema.

3. A positividade e a construção de novas instituições

             Não há dúvida que o movimento Occupy se manifesta por meio de uma negatividade muito acentuada em relação à ordem político-econômica, entendida numa acepção ampla que engloba as instituições da democracia representativa, o sistema financeiro, a grande imprensa e a própria esquerda convencional em partidos e sindicatos. As recusas e indignações, no entanto, não exprimem simplesmente o aspecto destrutivo dos protestos em relação ao existente. Para compreender melhor um movimento de grande repercussão, é preciso também entender como se esforça construtivamente em apresentar alternativas. Ou seja, como a resistência ao poder igualmente importa desenvolver coletivamente instâncias de contrapoder, que possam adquirir consistência e duração para continuar agindo no “tempo longo”. As ações em parte destrutivas dos novos movimentos, de fato, refletem a falta de perspectivas dentro da sociedade, mas isso significa antes a construção de uma perspectiva alternativa, em dissonância com a atual, do que qualquer esboço de violência gratuita ou desvairada. A indignação constitui apenas o “grau zero” de uma mobilização com efetividade. A negatividade, ao fim e ao cabo, está assentada sobre uma positividade. A investigação pela positividade, aqui, consiste em desdobrar como o movimento Occupy pode se inscrever numa revolução permanente mais gradual, de que ele exprime um tempo mais “quente” e explosivo.
            Escrevendo num dos momentos mais destrutivos do ciclo de lutas de 2011, quando levantes e quebradeiras tomavam as ruas de Londres, Judith Revel e Antonio Negri são enfáticos em atribuir precedência ao momento da positividade em relação à negatividade dos protestos:
[E]stes não são movimentos caótico-niilistas, não se trata de queimar por queimar, não se quer decretar a potência destrutiva de um no future inédito. Quarenta anos depois do movimento punk (que, diferentemente dos estereótipos, foi apaixonadamente produtivo), não são movimentos que decretam o fim de todo futuro, mas que, ao contrário, querem construí-lo.[10]
            Mas em que consiste essa construção? E o que, nesse movimento, sucede de novo, que mereça a atenção de todos aqueles que lutam por mudança? Menos do que recair num fetichismo do novo, como se a inovação fosse boa por si, trata-se de interrogar sobre a diferença qualitativa do Occupy ante a memória de lutas e movimentos.
            Uma primeira tentativa poderia ser apontar na forma da ocupação, no imperativo Ocupar, um aspecto inovador. O que, no entanto, se depara com uma longa tradição de movimentos de ocupação, que vão das ocupações de fábricas, universidades e teatros, até as ocupações urbanas de prédios abandonados por grupos ativistas, sem tetos e/ou centros sociais ou culturais autônomos. Na América Latina, por exemplo, não se podem esquecer as ocupações protagonizadas pelo movimento zapatista ou os assentamentos “ilegais” do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ou mesmo, numa acepção mais ampla, as próprias favelas como ocupações permanentes “clandestinas”, que constroem suas instâncias locais de contrapoder e culturas de resistência.
            Outra tentativa estaria em priorizar na apreensão da força inovadora do Occupy a dimensão global dos protestos. É evidente que, agora, a par das questões locais e nacionais, se estabeleceu uma rede global de contágios entre as lutas da primavera no norte da África e Oriente Médio, do verão europeu dos indignados do 15-M e, finalmente, do outono americano do Occupy. Esse duplo rendimento global e local, no entanto, tampouco difere de outros momentos da tradição de esquerda, desde as mobilizações contra a guerra do Vietnã, o ciclo alterglobalização e seus enfrentamentos maiores em Seattle (1999) e Gênova (2001), ou os Dias de Ação Global contra a guerra do Iraque (2003-04). Todas essas importantes lutas foram mundializadas por meio de uma produção de mídia e organização política atravessando fronteiras e idiomas.
            Uma das conclusões mais frequentes, e talvez mais mal compreendidas, esteja em assinalar no movimento Occupy a inovação da forma-rede e das tecnologias digitais. De fato, a organização se robusteceu bastante com as redes sociais, como IRC, Facebook, Skype, Twitter ou Meetup. Essas mídias ajudaram a coordenar eventos, propagar mensagens e adensar os debates e processos de formação de consenso e dissenso. Mais do que servir de canal de divulgação, elas contribuíram para a organização elas mesmas, como expressão e conteúdo do movimento[11]. Essas redes e mídias digitais estiveram todo o tempo enredadas e presentes nas ocupações físicas, em coengendramento.  Seu papel foi, sem dúvida, fundamental, e não se resumiu a propiciar ferramentas para os objetivos da luta.
            Isto não significa, contudo, que participar delas já seria suficiente por si só, ou que teriam sido a causa principal das mobilizações, o que seria superestimar sua relevância, como se fossem possíveis revoluções pelo Twitter ou Facebook. Por vezes, essas tecnologias são encaradas como soluções em si próprias: a sua mera aplicação seria capaz de conferir um sentido libertador, potenciando os novos movimentos. É uma espécie de tecnutopia reeditada, que contorna o fato que a transversalidade e a produtividade das redes e mídias já constituem lugares de disputa incessante. A disseminação das tecnologias não significa nada, – em termos construtivos de autonomia e libertação, – se não vier acompanhada de uma incansável luta política. Assim foi com o surgimento das ferrovias e do telégrafo, no século 19, e da televisão e do rádio, no último século, – quando utopistas como Saint Simon se apressaram em anunciar a chegada de uma nova era da associação humana universal, – possibilitada pelo avanço da técnica em si mesma. Não tardou para que se conhecerem os efeitos ambivalentes dessas tecnologias[12].
            A luta política ainda é (e continuará sendo) indispensável para assegurar a democracia do processo e combater as capturas, tais como tentativas de instalar componentes de verticalidade por dentro das tecnologias, ou reduzi-las a hypes criativos, a alguma new big idea e produtos imateriais imediatamente comercializáveis por empresas especializadas em parasitismo. A internet é a maior prova da persistência da luta. A democracia não se resolve em algoritmos. Toda produção e circulação de informação detêm rivais na medida mesma de sua dimensão política. Dizer vivas à rede não pode nos levar a renunciar à política.
            Nesse quesito, o movimento Occupy responde ao problema com uma dupla afirmativa: yes networks, yes politics. Além do intenso fluxo de informações nas redes e mídias, as ocupações não prescindiram de uma existência física. Os ativistas, em maior ou menor grau de envolvimento, ficaram efetivamente na praça. Difundiu-se o slogan Organizar online, ocupar offline [Organize online, occupy offline]. Os manifestantes resistiram com seus próprios corpos, contra todo o tipo de dificuldade: repressão policial, condições climáticas, epidemias e conflitos internos. A infraestrutura dos acampamentos demandou um trabalho duro e disciplinado de organização, para garantir alimentação, acomodações, higiene, segurança, cuidados médicos e outras facilidades[13].
            Para a professora e ativista do OWS, Jodi Dean:
Destacadamente, ainda que o Occupy se utilize de redes e telas do capitalismo comunicativo, a sua energia vem de uma vanguarda de ativistas comprometidos e disciplinados, que sustentaram as ações nas ruas. O emassamento físico de pessoas fora produziu um novo sentido na Esquerda norte-americana, que a resistência coletiva era novamente possível aqui. Os manifestantes deliberada e abertamente abandonaram o roteiro de marchas anódinas, para adotar a nova, incessante e exigente prática da ocupação. Eles escolheram a inconveniência em uma sociedade ideologicamente comprometida com a conveniência.[14]
            Sobre esse tema, novamente Idelber Avelar:
É exatamente por isso que nada é mais ingênuo que celebrar as novas tecnologias digitais como instrumentos emancipatórios em si. Foi a rebelião presencial que desatou, tanto nos EUA como na Inglaterra e no Egito, a repressão aos fluxos digitais, com cancelamento de contas, bloqueio de circuitos e censura a mensagens subversivas. Justamente porque as ágoras digitais e físicas não estão separadas – ou seja, porque elas compõem a teia do capitalismo cognitivo, não tem sentido tecer loas ao poder liberador das novas tecnologias sem reconhecer que o inimigo acusou o golpe precisamente porque o povo revoltoso ocupou a praça. Nenhuma ocupação da praça acontecerá sem fluxo de energia revolucionária digital. Nenhum trabalho de rede substituirá a ocupação da praça.[15]
            O posicionamento das redes ativistas em acampamentos pelas cidades determinou a qualidade do movimento. Não tanto o fato de ocupar ou o caráter global, mas o arranjo desses elementos de uma maneira singular, recusando as receitas preexistentes da esquerda convencional. Uma vez situado nos territórios, o movimento Occupy pôde se defrontar não só com os fluxos de trabalhadores pelos espaços públicos no dia a dia, mas também com a realidade das pessoas em situação de rua, os dependentes químicos, os desabrigados, e um longo etcétera de pessoas inclassificáveis que se aproximam e terminam participando dos acampamentos[16]. Esses encontros, apesar de geralmente demandantes e desgastantes, ampliaram e redimensionaram o escopo das atividades de organização e mobilização, conferindo-lhes maior consistência política. Graças à existência física nas cidades, o problema dos 99% foi sucessivamente recolocado no interior do próprio movimento[17].

4. Conclusão

            Se existe um novo, no sentido forte, como acreditamos, no movimento Occupy, enquanto expressão de um estado de lutas globais, ele deve ser pesquisado nesse entrecruzamento das redes e mídias com a reapropriação efetiva da cidade. Está num plano de composição em que todos esses elementos se arranjam produtivamente, simultaneamente como autonomia e antagonismo. É nesse agenciamento que se determinam as coordenadas de espaço e tempo do movimento, bem como as possibilidades de alianças e propagações. Isso sem perder de vista o contexto de resistência ao modo de governar do capitalismo hoje, que encontra nas finanças sua principal rótula e seu cérebro, e que dessa maneira condiciona as formas de lutar e ocupar.
            Se o Occupy ensina algo de fundamental para todas as ações que se proponham à transformação radical deste mundo, é que a democracia real não dispensa a imaginação e construção de instituições capazes de lidar com as divisões reais da sociedade e suas violências de classe/raça/gênero, impregnadas na própria estrutura produtiva e no regime político. Essas instituições em construção durante o Occupy e o movimento global de que é expressão, embora autônomas e imaginativas, não deixam de se calcar em conflitos e desafios bastante candentes e sem solução à vista. Enfrentá-los sem culpa ou medo, na ação coletiva, no entanto, é o primeiro passo para outra forma de fazer política e democracia.
            Em suma, só faz sentido pensar em democracia real quando se enfrenta o intolerável diluído nas instituições e estruturas do capitalismo supostamente “democrático” em vigor hoje. Este “mundo infame” de cuja barriga só a luta, e a constante reafirmação de propósito da luta, podem fazer rebentar o novo mundo. Se o futuro já está embutido como força minoritária do presente, preenchê-lo de realidade consiste numa tarefa política.
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5. Referências:

Textos:

ALIM, Samy H. What if we occupied language. 26/12/2011. In The New York Times. Traduzido pela Vila Vudu em 30/12/2011, no site Redecastorphoto:

AVELAR, Idelber. Sete teses sobre as ocupações de 2011. 14/02/2012. In blogue pessoal (Um Outro Olhar, na Revista Fórum).
______________. Ocupar Wall Street e o poder constituinte da multidão. 11/01/2012. In blogue pessoal (Outro Olhar, na Revista Fórum)

CAVA, Bruno. OcupaRio: l´etcaetera on marche. In revista Chimères: revue des schizoanalyses. Toulouse, outubro/2012. n.º 77, p. 55-62.

DEAN, Jodi. The communist horizon. Nova Iorque: Verso, 2012.

FUMAGALLI, Andrea; MEZZADRA, Sandro (orgs.). A crise da economia global: mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

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HOWELL, Sharons; FELDMAN, Richard. Madison: uma chance de recomeço para os EUA. Trad. Bruno Cava. 09/03/2012. In portal Outras Palavras (http://www.outraspalavras.net/2011/03/09/madison-uma-chance-de-recomeco-para-os-eua/)

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MOORE, Michael. America is NOT broke. 05/03/2012. In site Openmike:

OWS (texto coletivo). 2011: A year in revolt. 3/1/2012. In site oficial OWS. (http://occupywallst.org/article/2011-year-revolt/)

PASQUINELLI, Matteo. Animal Spirit: a bestiary of the Commons. Bélgica: NAi Publishers, 2008.

REVEL, Judith; NEGRI, Antonio. Il comune in rivolta. 13/08/2011. In site Universidade Nômade. (http://www.uninomade.org/il-comune-in-rivolta/)

Verbetes – Wikipedia:

List of Occupy movement protest locations.

Main Street.

Filmes:

Inside job (Charles Fergunson, EUA, 2010, 120 min.)

Rise like lions: OWS and the seeds of revolution (Scott Noble, EUA, 2011, 97 min.)

The flaw (David Sington, EUA, 2011, 78 min.).


[1] GALEANO, Eduardo. Hay otro mundo en la barriga de este y lo reconozco en las acampadas. 28/05/2011. Transcrição de entrevista concedida na Praça Catalunha, Barcelona (Espanha), tomada pelo acampamento do movimento dos indignados do 15 de Maio. In site Periodismohumano. (http://periodismohumano.com/sociedad/hay-otro-mundo-en-la-barriga-de-este-y-lo-reconozco-en-las-acampadas.html) (tradução nossa)
[2] Apanhado das realizações do movimento em 2011, em OWS (texto coletivo). 2011: A year in revolt. 3/1/2012. In site oficial OWS. (http://occupywallst.org/article/2011-year-revolt/)
[3] Para uma relação abrangente dos locais ocupados em vários países, vale consultar o verbete da Wikipedia: List of Occupy movement protest locations. (http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Occupy_movement_protest_locations)
[4] ALIM, Samy H. What if we occupied language. 26/12/2011. In The New York Times. Traduzido pela Vila Vudu em 30/12/2011, no site Redecastorphoto (http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2011/12/palavra-do-ano-e-occupy.html)
[5] Dois documentários propiciam um panorama inicial para compreender a crise: Inside job (Charles Fergunson, EUA, 2010, 120 min.) e The flaw (David Sington, EUA, 2011, 78 min.). Para um trabalho insider do próprio movimento Occupy, a principal referência ainda é Rise like lions: OWS and the seeds of revolution (Scott Noble, EUA, 2011, 97 min.). Este documentário feito com imagens dos próprios manifestantes pode ser visto online em http://www.openfilm.com/videos/rise-like-lions
[6] MOORE, Michael. America is NOT broke. 05/03/2012. In site Openmike (http://www.michaelmoore.com/words/mike-friends-blog/america-is-not-broke). Trad. VilaVudu in site Redecastorphoto (http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2011/03/nao-queremos-ser-os-estados-dos.html). HOWELL, Sharons; FELDMAN, Richard. Madison: uma chance de recomeço para os EUA. Trad. Bruno Cava. 09/03/2012. In portal Outras Palavras (http://www.outraspalavras.net/2011/03/09/madison-uma-chance-de-recomeco-para-os-eua/)
[7] Conforme verbete Main Street, na Wikipedia: (http://en.wikipedia.org/wiki/Main_Street)
[8] Sobre a inseparabilidade do sistema financeiro e da “economia real”, por todos, FUMAGALLI, Andrea; MEZZADRA, Sandro (orgs.). A crise da economia global: mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
[9] AVELAR, Idelber. Ocupar Wall Street e o poder constituinte da multidão. 11/01/2012. In blogue pessoal (Outro Olhar, na Revista Fórum) (http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/01/11/ocupar-wall-street-e-o-poder-constituinte-da-multidao/)
[10] REVEL, Judith; NEGRI, Antonio. Il comune in rivolta. 13/08/2011. In site Universidade Nômade. (http://www.uninomade.org/il-comune-in-rivolta/) (tradução nossa).
[11] MEDINA, Javier T. Una mirada tecnopolítica sobre los primeros dias Del #15M. Maio/2011. In site Universidad Nómada. (http://www.universidadnomada.net/spip.php?article380)
[12] Uma referência para a crítica das novas tecnologias digitais e de rede como essencialmente libertadoras (o “digitalismo”), em PASQUINELLI, Matteo. Animal Spirit: a bestiary of the Commons. Bélgica: NAi Publishers, 2008. Principalmente o capítulo 2. Disponível em http://matteopasquinelli.com/docs/temp/Pasquinelli_Animal_Spirits.pdf
[13] É curioso anotar, também, como no momento em que o governo egípcio de Hosni Mubarak derrubou a quase totalidade dos serviços de internet da população, no início de fevereiro de 2011, os protestos cresceram, porque mais pessoas saíram às ruas e se envolveram na construção do movimento. Em certo sentido, e isso é digno de reflexão, a própria Praça Tahrir se fortaleceu, quantitativa e qualitativamente, com o apagão das redes sociais, uma vez que, não sabendo o que fazer ou para onde ir, os ativistas se concentraram como um enxame no ponto nevrálgico do protesto.
[14] DEAN, Jodi. The communist horizon. Nova Iorque: Verso, 2012. p. 216, 217. (tradução nossa)
[15] AVELAR, Idelber. Sete teses sobre as ocupações de 2011. 14/02/2012. In blogue pessoal (Um Outro Olhar, na Revista Fórum). (http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/02/14/sete-teses-sobre-as-ocupacoes-de-2011/)
[16] Sobre o assunto, o meu: CAVA, Bruno. OcupaRio: l´etcaetera on marche. In revista Chimères: revue des schizoanalyses. Toulouse, outubro/2012. n.º 77, p. 55-62.
[17] MONKS, Kieron. Occupy must embrace the homeless and marginalised, not shun them. 07/02/2012. In The Guardian. (http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2012/feb/07/occupy-homeless-marginalised)

Fonte: Quadrado dos Loucos