fevereiro 28, 2014

"2014: o ano que começou antes do carnaval", por Marcelo Castañeda

PICICA: "A brecha democrática está aberta. Temos que lutar para mantê-la. Por mais que tentem criminalizar os manifestantes, as indignações são múltiplas e suas manifestações são imprevisíveis. O direito de se manifestar não pode ser cassado sob pena de mutilação da recente democracia brasileira que está se constituindo. O que esse início de ano mostra é que as faíscas de indignação que podem gerar grandes fluxos de pessoas nas ruas e redes, ambas cada vez mais imbricadas, não podem ser previstas de antemão. A grande aposta do poder constituído para este ano é a Copa do Mundo, inclusive em termos de repressão, pois desde o início foi um evento construído de “cima para baixo”. A Copa ainda continua como potencial pauta de protestos, mas eis que a realidade mostra sinais de que a sociedade pode surpreender a qualquer momento com astúcia e alegria. A revolta está à espreita. Que venha o carnaval, que ele traga a alegria que temperará as lutas que virão pela frente.

2014: o ano que começou antes do carnaval

27/02/2014
Por Marcelo Castañeda


Por Marcelo Castañeda, sociólogo e UniNômade

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Geralmente diz-se que, no Brasil, o ano começa depois do carnaval. Este ano parece estar contrariando o ditado popular, ao menos no que diz respeito às manifestações. Além disso, parece que a imprevisibilidade dá o tom. As apostas que eu fazia para os protestos neste ano se voltavam para eventos como carnaval (março), Copa do Mundo (junho/julho) e eleições (outubro/novembro). Mas o ano começou agitado entre rolezinhos paulistas, protestos contra a Copa articulados em várias capitais, bem como contra o aumento das passagens de ônibus no Rio de Janeiro.

Indo além de qualquer previsibilidade, o agito deste início de ano contrariou minhas apostas, contando com dois elementos comuns a todos os processos em curso. São praticamente duas constantes que vêm dando as caras desde junho: de um lado, os sites de redes sociais como forma cada vez mais usual de convocação, mobilização e divulgação dos diferentes atos; de outro, a repressão policial, que espalha pânico e terror, seja nos shoppings, nas ruas e até mesmo em saguões de hotel, chegando ao ponto de usar armas letais contra manifestantes, como ocorreu no final de janeiro em São Paulo. 

O ano começou com o governo federal investindo ferozmente em uma campanha chamada Vai ter Copa, levantada contra o grito das ruas que diz o inverso: Não vai ter Copa. O objetivo era abafar o grito cada vez mais recorrente nas ruas e redes, procurando criar um clima ufanista para a realização do megaevento. Pois bem, já em meados de janeiro, os rolezinhos paulistas atravessaram a previsibilidade governamental, mostrando, para quem quisesse ver, a segregação social e racial presentes nos shoppings paulistas e na sociedade brasileira. Convocados pelo Facebook, reunindo milhares de participantes, foram seguidamente dispersados por seguranças e forças policiais em seu direito de flanar e consumir. Não foram poucos os casos de estabelecimentos que fecharam as portas, abrindo mão de faturamento. Boa parte da discussão pública no mês de janeiro foi ocupada pelos rolezinhos, que chegou a ganhar atenção do próprio governo federal.

No final de janeiro, uma articulação de movimentos de várias cidades foi às ruas para protestar contra a realização da Copa do Mundo. Em São Paulo, a polícia reprimiu duramente a manifestação, provocando resistência. Dois fatos foram marcantes: primeiro, a queima de um fusca, explorada largamente pela mídia e por setores governistas como forma de tentar criminalizar os manifestantes, quando várias imagens mostram os manifestantes ajudando os ocupantes do veículo a saírem do carro que pegava fogo; segundo, um jovem que foi alvejado por três tiros enquanto fugia de policiais. A atenção da mídia se voltou com muito mais ênfase para o primeiro fato, mostrando que o pior estaria por vir.

No Rio de Janeiro, do final de janeiro até o momento ocorreram seis atos contra o aumento das passagens de ônibus e trens na cidade. A trágica morte do cinegrafista Santiago, atingido por um rojão durante a quarta manifestação contra o aumento das passagens, em 6 de fevereiro, em um verdadeiro cenário de guerra provocado pelas forças policiais, e em plena Central do Brasil, Centro do Rio, serviu como uma luva para que o poder constituído procurasse conter a multidão cada vez mais articulada e consciente de suas possibilidades para atuar como agente de mudança. 

Essa morte lamentável está sendo colocada na conta dos manifestantes, como forma de tentar estancar as manifestações. As mensagens do poder constituído, em especial a partir de seus organismos de mídia, é clara: os manifestantes são assassinos, as manifestações são perigosas. O interessante é notar como os interesses se encontram. De um lado, a Rede Globo de Televisão tenta criminalizar os manifestantes e manifestações; de outro, o Partido dos Trabalhadores acena com a possibilidade de aprovar uma legislação antiterrorismo ou mesmo alterações mais severas do Código Penal. No fundo, tudo pela Copa do Mundo, tudo pelo fim das manifestações.

No entanto, tudo indica que as manifestações não vão cessar, mesmo com todo terror midiático e medidas repressivas do governo federal a partir da morte de um trabalhador no exercício de suas funções. Em 10 de fevereiro, uma manifestação contra o aumento das passagens reuniu cerca de mil pessoas. 

Em 13 de fevereiro, outra manifestação contra o aumento das passagens teve pelo menos três mil presenças nas ruas do Centro do Rio, fazendo um longo trajeto entre a Candelária e a Prefeitura, ente responsável pela tarifa dos ônibus. E muita água está rolando junto: atos de desagravo, notas sendo produzidas por diferentes coletivos, reuniões para discutir conjuntura, assembleias, plenárias, aulas públicas — tudo isso faz pensar em um ano que subverte o calendário, começando antes do carnaval dar as caras. 

A brecha democrática está aberta. Temos que lutar para mantê-la. Por mais que tentem criminalizar os manifestantes, as indignações são múltiplas e suas manifestações são imprevisíveis. O direito de se manifestar não pode ser cassado sob pena de mutilação da recente democracia brasileira que está se constituindo. O que esse início de ano mostra é que as faíscas de indignação que podem gerar grandes fluxos de pessoas nas ruas e redes, ambas cada vez mais imbricadas, não podem ser previstas de antemão. A grande aposta do poder constituído para este ano é a Copa do Mundo, inclusive em termos de repressão, pois desde o início foi um evento construído de “cima para baixo”. A Copa ainda continua como potencial pauta de protestos, mas eis que a realidade mostra sinais de que a sociedade pode surpreender a qualquer momento com astúcia e alegria. A revolta está à espreita. Que venha o carnaval, que ele traga a alegria que temperará as lutas que virão pela frente.

 

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

"Desaparecidos e esquecidos", por Giuliander Carpes

PICICA: "Caso Amarildo é um dos poucos investigados entre os mais de 6 mil desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro entre 2012 e 2013; Especialistas vêem relação entre queda de homicídios praticados por agentes do Estado e desaparecimentos em alta" 

Desaparecidos e esquecidos



Caso Amarildo é um dos poucos investigados entre os mais de 6 mil desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro entre 2012 e 2013; Especialistas vêem relação entre queda de homicídios praticados por agentes do Estado e desaparecimentos em alta


Em julho do ano passado, um grito ecoou na maior favela da zona Sul do Rio de Janeiro e ultrapassou fronteiras. Como se viesse das caixas de som da rádio poste da Rocinha, o clamor da viúva do pedreiro desaparecido nas mãos da polícia multiplicou-se pelas faixas dos protestos de rua, que sacudiam o país desde junho, e ganhou as redes sociais.

“Cadê o Amarildo?”, o mundo passou a perguntar, como se o conhecesse ali do botequim do Julio, na parte baixa da comunidade. Com a pressão da sociedade, as investigações seguiram adiante. Acabaram revelando que o marido de Elisabete Gomes, trabalhador e pai de 7 filhos, foi torturado e morto pelos policiais da UPP da Rocinha.

Os 25 policiais indiciados por participação nas torturas que levaram Amarildo à morte começaram a ser julgados este mês. Seu corpo, porém, continua desaparecido. Ainda assim o desfecho é uma raridade entre os casos de desaparecimento no Rio de Janeiro – muitos sequer são investigados.

O caso de Amarildo foi o único a ganhar visibilidade entre os 6.034 desaparecimentos contabilizados entre novembro de 2012 e outubro de 2013, pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) – não há dados mais recentes disponíveis. Desde o primeiro ano do governo Sérgio Cabral, as estatísticas do ISP (vinculado à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro) apontam quase 40 mil desaparecidos.

Além da fragilidade das investigações policiais, o desaparecimento do pedreiro, denunciado por Elisabete, escancarou a violência encoberta pela empolgação com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), criada a partir de novembro de 2008, com a promessa de “pacificar” as favelas cariocas, martirizadas pelo crime organizado e pela polícia.

“Eu não vou parar de gritar, deixar isso impune. Já que eles (os acusados pelo crime) tão na m…, porque não falam logo onde está meu marido? A família do Amarildo não é fácil. Não vamos calar a boca. Mesmo que meu marido fosse traficante, não tinha que matar, tinha que prender”, reafirma ainda agora Elisabete, as palavras atropeladas pela velocidade da fala, que é a sua arma desde o desaparecimento de Amarildo. Quanto mais gente ouvir o que ela diz, melhor. “No outro dia eu já estava no Wagner Montes (programa policial da Record), na Globo, em tudo que é lugar”, conta.

Dedo apontado para a polícia

Desde 15 de julho, Bete insiste: o marido desapareceu pelas mãos de policiais da UPP, instalada 10 meses antes para substituir a dominação territorial do tráfico de drogas na favela da Rocinha. O disse-me-disse para desacreditar a versão da mulher de Amarildo começou naquele dia. O soldado Douglas Vital, responsável pela abordagem agressiva do pedreiro, disse que não conhecia Amarildo e o confundira com um traficante chamado Guinho - apesar de já ter prendido um de seus filhos e de testemunhas relatarem que ele ameaçava Amarildo. O comandante da UPP, major Edson Santos, disse que o pedreiro havia sido liberado depois de uma averiguação de rotina e saíra da sede da unidade pela “escada da Dionéia” - câmeras de segurança não confirmaram sua versão.

O então delegado adjunto da 15ª Delegacia de Polícia (Gávea), Ruchester Marreiros, disse que Amarildo e Bete prestavam serviços para o tráfico e chegou a pedir a prisão da esposa do pedreiro. Por ele, a investigação teria terminado logo na primeira semana, com a conclusão de que Amarildo teria sido morto pelos traficantes, que persistem na comunidade, como suposto X-9 – numa escuta telefônica forjada pelos PMs, um “traficante” assumia a culpa pelo crime. Mas Bete não desistiu.

“Procuramos em tudo que era parente. Fomos em Nova Iguaçu, Alcântara, e nada. Aí começamos a procurar em delegacia”, lembra Bete enquanto caminha pelas ruelas da Rocinha, sob olhares dos policiais da UPP, ao lado dos três filhos mais novos, que se recusam a deixar a mãe sozinha desde o sumiço do pai.

Bete, esposa de Amarildo, ainda busca pistas sobre o caso do marido (Foto: Giuliander Carpes)
Bete, esposa de Amarildo, ainda busca pistas sobre o caso do marido (Foto: Giuliander Carpes)

Relembra a história: “Chegamos na delegacia e fomos maltratados pelo delegado lá. O delegado veio cheio de abuso comigo. Disse que a gente era envolvido. Disse ‘vai embora, some daqui, vai procurar seu marido noutro lugar’. Depois disse ‘tô só alisando a sua cabeça’. Eu falei ‘moço, tô atrás do meu marido, o policial sumiu com o meu marido e os documentos dele também’.”
Naquele julho, o Brasil, em especial o Rio de Janeiro, vivia uma onda de protestos, reivindicando principalmente cidadania. A violência dos agentes do Estado contra um negro, morador de favela, tantas vezes repetida, dessa vez foi cobrada nas ruas por uma multidão indignada. O governo teve que dar prioridade ao caso. Foi quando o então delegado titular da 15ª DP, Orlando Zaccone (hoje na 30ª DP -Marechal Hermes) mudou o rumo das investigações. O crime passou a ser apurado como assassinato e o caso passou depois para a Divisão de Homicídios (DH).

Na divisão especializada, os investigadores concluíram que o pedreiro foi torturado dentro da própria sede da UPP.As “técnicas” utilizadas envolviam asfixia com saco plástico na cabeça, choque elétrico na planta dos pés molhados e afogamentos na privada.

Mais grave: esses “métodos” eram usados corriqueiramente contra “suspeitos” na unidade comandada pelo major Edson Santos, ex-agente do Batalhão de Operações Especiais (Bope), de acordo com os depoimentos de 22 pessoas que sobreviveram às torturas, anexados ao inquérito de mais de 2,6 mil páginas sobre o caso Amarildo.
A resistência dos policiais acusados em dizer onde está o corpo de Amarildo também chamou a atenção de especialistas em violência para um fenômeno cada vez mais nítido no Rio de Janeiro: o crescimento no número de desaparecimentos, que alguns relacionam com outro índice alterado, este, em queda: o registro de mortes provocadas por policiais.

Leia também: O repórter Giuliander Carpes relata os bastidores da reportagem

O sobe e desce do crime

O Instituto de Segurança Pública (ISP) do Estado do Rio de Janeiro reconhece que o desaparecimento de pessoas assumiu viés de alta desde o início dos anos 1990. Em 1991 foram registrados 2.616 casos. Em 2003, o número pulou para 4.800 desaparecidos, e depois de uma queda de 19,4% no governo de Rosinha Garotinho – foram 3.877 em 2006, recuperou o fôlego no governo Cabral quando os sumiços aumentaram 32%.

Por outro lado, os números do ISP referentes a homicídios dolosos caíram praticamente na mesma medida: 35% (de 6.133 casos, em 2007, para 4.543 de novembro de 2012 a outubro de 2013). E a queda é ainda maior ao se examinar as taxas de autos de resistência (mortes de civis em confrontos com policiais) na comparação dos mesmos períodos: 72% (de 1.330, em 2007, para 402 casos entre 2012 e 2013).

Em 2009, o ISP realizou uma pesquisa para verificar se – e em quantos casos – os desaparecimentos poderiam estar encobrindo homicídios – praticados por policiais ou não-policiais – através da ocultação de cadáver. As conclusões minimizaram a importância do fenômeno: segundo o instituto de pesquisa da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, com pouco mais de 400 familiares de desaparecidos contatados por telefone, 71% dos desaparecidos já haviam retornado para casa e apenas 7% foram encontrados mortos; 15% jamais foram vistos novamente, vivos ou mortos.

Como os crimes não foram investigados, pouco se sabe além desses números obtidos em um estudo que “apresenta algumas limitações metodológicas, como uma mostra pequena e um contato com os denunciantes feito pela via telefônica”, como explica o sociólogo Ignacio Cano, sociólogo coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Obscuras estatísticas

Ainda assim, as especulações de que os desaparecimentos estariam encobrindo crimes ganharam força. Até por que, um ano antes da pesquisa, a antropóloga Ana Paula Miranda, ex-diretora do ISP, afirmara para o jornal O Estado de S. Paulo que “o governo não contabilizava autos de resistência na soma final de homicídios dolosos” e que “alguns casos que são claramente homicídios [os casos] estavam sendo registrados como encontro de cadáveres e ossadas”. O sociólogo Gláucio Soares, que comandou o estudo de 2009, publicou então um artigo no jornal O Globo desqualificando a hipótese, dizendo que as estatísticas fluminenses não eram maiores do que a de outros países e que  homicídios e desaparecimentos “não eram farinha do mesmo saco”.

A dificuldade de obter números oficiais confiáveis, porém, continua a ser um obstáculo para os que se dispõem a aprofundar as pesquisas sobre o tema. “É preciso fazer muito trabalho de campo porque os dados em si não vão falar nada. A própria forma dos registros, os boletins de ocorrência não falam muita coisa. Eles já são feitos propositadamente para não deixar pistas das coisas”, opina o sociólogo Fábio Araújo, que em 2012 apresentou uma tese de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre desaparecimentos forçados.

Outro motivo para a desconfiança dos pesquisadores em relação às estatísticas policiais é o fato de que as quedas de homicídios e autos de resistência estão entre as metas do programa de redução de criminalidade da Secretaria de Segurança Pública do estado. Quando a chamada “letalidade violenta” cai, há bônus em dinheiro para os membros de batalhões da polícia militar e delegacias de polícia civil. Segundo a Secretaria de Planejamento e Gestão, o repasse total em 2013 foi de R$ 59.862.142,64, distribuídos entre 8.036 servidores.

“Naturalmente, quem vai ser avaliado não pode produzir sozinho esta informação, tem que haver algum outro esquema para garantir que aquela informação é fidedigna, muitas vezes o interesse da delegacia pode ser não registrar”, diz o economista Daniel Cerqueira que se debruçou sobre as estatíticas de mortes violentas para realizar uma pesquisa para o Ipea (Instituto de Pesquisas e Análises). “Não é uma hipótese de manipulação do sistema (de dados), mas sim uma hipótese de manipulação do ser humano. É algo até natural se formos pensar que ele está trabalhando para ganhar lá na frente”, pondera.

Na pesquisa “Mortes Violentas Não Esclarecidas e Impunidade no Rio de Janeiro”, Cerqueira cruzou os dados do ISP e do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde – considerados internacionalmente como mais confiáveis. Toda morte violenta cuja causa não é logo elucidada comunicada ao SIM deve gerar uma investigação com participação de legistas e da polícia, que então concluirá se foi ou não fruto de crime. Segundo Cerqueira, no entanto, desde 2007 o governo Cabral dificulta o repasse de informações das autoridades policiais para as de saúde, fazendo crescer os casos qualificados como mortes sem causa esclarecida.

“Os dados passaram a perder muita qualidade. Muitas mortes por arma de fogo ficam registradas no SIM como mortes violentas de causa indeterminada”, explica o pesquisador, que considera essas mortes violentas como “homicídios ocultos”.

Os números são significativos. Embora o número de homicídios tenha permanecido estável entre 2006 e 2009, as mortes violentas de causa indeterminada correspondiam a 62,5% do número total de mortes registradas em 2009 no SIM. Em números absolutos, isso significa que 3.165 homicídios deixaram de ser incluídos nas estatísticas do ISP daquele ano.

Por outro lado, o Rio de Janeiro é o campeão brasileiro em número de mortes violentas indeterminadas. Nos registros de São Paulo, por exemplo, a taxa dessas mortes passou de 11 por 100 mil habitantes entre 2000 e 2006 para 6 por 100 mil habitantes entre 2007 e 2009, igual à média nacional. No Rio, nos mesmos períodos essa taxa subiu de 12 para 22 por 100 mil habitantes.

O ISP respondeu às conclusões do Ipea com uma nota. “Os bancos de dados da Secretaria de Estado de Segurança, compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), e da Secretaria de Estado de Saúde, tratados no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), são distintos em sua finalidade, temporalidade e categorização dos dados. Por isso, qualquer comparação entre os bancos de dados da Segurança e da Saúde que não considere essas diferenças resultará em conclusões equivocadas.”

Alheio à discussão estatística, o advogado João Tancredo, que representa a família de Amarildo na Justiça, conhece bem os crimes cometidos por policiais no Rio de Janeiro. Há anos ele acompanha casos que envolvem violência de agentes do Estado – dentro e fora do expediente – contra a população e não tem dúvidas: o aumento dos desaparecimentos está intimamente ligado à diminuição dos homicídios causados por policiais.

“Para mim, o auto de resistência hoje em dia tem se tornado desaparecimento. Por quê? O auto tem os nomes das vítimas e dos policiais militares. Se a família (da vítima) cobra providências, a sociedade civil se mobiliza e o PM que matou alguém de forma covarde vai para a cadeia. Ao governo do estado é melhor ter a aparência de paz. O aumento dos desaparecimentos faz sentido nesta ideia. Desaparecimento não tem autor”, pondera.

Tancredo também conhece bem a atuação das milícias formadas majoritariamente por policiais “justiceiros” e corruptos. Em 2008, como presidente do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (IDDH), chegou a ter o carro – blindado – alvejado por quatro tiros ao investigar uma denúncia de moradores da favela Furquim Mendes sobre um policial que estava cometendo crimes na região – conhecido então como “Predador”, um miliciano.

No berço das milícias

Os policiais de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro, estão entre os que mais se beneficiaram dos bônus pela queda nas estatísticas de “letalidade violenta” no ano passado – a região teve o segundo melhor resultado do estado, atrás apenas da pequena Barra do Piraí, no interior do estado.  Em dezembro, o governo anunciou que cada policial da região receberia R$ 9 mil a mais no contracheque pelo cumprimento da meta.

De fato, os homicídios caíram bastante por lá. Em 2011, foram registrados 149; em 2012, 106 casos, e apenas 60 homicídios constam nos dados disponíveis dos últimos 12 meses (seis deles registrados como autos de resistência) – correspondendo a uma queda de 60%. Mas os desaparecimentos só aumentaram. Passaram de 212 para 249 entre 2011 e 2012 e já somam 278 casos nos últimos 12 meses. É a delegacia que mais registra desaparecimentos no Estado.

Na Delegacia de Campo Grande um mural mostra o rosto dos desaparecidos (Foto: Giuliander Carpes)
Na Delegacia de Campo Grande um mural mostra o rosto dos desaparecidos (Foto: Giuliander Carpes)

Campo Grande é conhecido por moradores e especialistas como o berço das milícias, que continuam a agir com a maior desenvoltura através da cobrança de taxas da população – para autorizar a circulação das vans, dos caminhões de gás, instalar TV a cabo pirata e, claro, fornecer “serviços de segurança”. Esses “serviços” incluem dar fim a “suspeitos” de pequenos crimes ou de importunar a ordem local.

“Muitas das milícias são formadas por policiais em atividade. A escala da PM é de 24h de trabalho por 72h de folga. Nestas 72h de folga, o PM vira miliciano. É o bico. E o objetivo da milícia é desaparecer com marginal”, diz o sociólogo Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro “Quando a Polícia Mata”.

No dia 31 de julho de 2012, Donício Alves Vianna Júnior, conhecido como Dony e morador da comunidade de Bel Clima, em Campo Grande, desapareceu. Naquela noite, pretendia sair com o primo e com a cantora Anitta – que ainda não tinha caído nas graças do público, apenas na lábia do Don Juan de Bel Clima, com quem tinha um affair. Tudo que se descobriu sobre o desaparecimento do garoto de 22 anos, estoquista de uma empresa que prestava serviços para Michelin, é que ele foi rendido naquela noite por volta das 21h30 por um grupo de quatro homens.

Dony desapareceu em 2012, em Campo Grande
Dony desapareceu em 2012, em Campo Grande

Fui visitar a família de Dony em Bel Clima, uma das grandes ilhas de pobreza que se encontram nesse bairro de classe média, como acontece em todo lugar no Rio de Janeiro. No meio da tarde quente de janeiro, a praça estava iluminada pelo sol incandescente do verão e crianças brincavam despreocupadas nos brinquedos do play. Aliás, como lembram seus familiares, a praça onde Dony desapareceu é muito frequentada, mesmo à noite. Ainda assim os sequestradores não se intimidaram.

“Dizem que aqui não tem milícia, só que tem sim. É pior ainda que outros lugares porque aqui ela não dá tanto na vista”, diz Robson da Silva Heringer, primo e melhor amigo de Dony. Antes do desaparecimento, os dois eram unha e carne, compartilhavam segredos. Robson conta que Dony assinou sua sentença de morte ao se envolver com a amante de um dos chefes da milícia local, seu vizinho. “O moleque era ‘pintoso’. E era chato. A gente ia lá para o Camaleão (boate), lá para o lado do RioCentro, e ele pegava geral. Vinha todo dia falando de mulher”, conta o primo enquanto conversamos no local onde o garoto desapareceu.

“Onde ele chegava juntava um monte em cima dele, né? A maioria das amizades dele eram com mulher”, concorda a mãe de Dony, Vera Lúcia Vianna, com uma pontinha de orgulho.

Dony conheceu a Eva de seu Paraíso semanas antes de desaparecer, no salão onde cortava o cabelo, ali perto. Comentou com o primo que a loira estava dando mole. Pergunto a Robson se o primo sabia que a moça estava envolvida com um miliciano. “Creio que não. Se ele soubesse, não seria tão burro. Mulher tem aos montes por aí”, responde Robson.

Na emboscada, os milicianos deram socos, tapas e ameaçaram Dony com um fuzil. Pelo menos um deles vestia uma camisa cinza onde se lia “POLÍCIA CIVIL”. Entraram no seu carro e obrigaram-no a dirigir para o nada.

Sem dormir, a família ficou dois dias procurando por ele: foram no Instituto Médico Legal, visitaram favelas, reviraram matagais da zona oeste conhecidos como locais de desova dos milicianos. “Nós rodamos isso tudo atrás do meu filho. Entrei em todas as favelas. Meia-noite estava naquela de Cosmos”, conta Vera Lúcia com a voz cansada e o olhar perdido na tatuagem que fez para o filho no braço.

Cosmos é uma localidade que rima com milícia. Lá os integrantes destes bandos andam com uma arma na mão e mulheres, bebidas ou “vagabundos” no outro braço. ”Campo Grande todo é da galera de Cosmos. Tudo que é quadrilha de Campo Grande presta contas lá”, explica Robson. “Cosmos é o quartel-general deles”, diz o pai de Dony.

O Fiat Siena preto que Dony dirigia ainda apareceu uma vez depois do sumiço dele. Outro primo do garoto perseguiu de moto o veículo que rodava em alta velocidade pelas estradas de Campo Grande. Derrapou numa curva, caiu, machucou o braço, e nunca mais ninguém viu o carro de novo.
Segundo o inquérito aberto para investigar o caso, não havia policiais civis envolvidos, mas sim quatro policiais militares do 27º (Santa Cruz) e 40º (Campo Grande) batalhões que foram presos. Dois comparsas e a loira continuam foragidos. Enquanto conversamos na calçada, Robson aponta um Renault Sandero com vidros pretos que, segundo ele, foi o carro que abordou Dony no dia do crime. Um dos suspeitos estaria ali dentro, ele diz.

Vera tatuou o nome do filho, desaparecido após cair numa emboscada de milicianos (Foto: Giuliander Carpes)
Vera tatuou o nome do filho, desaparecido após cair numa emboscada de milicianos (Foto: Giuliander Carpes)

“Eles espalharam câmeras por aqui tudo, já devem até ter visto que estamos conversando”, diz Robson. O carro passa lentamente, parece que a não mais do que 5 km/h. Não é possível ver quem está dentro do veículo por causa dos filtros nas janelas do carro, mais escuros do que a lei permite.

Leia também: O repórter Giuliander Carpes relata os bastidores da reportagem

Para o delegado, fato isolado

O delegado da 35ª DP (Campo Grande), Marcus Drucker Brandão, encarregado do inquérito, me recebe no escritório quase desprovido de mobília, ocupado por uma mesa coberta de pilhas de papéis. Puxo uma cadeira para escutá-lo. Ele começa por criminalizar a vítima, que segundo ele, estava “prestando vestibular para o crime”. “Uma testemunha conta que ele havia dirigido um carro para outro colega tentar matar um miliciano”, diz.

Depois disse que o caso de Dony é “um fato isolado” no bairro que, segundo ele, nem tem mais as milícias formadas majoritariamente por policiais. “Hoje estes grupos são o que nos Estados Unidos chamam de gangues. A grande maioria dos policiais e ex-policiais que comandavam as milícias estão presos. Neste vácuo de poder do crime, eles foram substituídos por civis. O problema é que, por continuarem sendo chamadas de milícia, elas passam uma condição oficial, ou oficiosa, para a comunidade”, discursa.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado, que destacou a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas e Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco-IE) para combater as milícias, entre 2007 e 2013, 857 milicianos foram presos, contra apenas cinco em 2006.

Brandão diz ainda que a maior parte dos desaparecimentos é de gente que perde o caminho de casa por sua própria vontade. “Há muitas famílias desestruturadas na região.”

Não é essa a realidade que apontam as pesquisas acadêmicas. Segundo um estudo recente da antropóloga Alba Zaluar, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da UERJ, em conjunto com Christovam Barcellos, da Fiocruz, a milícia domina 454 das 1001 favelas localizadas no município do Rio de Janeiro – o equivalente a 45%.

“Lá (em Campo Grande) estão as milícias. Lá também estava a maior taxa de homicídios do município. É a milícia que está matando. Vai investigar o quê? Começar por onde? Miliciano enterra no meio do mato e acabou. As famílias têm medo. O máximo que elas fazem é registrar o desaparecimento, quando o fazem. Muitos desaparecimentos nem são registrados. Acho inclusive que a maioria dos desaparecimentos que são, na verdade, assassinatos não são notificados”, opina Misse.

Com ele concorda Ignácio Cano, autor do livro “No Sapatinho”, sobre a evolução dos grupos paramilitares no Rio de Janeiro: “Apesar do número de denúncias ter caído a partir de 2009, a repressão não conseguiu desarticulá-las (as milícias). Há indicações de que elas continuam atuando normalmente”, afirma.

Em seu estudo, Cano propôs um modelo estatístico cruzando dados de denúncias contra milícias e registros de desaparecimentos e homicídios até 2011. Para ele, ficou estabelecida a ligação dos sumiços em Campo Grande com os grupos paramilitares da região. “Elas estão matando menos, mas estão sendo mais discretas nos seus homicídios, recorrendo ao desaparecimento de pessoas como alternativa. Os registros oficiais de desaparecimentos, a despeito das suas limitações, parecem confirmar uma tendência de aumento de casos em locais e momentos que a milícia está mais presente.”

Há moradores de Campo Grande que aprovam e outros que temem a atuação das milícias. Um deles, ex-colega de escola de alguns milicianos que atuam sob o codinome de personagens do game Street Fighter, descreve com rigor e certo fascínio um dos métodos utilizados pelos criminosos para desaparecer gente. “Eles fazem um corte do pescoço até o umbigo e retiram as vísceras da pessoa. Aí jogam no rio Guandu. Sem as vísceras, o corpo não boia, afunda.”

O rio, que passa por Campo Grande e deságua na Bacia de Sepetiba, é onde está localizada a estação de tratamento de água (ETA) Guandu. A Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) se orgulha da construção: é a maior do mundo, reconhecida pelo Guinness, o livro dos recordes. Um funcionário da empresa comenta que não há dia que não tiram um cadáver da peneira da ETA Guandu direto para o IML. Desde 1955, sai dali a água que abastece toda a cidade do Rio de Janeiro e boa parte da Baixada Fluminense. O líquido pinga das torneiras insípido, incolor, com cheiro de morte.

Na mira do tráfico

Outro caso de desaparecimento investigado nessa reportagem é o de Felipe Rodrigo Pinheiro Venâncio, no dia 22 de novembro de 2008, em Duque de Caxias. Felipe morava na Cruzada São Sebastião, uma ilha de pobreza no coração do Leblon, bairro com o metro quadrado mais caro do Brasil. Construído em 1955 para abrigar os moradores despejados da favela Praia do Pinto, o conjunto habitacional tem 10 prédios e 945 apartamentos construídos em padrão muito inferior ao dos edifícios vizinhos.

Felipe desapareceu em 2008 e até hoje seu caso não foi esclarecido
Felipe desapareceu em 2008 e até hoje seu caso não foi esclarecido

Mas o garoto de 20 anos gostava de ficar no apartamento onde morava, no bloco 5. De lá só saía para dar uma passada num bar ao lado ou para visitar familiares em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade. No dia fatídico, a contragosto da mãe, Gracilea de Alcântara Pinheiro, cedeu ao pedido da namorada de passar a noite de sábado com ela em Nova Campina, na Baixada Fluminense. A sogra estava de aniversário. Segundo relatos, foi a última festa que o jovem participou na vida.

No dia seguinte, o telefone da casa da mãe de Rodrigo tocou por volta das 16 horas. Sua irmã, Patrícia, atendeu. “Meu irmão, não! Meu irmão, não!”, repetia, antes de desmaiar. Do outro lado da linha, a namorada do jovem, Juliana, dizia que Felipe havia sido raptado por três homens enquanto jogava futebol num campo ao lado do “Brizolão”, uma escola de Nova Campina construída durante o mandato do finado governador. E desligou.

Sem o telefone ou o endereço da namorada, a família de Rodrigo penou ao iniciar a busca. Na delegacia, só aceitaram registrar o boletim de ocorrência no dia 25, três dias depois do desaparecimento. ”Em todo lugar só faltaram falar que eu era mentirosa. O inspetor que nos atendeu disse: ‘Esta história está muito mal contada’. Eu não podia inventar outra história porque foi o que a Juliana passou pelo telefone. Ela não falou com a gente pessoalmente”, conta a mãe.

Diante da família, a polícia atacava a vítima, um jovem negro morador de uma comunidade onde sabidamente existe tráfico de drogas, consumidor ocasional de maconha. Vale tudo para evitar uma investigação aprofundada, como descobriria depois a família de Amarildo.

“Eles acham que filho de pobre é tudo traficante, não pode estudar, se formar. Então se acontece alguma coisa é porque é vagabundo”, afirma a irmã do desaparecido. “Ninguém podia dizer que era traficante. Não tinha registro na polícia nem nada. E mesmo se fosse, ele é um cidadão.”
Em depoimento ao delegado, Juliana e o pai dela disseram que não sabiam quem poderia ter levado Felipe. Uma semana depois do desaparecimento, porém, o pai de Juliana apareceu na Cruzada com todas as roupas que Rodrigo havia levado para Nova Campina: uma camiseta azul clara, calça bege, uma bermuda, um par de tênis, meias e até a cueca. Também devolveu os documentos do rapaz.

Uma semana depois de Felipe desaparecer, a mãe recebeu as roupas e os documentos do jovem (Foto: Giuliander Carpes)
Uma semana depois de Felipe desaparecer, a mãe recebeu as roupas e os documentos do jovem (Foto: Giuliander Carpes)

“Passei isso para a polícia, mas não colocaram no boletim de ocorrência. Não consegui entender como ele chegou com a roupa toda completa do garoto e os documentos dele. Eu disse para ele pelo menos telefonar para a delegacia, contar o que tinha acontecido. Ele respondeu: ‘Sinto muito. Eu sei quem matou seu filho, mas não posso falar porque eles estão na frente da minha casa 24 horas por dia. Se a gente falar quem fez, vão matar todo mundo. E a Juliana tive que tirar de casa porque eles querem matar ela também.’”

Histórias que chegaram aos ouvidos da família dão conta que Juliana teria envolvimento anterior com um traficante de Nova Campina integrante de uma facção rival aos “donos” do comércio de droga da Cruzada. A ex-namorada estaria então nos braços de um inimigo.

A investigação da polícia não comprovou esta versão nem qualquer outra. O inspetor que me recebeu na 62ª DP (Imbariê) disse apenas que o caso foi relatado no ano passado ao Ministério Público. Desde então permanece parado, já que não há provas para acusar ninguém da responsabilidade pelo crime.

Encontrei a casa que Juliana e sua família moram em Nova Campina, o local onde Felipe teria passado seus últimos momentos. É uma região humilde, as ruas não têm nome e a residência deles foi construída com muitas tábuas de madeira de procedências diferentes. Mandei um recado por uma vizinha para pedir para conversar com eles. Ela me diz que eles ficaram desesperados e pediram para ela falar que não conseguiu encontrá-los. Não querem remoer o caso.

Duque de Caxias é a maior cidade da Baixada e responde por 298 desaparecimentos – um quarto do total dos casos registrados entre novembro de 2012 e outubro do ano de 2013. Também é o primeiro município fora da capital fluminense a receber uma UPP, na favela da Mangueirinha, inaugurada em fevereiro.

Tive acesso a muitos casos desses casos de desaparecimento ocorridos há 3, 4, 8 e até dez anos que não foram devidamente investigados. Terminaram como o de Felipe, sem identificar responsáveis. Há no máximo indícios. Ninguém é punido. O velho ditado “não há corpo, não há crime” prevalece.

Leia também: O repórter Giuliander Carpes relata os bastidores da reportagem


Mortes inconclusas

 

Uma portaria da polícia civil do Rio de Janeiro de fevereiro de 2013 passou a exigir que as delegacias enviem os casos de desaparecimento não solucionados no prazo de 15 dias para a Seção de Descoberta de Paradeiros da Divisão de Homicídios – a mesma que investigou o sumiço de Amarildo. No entanto, nem sempre a norma é respeitada; outras vezes é a seção que não tem como dar conta da demanda.

Após uma pressão da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, o Senado aprovou um projeto de lei para tipificar os desaparecimentos e transformar os sumiços forçados em crime. A votação ocorreu pouco depois do caso Amarildo. Se aprovado também pela Câmara dos Deputados, a prática será incluída no rol dos crimes hediondos. A pena de prisão pode variar de 6 a 40 anos.  Enquanto isso, prevalece o abandono dos casos.

Amarildo estava construindo uma laje no barraco onde morava para fazer um quarto para as filhas. Prometeu à Milena, de seis anos, que não morreria antes de terminar a obra. O dia em que Dony desapareceu foi o seu último de trabalho como estoquista. O dia seguinte seria sua estreia em um novo emprego, mais bem remunerado. Felipe só queria sair de moto nova por aí com a namorada.
São mortes inconclusas. Há dias que os familiares sonham no retorno dos sumidos com vida carregando os tijolos da obra, de volta do trabalho ou em cima de uma moto. Noutros, só gostariam de poder enterrá-los com dignidade, sete palmos de paz, o fim da angústia. “Medo? Eu não tenho nem um pouco”, diz a mãe de Dony, que se mudou de Campo Grande para o bairro vizinho de Bangu para evitar o local onde o filho foi visto pela última vez. “Eu tenho vontade de falar com quem fez isso cara a cara. Ele tirou a coisa mais importante da minha vida. Se ele me matar, está fazendo até um favor. Eu só queria ter o prazer de falar ‘você não tem filho, não, seu canalha? Você tirou a vida do meu filho tão jovem. Você não deve saber amar.’”


  

"Por que o Uruguai legalizou a maconha", por Johann Hari

PICICA: "No dia 23 de dezembro de 2013, o presidente uruguaio José Mujica aprovou um projeto de lei para criar um mercado regulamentado e legal da maconha. Com a medida, ele tornou-se o primeiro chefe de Estado a legalizar a produção e a venda – em uma rede de farmácias – de uma droga proibida em toda parte" 

DE TRAFICANTES A FARMACÊUTICOS
Por que o Uruguai legalizou a maconha
No dia 23 de dezembro de 2013, o presidente uruguaio José Mujica aprovou um projeto de lei para criar um mercado regulamentado e legal da maconha. Com a medida, ele tornou-se o primeiro chefe de Estado a legalizar a produção e a venda – em uma rede de farmácias – de uma droga proibida em toda parte

por Johann Hari


No México, fotos de desaparecidos revestem os muros tal qual uma campanha publicitária colossal de um traficante de humanos. Segundo a organização Human Rights Watch, mais de 60 mil mexicanos perderam a vida na “guerra às drogas”, deflagrada em 2006 pelo então presidente Felipe Calderón. O banho de sangue se alimenta de duas fontes cruzadas: de um lado, os Estados Unidos fornecendo dinheiro e armas na outra margem do Rio Grande para reprimir o tráfico de entorpecentes; de outro, os cartéis lutando pelo controle das rotas de distribuição.1 No dizer de Charles Bowden, a guerra às drogas se iguala à guerra pela droga. Ambas são igualmente letais.

Até recentemente, dominava certo fatalismo inspirado pela constatação de que a selvageria não poderia ser detida, apenas deslocada. Entretanto, há dois anos, dirigentes latino-americanos, entre os quais o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, têm procurado romper publicamente com o dogma repressivo e colocar em prática uma política diferente – a única, eles asseguram, capaz de erradicar o mercado da droga. É essa a postura que o Uruguai está tentando adotar. Seu presidente, José Mujica, é um dirigente atípico. Ex-guerrilheiro tupamaro da década de 1980, ele ficou preso no fundo de um poço por 2,5 anos. Depois de eleito, em novembro de 2009, desprezou a pompa do palácio presidencial, preferindo permanecer em sua pequena casa com teto de zinco, num bairro popular de Montevidéu. Destina 87% de seu salário de chefe de Estado a instituições de apoio a projetos sociais de habitação e, de bom grado, vai de ônibus a muitos de seus compromissos.

Origens da violência

Em julho de 2013, ele baixou uma lei autorizando adultos a cultivar e vender Cannabis em todo o território nacional. Os usuários passaram a poder obter sua erva favorita nas farmácias, limitados a 40 gramas por mês, ou a cultivar, por conta própria, até seis pés por residência. É a primeira vez que um país transgride frontalmente os tratados da ONU que proíbem o uso da maconha.

“Já faz mais de cem anos que, de um modo ou de outro, adotamos políticas repressivas em relação às drogas”, explica-nos Mujica. “E, passado um século, concluímos que essas práticas resultaram num fracasso incontestável.” O ministro da Defesa uruguaio, Eleutorio Huidobro – outro ex-tupamaro que ficou preso no fundo de um poço por vários anos –, nos faz uma síntese da tomada de consciência que levou o governo de seu país a dar esse passo histórico: “Se não fizéssemos isso agora, o que aconteceu com o México acabaria acontecendo em nosso país. E estaríamos em maus lençóis”. Na verdade, o Uruguai se situa numa das principais rotas continentais da droga, seguida pela cocaína boliviana e pela maconha paraguaia antes de tomar o rumo da Europa. Segundo o deputado Sebastián Sabini, um homicídio em três no país está associado ao narcotráfico.

É a política de proibição, insiste Huidobro, que criou o narcotráfico e a violência dela decorrentes: “Ao reprimir a legalização da marijuana, o que se faz é colocar os benefícios desse mercado nas mãos dos criminosos e transformar os traficantes em uma instituição superpoderosa”. Numa economia ilegal, os litígios não são resolvidos por um tribunal, mas pelo terror. Da mesma forma como a proibição da bebida concebeu Al Capone e o massacre do Dia de São Valentim,2 a gangue dos Zetas e a carnificina sem fim que enluta o norte do México são frutos naturais da proibição dos entorpecentes. “A guerra dos Estados Unidos à droga causa mais dano do que a própria erva”, enfatiza Huidobro. “Ela provoca infinitamente mais vítimas, infinitamente mais instabilidade. Ela coloca para o planeta um problema bem mais grave do que qualquer droga. O remédio é pior do que a doença.”

O governo de Mujica considera a erradicação do comércio de drogas uma utopia fantasiosa. O slogan da ONU – “Um mundo sem drogas. É possível alcançá-lo” – parece-lhe um grande absurdo. O chefe de gabinete da presidência, Diego Cánepa, defende que a alteração química da consciência é resposta a um desejo básico da espécie humana, manifestado em todas as sociedades conhecidas.

A mobilização de tropas tem como único efeito o deslocamento do tráfico em algumas centenas de quilômetros. Os especialistas o definem como “efeito balão”: quando se aperta o dedo no balão cheio de ar, a circunferência dele aumenta sob o efeito da pressão. Os locais de produção atacados na Colômbia reapareceram na Bolívia, as redes desmanteladas no Caribe se reconstituíram no México etc. No máximo, conseguimos afastar o problema em vez de extingui-lo.

A partir dessa constatação, Mujica concluiu que, “uma vez que o mercado já existe, é preciso regulamentá-lo, fazê-lo sair das sombras para tirá-lo dos traficantes”. Nos Estados Unidos, a legalização do álcool em 1933 pôs fim ao tráfico de destilados de má qualidade e aos assassinatos entre concorrentes. A Budweiser não é chegada à filantropia, mas pelo menos não defende sua fatia de mercado acabando com funcionários da Guinness. Da mesma forma, a legalização da maconha – e sua comercialização em farmácias estabelecidas legalmente – tira o pão da boca do crime organizado. Por outro lado, os impostos cobrados podem servir para financiar centros de tratamento para dependentes e programas de prevenção contra o consumo de tóxicos.

Os adeptos sul-americanos da legalização não estão pretendendo enaltecer os benefícios da maconha nem estimular o consumo – o presidente Mujica não hesitou em qualificar os usuários de drogas leves de nabos, termo pejorativo que significa literalmente “nabos”. Eles estimaram, em contrapartida, que um “baseado” não é mais nocivo do que um copo de bebida alcoólica e que, portanto, era preciso ajustar-se à situação.

Doces com psicotrópicos

Os reformistas uruguaios não ignoravam que iam bater de frente com a indignação dos adeptos da proibição. Por décadas, estes últimos acenaram com o espectro de que a legalização seria sinônimo de caos e depravação, que convidaria crianças a correr até a confeitaria da esquina para se abastecer de psicotrópicos − ao que os uruguaios retrucam que caos é o que o continente deles vive no presente momento. A reforma que defendem visa exatamente ao oposto: retomar o controle do mercado para poder dominá-lo. Segundo eles, os adolescentes serão os principais beneficiários. Sabe-se que o consumo regular de maconha pelos mais jovens pode alterar-lhes as faculdades mentais e que é vital dissuadi-los do consumo. Hoje, os jovens norte-americanos preferem a maconha ao álcool,3 pela simples razão de que um traficante raramente pede um documento de identidade ao cliente. Em contrapartida, o farmacêutico está mais inclinado a respeitar a lei, caso contrário pode perder sua licença.

Pelos quatro cantos do mundo, são numerosos os legisladores e representantes do aparato policial a reconhecer, em caráter privado, as vantagens da legalização. No Uruguai, eles o fazem abertamente e agem de acordo. Por que eles, por que aqui? Por que razões os obstáculos intransponíveis lá fora – a inércia, o medo de desagradar aos Estados Unidos, o temor da opinião pública – são mais fáceis de ser vencidos no Uruguai do que em outra parte?

São diversos os fatores que se combinam. O primeiro diz respeito ao vigor excepcional do movimento antiproibicionista, atiçado por uma série de injustiças ostensivas. Em abril de 2011, por exemplo, uma professora da academia militar, Alicia Garcia, de 66 anos, foi presa por cultivar alguns pés de Cannabis em sua residência. Ela encarou vinte meses de prisão por produção ilegal para uso comercial. Formou-se então, em torno dela, uma rede de apoio à qual se associaram os jovens parlamentares do Movimento de Participação Popular (MPP), o partido de Mujica, em defesa da legalização.

Ao mesmo tempo, a autoridade dos Estados Unidos em relação ao assunto começou a vacilar. Em 2013, os estados do Colorado e de Washington adotaram uma lei, aprovada por meio de referendo, que legaliza o uso, a produção e a venda da marijuana. As autoridades norte-americanas estariam, a partir de então, em situação menos vantajosa para coibir ou punir países desejosos de fazer o mesmo.

Enfim, a popularidade e a determinação do presidente uruguaio exerceram um papel fundamental. Sem dúvida, depois de sobreviver anos no fundo de um poço, fica-se mais bem equipado para resistir a pressões, tanto internas como externas.

Até hoje, entretanto, Mujica e seus aliados ainda não obtiveram êxito em persuadir a maioria de seus compatriotas, atraindo-os para a causa. Mesmo considerando que, ao longo do tempo, a legalização conta com uma adesão crescente, há ainda 60% de opiniões contrárias, segundo as pesquisas. Os oponentes alegam três objeções. Em primeiro lugar, o efeito de um ganho inesperado: “A partir do momento em que se legaliza uma droga, as pessoas passam a consumi-la em maior quantidade”, afirma a deputada Verónica Alonzo. O argumento parece sensato; no entanto, os fatos o contradizem. Na Holanda, onde a venda da maconha nos coffee shops foi autorizada em 1976 (as autoridades renunciaram a uma legalização formal para não transgredir abertamente os tratados da ONU), os usuários representam apenas 5% da população, contra 6,3% nos Estados Unidos e 7% no conjunto da União Europeia.4 A imagem de uma corrida às farmácias uruguaias parece assim algo fantasioso.

A legalização da cocaína?

O segundo medo é que a legalização da Cannabisincite os usuários a recorrer a drogas pesadas, especialmente a pasta-base, um derivado da cocaína comparável ao crack que faz estragos nas camadas menos favorecidas da população uruguaia. É a teoria chamada da “porta aberta”: um vício menor leva necessariamente a um mais grave. Raquel Peyraube, especialista no tratamento de toxicômanos, não acredita nisso, nem por um segundo. Segundo ela, é justamente o contrário: a proibição é que, por meio do monopólio que confere aos traficantes, orienta os usuários de maconha na direção de produtos mais perigosos. “No supermercado, compramos coisas de que não precisamos porque nos mostram ou porque as tornam atraentes para nós”, explica. “Da mesma forma, os traficantes vão tentar empurrar cocaína e outras substâncias para seus clientes. A proibição faz a cama das drogas pesadas.” A análise foi confirmada por um estudo recente realizado pela Open Society Foundations, a rede de fundações criada pelo milionário George Soros: ela verificou que a Holanda apresenta os índices mais baixos de toxicômanos da Europa, precisamente por ter mantido as drogas pesadas afastadas da maconha.5

Raquel também rechaça a ideia segundo a qual a legalização provocaria uma elevação dos casos de esquizofrenia. Se houvesse uma ligação entre a maconha e a aparição da doença, afirma, as taxas de esquizofrênicos teriam explodido ao longo das últimas décadas, já que é incontestável que o consumo de maconha não parou de crescer em numerosos países ou permaneceu estável. Segundo a médica, é possível, em contrapartida, que os esquizofrênicos consumam essa droga com mais frequência do que a média em função de seu efeito relaxante, o que explicaria a correlação.

A essas críticas junta-se outra, mais séria, que não deixa de sensibilizar certos membros da administração uruguaia. A maconha não passa de uma mercadoria entre outras no mercado de drogas ilícitas. Certamente a legalização vai reduzir o mercado, mas conserva intacto o comércio dos produtos mais rentáveis. Para abalar de fato o poder dos cartéis, o coerente seria ir mais além e regulamentar o circuito de todas as drogas cuja demanda é elevada. Com certas drogas, como o ecstasy e a cocaína, seria o caso de regular a venda; com outras, como a heroína, seria, sem dúvida, mais recomendável uma distribuição sob prescrição médica, conforme sugerem as experiências-piloto realizadas na Suíça.

“Vai levar algum tempo”, reconhece Sebastián Sabini, o representante do MPP mais envolvido com a reforma. “Mas quando chegar o dia, quando for a hora das outras drogas, estaremos prontos para defender nossa causa perante a população.” Aquele que os observadores consideram como o futuro sucessor do chefe de Estado já se pronunciou como favorável à legalização da cocaína.

Existe ainda uma alternativa? Qual é a vantagem em teimar em perseguir aquilo que Huidobro chama de uma guerra “já perdida”? Esperando que os políticos de seu país decidam reagir, a mexicana Emma Veleta chora o desaparecimento de oito familiares, sequestrados por traficantes com a provável cumplicidade das autoridades locais.6 Conforme observado por David Simon, o criador da série televisiva The Wire, os Estados Unidos poderiam muito bem ser tentados a conduzir sua luta contra a droga “até o último mexicano”.

Johann Hari
Jornalista


Ilustração: Lorenzo Gritti

1 Ler Jean-François Boyer, “Mexico recule devant les cartels” [México recua diante dos cartéis], Le Monde Diplomatique, jul. 2012.

2 No dia 14 de fevereiro de 1929, a máfia de South Side, comandada por Al Capone, armou uma emboscada contra a de North Side, sob o controle de Bugs Moran, e assassinou sete de seus membros.

3 Tom Fielding, The candy machine: how cocaine took over the world [A máquina de doces: como a cocaína dominou o mundo], Penguin, Londres, 2009.

4 “Dutch fear threat to liberalism in ‘soft drugs’ curbs” [Holandeses temem ameaça ao liberalismo em freios às “drogas leves”], Reuters, 10 out. 2011.

5 “Coffee shops and compromise: separated illicit drug markets in the Netherlands” [Coffee shops e compromisso: mercados de drogas ilícitas separados na Holanda], Open Society Foundations, Nova York, jul. 2013. Disponível em: .

6 “La pesadilla de perder a toda su familia en Chihuahua” [O pesadelo de perder toda a família em Chihuahua], 28 maio 2012. Disponível em: .

7 David Simon, “A fight to the last Mexican” [Uma luta até o último mexicano], 10 jul. 2012. Disponível em: .

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

"Daniel Aarão Reis: As conexões civis da ditadura brasileira" (IHU)

PICICA: "No ano em que se completa o cinquentenário do golpe que derrubou o presidente João Goulart da presidência e deu início à ditadura, Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), defende que é preciso aprofundar o debate sobre as conexões civis do regime militar. Em seu novo livro, “Ditadura e democracia no Brasil” (Zahar), ele avalia algumas das relações entre a sociedade e as Forças Armadas, além de propor uma diferenciação entre ditadura e estado de direito autoritário. Em entrevista ao GLOBO, Aarão Reis diz que, sem o conhecimento e a discussão sobre os fundamentos sociais e históricos da ditadura, não será possível avançar." 


Daniel Aarão Reis: As conexões civis da ditadura brasileira 

 

No ano em que se completa o cinquentenário do golpe que derrubou o presidente João Goulart da presidência e deu início à ditadura, Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), defende que é preciso aprofundar o debate sobre as conexões civis do regime militar. Em seu novo livro, “Ditadura e democracia no Brasil” (Zahar), ele avalia algumas das relações entre a sociedade e as Forças Armadas, além de propor uma diferenciação entre ditadura e estado de direito autoritário. Em entrevista ao GLOBO, Aarão Reis diz que, sem o conhecimento e a discussão sobre os fundamentos sociais e históricos da ditadura, não será possível avançar.

A entrevista é de Leonardo Cazes, publicada pelo jornal O Globo, 15-02-2014.

Eis a entrevista.

Quais as principais mudanças e descobertas, nos últimos dez anos, no campo dos estudos sobre a ditadura militar brasileira?

A grande novidade nessa última década é que se fortaleceu uma corrente crítica à principal tendência da historiografia sobre o período. A história da ditadura que ainda permanece hegemônica no Brasil, encarnada em grande parte pelo Arquivo Nacional e em certa medida pela Comissão Nacional da Verdade, se recusa a considerar a ditadura nas suas complexas relações com a sociedade brasileira. Imagina que a ditadura foi imposta de cima para baixo e enfatiza, quase que exclusivamente, a resistência à ditadura. Ulysses Guimarães, por exemplo, é uma grande figura da resistência democrática, foi chamado de “Senhor Diretas” e presidiu a Constituinte.

Mas pouca gente sabe que ele foi um dos líderes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade e apoiou o golpe de 1964. Ele fez parte da comissão do Congresso que tentou elaborar o primeiro Ato Institucional, mas os militares não gostaram e assumiram a responsabilidade. A própria CNBB, que exerceu um papel importante na divulgação de violações contra os direitos humanos durante a ditadura, apoiou o golpe. D. Paulo Evaristo Arns era bispo de Petrópolis e foi apoiar as tropas do General Olímpio Mourão Filho que desciam de Minas para o Rio. É preciso estudar as complexas relações que se estabeleceram. Houve muita colaboração, cumplicidade, zigue-zagues. Juscelino Kubitscheck, sobre quem até hoje há suspeitas de que foi assassinado pelos órgãos de segurança, apoiou o golpe, mesmo que com reservas. Ele cabalouo voto para a eleição de Castello Branco no Congresso. Tudo isso é silenciado. Quem sabe, não fala no assunto.

É por isso que no seu livro recém-lançado, “Ditadura e democracia no Brasil”, o senhor enfatiza a participação civil tanto no golpe quanto no regime?

Não é à toa que cada vez mais gente fala em uma ditadura civil-militar, não apenas uma ditadura militar. A noção de uma ditadura militar foi criada logo depois do golpe pelas esquerdas derrotadas. Era um recurso político legítimo na época, porque a gente queria isolar a ditadura.
Fingíamos ignorar os apoios que ela tinha no mundo civil e a designávamos de militar. Essa ideia inicial, politicamente legítima, vai sendo incorporada por todos que migram de uma posição de tolerância ou cumplicidade ativa com a ditadura para as oposições. Vai haver uma migração maciça, principalmente a partir de 1973, 74, de líderes do regime e de segmentos sociais que encontraram na expressão “ditadura militar” um verdadeiro bálsamo para absolver e esconder as suas relações.
A apoteose desse tipo de perspectiva foi a colocação do marco cronológico do fim da ditadura, que é construído em função de premissas e perspectivas teóricas e políticas. Fixou-se o marco em 1985, na posse de José Sarney. Ora, o Sarney foi homem da ditadura desde o início e uma de suas lideranças, mas essa cronologia ganha coerência porque a ditadura era militar e ele foi o primeiro presidente civil. Se a ditadura fosse entendida como um complexo civil e militar, seria mais problemático colocar esse marco. Creio que, passados tantos anos, embora a resistência à ditadura mereça e continuará merecendo atenção nos nossos debates, essa tendência de rever a história vai crescer. Se você assume esse ponto de vista, apontando os fundamentos sociais e históricos, há áreas incríveis que merecem estudo, como os sindicatos, que tiveram um crescimento gigantesco durante a ditadura.
A ditadura sempre esteve muito preocupada em manter uma aparência de legalidade e com a sua legitimidade. Manteve o Congresso Nacional aberto e criou uma nova Constituição em 1967. Por quê?

A ditadura se instaurou em nome da democracia. Essa é uma diferença importante a se fazer entre as ditaduras anteriores e posteriores à Segunda Guerra Mundial. No Estado Novo, o Getúlio não tinha nenhum problema em dizer que aquele regime era autoritário porque a democracia estava muito desprestigiada à época. A União Soviética se desenvolvia a passos gigantescos e não era uma democracia, o nazifascismo aparecia como uma alternativa universal e recusava a democracia.

Muitos regimes na Ásia, África e América Latina adotaram formas corporativistas autoritárias, como o Brasil. Já depois da Segunda Guerra, feita em nome da democracia e contra o nazifascismo, era muito mais difícil legitimar um regime contra a democracia. O movimento de 1964 foi feito em defesa da democracia e contra a corrupção. Muitas lideranças políticas que apoiaram o golpe acharam que os militares iam fazer uma intervenção rápida. Cassariam os comunistas, os trabalhistas e as esquerdas mais radicais e abririam caminho para as eleições presidenciais de 1965. O apoio de JK a Castello Branco se insere aí, porque Juscelino era um dos fortes candidatos, assim como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. Esses líderes civis que participam do golpe eram liberais autoritários. Tinham medo de que uma democracia ampla no Brasil incitasse as massas à luta e que isso provocasse uma revolução social no país. A farsa da Constituinte do Castello marca o início do estado de direito autoritário que vai de março de 1967 a dezembro de 1968, com o AI-5.

No livro, o senhor marca uma diferença entre esse estado de direito autoritário e a ditadura propriamente dita. Poderia explicar melhor?

Eu tento fixar um critério para conceituar um governo como ditatorial ou não. O critério que eu coloco é óbvio, o do estado de exceção. É quando o governo faz e desfaz leis a seu bel-prazer, não passando por nenhuma instância de controle nem sendo controlado por nenhuma instância. O governo inventa os meios legais como quer, como a figura jurídica do banimento, criada para permitir a libertação dos 15 presos trocados pelo embaixador americano em 1969. A república entre 1946 e 1964 era um estado de direito autoritário. Quase metade da população não votava porque era analfabeta.

Ninguém chama o governo Dutra de ditadura, mas na contagem do PCB, então na ilegalidade, 51 militantes foram mortos em manifestações. No regime militar, a ditadura é reativada em dezembro de 1968, com o AI-5, e segue até 1979. Do governo Figueiredo até 1988, temos um estado de direito autoritário. Na Constituição de 1988, que sem dúvida é a nossa carta mais democrática, ainda subsistem claramente aspectos autoritários, como o direito dos militares intervirem na vida política nacional desde que sejam chamados pelo chefe de um dos três poderes. Isso é de um autoritarismo enorme e foi incluído por pressão dos milicos à época.

Poderíamos mencionar outros, como a concentração de poder que cria um presidencialismo de caráter imperial e as medidas provisórias. Desde 1889, quando não tivemos ditaduras, tivemos um estado de direito autoritário no Brasil.

Muito se discute atualmente sobre as heranças da ditadura. Como essa tradição autoritária que o senhor aponta se manifesta hoje?

Uma prática que persiste é a tortura. A tortura foi política de Estado em alguns governos da Primeira República e nas ditaduras do Estado Novo e de 1964. Ela antecedeu e continuou após essas ditaduras e está aí até hoje nas delegacias, nos quartéis. É uma tradição maldita que vem da escravidão. A posição favorável à tortura encontra-se disseminada na sociedade brasileira. O Núcleo de Estudos da Violência da USP, em pesquisa de 2011, apontou que 48,5% dos entrevistados admitiam a tortura em determinados casos. Você pode presumir que esse número é muito maior, pois muita gente não assume essa posição para o pesquisador, mesmo com a garantia do anonimato. Os fundamentos sociais e históricos da ditadura precisam ser discutidos e compreendidos. O autoritarismo permeia toda a sociedade brasileira. De modo nenhum nossa democracia está a salvo de surtos autoritários. A gente viu agora mesmo nas manifestações de 2013 como políticos de diversos partidos se comprometeram com uma repressão desapiedada sobre o movimento.

A Polícia Militar mata cotidianamente pessoas no Brasil todo, os índices são demenciais comparados a outros países, e isso está naturalizado. Embora haja críticas muito severas aos black blocs, as críticas à PM são muito moderadas. No Rio, o governador Sérgio Cabral, eleito democraticamente, tentou criar uma estrutura denunciada e repudiada como uma reedição do DOI-Codi, e recuou. Mas o simples fato dele ter proposto é muito simbólico. Sem lidar com a nossa tradição autoritária, as ditaduras não se explicam. O Estado Novo se instaurou em 1937 quase sem resistência e acabou em 1945 em uma transição pelo alto. Em 1964 e em 1979, foi muito parecido. É preciso discutir isso seriamente.



Fonte: IHU

fevereiro 27, 2014

"Lutas, Êxodos e Carnavais"

PICICA: "Quarta 26/02 na Casa de Rui Barbosa às 14h: Outras Cartografias Possíveis, às 18h: conferência de Michael Hardt: A constituição do Comum com Casa de Rui barbosa e Universidade Nômade
http://www.uninomade.net/outrascartografiaspossiveis/ 
Lancamento do livro POR UMA POLÍTICA MENOR (Casa Rui Barbosa)"

FACE A INTERDIÇÃO DO VÍDEO 'PRIVADO', SUBSTITUÍMOS AS 4 HORAS DE VÍDEO POR UM OUTRO DE POUCO MAIS DE 1 HORA, CENTRADA NA CONFERÊNCIA DE MICHAEL HARDT. FACE A IMPORTÂNCIA DO EVENTO NA CONSTRUÇÃO DO COMUM, FAZEMOS VOTOS DE QUE AS IMAGENS SEJAM LIBERADAS BREVEMENTE.


"Com, contra e para além da violência policial", por Simone da Silva

PICICA: "A população nas ruas que começou a gritar pelo fim da policia militar (“não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”), reagiu quase inconscientemente ao fim de uma das quatro polícias militares ainda em vigor no mundo. Dessas, somente a Turquia é uma democracia e compartilha da militarização de sua polícia, curiosamente, um dos países que faz parte do ciclo global de mobilizações, deflagrado em 2013, com intensas mobilizações igualmente a partir de uma questão urbana, a derrubada de um parque no centro de Istambul. Ademais, a ONU desde 2012 já recomendou firmemente que o Brasil desmilitarizasse sua polícia, demonstrando a importância e visibilidade da questão em um panorama internacional3."


Com, contra e para além da violência policial

26/02/2014
Por Simone da Silva



Por Simone da Silva Ribeiro Gomes, doutoranda em sociologia (IESP-UERJ), para o dossiê UniNômade


Com, contra e para além da violência policial – Reflexões a partir de um turbulento junho.

A centralidade do debate na esfera pública sobre a desmesura da violência policial a partir das manifestações de junho, ocorridas no Brasil, parece essencial para discutir a nossa sociedade contemporânea. As falas sobre a problemática da polícia, quer sobre a desmilitarização; sua ação nas favelas e periferias – cariocas, mas também em um quadro mais amplo, nacionais; número de mortos e a perspectiva internacional, com dados das mortes por ação da polícia comparáveis à países em guerra; os autos de resistência, figuram atualmente na agenda de discussão depois do que ficou conhecido como “jornadas de junho”.

Tendo ocorrido a partir da metade de 2013, impulsionados pela pauta da (i)mobilidade urbana nas grandes metrópoles brasileiras, tendo a figura do MPL – Movimento pelo Passe Livre, como um dos protagonistas, as manifestações de rua que voltaram ao cotidiano democrático nacional sofreram de um processo de multiplicação de pautas poucas vezes antes visto. A violência policial foi a mais emblemática dessas, atraindo olhares principalmente da mídia internacional, mas curiosamente pouco figurando na grande mídia nacional, cuja atenção foi capturada pela presença dos “black blocs” tupiniquins, jovens encapuzados e vestidos de preto, gritando as palavras de ordem: “poder popular”, envolvidos em episódios de quebras de vidraças de banco – nisso, afinal, consistiria a tática importada da Alemanha da década de 80 – foram apontados como os grandes algozes da mobilização espontânea das massas.

Pensando com a violência policial, partimos da contingência do desaparecimento do pedreiro de 47 anos, Amarildo de Souza, na favela – pacificada – da Rocinha, em julho desse mesmo ano, que trouxe à tona o estado brutal policial que toma conta das favelas e periferias do Rio de Janeiro – mas não exclusivamente dessa cidade. As palavras de ordem “cadê o Amarildo”, eram onipresentes nas ruas, auxiliadas inclusive pela projeção em edifícios no entorno das mobilizações de sua foto e dos dizeres “onde está o Amarildo?”. O pai de sete filhos, ainda em 2013 ficamos sabendo, tinha sido assassinado por policiais da UPP- Unidade de Polícia Pacificadora1, o que resultou na discussão sobre o excesso de violência da policia militar brasileira, mas também sobre a fragilidade do processo de pacificação das favelas cariocas, deflagrado em 2008.

Ao desnudar a lógica da UPP, em que a base policial deveria proteger os habitantes das favelas da violência do tráfico de drogas, mas, em uma realidade demasiado perversa, são submetidos à outra ordem, que inclui humilhações, desaparecimentos e outras violências, o rei ficou nu, seria afinal nossa polícia sempre tão truculenta e demoramos a perceber? Dessa forma, a pauta das manifestações, desde junho incluiu a violência policial, baseada principalmente nas demonstrações de força sofridas nas ruas, reflexos da truculência habitual das forças policiais nas favelas e periferias das grandes cidades.

Casos como o do Amarildo, cuja ossada não foi encontrada até o ano seguinte2, evidenciaram para as classes média e alta do país o estado de brutalidade policial a que vivem submetidos os habitantes mais pobres das grandes cidades. Sua concomitância com o momento de grandes mobilizações nas ruas mostrou também, o latente despreparo da polícia para lidar com quem devia proteger. Foi a partir das cenas tornadas frequentes de abusos de poder policial; falta de critério no uso de armamento não letal nas ruas; balas de borracha disparadas indiscriminadamente; bombas de gás lacrimogêneo cujos efeitos deletérios foram sentidos por muitos dos que participavam dos atos, até as prisões arbitrárias – de jovens, negros e pobres, em sua maioria, que a pauta da desmilitarização da polícia ganhou corpo. 

A militarização da polícia é uma herança colonial, emblema de um país cujas instituições responsáveis para manejar os conflitos não foram reformadas desde o século XIX, tendo o regime republicano instaurado em 1889, pouco modificado dinâmicas desiguais sacramentadas em leis. As instituições coercitivas, desde esse período, sempre identificaram as manifestações de rua como uma ameaça à ordem pública. Nesse sentido, uma polícia de rua submetida ao decoro militar, com o treinamento para a guerra, no bojo de uma combinação teórica na qual haveria um inimigo a ser aniquilado, e prática, em que se defronta com seus concidadãos na rua, mostra os perigosos efeitos de seu treinamento em um espaço civil.

A população nas ruas que começou a gritar pelo fim da policia militar (“não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”), reagiu quase inconscientemente ao fim de uma das quatro polícias militares ainda em vigor no mundo. Dessas, somente a Turquia é uma democracia e compartilha da militarização de sua polícia, curiosamente, um dos países que faz parte do ciclo global de mobilizações, deflagrado em 2013, com intensas mobilizações igualmente a partir de uma questão urbana, a derrubada de um parque no centro de Istambul. Ademais, a ONU desde 2012 já recomendou firmemente que o Brasil desmilitarizasse sua polícia, demonstrando a importância e visibilidade da questão em um panorama internacional3.

No entanto, apesar de a violência policial e das falhas das políticas de segurança tupiniquim já serem denunciadas há anos por movimentos sociais e organizações internacionais, no momento em que “o gigante acordou”, a violência nas manifestações surgiu de forma dicotômica: na qual os atores seriam os vândalos (na representação da grande mídia) X os policiais (segundo os manifestantes, nas ruas). Uma evidência para isso foi o lema “sem violência”, que ecoou nas manifestações, reverberando após o acirramento da repressão policial indiscriminada, mas também referia-se aos “vândalos”, na busca da pacificação das mobilizações.

É importante entender, para além da violência policial patente nas mobilizações iniciadas em junho, em que o passado ditatorial brasileiro vem à tona, no seu frágil relacionamento entre polícia e cidadãos, onde o anterior funciona a partir do uso da força e controle territorial. O debate público sobre a violência policial, entretanto, precisa incorporar os elementos externos às manifestações, sobretudo a licença para matar de algumas polícias, como demonstram os dados da HRW – Humans Right Watch, de 2013, no qual, oficialmente, a polícia carioca foi responsável por 214 mortes e a de São Paulo por 251, somente nos primeiros seis meses de 20124. A alegação costumeira de “autos de resistência”, ou seja, mortes em confronto com a polícia mascara o número oficioso do genocídio perpetrado pela força policial discricionária nas favelas e periferias.

Finalmente, pensando contra a violência policial, alguns elementos trazidos para o debate apontam para as raízes históricas da legitimação da violência brasileira, em que o Brasil teria sido incapaz de pacificar o espaço público. A segurança pública foi pensada a partir de conflitos de classe durante boa parte do século XX, mas atualmente o debate autonomizou-se. A partir do medo e da insegurança expressados nas ruas em 2013, foram desveladas as dinâmicas de poder e arbitrariedade da polícia em distintos espaços. É a partir daí que lutamos e resistimos, cotidianamente, nas favelas e periferias das grandes cidades, mas também em suas ruas….venceremos!


NOTAS

1O inquérito demonstrou que Amarildo foi torturado e morto pela polícia, resultando no indiciamento de 10 policiais. Para saber mais: http://www.nytimes.com/2013/10/03/world/americas/brazilian-officers-will-be-charged-with-torture-and-murder.html?_r=2&

2 Ao menos até Fevereiro de 2014, momento em que escrevo esse artigo.


4Segundo a HRW- Humans Right Watch, em seu relatório de 2013, disponível em: http://www.hrw.org/world-report/2013/country-chapters/brazil?page=1

 

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Fonte: Universidade Nômade Brasil