janeiro 31, 2013

"A Sociedade do Espetáculo", de Guy Debord

PICICA: O âncora do Jornal Nacional, da TV Globo apresentando o noticiário na porta da boate de Santa Maria, é o exemplo mais degradante do uso da imagem no processo de alienação da sociedade moderna.


La Societé du spectacle - Guy Debord (Esp/Eng/Ita/Por/Rus/Pol Subs)


- La Société du spectacle est un film français réalisé par Guy Debord, sorti en 1973. Ce film, selon la théorie du détournement développée par les situationnistes, se compose d'extraits d'autres œuvres mis en lien avec certains passages du livre du même nom, lus par lui-même.

- La sociedad del espectáculo es un filme francés realizado por Guy Debord, estrenado en 1973. Este filme, según la teoría del détournement desarrollado por los situacionistas, se compone de extractos de otras obras puestas en relación con ciertos pasajes del libro del mismo autor, leídos por él mismo.

- Society of the Spectacle is a black and white 1973 film by the Situationist Guy Debord based on his 1967 book of the same name. It was Debord's first feature-length film. It uses found footage and detournement in a radical Marxist critique of mass marketing and its role in the alienation of modern society.

- A Sociedade do Espetáculo.

- La società dello spettacolo.

"“Cuida de ti mesmo”. Entrevista com Michel Foucault" (IHU)

PICICA: "O exercício das práticas de liberdade não exige um grau de libertação?

Sim, é claro. Por isso, é preciso introduzir a noção de dominação. As análises que tento fazer se centram fundamentalmente nas relações de poder. E entendo por relações de poder algo diferente dos estados de dominação. As relações de poder possuem uma extensão extraordinariamente grande nas relações humanas. Isto não quer dizer que o poder político esteja em todas as partes, mas sim que nas relações humanas se imbrica todo um feixe de relações de poder que podem ser exercidas entre os indivíduos, no interior de uma família, numa relação pedagógica, no corpo político, etc. A análise das relações de poder constitui um campo extraordinariamente complexo. E esta análise se encontra, às vezes, com aquilo que podemos denominar fatos ou estados de dominação, em que as relações de poder ao invés de serem instáveis e permitir aos diferentes participantes uma estratégia que as modifiquem, encontram-se bloqueadas e fixadas. 

Quando um indivíduo ou um grupo social consegue bloquear um campo de relações de poder, fazendo destas relações algo imóvel e fixo e impedindo a mínima reversibilidade de movimentos – mediante instrumentos que podem ser tanto econômicos como políticos ou militares -, nós nos encontramos diante do que podemos denominar um estado de dominação. É correto que numa situação deste tipo as práticas de liberdade não existem, ou existem apenas unilateralmente ou são recortadas e extraordinariamente limitadas. Estou de acordo com você que a libertação é, em certas ocasiões, a condição política ou histórica para que possam existir práticas de liberdade. Caso considerarmos, por exemplo, a sexualidade, é evidente que foi necessário uma série de libertações em relação ao poder do macho, que foi preciso se libertar de uma moral opressiva que diz respeito tanto à heterossexualidadecomo à homossexualidade. Contudo, esta libertação não permite que surja uma sexualidade plena e feliz, em que o sujeito teria alcançado, no final, uma relação completa e satisfatória. A libertação abre um campo para novas relações de poder, que é necessário controlar através das práticas de liberdade."


“Cuida de ti mesmo”. Entrevista com Michel Foucault

Poucos meses antes da morte de Michel Foucault (foto), em 1984, publicou-se pela primeira vez esta entrevista, na qual – em diálogo com o filósofo cubano Raúl Fornet-Beancourt [com Helmut Becker e Alfredo Gómez-Muller] – explicou e esclareceu erros sobre conceitos centrais de sua pesquisa: a noção de “cuidado de si mesmo”, os “jogos de verdade”, as “práticas de liberdade”, a diferença entre poder e dominação, e outros mais. Os fragmentos da entrevista com Foucault, realizada em 20 de janeiro de 1984 (Revista Concordia, 1984), são publicados no jornalPágina/12, 24-01-2013. A tradução é do Cepat. 

Eis a entrevista.

Produziu-se um salto entre sua problematização anterior e a atual, a partir do conceito de “cuidado de si mesmo”?
Eu havia enfocado o problema das relações existentes entre o sujeito e os jogos de verdade a partir de práticas coercitivas, tais como a psiquiatria e o sistema penitenciário, ou sob a forma de jogos teóricos ou científicos, tais como a análise das riquezas, da linguagem ou do ser vivente. Em meus cursos, noCollège de France, tentei captar este problema por meio do que poderia se denominar uma prática de si mesmo, que em meu parecer é um fenômeno importante em nossas sociedades, desde a época greco-romana, apesar de não ter sido estudado. Estas práticas de si mesmo tiveram na civilização grega e romana uma importância e, sobretudo, uma autonomia muito maiores do que tiveram posteriormente, quando se viram assumidas, em parte, por instituições religiosas, pedagógicas, de tipo médico e psiquiátrico.

Trata-se de um trabalho de alguém sobre si mesmo, que pode ser compreendido como uma determinada liberação, como um processo de libertação.

No que se refere a isto, teríamos que ser um pouco mais prudentes. Sempre desconfiei um pouco do tema geral da libertação, na medida em que, caso não o tratemos com algumas precauções e no interior de determinados limites, corre-se o risco de recorrer à ideia de que existe uma natureza ou um fundo humano que tem sido mascarado, alienado ou aprisionado em e por mecanismos de repressão, como consequência de um determinado número de processos históricos, econômicos e sociais. Caso seja aceita esta hipótese, bastaria saltar estes bloqueios repressivos para que o homem se reconciliasse com ele próprio, para que se reencontrasse com sua natureza ou retomasse o contato com sua origem, restaurando uma relação plena e positiva com ele próprio. 

Parece-me que este pensamento não pode ser admitido de qualquer jeito, sem ser previamente submetido ao exame. Com isto não quero dizer que a libertação, ou melhor, determinadas formas de libertação, não existam. Quando um povo colonizado tenta se libertar de seu colonizador, estamos diante de uma prática de libertação em sentido estrito. Porém, sabemos muito bem que, também neste caso concreto, esta prática de libertação não basta para definir as práticas de liberdade que serão a continuidade necessária para que este povo, esta sociedade e estes indivíduos possam definir formas válidas e aceitáveis de existência ou formas mais válidas e aceitáveis naquilo que se refere à sociedade política. Por isso, insisto mais nas práticas de liberdade do que nos processos de libertação que, é preciso dizer mais uma vez, possuem seu espaço, mas que não podem por eles mesmos, em minha opinião, definir todas as formas práticas de liberdade. Estamos diante de um problema do qual tenho me ocupado, justamente na relação com a sexualidade. Faz sentido dizer “libertemos nossa sexualidade”? O problema não consiste mais em tentar definir as práticas de liberdade, por meio das quais poderia se definir o que é o prazer sexual, as relações eróticas, amorosas e passionais com os outros? Este problema ético, da definição das práticas de liberdade, parece-me muito mais importante do que a afirmação, um tanto batida, de que é necessário libertar a sexualidade ou o desejo.

O exercício das práticas de liberdade não exige um grau de libertação?

Sim, é claro. Por isso, é preciso introduzir a noção de dominação. As análises que tento fazer se centram fundamentalmente nas relações de poder. E entendo por relações de poder algo diferente dos estados de dominação. As relações de poder possuem uma extensão extraordinariamente grande nas relações humanas. Isto não quer dizer que o poder político esteja em todas as partes, mas sim que nas relações humanas se imbrica todo um feixe de relações de poder que podem ser exercidas entre os indivíduos, no interior de uma família, numa relação pedagógica, no corpo político, etc. A análise das relações de poder constitui um campo extraordinariamente complexo. E esta análise se encontra, às vezes, com aquilo que podemos denominar fatos ou estados de dominação, em que as relações de poder ao invés de serem instáveis e permitir aos diferentes participantes uma estratégia que as modifiquem, encontram-se bloqueadas e fixadas. 

Quando um indivíduo ou um grupo social consegue bloquear um campo de relações de poder, fazendo destas relações algo imóvel e fixo e impedindo a mínima reversibilidade de movimentos – mediante instrumentos que podem ser tanto econômicos como políticos ou militares -, nós nos encontramos diante do que podemos denominar um estado de dominação. É correto que numa situação deste tipo as práticas de liberdade não existem, ou existem apenas unilateralmente ou são recortadas e extraordinariamente limitadas. Estou de acordo com você que a libertação é, em certas ocasiões, a condição política ou histórica para que possam existir práticas de liberdade. Caso considerarmos, por exemplo, a sexualidade, é evidente que foi necessário uma série de libertações em relação ao poder do macho, que foi preciso se libertar de uma moral opressiva que diz respeito tanto à heterossexualidadecomo à homossexualidade. Contudo, esta libertação não permite que surja uma sexualidade plena e feliz, em que o sujeito teria alcançado, no final, uma relação completa e satisfatória. A libertação abre um campo para novas relações de poder, que é necessário controlar através das práticas de liberdade.

Em si mesma, a libertação não poderia ser um modo ou uma forma de prática da liberdade?

Sim, num determinado número de casos é assim. Existem casos em que a libertação e a luta pela libertação são indispensáveis para a prática da liberdade. No que se refere à sexualidade, por exemplo – e falo isto sem o desejo de polemizar, já que não gosto de polêmicas -, acredito que na maior parte dos casos são infecundas. Existe um esquema reichiano, derivado de certa maneira de ler Freud, que supõe que o problema é apenas de libertação. Para falar de uma forma bem esquemática: existiria o desejo, a pulsão, a proibição, a repressão, a interiorização, e o problema se resolveria fazendo saltar todas estas proibições, ou seja, liberando-se. Neste esquema – eu sou consciente de que faço caricaturas de posições mais interessantes e matizadas de numerosos autores – está totalmente ausente o problema ético da prática da liberdade. Como a liberdade pode ser praticada? No que se refere à sexualidade, é evidente que é apenas a partir da liberação do próprio desejo que alguém saberá conduzir-se eticamente nas relações de prazer com os outros.

Você disse que é necessário praticar a liberdade eticamente.

Sim, porque na realidade o que é a ética senão a prática da liberdade, a prática reflexiva da liberdade? A liberdade é a condição ontológica da ética; mas a ética é a forma reflexiva que adota a liberdade.

Aquilo que se executa no cuidado de si mesmo é a ética?

O cuidado de si mesmo foi, no mundo greco-romano, o modo mediante o qual a liberdade individual, ou até certo ponto a liberdade cívica, foi pensada como ética. Se você consultar toda uma série de textos, que vão desde os primeiros diálogos platônicos até os grandes textos do estoicismo tardio – Epiteto, Marco Aurélio, etc. –, poderá comprovar que este tema do cuidado de si mesmo realmente atravessou toda a reflexão moral. Ao contrário disto, é interessante ver como em nossas sociedades o cuidado de si mesmo se converteu, e é muito difícil saber exatamente desde quando, em algo muito suspeito. Ocupar-se de si mesmo foi, a partir de um determinado momento, quase espontaneamente denunciado como uma forma de egoísmo ou de interesse individual, em contradição com o interesse que é necessário prestar aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Isto ocorreu durante o cristianismo, mas não me atreveria afirmar que se deva pura e simplesmente ao cristianismo. A questão é muito mais complexa, pois no cristianismo procurar a salvação é também uma maneira de cuidar de si mesmo. Porém a salvação se efetua no cristianismo por meio da renúncia de si mesmo. Produz-se assim um paradoxo do cuidado de si no cristianismo, mas este é outro problema. 

Para voltar à questão que você colocava, acredito que entre os gregos e os romanos, sobretudo entre os gregos, para ser bem conduzido, para praticar a liberdade como era esperado, era necessário se ocupar de si, cuidar de si, isto, por sua vez, para se conhecer e para se formar, para se superar a si mesmo, para controlar os apetites que poderiam nos dominar. A liberdade individual era para os gregos algo muito importante. Não ser escravo (de outra cidade, dos que os rodeiam, dos que os governam, de suas próprias paixões) era um tema fundamental. A preocupação pela liberdade foi um problema essencial, permanente, durante os oito grandes séculos da cultura clássica. Existiu, então, toda uma ética que girou em torno do cuidado de si, o que proporciona para a ética clássica sua forma tão particular. Não pretendo afirmar com isto que a ética seja o cuidado de si, mas que, na Antiguidade, a ética, enquanto prática reflexiva da liberdade, girou em torno deste imperativo fundamental: “cuida de ti mesmo”.

Imperativo que implica a assimilação do logos, das verdades.
Sem dúvida, não se pode cuidar de si mesmo sem se conhecer. O cuidado de si é o conhecimento de si – num sentido socrático-platônico -, mas é também o conhecimento de certo número de regras de conduta ou de princípios que são, por sua vez, verdades e prescrições. Trata-se de operar de tal modo que estes princípios digam, em cada situação e de certo modo espontaneamente, como se deve se comportar. Encontramos aqui uma metáfora que não provem dos estóicos, mas de Plutarco, que diz: “É necessário que você tenha aprendido os princípios de uma forma tão constante que, quando seus desejos, seus apetites, seus medos se despertarem como cães que ladram, o Logos fale em você como a voz do amo, que com um só grito sabe calar os cães. É esta a ideia de um Logos que de certa maneira poderá funcionar sem que você tenha que fazer nada: você terá se convertido no Logos ou o Logos terá se convertido em você mesmo”.

Poderíamos voltar à questão das relações entre a liberdade e a ética. Quando você afirma que a ética é a parte reflexiva da liberdade, quer dizer que a liberdade pode cobrar a consciência de si mesma como prática ética? É em seu conjunto e sempre uma liberdade, para dizer assim, moralizada ou é necessário um trabalho sobre si mesmo para descobrir esta dimensão ética da liberdade?

Os gregos problematizavam sua liberdade, a liberdade do indivíduo, para convertê-la num problema ético. Porém, a ética no sentido em que os gregos podiam entendê-la, o ethos, era a maneira de ser e de conduzir-se. Era certo modo de ser do sujeito e uma determinada maneira de se comportar que se tornava perceptível aos demais. O ethos de alguém se expressava por meio de sua forma de vestir, de seu aspecto, de sua forma de andar, por meio da calma com a qual enfrentava qualquer acontecimento, etc. Nisto consistia para eles a forma concreta da liberdade. É assim que problematizavam sua liberdade. Aquele que possui um ethos nobre, um ethos que pode ser admirado e citado como exemplo, é alguém que pratica a liberdade de uma determinada maneira. Não acredito que seja necessária uma conversão para que a liberdade seja pensada como ethos, mas que a liberdade é diretamente problematizada como ethos. Contudo, para que esta prática da liberdade adote a forma de um ethos que seja bom, belo, honorável, estimável, memorável, e que possa servir de exemplo, é necessário todo um trabalho sobre si mesmo.

*A versão completa pode ser consultada em: http://www.topologik.net/Michel_Foucault.htm, com o título “La ética del cuidado de uno mismo como práctica de la libertad”.
Fonte: IHU

"Homofobia, o novo muro que divide a Europa" (IHU)

PICICA: "Polônia, Hungria, República Tcheca: uma geração após o fim do império do mal, aumentam as discriminações e hostilidades contra as comunidades gays, alimentadas por minorias populistas que incitam o ódio para obter consensos. No silêncio das instituições europeias e muitas vezes também da Igreja." 

 

Homofobia, o novo muro que divide a Europa

Polônia, Hungria, República Tcheca: uma geração após o fim do império do mal, aumentam as discriminações e hostilidades contra as comunidades gays, alimentadas por minorias populistas que incitam o ódio para obter consensos. No silêncio das instituições europeias e muitas vezes também da Igreja.

A reportagem é de Andrea Tarquini, publicada no jornal La Repubblica, 29-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Se você caminhar pela Nowy Swiat ou pela Krakowskie Przedmiesce, no belo centro histórico de Varsóvia, é normal ver jovens gays ou lésbicas se beijando ou de mãos dadas, mas, mais a leste, nos vilarejos e na zona rural da Polônia profunda, feudos de skinheads, católicos integralistas e nacional-populistas de Kaczynski, "eles" têm medo de caminhar sozinhos à noite.

Em Budapeste, a Corte Constitucional, em um dos últimos desafios a Orbán, rejeitou a sua lei sobre a família que reconhecia somente a união consagrada entre um homem e uma mulher para criar filhos. No entanto, os ultraviolentos da Guarda Magyar odeiam os homossexuais, assim como os ciganos e os judeus. Ameaçam e provocam, mesmo sendo teoricamente ilegais: "Se até mesmo as bichas imundas podem se manifestar, o direito de marchar também é nosso".

Até mesmo na civilizadíssima Praga, as leis são mais avançadas, mas as celebridades que optaram por sair do armário são raras, e o presidente cessante, o eurocético Vaclav Klaus, foi por muito o homofóbico mais poderoso da República, e muitas vezes protestava contra o fato de "vê-los aparecer em público".

Europa centro-oriental, início de 2013: uma geração após o fim do Império do Mal, há um Muro que ainda não caiu. O muro da homofobia, das discriminações, preconceitos e hostilidades contra os diferentes. Minorias contra as quais convém a muitos populistas incitar o ódio, e, infelizmente, a Igreja Católica, órfão daquele gênio clarividente e aberto ao mundo que foi Karol Wojtyla, muitas vezes é cúmplice ou inspiradora dos venenos.

"Não estamos na Rússia da repressão homofóbica brutal, diferenciemos bem", adverte Krystian Legierski, um dos mais proeminentes ativistas gays da Polônia, da organização pelos direitos LGBT (www.lgbt.pl). Mas certas coincidências são ruins: no mesmo dia em que, em Moscou, era aprovada a lei infame sobre a "proibição de toda propaganda gay", o primeiro-ministro liberal polonês, Donald Tusk, embolsava uma dura derrota. O Parlamento rejeitava três projetos de lei pelo reconhecimento das uniões de fato, homossexuais ou não.

Poucos meses antes, o arcebispo de Varsóvia, Kazimierz Nycz, lançara um apelo comum com o patriarca ortodoxo russo, Kirill, contra "a recusa dos valores tradicionais, que coloca cada vez mais em discussão os princípios éticos". Inimigas por séculos, as duas Igrejas se reconciliaram contra os gays.

"Foi desconcertante", relata Krystian. "No Parlamento, todos os deputados conservadores ou reacionários disseram 'não' aos direitos dos gays, remetendo-se à religião, à doutrina católica, segundo a qual a lei poria a família em perigo. No fim, 46 deputados do partido do primeiro-ministro, embora ele quisesse a lei, também votaram contra".

Na zona rural, no distante leste da "Polônia profunda", o clima é muito pior. Varsóvia é um outro mundo. "Em cidades como Bialystok, os skinheads enfurecem, as autoridades não investigam, não mexem um dedo. Os ultras atacam a nós, gays, ou os estrangeiros, impunemente. Uma vez, um jovem tchetcheno, lutador de luta livre, conseguiu se defender de seis skinheads que queriam espancá-lo até a morte. O tribunal condenou ele e não eles pela violência. Em geral, volta à vida aqui a convicção de que, se você der direitos a judeus, gays ou outras minorias, você perderá alguma coisa".

Tem um rosto feio, esquálido e inquietante o último Muro do Leste. "A outra ameaça", continua Legierski, "são os torcedores violentos: muitas vezes, eles vêm para Varsóvia para expedições antigays, especialmente para tentar ataques contra as paradas gay". Ao menos na capital, as forças especiais da polícia fazem o seu trabalho.

A discriminação, conta Yga Kostrzewa, ativista lésbica do site Lambdawarszawa.org, começa na escola. "A maioria dos livros escolares sobre moral são homofóbicos. Daí ao bullying, é um pequeno passo, e então, especialmente na zona rural, os homossexuais idosos são os mais discriminados, mas mesmo entre jovens, se você só tiver amigos gays, logo chamam você de 'bicha'. Uma das nossas associações, a Ilga, publicou no seu relatório anual o mapa do coeficiente de homofobia na Europa. A fronteira Leste-Oeste era traçada claramente: voto negativo para a Polônia, positivo para a República Tcheca, e os melhores votos no Ocidente. Mas, lentamente, a situação melhorou – explica Yga – e agora temos programas na TV pública e privada que contam sobre casais de fato gays com filhos como uma realidade normal". Uma pedra no sapato do episcopado, que condena as "aberradoras mensagens do Pecado contra a natureza".

Depois de uma hora de voo a sudoeste, a Praga, a fraqueza da Igreja e o laicismo majoritário moderam a homofobia. Mas políticos proeminentes a usaram com demagogia descarada: Klaus, que insultou a parada gay como um "desfile obsceno", ao ex-primeiro-ministro Mirek Topolanek, antigamente convidado das festas de Berlusconi na Villa Certosa. Ele atacou um rival como homossexual e judeu, mas pagou, perdendo o posto. E a lei sobre os casais de fato ao menos existe.

O quadro mais alarmante vem da Hungria de Orbán. "Ele está cultivando os novos Breivik. Chama a atenção culpar totalmente judeus e homossexuais, ciganos e estrangeiros", escreveu recentemente o New York Times. O mais triste, explica Tamás Dombos, líder da ONG Hàttér pela defesa dos gays, "é que antes de Orbán tínhamos leis de vanguarda no Leste, inclusive sobre os direitos de herança e fiscais dos casais de fato, homossexuais ou não. O novo governo ainda não os cancelou, mas a inversão de tendência é total. A nova Constituição só exalta as raízes culturais cristãs e a união entre homem e mulher para ter filhos. Não menciona mais os direitos das minorias. A lei sobre a família rejeitada pela Consulta protegia somente a família oficial heterossexual. Temo que, como fez o ditador stalinista Rákosi, queiram adotar a 'tática do salame': o corte de direitos uma fatia de cada vez. Na Fidesz, ainda não falam contra nós, mas a sua homofobia transparece: nas novas leis de direito civil, falam de proteção apenas da família heterossexual, e não mais dos casais de fato".

Sombras e ameaças sobre os direitos dos gays são insidiosas na Budapeste do autocrata. A organização juvenil do pequeno partido democrata-cristão (Kdnp, aliado da Fidesz de Orbán) marcha pelas ruas gritando "Contra os buzi" (um termo muito vulgar e injuriante).
A Guarda Magyar pede todos os dias que "as bichas sejam banidas". Orbán não apoia, mas acaricia alguns humores, explica Dombos. "Quando um deputado dos ultras de Jobbik, abertamente homofóbico e antissemita, propôs uma lei à la Rússia, três anos de detenção por propaganda homossexual, a Fidesz recusou dizendo ambiguamente que 'aqueles que vocês querem punir já são punidos pela lei'".

Para os ultras, violentos, a parada gay é um alvo favorito, diz Gábor Kuszing. "E durante dois anos a polícia proibiu a marcha. Só o recurso ao poder judiciário nos permitiu desfilar".

Os relatos do horror não param por aí. Ouvir Dombos e Kuszing provoca calafrios. "Longe de Budapeste, o medo cresce. E em todos os lugares, até mesmo na capital, a justiça e a polícia minimizam. Quando um comando neonazista atacou com bombas molotov um clube gay cheio de clientes, investigaram-nos por vandalismo, e não por tentativa de massacre que cometeram. Pior do que nunca, Jobbik é forte especialmente entre os jovens. A homofobia pode conquistar uma geração".

"Entre nós, ideias tradicionais sobre os papéis de homem e mulher, e sobre a ordem social são a base da homofobia, e não a religião", destaca Dombos. As estatísticas são assustadoras: 58% dos húngaros não gostariam de ter um vizinho gay, 49% rejeitam um colega gay.

"A discriminação contra as minorias, infelizmente, pode ter muitas faces: contra etnias, grupos sexuais, deficientes, e diz muito sobre o estado psíquico e moral de uma sociedade", constata tristemente Károly Voeroes, ex-diretor do jornal liberal Népszabadság, uma das melhores "grandes penas" independentes.

"O problema também pesa na França. Imagine aqui entre nós, onde as tradições democráticas são muito escassas. O Lord Dahrendorf nos disse uma vez que uma ditadura política pode ser desmontada em seis meses, uma economia do Estado, em seis anos, mas para mudar a mentalidade, é preciso três gerações".

"O silêncio da União Europeia – contra as discriminações e contra autocratas à la Orbán – certamente não ajuda", observa Dombos. "Ele deveriam monitorar mais os direitos humanos, incluindo os nossos". Mas outros ativistas gays não têm ilusões: "No máximo – diz o polonês Legierski –, serve o apoio de ONGs europeias. Infelizmente, a Comissão e o Parlamento Europeu no Leste muitas vezes são vistos como um arrogante opressor estrangeiro".

Fonte: IHU

"Os estupradores estão contando com você" (Bule Voador)

PICICA: "Nós precisamos revogar a licença social que os estupradores tem pra atuar. Precisamos parar de perguntar “Porque a gente acha que ele não sabia que ela não deu permissão?” que, sinceramente, é a primeira pergunta que fazemos nessa situação. Acima de tudo, como questão cultural – deixando de lado a questão jurídica – precisamos adotar a perspectiva de que interações sexuais devem sempre acontecer em um estado de consentimento expresso de todos os participantes; que qualquer outra coisa é anormal. Se alguém diz “Eu sofri uma violência sexual”, a primeira pergunta deveria ser “Porque a outra pessoa continuou a atividade sexual quando a/o parceira/o não queria?”"

 

Os estupradores estão contando com você

Respeito 

Este é um post sobre como não encorajar estupradores. Sobre como, através das suas atitudes, você pode diminuir as chances de que um estupro aconteça. Ele é baseado em estudos americanos a respeito do modus operandi de estupradores, além de estudos ingleses e australianos sobre estupro. No entanto, ao contrário da maioria dos conselhos circulando por ai a respeito disso, esse não tem nada a ver com o tamanho da sua saia. Ou com quem você sai, a que horas ou para onde. Ou com quanto interesse você demonstra em sexo. Na verdade, nem tem nada a ver com você ser mulher. Homens, prestem atenção: vocês podem contribuir tanto quanto as mulheres para desencorajar estupradores. Provavelmente, podem até contribuir mais.

É importante lembrar que o fato dos estudos aqui citados terem sido realizados em outros paises, não invalida sua aplicação à realidade brasileira. Embora não haja estudos do tipo no Brasil, nossa cultura é suficientemente parecida com a cultura destes países no que se refere aos principais fatores que influenciam o modus operandi de estupradores. Temos os mesmos mitos sobre estupro, a mesma idéia de “estupro verdadeiro” como apenas o estupro violento praticado por estranhos, temos a mesma cultura de culpabilização da vítima pelo estupro, e a mesma tendência a julgar e rotular mulheres por demonstrar interesse em sexo. Temos também a mesma cultura no que diz respeito a condicionar as mulheres a não dizer “não” de forma direta, principalmente no que se refere a um pedido sexual e/ou romântico por parte de um homem.


Nossa narrativa clássica sobre estupro tem pouco a ver com a realidade 

Responda rápido: o que vem á sua cabeça quando se fala em estupro? Provavelmente, é a imagem de um homem armado atacando uma desconhecida, em algum lugar escuro e deserto. Afinal, essa é a narrativa clássica de estupro, aquela que nos acostumamos a ver como “estupro de verdade”. No entanto, esse não é o tipo mais comum de ataque, inclusive por uma razão muito simples: nós mulheres somos ensinadas desde muito cedo a vigiar nosso comportamento a fim de “evitar um estupro”. Quantas mulheres vc conhece que andam por aí de madrugada sozinhas, de salto alto e minissaia? Na verdade, nos EUA, 70% dos estupros são cometidos por alguém que a vítima conhece. No Brasil, embora haja menos dados a respeito, dados recentes revelam que, por exemplo, dos 16 estupros por dia registrados no Estado do Rio de Janeiro em 2012, a maioria foi cometido por amigos ou conhecidos e pesquisa de vitimização do instituto Ilanud revelou que 35% dos estupros ocorrem dentro de casa, e que armas são usadas apenas em 18% dos casos, o que revela uma facilidade do agressor em abordar a vítima. Não deveria ser surpresa pra ninguém. Afinal, amigos e conhecidos tem mais acesso á vítima, contam com a confiança dela e tem mais chances de intimidá-la para que ela não os denuncie.

Por que, então, o tipo mais comum de estupro não é visto como a regra? Por que as “dicas para evitar estupro” parecem sempre presumir um agressor desconhecido, que vai atacar violentamente a mulher em um beco, ou que vai drogar sua bebida? A maioria das dicas que correm por aí não são apenas em grande parte ineficientes contra o estupro por desconhecidos (muitas mulheres, p.ex: não podem se dar ao luxo de evitar esperar pela condução em pontos de ônibus desertos, ou percorrer o caminho do trabalho até em casa a pé, em ruas mal iluminadas), elas partem de dois pressupostos errados: o de que muitos estupros são “mal-entendidos” e o de que certas atitudes da mulher são “tentadoras” demais para que o homem possa se controlar.

Esses dois falsos pressupostos permeiam praticamente todo o debate sobre estupro porque, a princípio, eles parecem verdadeiros, quase intuitivos. Afinal, se uma mulher está se comportando de uma forma que parece indicar interesse em sexo, é possível que o homem interprete tais sinais de forma errada, certo? Aceitar ir para a casa de um homem após um encontro, aceitar ir para o motel com um desconhecido após uma noite de beijos e carícias, aceitar uma carona de um colega de trabalho após meses de flerte…todos estes são comportamentos que aprendemos a interpretar como indicadores de disposição para uma relação sexual. Não é difícil de acreditar que falta de comunicação leve um homem a iniciar o contato sexual, presumindo que a mulher assim o deseja, e que ela em nenhum momento diga “não”, levando a um trágico mal-entendido no qual uma mulher se sente estuprada sem que o parceiro tenha tido a intenção de estuprá-la, certo? Na verdade, se torna cada vez mais difícil de acreditar quanto mais a gente se lembra de como a comunicação humana funciona. A maioria de nós já passou por ao menos uma situação na qual expressamos, ou vimos alguém expressar, a falta de interesse em algo sem empregar em nenhum momento a frase “Não quero fazer isso”.

Estudos de “análise de conversação” conduzidos por Ktizinger e Frith no Reino Unido e O’Bryne, Hansen e Rapley na Austrália demonstraram dois fatos muito importantes a ser levados em consideração quando se discute alegações de “mal-entendido” e “falta de comunicação” culminando em estupro. Uma é a de que mulheres são ensinadas a não recusar diretamente propostas sexuais ou românticas. As mulheres entrevistadas relatam que dizer “Não estou interessada em você” seria percebido como “rude” e “arrogante”, que elas se sentiriam “mimadas/frescas” se fizessem isso, e que em geral suas recusas eram apresentadas de forma a demonstrar uma “inabilidade” de atender á vontade do rapaz (“não posso”, em lugar de “não quero”). A segunda é a de que os homens participantes do estudo eram perfeitamente capazes de entender tais respostas, juntamente com os sinais não-verbais que as acompanham (hesitação, silêncio, etc.) como recusas. O estudo de O’Bryne, Hansen e Rapley é particularmente interessante por demonstrar que, quando perguntados sobre como eles percebem a falta de interesse de uma mulher em fazer sexo ao final de um encontro, nenhum dos exemplos fornecidos pelos participantes icnluiu uma recusa explícita. É também digno de nota o fato de que estes homens declararam que, quando eles recusam sexo, também recorrem a frases que, embora mais diretas do que as femininas, também não contém a palavra “não” ou a expressão “não quero fazer sexo com você”, revelando que recusas diretas não são consideradas necessárias por eles para expressar/compreender a falta de interesse sexual.

Parece claro, então, que “mal-entendidos” resultando em estupro não são tão comuns assim, mesmo quando a mulher demonstrou em algum momento, ou parece ter demonstrado, interesse em sexo. Mesmo assim, tais fatores influenciam o estupro, certo? Afinal, roupas e comportamentos “provocantes” despertam o desejo sexual do estuprador, aumentando as chances dele decidir estuprar. Muitas pessoas acreditam, inclusive, que o estupro parte de um desejo sexual descontrolado do agressor, que não consegue se controlar ante a visão da “sensualidade” feminina e é dominado por seus instintos (embora sejam raras as ocorrências de estupros em circunstâncias nas quais o agressor corre o risco de ser flagrado no ato, embora mulheres usem roupas “sensuais” diariamente nos mais variados locais. O tal “instinto incontrolável” parece convenientemente só se manifestar quando não há muito risco de consequências negativas).

Tais mitos sobre estupros são muito úteis para estupradores. Eles fornecem um roteiro de como agir para não ser condenados pela agressão. Basta examimar um estudo recente conduzido na Universidade de Leicester, na Inglaterra, que demonstrou que homens tem mais facilidade de admitir que estuprariam quando a vítima hipotética usa saia curta, bebe álcool e é extrovertida. Os resultados do estudo foram reproduzidos internet afora, mas pouca gente parece ter compreendido o que realmente estava sendo pesquisado (basta observar o titulo do artigo em português na Hype Science, que declara “Mulher que usa minissaia tem mais chance de ser estuprada”). O estudo não mediu incidências reais de estupro entre a população (se medisse, veria que existem indícios de uma correlação negativa entre roupas “sensuais” e estupro, pois muitos agressores dão preferência a mulheres com baixa autoestima, e sensualidade costuma ser interpretada como sinal de autoconfiança). O que ele mediu foi a facilidade com que os homens estudados admitiam a disposição de recorrer á coerção sexual (medida em vários níveis, sendo 1 ser convidado para a casa da mulher e 27 o que é entendido como estupro propriamente dito). Não há que se falar aqui em nenhum instinto sexual despertado pela visão da mulher, já que a suposta “vítima provocante” sequer existia. Tampouco em “mal-entendidos” provocados por um comportamento que, supostamente, indicou que a mulher queria sexo. Estes homens estavam em um ambiente controlado, respondendo a um questionário, e sendo explicitamente questionados a respeito das circunstãncias nas quais forçariam o sexo. Antes de acreditar na pouco plausível teoria de que tais homens sabem de antemão em qual situação se veriam “dominados pelos instintos” a ponto de “não conseguir evitar” estuprar, é necessário examinar a hipótese de que eles se sentiram mais á vontade para admitir um estupro hipotético quando a vítima se encaixava no estereótipo de “mulher que provocou”. Estes homens passaram a vida inteira ouvindo que certas mulheres são ao menos parcialmente responsáveis por seus estupros. E aprenderam a lição: certos estupros são mais aceitáveis.

Estratégias de estupradores: se aproveitando da cultura de culpabilização da vítima

Em uma sociedade que repetidamente apresenta a idéia de que certos tipos de estupro são mais aceitáveis e certas vítimas mais culpadas pela violência que sofrem, não é difícil entender como certos agressores desenvolvem estratégias para estuprar com maior chance de impunidade. É o que demonstram dois estudos americanos, um deles conduzido em 2002, com estudantes universitários, e outro em 2009, com integrantes da Marinha. Tais estudos demonstram que apenas 7% dos estupradores atacavam somente desconhecidas; mais da metade atacava somente mulheres que conhecia; mais da metade embriagava suas vitimas propositadamente. Outra revelação assustadora do estudo foi a de que um número pequeno de homens estuprava repetidamente. 4% dos homens entrevistados para o estudo de 2002 haviam cometido, quando somados, 400 estupros (tentados ou consumados), quase 30% de todos os estupros autoreportados pelos participantes. Dentre os entrevistados em 2009, 8.4% eram responsáveis por 95% de todos os estupros autoreportados. Um dos autores do estudo de 2002, David Lisak, é autor de um estudo de 2008 baseado em pesquisas anteriores, tanto de sua autoria, como de outros autores, que traz dados muito importantes para o entendimento do problema, entre eles o de que estupradores, tanto os encarcerados como os não detectados, “tem mais raiva de mulheres, são mais motivados pela necessidade de dominar e controlar mulheres, são mais impulsivos e desinibidos em seu comportamento, mais hipermasculinos em suas crenças e atitudes, tem menos empatia e são mais antisociais”.

Além disso, estupradores “não detectados” (ou seja, não denunciados): planejam seus estupros com antecedência; estudam vítimas em potencial, e testam seus limites antes de decidir-se por um ataque; usam força apenas na medida necessária para assustar a vítima; usam álcool deliberadamente para incapacitar as vítimas” Observa-se, portanto, com base nestes dados, que a maioria destes homens desenvolve uma estratégia para o estupro, não corroborando a idéia clássica de que estupros cometidos entre conhecidos e/ou durante encontros românticos/sexuais são “mal-entendidos”. Observa-se, ainda, que tal estratégia se baseia em mitos sobre estupro para garantir a impunidade.

Nas palavras de Thomas Macaulay, autor de uma brilhante análise desse estudo no blog Yes Means Yes:

“Homens com uma visão rígida a respeito de papéis de gênero e com raiva de mulheres são superrepresentados entre estupradores. [...] Caras que parecem odiar mulheres…odeiam. Se eles parecem não gostar de mulheres ou não as respeitar e enxergar mulheres como obstáculos a ser superados…eles estão dizendo a verdade. É isso que eles pensam, e eles vão cometer abuso se acharem que podem sair impunes.

Lisak não diz isso com todas as letras, mas tendo estudado com profundidade seu trabalho, eu realmente acredito que a maior diferença entre os estupradores que estão na cadeia e os que estão soltos é que os primeiros não conseguiram ou não quiseram utilizar apenas táticas que representassem baixo risco. Os estupradores não detectados em sua grande maioria usam pouca ou nenhuma força, em geral usam bebidas alcóolicas e estupram mulheres que eles conhecem. Eles criam situações nas quais nossa cultura vai protegê-los, arrumando desculpas para o comportamento deles e questionando ou negando o relato de suas vítimas. Eu acredito que os estupradores que estão presos são aqueles que usam as táticas que a sociedade está mais disposta a reconhecer como estupro e menos disposta a justificar.

É o modus operandi que mantém tais estupradores não detectados: eles identificaram corretamente uma metodologia que os coloca sob a proteção da cultura de estupro. É improvável que eles sejam condenados porque a história não se encaixa no script [do que convencionamos como estupro "de verdade"]. É improvável que eles sejam presos porque a história não leva a uma condenação fácil. Aliás, é improvável que eles sejam denunciados porque as sobreviventes do estupro sabem que as táticas que estes homens usam as deixam com poucas chances de fazer justiça. Na verdade, tais estupradores podem colocar a vítima em uma situação na qual ela está tão embriagada ou apavorada ou simplesmente isolada e se sentindo derrotada que ela nunca sequer diz “não” e, porque nossa cultura se recusa a reconhecer tais táticas pelo que elas são, até as próprias vítimas podem só chamar de estupro o que aconteceu muito tempo depois do fato, ou talvez nunca.”

Não é difícil entender como isso funciona. Uma mulher pode se culpar pelo acontecido, acreditando que “provocou” o estupro por suas roupas, seu comportamento, por ter bebido demais. Ela pode refutar os avanços sexuais de alguém de várias formas, inclusive fisicamente, porém sem jamais dizer a palavra “não” ou usar de força (como, por exemplo, empurrar o agressor), e sentir que a culpa foi sua por não ter deixado “claro o suficiente” que não desejava sexo. Ela pode enxergar o ocorrido como estupro, porém jamais denunciar, seja por vergonha de ter “contribuído” para ele, seja por saber que tem pouca ou nenhuma prova da violência, que a chance de condenação é baixa, que sua vida pessoal e seu comportamento antes, durante e após o crime serão julgados, que ela pode ser vítima de represálias tanto por parte do estuprador como dos amigos em comum que tem com ele, que vão culpá-la por estar “arruinando a vida” de um pobre rapaz por causa de um simples “mal-entendido” ou por um estupro que ela mesma “provocou”. Ela pode não se lembrar do que aconteceu, e não ter certeza se sofreu ou não uma violência, e não procurar saber o que aconteceu por vergonha das circunstâncias, medo de cometer uma acusação falsa ou simplesmente por saber que, ainda que um estupro tenha ocorrido, ela não dispõe de provas. Ela pode sequer saber que certas violências configuram estupro, imaginando, por exemplo, que “sexo” com uma pessoa desacordada não é estupro (é sim), ou que sexo forçado durante um encontro ou por parte de um namorado não é estupro (é sim), ou que não é estupro caso ela tenha, a princípio, consentido com a relação sexual (a partir do momento em que uma pessoa declara não desejar a relação, ou está incapaz de consentir, é estupro). Ela pode ter a intenção de denunciar, mas desistir após ouvir dos amigos e da família que ela teve culpa, que ela provocou, que tudo não passou de um “mal-entendido”.

E é aí que você entra, leitor/a. É aí que é possível o seu trabalho para não criar um ambiente no qual estupradores se sentem seguros e sobreviventes se sentem sozinhas. Não perpetue mitos sobre estupro. Quando você culpa uma vítima de estupro porque a saia dela era muito curta ou o decote muito grande, ou porque ela bebeu demais; quando você diz que uma mulher não pode reclamar de um estupro quando demonstrou interesse sexual no agressor, o estupro ocorreu após uma “ficada” ou um encontro, ou ela já havia feito sexo com ele antes; quando você reage a uma notíicia de estupro com um comentário sobre a “irresponsabilidade” ou “ingenuidade” de uma mulher estuprada; quando você naturaliza o sexo forçado dentro de um namoro…você está dizendo pras mulheres á sua volta que, caso elas sejam estupradas nessas circunstãncias, você não vai ajudá-las. Que você vai dizer que a culpa foi delas. Que, se você, que é amigo/a, irmã/o, mãe ou pai, vai acusá-las de ser “vadias” ou “irresonsáveis” ou “burras”, então as pessoas que não a conhecem, a polícia, a promotoria, o juiz ou juíza, vão julgá-la de forma pior ainda. E, mais importante, você está dizendo a todos os estupradores á sua volta que, caso eles estuprem uma mulher nestas circunstâncias, você provavelmente vai defendê-los, e acreditar neles quando eles disserem que foi apenas um mal-entendido ou que eles não tiveram como se controlar, porque a mulher provocou.

Quando você diz que mulheres tem “que se dar ao respeito” você está dizendo pras mulheres á sua volta que respeito é um privilégio que elas tem que fazer por merecer, e não um direito irrevogável de todo ser humano. Quando você conta ou compartilha uma piada sobre estupro, principalmente uma piada cujo mote seja “A mulher estuprada na verdade curtiu o estupro” você está dizendo pras mulheres á sua volta que você não leva estupro a sério e que, dadas as circunstâncias, você inclusive o acha hilário.

Quando você naturaliza e justifica uma violência vista como menos grave, como o assédio verbal na rua, o assédio sexual no ambiente de trabalho, o assédio sexual que parte do professor, o assédio online, o assédio repetido do vizinho/colega de trabalho/colega de faculdadeque não aceita “não” como resposta, quando você diz que, lá no fundo, toda mulher gosta desse tipo de assédio, quando você diz que a assediada, quando ficar “velha e feia”, terá saudades dos dias em que desconhecidos mexiam com ela na rua…quando você naturaliza e justifica a violência física que muitas vezes acontece em ambientes de festa, nos quais homens passam a mão em desconhecidas, arrancam beijos á força, cercam uma mulher em grupo e não a deixam ir embora antes de coagi-la a um beijo….você está dizendo pras mulheres à sua volta que existem certas violações do corpo e do espaço dela que não são “nada demais”, que a recusa dela não precisa ser respeitada, que o que ela tem a dizer sobre como aquela experiência a faz sentir não vale nada (afinal, “todo mundo sabe” que, no fundo, no fundo, ela adorou a atenção masculina).

Ah, e sabe aquele cara que tem problemas com mulheres? Aquele que vive repetindo o quanto toda mulher é interesseira, e só quer saber de homens com dinheiro/carro/posição social? O que tira sarro de homens que tratam bem suas parceiras? O que tira sarro de homens que se mostram apaixonados, ou que não traem a companheira? O que acha que toda mulher bonita usa a aparência pra se dar bem na vida ou que, no mínimo, é convencida e arrogante por conta da beleza, e provavelmente usa as roupas/acessórios/maquiagem que usa só pra alimentar o ego? O que vive rotulando mulheres como “vadias” por conta do que vestem, de como agem, de com quem fazem sexo, e que vive repetindo que mulher “tem que se dar ao respeito pra ser respeitada”? O que chama toda mulher da qual não gosta de mal-comida? O que reage com raiva a qualquer tentativa de falar sobre machismo ou privilégios masculinos? O que encara a paquera ou o sexo como um jogo no qual o homem “convence” a mulher a ficar com ele, por meio de elaboradas táticas que mais parecem uma lavagem cerebral, e que partem sempre do pressuposto de que ela quer ser dominada? (jogue no Google “sedutólogos” se quiser ver links simultaneamente hilários e deprimentes…pra quem fala inglês tb vale “PUA ou Pick Up Artists”) O que diz que a melhor forma de seduzir é “pisar” nas mulheres? O que tem certeza de que mulher gosta mesmo é de ser maltratada?

Sabe aquele cara que, em suma, “tem raiva de mulheres, é motivado pela necessidade de dominar e controlar mulheres” e “é hipermasculino em suas crenças e atitudes”? Pois é. Você tem certeza de que quer manter esse cara perto de você e das mulheres da sua vida?

“Eis o que a gente precisa fazer. Precisamos identificar os estupradores, e precisamos acabar com as estruturas sociais que dão a eles uma licença para atuar. Eles estão na população, entre nós. Eles tem uma média de seis vítimas, mulheres que eles conhecem, e portanto provavelmente algumas mulheres que você conhece. Eles usam de força ás vezes, mas na maior parte do tempo embriagam as vítimas. Eles não se viram por acidente num quarto com uma mulher bêbada ou chapada demais pra consentir ou resistir; eles planejaram estar lá e foi lá que eles acabaram. 

Escute. As mulheres na sua vida vão te contar quando os homens nos quais elas acharam que podiam confiar as estupraram; se e quando elas souberem que você não vai negar o que elas estão dizendo, que não vai culpá-las ou julgá-las. Deixa elas te contarem que ficaram bêbadas, e acordaram com teu amigo em cima delas. Escute. Não defenda o cara. Provavelmente não é a primeira vez que ele fez isso. Provavelmente não vai ser a última.

Mude a cultura. Pra que possam estuprar várias e várias vezes, esses caras precisam de silêncio. Eles precisam saber que a combinação certa de fatores – a maior parte consistente em álcool e em nossa tendência de envergonhar as pessoas por desejarem/fazerem sexo – vai manter suas vítimas caladas. Se não fosse assim, eles seriam identificados mais cedo e seria mais difícil continuarem encontrando vítimas. As mulheres na sua vida precisam saber que podem falar francamente com você sobre violência sexual. Elas precisam ser capazes de te contar, e elas precisam saber que podem te contar, sem ser julgadas, consideradas culpadas ou acusadas de estar mentindo.

Escute. Os homens na sua vida vão te contar o que eles fazem. Desde que a palavra com “E” não seja dita, os estupradores se autodenunciam. O cara que enxerga como uma “oportunidade” uma mulher bêbada demais pra saber onde está não tá brincando. Ele tá te dizendo o que realmente pensa. O cara que diz “os manos antes das minas”, o que diz que “os amigos tem que vir antes das mulheres”, tá te pedindo pra fazer um pacto.

O Pacto. A estrutura social que permite a predadores se esconderem á vista de todo mundo, sentarem no bar na mesma mesa que todo mundo, levar uma vítima pra casa, estuprá-la, e continuar no mesmo círculo social porque ela não pode ou não quer contar pra ninguém o que aconteceu, ou porque ninguém faz nada se ela contar. O pacto de arrumar desculpas, de procurar atenuantes, de botar panos quentes na coisa – de acreditar que o que acontece com nossas amigas – o que os nossos amigos fazem com as nossas amigas – não é “estupro de verdade”.

Mude a cultura. Nós não vamos tirar seis ou dez ou doze milhões de homens de circulação em pouco tempo, mas se queremos diminuir a incidência de estupro, precisamos mudar o ambiente no qual o estuprador atua. Escolha não ser parte de um ambiente que apoia estupro. Piadas de estupro não são piadas. Piadas de ódio ás mulheres não são piadas. Esses caras tão te dizendo o que eles realmente pensam. Quando você ri junto pra ter a aprovação deles, você tá dando a eles a sua aprovação. Você diz a eles que a licença social que eles tem pra operar tá funcionando a toda força; que você vai manter o pacto de virar a cara pro outro lado pra não ver as provas; de arrumar desculpas pra eles; de presumir que foi um engano, que ele nunca fez isso antes, que foi uma situação confusa. Você tá dizendo pra eles que eles não estão correndo riscos.

Há pouco tempo atrás eu vi uma palestra do James Galbraith – um economista muito admirado pelos progressistas. Ele disse, entre outras coisas, “Primeira regra da Economia: incentivos funcionam.” Ele estava se referindo a outro contexto, mas isso se aplica ao estupro. A enorme prevalência de estupros de conhecidas, e não de desconhecidas, e de estupros auxiliados por embriaguez e não por força, e a relativa raridade de uso de armas e danos físicos, é facilmente explicável. Os estupradores sabem o que funciona. Eles gostam de estuprar, eles querem continuar estuprando, eles não querem ser descobertos. Atende aos interesses deles estar atentos a quais narrativas de estupro são consideradas verdadeiras e quais são atacadas e saber quais vítimas e métodos oferecem o menor risco.

O que eles fazem é o que funciona. Eles estupram suas conhecidas embriagadas porque funciona. Eles estupram suas conhecidas embriagadas porque nós deixamos.

Nós precisamos revogar a licença social que os estupradores tem pra atuar. Precisamos parar de perguntar “Porque a gente acha que ele não sabia que ela não deu permissão?” que, sinceramente, é a primeira pergunta que fazemos nessa situação. Acima de tudo, como questão cultural – deixando de lado a questão jurídica – precisamos adotar a perspectiva de que interações sexuais devem sempre acontecer em um estado de consentimento expresso de todos os participantes; que qualquer outra coisa é anormal. Se alguém diz “Eu sofri uma violência sexual”, a primeira pergunta deveria ser “Porque a outra pessoa continuou a atividade sexual quando a/o parceira/o não queria?”

É assim que são as coisas: acontecem estupros de verdade quando o agressor está bêbado e a vítima está ainda mais bêbada e sozinha e isolada. Isso é “estupro de verdade”. Se ele sair impune, vai ser, na média, estupro-estupro-estupro-estupro-estupro-estupro de verdade. Se nós nos recusarmos a escutar, ele pode continuar fingindo que o estuprador é um cara no estacionamento tarde da noite, quando na verdade é ele, no quarto da nossa amiga meia hora depois que o bar fechou. Se a gente deixar isso acontecer, somos parte do problema.

Os estupradores não podem ser seus amigos, e se você é leal a eles, mesmo encarando as provas do que eles fazem, você é cúmplice.


“Em outras palavras, procure as táticas e interrompa o procedimento. Identifique o estuprador que está deliberadamente embebedando a mulher ou tentado levar a mulher pra um lugar que ela não conhece e no qual eles vão ficar sozinhos, e intervenha. Um cara oferecendo uma carona pra uma mulher bêbada pode tar só oferecendo uma carona, mas se ele continua insistindo mesmo depois que outra pessoa já se voluntariou, isso deveria ser um sinal de alerta pra todo mundo.

No meu último post sobre o trabalho do Lisak eu disse que os homens precisavam escutar, e mudar a cultura pra tirar dos estupradores a licença social que eles tem pra atuar. Eu escrevi sobre a linguagem de atitudes de apoio que diz ao estuprador que ele vão protegê-lo e confiar nele, e vão rejeitar, interrogar ou não acreditar em sua vítima. Mas existe mais trabalho a ser feito, trabalho mais concreto. Quem está por perto pode procuar o padrão e interferir no padrao. Se um cara é hostil em relação ás mulheres e coloca muita ênfase no sexo como conquista ou vitória, e ele está violando os limites de uma mulher e tentando ficar sozinho com uma mulher embriagada, nós não precisamos ter certeza do que ele está fazendo pra ficarmos preocupados, e começarmos a dar a essa mulher meios de fuga desse comportamento predatório.

[Por "meios de fuga" entenda-se meios de evitar que os dois fiquem sozinhos, ou de manter/levar a mulher para um lugar seguro longe da presença do possível agressor]

Se enfie no meio, se coloque no caminho, e bloqueie o movimento dele. É concreto e é factível. Não é necessário ser um herói pra fazer isso. Basta ser humano.”
Fonte: Bule Voador

janeiro 30, 2013

Governo desapropria 31 km de terra no beiradão do rio Amazonas, e as Comunidades Tradicionais de Ribeirinhos se organizam em defesa dos seus direitos

PICICA: No imaginário dos manauaras PURAQUEQUARA é a região que fica depois do Encontro das Águas, no limite da cidade. Uma espécie de divisor entre o perímetro urbano de Manaus e sua área rural. Rio abaixo tudo vira "puraquequara". A olhos vistos, numa eventual viagem pelas redondezas o que se divisa é uma imensa extensão conhecida como beiradão, banhada pelas águas amarelas do rio Amazonas, onde desponta, aqui e ali, uma casinha típica de ribeirinho. Montadas sob palafitas, para proteger as famílias ribeirinhas do regime da cheia dos rios, que muda de 6 em 6 meses, se constitui - principalmente para aqueles que só conhecem a cultura urbana - num detalhe exótico da paisagem amazônica. No momento dessas mal traçadas, estamos na fase da cheia, sem que haja alguma indicação de uma outra enchente como a de 2012. As cheias vão e vem, e uma parte da sociedade manauara continua desconhecendo a existência de 19 comunidades situadas entre a Vila de Puraquequara e o Paraná da Eva, região que já integra o município de Rio Preto da Eva, no baixo Amazonas. Nem sempre é possível ver a comunidade em sua maior dimensão. Algumas crescem perpendicularmente à beira do rio; outras - poucas - é visível na linha do horizonte. De todas, 9 delas estavam presentes na comunidade de Bonsucesso (sim, cada uma tem nome: São Francisco do Mainã, São José do Jatuarana, São Francisco do Tiririca, Tabocal, São Pedro, entre outras) na manhã de domindo, 27 de janeiro. Na pauta da reunião que contou com a presença de Procuradores da República, do Ministério Público Federal;  apoiadores institucionais e representantes de coletivos que atuam no movimento socioambiental, bem como a Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa: o programa Luz Para Todos, o Linhão de Tucuruí e a mais recente novidade: a desapropriação, por decreto governamental, de 31 quilometros de beiradão para a construção de um Polo Industrial Naval. Parte dos interesses envolve o Exército Nacional e o Governo de Estado do Amazonas. Os ribeirinhos dessas comunidades tradicionais até agora não foram ouvidos. Até outubro do ano passado - data da assinatura do decreto - duas comunidades enfrentavam a interdição do programa Luz Para Todos, por serem as únicas que não aceitavam a invasão de suas terras - ocupadas desde o século XIX - pelo Exército Nacional. O que se pergunta é que poder tem o Exército junto à Eletrobrás para interditar um direito proveniente de uma Política de Estado. A gravidade da situação é conhecida da opinião pública através da mídia local, no que pese a intervenção das editorias, como em matéria gerada a partir de Manaus, que teve repercussão na Rede Bandeirantes de Televisão. O jornalista goza de respeito e credibilidade na imprensa amazonense. Não há dúvidas quanto a sua isenção. O mesmo não se pode afirmar dos responsáveis pela edição da matéria. Em depoimento, numa entrevista feita fora de Manaus, um ex-general, que fora do Comando Militar da Amazônia, em nome do Exército afirmou que o zelo militar na região em causa - que fica a leste de Manaus - deve-se ao temor de ocupação desordenada do solo. Voltaremos ao tema. Para dimensionar o tamanho do conflito deflagrado pelo decreto, que vem tirando noites de sono das comunidades ribeirinhas, vale lembrar que a comunidade de São José do Jatuarana, na década de 1950, chegou a ter 200 famílias residentes. Com a intimidação militar, iniciada nem meados da década de 1990, e gerada pela expansão da área de treinamento de Guerra na Selva para além do perímetro das terras doadas pelo governo estadual, na gestão Danilo de Mattos Areosa, na década de 1970, muitos abandonaram o chão onde nasceram reduzindo, assim, a comunidade a pouco mais de 90 famílias. Imagine voce, que mora num condomínio de prédios com 160 famílias como eu, sendo convidado a sair do lugar onde estão parte das suas relações sociais por um suposto interesse público. Falo suposto porque tá difícil ser convencido que um Polo Industrial Naval demanda 31 quilometros de terra contínua para seu funcionamento. Muita coisa merece explicação. Inclusive as razões pelas quais o projeto sequer foi discutido na Assembléia Legislativa, onde estão os representantes eleitos da população, ainda que alguns parlamentares pouco estão se lixando para o destino de uma área com tão baixa densidade populacional e eleitoral. É só fazer as contas: dezenove comunidades, com uma média de 100 famílas; quem liga para elas?  As fotografias abaixo são de autoria do companheiro Valter Calheiros, do movimento SOS Encontro das Águas, que vieram acompanhadas de dois documentos que ficarão para o próximo post, com mais informações.


 Centro Social da Comunidade do Bom Sucesso
 Início do encontro
 Procuradores da República ouvem comunitário da costa do Jatuarana

"Django Livre: o Anti-Obama, Anti-Spike Lee", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Há dois pontos em Django que incomodaram mesmo o movimento negro americano (o que é revelador): o primeiro é que se trata de um filme bem humorado, o segundo é que a servidão voluntária é retratada como o centro de gravidade do esquema racista da Casa Grande. Talvez incomode ver a KKK sendo ridicularizada antes de ser destroçada por Django na cena mais engraçada do filme -- mas quem não se agrada do riso é, certamente, digno de alguma desconfiança (como, aliás, já lembrava um tal Foucault). Talvez incomode admitir o colaboracionismo negro no esquema da escravidão ou mesmo que não conciliação possível. Mas ter cutucado essas feridas é o torna Django sensacional." 

Django Livre: o Anti-Obama, Anti-Spike Lee


Django Livre possivelmente é o melhor filme de Quentin Tarantino. A exemplo das demais obras do cineasta, trata-se de um projeto tecnicamente irretocável: da trilha sonora às atuações, passando pela fotografia e pelas incomparáveis cenas de ação. No entanto, há algo de superior em Django em relação aos demais filmes de Tarantino -- que é justamente o modo praticamente perfeito como a narrativa habita seu locus histórico. Poucas películas pontuaram tão bem a questão racial americana quanto ela. O cowboy é negro, o anti-racista é alemão, o grande vilão é a servidão voluntária -- que é prontamente desnaturalizada; não é uma questão de mocinhos e bandidos, é uma questão de vontade de potência contra paixões tristes.
Há dois pontos em Django que incomodaram mesmo o movimento negro americano (o que é revelador): o primeiro é que se trata de um filme bem humorado, o segundo é que a servidão voluntária é retratada como o centro de gravidade do esquema racista da Casa Grande. Talvez incomode ver a KKK sendo ridicularizada antes de ser destroçada por Django na cena mais engraçada do filme -- mas quem não se agrada do riso é, certamente, digno de alguma desconfiança (como, aliás, já lembrava um tal Foucault). Talvez incomode admitir o colaboracionismo negro no esquema da escravidão ou mesmo que não conciliação possível. Mas ter cutucado essas feridas é o torna Django sensacional.
Leonardo de Caprio interpreta não o antagonista da trama, mas uma marionete deprimente de um esquema no qual Samuel L. Jackson, manipulador e inteligentíssimo, move as pobres mentes brancas para a manutenção de uma ordem na qual ele prepondera como chefe e morador distinto da Casa Grande (sem ele mesmo deixar de ser escravo ou, também, uma peça do jogo). O racismo americano é demonstrado em toda a sua dimensão sistêmica, sem se rebaixar ao discurso de conciliação -- como o de Obama na política ou mesmo aquele visto em películas como Invictus -- ou ao maniqueísmo -- como insiste um Spike Lee que não viu e não e não gostou do filme.
A personagem sensacional de Cristoph Waltz, um dentista alemão que se tornou caçador de recompensas e nutre um ódio sem limites à escravatura, não media nem conduz nada: ele é tanto mais um xamã, abrindo portais para novos mundos, do que qualquer outra coisa. E o problema não está no alemão, no outro -- o evidente inimigo e vilão -- mas sim na elite branca e ignorante dos Estados Unidos. Kerry Washington, como a amada de Django, sequestrada e torturada, expressa essa dor sem fim (e duplicada) da mulher negra.
E Jamie Foxx está soberbo. O seu Django é a expressão máxima e definitiva da potência da gente negra. Se ele realmente não era a primeira opção de Tarantino, seguramente, entrará para o rol dos grandes planos B da história do cinema. Deus abençoe o fato de ter sido ele, e não (o cada vez mais irrelevante) Will Smith, o Django. Só o negro é capaz de romper os grilhões que lhe prendem -- e o olhar cortante (de amor, de paixão) de Foxx traduz isso perfeitamente. O inimigo está aqui dentro. Django para lá da farsa histórica e do discurso auto-indulgente: é tudo questão de força, pura força e puro estilo, é questão de confrontar e saber confrontar. Sem isso, não existe liberdade -- e o que interessa: os negros podem. 
Django acerta um tiro certeiro no coração do racismo americano. E também nas duas faces nas quais se desdobra o lado asceta do movimento negro. Aquele discurso que gira em torno da culpa, seja tirando a culpa dos brancos (como no caso de Obama) ou colocando-a paranoicamente sobre eles (no caso de um Spike Lee). Não é questão de culpa, mas sim das coisas como elas realmente estão -- e de que é preciso fazer a diferença optando pela libertação. Não há motivo para se temer o riso. 
P.S.: Esta postagem é a primeira do ano V de O Descurvo, ontem foi aniversário de quatro anos do Blog.

Fonte: O Descurvo