março 31, 2014

"Espaço comum Luiz Estrela, em BH", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "O Luiz Estrela se construiu numa encruzilhada de temas desabridos: as violências e neuroses contra moradores de rua ou com sofrimento mental, a luta pela cidade, os protestos de junho, o movimento antimanicomial, a política, a arte, os corpos, a bifurcação entre solidão e multidão. A riqueza do comum conseguiu superar o filme de horror a que aquele lugar remetia. Outrora lugar de sofrimento e morte convertido  nas oficinas, encontros, militância, teatro, música e festas que é hoje. Todos os descarregos resolvidos na ação coletiva, na tarefa de organização. A vida não é um recurso escasso a ser preservado a todo custo, mas uma potência tão abundante que nem mesmo a morte consegue anulá-la definitivamente, transformando-a, em vez disso, em outra forma da mesma substância viva. Em sua luta, Luiz Estrela se fez comum."

Espaço comum Luiz Estrela, em BH
luizestrela 
Foto: Felipe Rezende



Luiz Estrela foi espancado até a morte, em 26 de junho de 2013. Um morador em situação de rua, poeta, militante LGBT e da Praia da Estação. Foi morto no mesmo dia de uma manifestação de 100 mil em Belo Horizonte, reprimida brutalmente pela polícia. Os eventos podem não estar relacionados. Até hoje, o assassinato de Luiz não foi apurado. Quatro meses depois, ativistas ocuparam um casarão abandonado e iniciaram o Espaço comum Luiz Estrela. O rosto firme de Luiz foi pintado na fachada. Ele expõe o caráter de luta, sempre presente quando se realiza o direito à cidade — contra a lógica proprietária do estado e do mercado. Por isso o “comum” do nome: para destacar que é uma ocupação auto-organizada, com espaço compartilhado e autônoma em relação aos planos superiores do público ou do privado. Daí por diante, o Espaço comum se tornou um polo de produção político-cultural de BH, incorporando-se ao circuito ativista/artístico, para congregar as mais diversas formas de vida, num calendário efervescente.

Estive lá ontem, para um debate aberto e horizontal com os autores do livro Nas ruas, Rudá Ricci e Patrick Arley, e as pessoas presentes (livro e debate merecerão um post à parte). Desta vez, pude conhecer melhor a história. Da outra vez em que estive, não era considerado seguro entrar no casarão, devido à deterioração da estrutura. Ontem, já tinham sido feitos serviços de escoramento. A arquiteta Priscila, a ativista responsável pela obra, do grupo Indisciplinar, fez uma visita guiada com a gente, depois da roda de debate. Iluminados tenuemente por celulares, visitamos corredores ramificados em celas acessíveis apenas por estreitas passagens. Nas celas, havia paredes que foram rabiscadas e desenhadas pelas crianças que ali ficaram presas. No fundo do corredor, um buraco sinistro na parede levava a um túnel de destinação desconhecida, que mais parece uma catacumba, levando a ainda outras celas construídas no labirinto do subsolo. Ainda não desvendaram o mistério do túnel (para que serviria?). Até tentaram explorá-lo, mas faltaria ar e ficaria muito quente, a partir de determinado ponto. Há algumas décadas, o casarão tinha sido uma casa de torturas de crianças, algumas deportadas do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, o nosso Auschwitz nacional onde foram exterminadas pelo menos 60 mil pessoas porque seriam “doentes mentais”. Em BH, as crianças recebiam choques elétricos, eram dopadas até a catatonia, amarradas e sofriam sabe-se lá que outros abusos, até o fechamento do instituto psiquiátrico, em 1979. Testemunhos dão conta que as crianças viviam entre os gritos da tortura e o silêncio dos remédios até finalmente “sumir”. Em algumas celas, é possível ainda encontrar brinquedos, sapatinhos e frascos de remédio.

O Luiz Estrela se construiu numa encruzilhada de temas desabridos: as violências e neuroses contra moradores de rua ou com sofrimento mental, a luta pela cidade, os protestos de junho, o movimento antimanicomial, a política, a arte, os corpos, a bifurcação entre solidão e multidão. A riqueza do comum conseguiu superar o filme de horror a que aquele lugar remetia. Outrora lugar de sofrimento e morte convertido  nas oficinas, encontros, militância, teatro, música e festas que é hoje. Todos os descarregos resolvidos na ação coletiva, na tarefa de organização. A vida não é um recurso escasso a ser preservado a todo custo, mas uma potência tão abundante que nem mesmo a morte consegue anulá-la definitivamente, transformando-a, em vez disso, em outra forma da mesma substância viva. Em sua luta, Luiz Estrela se fez comum.



É possível colaborar com a restauração e reforma do Espaço Comum Luiz Estrela, à Rua Manaus, 348, Santa Efigênia, mediante o crowdfunding autogerido, uma alternativa de financiamento coletivo com que os ocupantes apostam garantir maior autonomia em relação ao poder público e as empresas. 

Mais informações sobre como contribuir financeiramente: http://catarse.me/pt/espacocomumluizestrela

Fonte: Quadrado dos Loucos

"Apoie o Espaço Comum Luiz Estrela" (Catarse)

PICICA: "No dia 26 de outubro de 2013, um grupo de artistas e ativistas de Belo Horizonte ocupou um casarão histórico, de propriedade do governo estadual, que estava abandonado há 19 anos. A abertura do emblemático casarão, um marco para a cidade, dava início ao Espaço Comum Luiz Estrela, criado com o objetivo não apenas de salvar o imóvel tombado da total deterioração, mas também de se converter em um espaço livre de formação artística, aberto e autogestionado. Desde então, o prédio da Rua Manaus, número 348, vem recebendo em seu pátio externo uma série de atividades culturais."


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Apoie o Espaço Comum Luiz Estrela

Um projeto de Arquitetura e Urbanismo por Espaço Comum Luiz Estrela




A sua colaboração é para iniciarmos as obras de restauração do Espaço Comum Luiz Estrela, um espaço livre de formação artística, aberto e autogestionado que ocupa um casarão tombado em Belo Horizonte. A primeira etapa para salvar o Casarão é o escoramento da estrutura e ela é urgente: a casa está caindo. Esse sonho coletivo e compartilhado, por outro lado, está apenas começando. Venha fazer parte dessa história!


 

No dia 26 de outubro de 2013, um grupo de artistas e ativistas de Belo Horizonte ocupou um casarão histórico, de propriedade do governo estadual, que estava abandonado há 19 anos. A abertura do emblemático casarão, um marco para a cidade, dava início ao Espaço Comum Luiz Estrela, criado com o objetivo não apenas de salvar o imóvel tombado da total deterioração, mas também de se converter em um espaço livre de formação artística, aberto e autogestionado. Desde então, o prédio da Rua Manaus, número 348, vem recebendo em seu pátio externo uma série de atividades culturais.


 

A experiência do Espaço Comum Luiz Estrela representa, no contexto de Belo Horizonte, a urgência, a possibilidade de existência e a potência de uma cultura independente, livre das amarras do mercado e dos mecanismos de incentivo. Representa, ainda, o desejo compartilhado da sociedade assumir para si as rédeas dos processos de transformação e de efetivá-los coletivamente e colaborativamente, salvaguardando, independentemente do poder público, a memória da cidade.

O apoio da comunidade, a luta e a coerência da proposta fizeram com que o Estado reconhecesse a legitimidade do Espaço e formalizasse a cessão do mesmo à sociedade civil pelo período de 20 anos. Tanto a restauração do imóvel quanto a existência e resistência desse espaço aberto a processos criativos, autogestão, experimentações e debates depende, agora, do apoio de todos.


 

No dia 26 de dezembro de 2013, diante das fortes chuvas do final do ano e do risco de desabamento da laje, o Casarão foi fechado por medidas de segurança, tendo sido mantidas as atividades culturais em seu pátio externo. Já foram realizadas medidas emergenciais, sem interferência na estrutura do imóvel, para impedir a entrada de água pluvial e diminuir o sobrepeso da edificação.

Agora, a primeira etapa para a restauração do imóvel é manter a casa em pé, eliminando os riscos de desabamento. Para isso, um grupo de arquitetos e engenheiros desenvolveu, voluntariamente, um projeto para escoramento do interior, da fachada, das laterais e do telhado. Como o imóvel é histórico e tombado como patrimônio cultural da cidade, esse projeto segue as determinações da Diretoria de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. Com um total de 45 mil reais será possível realizar o escoramento e cobrir os custos do Catarse e das recompensas.

Após o escoramento do Casarão, será implementado o Laboratório Comum de Pesquisa, Formação, Restauro e Zeladoria que prevê uma série de intervenções a serem desenvolvidas no tempo estimado de dois anos, compreendendo ações de recuperação estrutural do edifício, restauro do bem e pesquisas histórica, antropológica, arqueológica e psicossocial.

Tanto a reforma e o restauro quanto o desenvolvimento das pesquisas serão viabilizados pela doação dos conhecimentos e serviços dos profissionais envolvidos e terão o acompanhamento de grupos de pesquisa e professores de diversas universidades como a Universidade Federal de Minas Gerais e a PUC Minas.


 

O Espaço Comum Luiz Estrela não tem fundos, nem financiadores públicos ou privados e nem fonte fixa de renda, mas acredita que conseguirá, pervertendo a lógica do mercado, tornar realidade este sonho. Acredita, ainda, que é possível criar em conjunto, de forma compartilhada e colaborativa, outras formas possíveis de relacionamento com a cidade e a com a criação, produção e fruição cultural.

Esta plataforma, o Catarse, permite o financiamento de um projeto por meio de crowdfunding (financiamento coletivo), na qual pessoas apoiam projetos criativos optando por um valor a ser contribuído de acordo ou não com a recompensa desejada. Se conseguirmos atingir o valor total pedido pelo projeto, podemos colocá-lo em prática. Caso o valor não seja atingido ao final do prazo, todos recebem sua contribuição de volta e podem optar por financiar outro projeto ou receber o reembolso em sua conta.

A escolha do Catarse se dá por dois motivos:

Primeiro, acreditamos que o crowdfunding é o meio mais próximo aos ideais do Espaço Comum Luiz Estrela (colaborativo e em rede). Não temos dúvida de que seria possível encontrar empresas ou leis de incentivo para viabilizar financeiramente os gastos que o prédio histórico possa ter, mas apostamos que dá pra fazer diferente.

Segundo, a obra é urgente, pois a casa está, literalmente, caindo e a cessão do prédio pelo Governo do Estado teve como condição a imediata recuperação do imóvel.


 

Todas as recompensas foram coletadas com artistas e gravuristas que acreditam na proposta do Espaço Comum Luiz Estrela. Você também pode nos oferecer algum presente para usarmos na campanha ou seu talento e força de trabalho na obra. Na aba “novidades” é possível encontrar os links necessários para se informar como participar.


 

Luiz Otávio da Silva, mais conhecido como Luiz Estrela vivia na rua e era amigo de muitos, principalmente dos artistas e dos habitantes do centro da cidade de Belo Horizonte. Poeta, escrevia seus pensamentos em folhas soltas, numa espécie de diário desencadernado. Participava das mobilizações artísticas e culturais da cidade, como carnaval de rua, Praia da Estação, Festival de Performance, atrações no Teatro Espanca!, no Nelson Bordello, entre outras.

Era ainda um militante da diversidade. Homossexual, o Luiz Estrela era muitos, de muitas histórias, de muitas pessoas e foi covardemente assassinado por espancamento no centro de BH na noite de quarta feira, 26 de junho de 2013. Sua morte brutal não foi investigada. Virou mais uma estatística para o poder público. Nos últimos dois anos, mais de 100 moradores em situação de rua foram assassinados em BH.


Fonte: Catarse

"Decifrando as jornadas", Elisa Marconi e Francisco Bicudo entrevistam o cientista político Rudá Ricci

PICICA: "Passados pouco mais de seis meses das chamadas jornadas de junho, que tomaram as ruas de mais de 100 cidades brasileiras, muitas interrogações levantadas à época continuam nebulosas e provocando acalorados debates. Intelectuais e analistas ficaram surpresos com as características das marchas – tudo tão diferente do que as cartilhas explicativas do século 20 sugeriam e pregavam. Quem eram, por exemplo, aqueles jovens desligados de partidos políticos e de outras organizações tradicionais, mas com forte senso de exigência de direitos civis? Por que tomaram as cidades reivindicando o livre acesso à vida nas metrópoles? Como conseguiram tanto sucesso na reunião de pessoas com formações, expectativas e demandas tão heterogêneas? E, por fim, o que, de fato, querem esses garotos e garotas?

Sem a intenção de esgotar o assunto, o cientista político Rudá Ricci decidiu se dedicar ao tema e produziu um livro com objetivo de compreender com a máxima profundidade possível as manifestações. Assim, chega às livrarias uma obra que oferece algumas explicações a respeito do que se passou e sobre as consequências políticas dos protestos populares recentes. É o livro Nas Ruas – a outra política que emergiu em junho de 2013 (Ed. Letramento), feito em parceria com o antropólogo Patrick Arley, autor das mais de 60 fotografias que recheiam o volume.

A reportagem da Revista Giz conversou com exclusividade com Ricci para tentar lançar luzes sobre aquelas tantas dúvidas que nos acompanham – e outras tantas que apareceram por conta das repostas do pesquisador. A seguir, o leitor pode encontrar os melhores trechos da entrevista." 

Decifrando as jornadas

Por Elisa Marconi e
Francisco Bicudo

Passados pouco mais de seis meses das chamadas jornadas de junho, que tomaram as ruas de mais de 100 cidades brasileiras, muitas interrogações levantadas à época continuam nebulosas e provocando acalorados debates. Intelectuais e analistas ficaram surpresos com as características das marchas – tudo tão diferente do que as cartilhas explicativas do século 20 sugeriam e pregavam. Quem eram, por exemplo, aqueles jovens desligados de partidos políticos e de outras organizações tradicionais, mas com forte senso de exigência de direitos civis? Por que tomaram as cidades reivindicando o livre acesso à vida nas metrópoles? Como conseguiram tanto sucesso na reunião de pessoas com formações, expectativas e demandas tão heterogêneas? E, por fim, o que, de fato, querem esses garotos e garotas?

Sem a intenção de esgotar o assunto, o cientista político Rudá Ricci decidiu se dedicar ao tema e produziu um livro com objetivo de compreender com a máxima profundidade possível as manifestações. Assim, chega às livrarias uma obra que oferece algumas explicações a respeito do que se passou e sobre as consequências políticas dos protestos populares recentes. É o livro Nas Ruas – a outra política que emergiu em junho de 2013 (Ed. Letramento), feito em parceria com o antropólogo Patrick Arley, autor das mais de 60 fotografias que recheiam o volume.

A reportagem da Revista Giz conversou com exclusividade com Ricci para tentar lançar luzes sobre aquelas tantas dúvidas que nos acompanham – e outras tantas que apareceram por conta das repostas do pesquisador. A seguir, o leitor pode encontrar os melhores trechos da entrevista.


Foto de manifestação que ilustra a capa do livro ‘Nas Ruas – a outra política que emergiu em junho de 2013′ (Ed. Letramento)

Qual é a mensagem central de Nas Ruas – a outra política que emergiu em junho de 2013?

Rudá Ricci – Nas ruas é um livro que pode ser lido de duas maneiras: pelo texto, que eu escrevi, ou pelas fotografias, tiradas pelo antropólogo Patrick Arley. A gente achou que as manifestações tinham uma linguagem plástica, imagética, estética, muito própria, que precisava ser mostrada. Os cartazes, as roupas, a ironia, a irreverência, todo aquele conjunto de signos não podia ser apenas traduzido em palavras e não seria correto em termos metodológicos não explicitar as imagens. Por isso, em cada capítulo, colocamos uma coleção de fotos significativas. São 64 imagens, para você ter ideia. Em segundo lugar, o livro é um mergulho nas manifestações de junho. A gente vinha percebendo que algumas pessoas escreveram durante e depois das manifestações, que foi no calor do momento e com um caráter parcial, assumindo o caráter político do que estava ali. Já tinha, portanto, livro de quem era manifestante de fato, de quem era do Movimento Passe Livre, e por isso participou, tem outro de um procurador que escreve contra a corrupção. Enfim, são obras importantes, bem feitas, mas, em geral, sem fôlego para interpretar e projetar o país antes e depois das manifestações. Então achamos que tínhamos de fazer um texto que fosse uma pesquisa, e não um texto opinativo, que buscasse revelar por que surgiu, como pensavam as lideranças e como foi a organização interna que desabrochou nas três semanas de junho. A ideia era também tentar entender por que o movimento parecia algo novo, como envolveu milhões de pessoas e se de alguma forma projetaria o país para a frente.

A divisão dos capítulos ajuda a entender cada faceta das manifestações. Como foi esse agrupamento?

O primeiro capítulo explica as características das manifestações registradas em 100 cidades do país. O segundo capítulo trata dos sinais de que aquilo ia acontecer, já estavam latentes, mas a gente não conseguiu bem decifrar. O terceiro capítulo fala das manifestações mundiais do século 21 que, veja, tinham exatamente as mesmas características das nossas. A gente analisa a Primavera Árabe, os Indignados da Espanha, o Occupy dos Estados Unidos, a Revolução das Panelas da Islândia e as Assembleias Populares do início do século na Argentina, que ninguém nunca cita, mas que são muito parecidas. Todas elas têm o mesmo modelo: estrutura horizontalizada, internet usada como comunicação, a ocupação da rua, assembleia populares e abertas, revolta contra sistema de representação, mosaico difuso de demandas e, principalmente, e isso é o mais importante, um enorme respeito à individualidade. Ou seja, o sujeito não precisa ter compromissos permanentes, pode ser de uma comunidade de skatistas ou de gamers, frequentar universidade ou só trabalhar, se aproximar politicamente de vários grupos distintos e, ainda assim, ter todas as suas reivindicações acolhidas nas manifestações. No quarto capítulo, a gente considera isso muito importante, a gente analisa o passo a passo da organização, como funcionam os grupos, como agem e como pensam os líderes, um raio-x mesmo, quais grupos políticos estavam lá, a cultura, os valores, enfim… entrevistamos muita, muita gente. E o último capítulo é um balanço da crise de representação no Brasil. Entre os capítulos tem um caderno de fotos.

O Brasil está, pela primeira vez, de frente para o espelho. E a política tradicional, com esses políticos e práticas que estão aí hoje, não dão conta de atender a esses anseios. Para essa eleição de 2014, acho que não vai dar tempo de mudar muita coisa, mas para 2016 sim, já vamos notar diferença. Estamos, nesse momento, na troca de pele.

Então, para começar a detalhar: que manifestações foram aquelas? O que o primeiro capítulo revela?

Em primeiro lugar, eram manifestações de jovens. Existe, portanto, um recorte geracional. Claro que existem pessoas de todas as idades, mas o grosso era de pessoas de 20 a 30 anos. Existe, então, um recorte geracional. E essa geração inaugura uma cultura diferente de todas as outras que vieram até aqui, porque as grandes referências, os exemplos, os modelos desses jovens são colegas e amigos da mesma faixa etária e não mais os adultos mais velhos. Por uma série de razões, principalmente a absorção pelo mercado de trabalho, eles cresceram sem a presença constante do pai ou da mãe. E isso dá uma forte rejeição à hierarquia e autoridade.

Ou seja, as relações mais naturais para eles são de ligação horizontal e não mais vertical.

Exatamente. E o esforço para o trabalho, por exemplo, se dá por prazer individual e não porque alguém, pai, chefe, empresa, impôs ou sugeriu. E quando essa geração acessa as redes sociais pelo smartphone, coisa de dez anos para cá, isso reforça a criação de uma comunidade fechada. Inclusive no jeito de falar. E o mais importante, a estrutura das redes sociais na internet é calcada na adesão e não no convencimento. Isso significa que o indivíduo é autônomo para decidir se entra ou se sai de um grupo, uma comunidade. E as comunidades vivem desse reforço da individualidade. Qual é a característica organizacional? A provisoriedade. Hoje aqui, amanhã ali. E ninguém tem nada com isso. Então eu vou numa manifestação hoje e amanhã posso não ir. Se eu for, escrevo minha pauta. E ela é tão válida quanto qualquer outra.

E isso confunde a imprensa e os pensadores.

Exatamente. Os jornalistas e os sociólogos na faixa de 50 anos, como eu, ficam se perguntando qual é a pauta. Mas não existe uma pauta, porque cada cartaz é uma manifestação. Essa prática de manifestação do século XXI está sendo chamada de enxameamento, como enxame de abelha. Ele chega, ninguém sabe por que. E vai embora sem ninguém saber por que. Essa estrutura provisória ofende as estruturas organizacionais do século XX. Estamos tendo um confronto dessa lógica do século XXI, com a cultura e a lógica do século XX. Essa é a base para compreender o que aconteceu em junho e o que acontece hoje, nas manifestações.

E chama atenção também a ocupação da cidade e o empoderamento que isso traz.

Isso mesmo. E é um empoderamento imediato. Não é para depois das eleições. É no instante em que a manifestação, o rolezinho, a ocupação da praça Rosa, enfim… E isso é espantoso e revolucionário. E com respeito a cada um. E isso desnuda o sistema de representação formal, que no Brasil são todos de mediação. Têm, de fundo, uma cultura anarquista, mesmo entre os filiados a partidos políticos. Várias lideranças estiveram no Egito, no Occupy, na Argentina.

O senhor encontrou uma orientação mais de esquerda entre os manifestantes?

Aqui em Belo Horizonte, isso era claro. As manifestações foram puxadas pelos partidos de esquerda, PSTU, PSOL, PSTU-R, movimento feminista e movimento gay. O primeiro grito de guerra, para você ter ideia, foi “todos somos de esquerda”.

Isso é bem diferente do que aconteceu em São Paulo.

Completamente. Mas São Paulo foi um caso único. O que aconteceu em BH foi similar ao que aconteceu no resto do país. São Paulo, onde a direita entrou em confronto com a esquerda na rua, houve conflito ideológico. No resto não teve isso.

O senhor diz que houve antecedentes e sinais de que as manifestações iam acontecer, mas que a gente não conseguiu entender bem. Quais foram esses sinais?

Nos meses anteriores, pesquisas do Ibope e da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, que fazem esses levantamentos de tempos em tempos, apontavam que a confiança dos brasileiros nas instituições democráticas era de apenas 5%, o Congresso Nacional tinha apenas 20% da confiança. Nunca tinha sido tão pouco. Todas as instâncias de representação política estavam deslegitimadas. Um ou dois meses antes das manifestações houve o boato do bolsa-família e o resultado foi um mundo de saques do bolsa-família. Naquele mesmo contexto teve a alta do tomate, indicações de que a inflação estava voltando e, assim, uma desconfiança estava instalada. Boato só se alastra se a percepção é de que aquilo tem algum sentido. Além disso, no último governo do Lula, ele tirou as entidades de mediação dos movimentos sociais das ruas e os colocou na formalidade da negociação, através de convênios, ou até dentro do governo. Isso esvazia o movimento. Os manifestantes juntaram mais de dois milhões de jovens de um dia para o outro. As centrais sindicais, no dia 11 de julho, não conseguiram nem um décimo disso. Elas mesmas dizem que foram um fracasso, que perderam as ruas. Então era previsível que essas demandas de sempre explodiriam, mas sem canal de expressão. A engenharia que Lula montou não previu que deixaria as ruas órfãs. Temos que ter respeito do ponto de vista da lógica social por esses meninos, porque eles fizeram isso sem dinheiro e sem projeto de poder institucional, político-partidário.

Mas não existe uma pauta, porque cada cartaz é uma manifestação. Essa prática de manifestação do século XXI está sendo chamada de enxameamento, como enxame de abelha. Ele chega, ninguém sabe por que. E vai embora sem ninguém saber por que. Essa estrutura provisória ofende as estruturas organizacionais do século XX.

E por que em São Paulo a situação foi tão diferente do resto do país?

A população de São Paulo e a cidade, como consequência, estão profundamente polarizadas do ponto de vista dos valores políticos e sociais. Então tem uma parte onde moram os migrantes e população excluída, que quase sempre votam e expressam valores progressistas de ampliação de direitos. Estou falando de Zona Leste e Zona Sul, onde tem movimento por moradia, educação, e um jovem que quer ser respeitado, ter sucesso e consumir. Nas eleições de 2012, essa população refletiu, mudou o voto e tivemos segundo turno sem Russomanno. São comunidades articuladas, ligadas à igreja católica ou evangélica, ou a time de futebol. Estão agregados a esse pessoal os movimentos culturais de vanguarda, de ocupação do centro, de intervenções na cidade, os coletivos. E tem um outro pólo de valores ideológicos e ação política – e geográfico também, Zona Norte, Vila Maria, e um pedaço do centro e Zona Oeste – que vem se convencendo nos últimos anos de que a cidade vem perdendo a segurança e a tranquilidade principalmente em função dos migrantes. Os migrantes são muito mais atacados por essa população que os gays, por exemplo. Acham que esse pessoal sem os valores paulistanos vem invadindo de forma selvagem os territórios. E reagem a isso, com um pensamento conservador. Porém acham que parte da culpa é da ausência de lideranças políticas que tenham esses valores. São, em geral, refratários aos governos e principalmente às políticas sociais. E o que acontece nos últimos anos? Um pêndulo social: voto na Erundina, depois no Maluf e no Pitta, aí na Marta e depois Serra e Kassab e, agora, Haddad. É um pêndulo ideológico nas eleições, é uma cidade que não consegue se encontrar. E são forças até equivalentes. E esses grupos opostos se encontraram nas ruas e entraram em conflito. O que acontece daí é que a direita toma o centro da cidade e a esquerda vai para a Zona Leste e Zona Sul.

O senhor sugere um apelido para essa situação sui generis da cidade e do estado de São Paulo, né?

É a síndrome de 32. O estado de São Paulo tem características muito parecidas com a cidade de São Paulo, com essa polaridade entre forças progressistas e conservadoras. Essa lógica é reproduzida também no estado. Pouco a pouco, o Lulismo avança sobre todo o país, com exceção de São Paulo. É a autonomia do estado frente ao poder central. A autonomia, a diferença, o sucesso, uma lógica e ética do trabalho muito arraigado. Por isso, o rolezinho ofende muito mais em São Paulo que no resto do país, porque ofende a lógica, porque é uma invasão do outro e o nativo se sente afrontado.

O que fica de tudo isso para o que vem por aí na política, especialmente em ano eleitoral?

O que tivemos nos últimos 10 anos e até junho é o país, que vivia submerso, aparecendo. E isso está assustando. São os pré-adolescentes consumidores de massa do rolezinho, é a classe C consumidora querendo virar cidadã, a população do bolsa-família, que se entende como eleitores fieis do Lulismo, mas que não são tanto assim. O Brasil está, pela primeira vez, de frente para o espelho. E a política tradicional, com esses políticos e práticas que estão aí hoje, não dão conta de atender a esses anseios. Para essa eleição de 2014, acho que não vai dar tempo de mudar muita coisa, mas para 2016 sim, já vamos notar diferença. Estamos, nesse momento, na troca de pele.

Fonte: Revista Giz

março 30, 2014

"A mediocridade do caminho do meio" (Razão Inadequada)

PICICA: "Deixar o ego para trás é uma tarefa que se constrói com esmero, dia após dia (veja Zaratustra, do caminho do criador). É preciso prudência para ultrapassar a si mesmo, mergulhar no caos e voltar são e salvo. Mergulhar no caos, isso os amantes do caminho do meio não fazem, só um pezinho talvez, mas definitivamente não sabem nadar. Mergulhar de cabeça? Pular dando um mortal? Não, isso eles não fazem, mas isso também não se faz da noite pro dia: é preciso prudência para voltar."


A mediocridade do caminho do meio


O meio termo, tão amado por nosso bom senso, talvez seja umas das maldições de nosso tempo. Sonhar com a média ponderada é consagrar a mediocridade. O medo nos impede de ir além, “tudo bem, aqui já está bom”, ficamos sempre com o bastante para não ultrapassar a linha e nem se frustrar com a estagnação. Das infinitas possibilidades escolhemos previamente um percurso que vai do ótimo ao péssimo e nele tentamos achar um pedacinho confortável para habitar. Mas há tanto mais do que sonha a vã filosofia mediana. Para eles é difícil afirmar o acaso, é mais fácil viver com o provável, sem dúvida, somam seus sonhos e utopias com a miséria do seu dia a dia e tiram a média ponderada: “aqui já está bom, não vou adiante, não vale a pena”.
“Meu filho, nem muito nem pouco, nem demais nem de menos, não exagere para nenhum dos lados: o caminho do meio”
Geometricamente falando, o ponto médio precisa de outros dois pontos, pois uma reta é infinita. Uma reta segmentada que vai do ponto A ao B ou do bom ao ruim (muitas vezes do bem ao mal). Essa é a necessidade de quem caminha pelo ponto médio: segmentar, cortar, significar o devir para nele achar um ponto ótimo, onde não há perdas. “Vocês não sabem de nada”, eu respondo.

Não procuramos o caminho do meio, o medíocre pode se contentar, nós não. Queremos o caminho das intensidades, onde a identidade se desintegra. Assustador para os amantes do Ego, que se seguram com todas as forças às percepções decantadas e desencantadas que chamamos de eu. É pouco, o Ego é muito pouco! Ele se alimenta de nosso estupor, ele se constitui através dos fluxos que procuram apenas se conservar. Levantamos um altar para a inércia e oferecemos nossa vida em sacrifício. Que intensidade é possível na previsibilidade de um jogo enrijecido pelo termo médio?

O caminho das intensidades não conhece meias medidas, quer ir além. Uma linha sempre é cruzada, pode ser a Lei, os medos, a lógica, os bons costumes. Podemos inverter a fórmula para nos fazermos entender: deixemos a intensidade fazer o caminho, não o contrário. Aquilo que há em nós e não é fraco quer sempre ir adiante: criar, se expandir, experimentar, criar rizomas. Só há um caminho para a potência que é se efetuar. Nosso caminho é feito rasgando o senso comum, o bom senso, destruíndo a lógica e as identificações. Criando uma língua nova com a mesma língua do cotidiano; um jeito novo de olhar, de sentir, de agir dentro do mesmo universo que habitamos, sem importar se perdemos ou deixamos de ganhar alguma coisa.

Swifts: Paths of Movement + Dynamic Sequences - Giacomo Balla
Swifts: Paths of Movement + Dynamic Sequences – Giacomo Balla

Deleuze nos ensina a criar um corpo de intensidades, um corpo sem órgãos, desorganizando a constituição que nos foi imposta, reinventado os fluxos que nos atravessam. Um amor pelas minorias, no qual objetivo inicial é mostrar que o rei está nu, mas cujo objetivo final é deixar para trás qualquer forma de facismo e monarquismo: não há mais déspota! Devir-criança, que em sua inocência não reconhece o caminho do meio como uma via possível.

Mas superar o poder, o corpo organizado, exige uma disciplina rigorosa em nós mesmos. E para isso há uma regra importante: prudência. A prudência é uma condição para a intensidade. Não estamos defendendo a porra-louquice, a baderna, a anarquia (usada aqui em seu sentido banal). A prudência é instrumento da ousadia, não se vai mais longe sem antes verificar os riscos e traçar estratégias. A prudência não pertence aos defensores do meio-termo, muito pelo contrário, é sua mais cruel inimiga.

Deixar o ego para trás é uma tarefa que se constrói com esmero, dia após dia (veja Zaratustra, do caminho do criador). É preciso prudência para ultrapassar a si mesmo, mergulhar no caos e voltar são e salvo. Mergulhar no caos, isso os amantes do caminho do meio não fazem, só um pezinho talvez, mas definitivamente não sabem nadar. Mergulhar de cabeça? Pular dando um mortal? Não, isso eles não fazem, mas isso também não se faz da noite pro dia: é preciso prudência para voltar.

O caminho do meio é o caminho da segurança, dos intimidados, dos corpos dóceis. Nossa sociedade se alimenta deles no café da manhã e no jantar. Nem o estupor dos covardes, entupidos de moral, embotados, entregues à falência dos sentidos; nem os que se drogam para fugir, escrevem poesias para se distrair, viajam para ostentar, se masturbam para se aliviar. Nenhum deles sabe o que é o caminho das intensidades, eles são modestos, medianos, vulgares, banais, comuns, triviais, ordinários… e ainda pedem para serem aplaudidos.

Line of speed - Giacomo Balla
Line of speed – Giacomo Balla

Vladimir Safatle - Entrevista concedida ao jornal Brasil de Fato

PICICA: "Entrevista exclusiva concedida pelo filósofo Vladimir Safatle ao jornal Brasil de Fato em 18/02/2014."



Entrevista exclusiva concedida pelo filósofo Vladimir Safatle ao jornal Brasil de Fato em 18/02/2014.
 

[00:11] Em artigo recente, você afirma que as exigências populares de uma "outra política" expressas em junho "pararam na lata de lixo mais próxima", e argumenta: "Depois de apresentar com uma mão um projeto de Assembleia Constituinte para a reforma política e retirá-lo com a outra, o governo prometera pressionar o Congresso Nacional para debater as propostas. O resultado foi cosmético, se quisermos ter um mínimo de generosidade". Contudo, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, tratando deste mesmo assunto, apresenta um ponto de vista diferente. Diz ele: “As ruas emitiram um sinal, e Dilma emitiu um outro sinal em resposta num sentido de ampliação da democracia como nunca havia acontecido. Os setores da direita imediatamente souberam ler o que estava em jogo, e os manifestantes não souberam". Como você encara a resposta das ruas à proposta de Assembleia Constituinte?


[02:32] Você tem sustentado a tese de que o modelo de desenvolvimento dos governos Lula e Dilma esgotou-se e, ao mesmo tempo, tem insistido na necessidade de haver um "segundo ciclo de políticas contra a desigualdade baseadas na universalização de serviços públicos de qualidade". O que isso significa, do ponto de vista da estratégia política?


[05:15] O cientista político André Singer sustenta, com base em pesquisas empíricas, que, entre a parcela mais pobre e vulnerável da classe trabalhadora, predomina a rejeição à radicalização política. Segundo André Singer, o "subproletariado" quer mudanças, mas dentro da ordem. A isso eu acrescento um dado recente: pesquisa divulgada semana passada mostra que, no Rio de Janeiro, mais da metade da população situada na faixa de renda familiar até 2 salários mínimos é contra os protestos [51% x 44%]. Considerando que o "subproletariado" é base não apenas do governo Dilma, mas de qualquer governo de esquerda, e levando em conta a tese que você sustenta em um de seus livros, de que "o principal problema que acomete a esquerda atual é sua dificuldade em ser uma esquerda popular”... (A esquerda que não teme dizer seu nome, Três Estrelas, 2012), como conciliar a necessidade de investir na radicalização política com o desafio de ser "uma esquerda popular"?

[08:50] Em seu mais recente livro (O dever e seus impasses, Martins Fontes, 2013), você afirma que "o dever é uma figura do desejo" e que a autonomia é a "capacidade de desejar o que se quer". E, há poucos meses, você escreveu um artigo no qual argumenta que "o capitalismo não é apenas um sistema de trocas econômicas, mas um modo de produção e administração dos afetos. Não se deseja da mesma forma dentro e fora do capitalismo. Há uma maneira de desejar própria do capitalismo, de sua velocidade, seu ritmo, seu espaço. /.../ se quisermos compreender de onde vem a força de adesão do capitalismo, devemos nos perguntar sobre como ele mobiliza afetos, como ele nos descostuma de certos modos de afecção e como privilegia outros. Não nos perguntaremos apenas sobre como somos alienados de nosso próprio trabalho, mas também como somos alienados de nossos próprios desejos". Levando em conta que a luta anticapitalista ocorre no interior do capitalismo, que práticas a esquerda poderia assumir e propagar, no sentido de construir desde já uma forma não-alienada de organização dos desejos?

[12:20] Em seu livro A esquerda que não teme dizer seu nome, você critica a esquerda governista pela "incapacidade de sair dos impasses do nosso presidencialismo de coalizão" e, ao mesmo tempo, defende a necessidade de buscar uma nova estratégia "sem ter de apelar para ideias vagas como 'tudo se resolve por meio da vontade política'". Se o problema não reside na vontade política, qual é a origem dessa incapacidade?

[16:55] Sobre a violência nas manifestações, você escreveu recentemente: "Melhor seria se procurássemos analisar tal violência como um profundo sintoma social da vida política nacional contemporânea. /.../ a violência aparece como a primeira revolta contra a impotência política./.../ Como todo sintoma, há algo que essa violência nos diz. A resposta a ela não será policial, mas política". Como você encara o debate sobre a violência na conjuntura atual?

[20:07] Em artigo recente, você argumenta: "Como mostrou a França quando criou um grande banco de dados de segurança nacional chamado Hadopi, começa-se fichando pretensos terroristas e termina-se fichando sindicalistas, manifestantes, jornalistas e ativistas". O projeto de lei anti-terrorismo em tramitação no Senado seria um sintoma do quê?

[22:33] Tratando das manifestações, você escreveu: "/.../ um acontecimento, por mais intensidade que tenha em sua eclosão, é medido por sua capacidade de deixar marcas. /.../ Convém lembrar que um acontecimento político não é medido, necessariamente, pela modificação institucional que ele produz. Esta pode vir apenas décadas depois". Que marcas foram deixadas pelos protestos de junho?


[26:10] Ainda nesse mesmo artigo, você afirma: "Na verdade, um acontecimento político é medido pela sua capacidade de produzir novos sujeitos políticos. Trata-se de novas forças de desestabilização capazes de fazer circular outros nomes, dar visibilidade a novas lutas e demandas. Ou seja, um novo sujeito político traz sempre uma mutação por meio da qual o que até então era invisível ganha visibilidade". Como você avalia a maneira como a esquerda tem lidado com esses novos sujeitos políticos?

[31:16] O que você acha do Movimento Passe Livre (MPL), considerando o atual quadro dos movimentos sociais, partidos e organizações de esquerda no Brasil?

[35:10] Em artigo recente, você argumenta que, "ao seguir uma lógica típica norte-americana, o pensamento conservador nacional tenta se recolocar no centro do debate por meio da inflação de pautas de costumes e de cultura. Tal estratégia só pode ser combatida pela aceitação clara de tais pautas de costumes, mas como eixo central de uma política de modernização social. Cabe à esquerda dizer alto e bom som que temas como casamento igualitário, direito ao aborto e políticas de combate à desigualdade racial são pontos inegociáveis a ser implementados com urgência". Como você avalia o momento atual da sociedade brasileira no tocante a tais pautas?

[37:52] Recentemente você escreveu um artigo, no qual sustenta que a luta por reconhecimento e ampliação de direitos precisa ser radicalizada, mas que, diferentemente do passado recente, "tal radicalização não passa por um aprofundamento dos mecanismos de institucionalização. Ela passa, ao contrário, por uma profunda desinstitucionalização". Por quê?

44:27] Em artigo recente, você afirma que "deveríamos chamar nossa condição atual como uma situação de ‘neodemocracias’". No que consiste uma neodemocracia?

[49:08] Nos princípios da filosofia do direito, Hegel refere-se à concepção kantiana de liberdade nestes termos: “Não precisa o pensamento filosófico recorrer a qualquer consideração especulativa para repelir este ponto de vista desde que ele produziu, nas cabeças e na realidade, acontecimentos cujo horror só tem igual na vulgaridade dos pensamentos que os causaram.” 


Fonte: Entrevista Safatle

"O Rio de Janeiro em dois filmes opostos", por José Geraldo Couto

PICICA: "Em tempos de associação promíscua entre o poder político, o poder econômico e a mídia, a guerrilha cultural é quase uma imposição."

O Rio de Janeiro em dois filmes opostos


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Cidade surge, verdadeira, potente e conflagrada, na obra quase-mambembe de Daniel Caetano. Já animação de Carlos Saldanha deserta para Amazônia…

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Rio 2, de Carlos Saldanha, é um desses casos em que é inevitável falar não apenas do filme, mas sobretudo do que está em torno dele. E o que está em torno dele é o Brasil, nada mais nada menos.
Do ponto de vista da técnica e da linguagem haveria pouca coisa a obstar nessa animação extremamente competente, inventiva e divertida. A boa amarração dos vários focos narrativos, os números musicais de um delírio geométrico à maneira de Busby Berkeley, o ritmo contagiante, o humor sagaz, as referências jocosas que vão de Shakespeare a Gloria Gaynor (I will survive), a exuberância da luz e das cores, tudo funciona quase à perfeição para configurar um entretenimento honesto e eficaz.



E o eixo central da história – a desastrada tentativa do urbano Blu de se adaptar à vida selvagem com sua pochete, seu GPS e seu canivete suíço – garante o interesse e a diversão.

Qual o problema, então? O problema é o Brasil. Vou ver se me explico.

Festa oficial

Nesta continuação, que se passa quase toda na selva amazônica, o Rio de Janeiro só aparece no começo, durante as comemorações do Réveillon e a preparação para o Carnaval. Aí começa a encrenca. Como vocês talvez se lembrem, houve uma grande controvérsia no último Réveillon carioca, pelo fato de toda a decoração e programação visual da festa oficial em Copacabana ter ficado a cargo da Fox e girado justamente em torno de… Rio 2, o filme, numa promiscuidade no mínimo desagradável entre coisa pública e interesses privados.

Três meses depois da polêmica, Rio 2 entra em cartaz em nada menos que 1.270 salas, ou seja, exatamente metade de todo o mercado exibidor brasileiro. Um verdadeiro rolo compressor.
Claro que o filme em si não tem nada a ver com isso. Ou talvez tenha, de uma maneira indireta. Pois, se o primeiro Rio (2011) já trazia um certo gosto turístico-pitoresco que fazia lembrar o Alô, amigos (1942) de Disney e a política da boa vizinhança EUA-América Latina, o segundo reforça essa vocação ao abraçar a mata tropical e eludir as complicações da realidade urbana.

Em outras palavras: depois de meses a fio de manifestações, confrontos violentos e dilaceração social, seria muito mais difícil manter uma imagem idílica do Rio como terra de um povo sorridente e cordial. Não que os realizadores tenham planejado previamente essa saída pela tangente. Afinal, uma produção como essa deve ter começado a ser concebida bem antes das primeiras manifestações e confrontos, em junho passado. Mas essa fuga para a selva acabou sendo providencial.

Ecologia e futebol

Afinal, exceto por alguns madeireiros e pecuaristas desalmados, quem pode ser contra a defesa da natureza, das araras azuis (ou vermelhas, ou verdes), das cacatuas, tamanduás e bichos-preguiça? (Note-se, a esse propósito, que no filme todos os animais inicialmente inimigos e/ou vilões acabam se revelando “do bem”, pois estão todos no mesmo barco, ou melhor, no mesmo ecossistema ameaçado.)

Curiosamente, a única passagem de Rio 2 em que há uma visível forçação de barra talvez tenha a ver com esse contexto político-cultural extrafílmico. Estou me referindo à disputa de território entre araras vermelhas e azuis que se dá por meio de… uma partida de futebol.

Ora, o futebol hoje voltou a ser sinônimo de Brasil, por conta da Copa do Mundo (e não deve ser casual que, na sua ziguezagueante trajetória para a mata, os protagonistas passem por várias cidades-sede). Mas o futebol também está hoje no centro da discórdia: a palavra de ordem “Não vai ter Copa” ressoa em várias capitais, por conta de prioridades nacionais que estariam sendo relegadas a segundo plano diante da orgia de investimentos e desvios visando ao Mundial.

Nada disso tira os méritos de Rio 2, mas é sempre bom ter em conta que os filmes não surgem nem se desenvolvem no vácuo, mas em circunstâncias históricas e sociais bem definidas, e com elas dialogam.

Rio em chamas

Se a cidade do Rio de Janeiro está quase ausente de Rio 2, ela transborda por todos os lados de Rio em chamas, longa-metragem coletivo composto por uma colagem de segmentos, sob a coordenação geral do cineasta, crítico e professor Daniel Caetano.

É uma obra híbrida, urgente e irregular, que entrelaça material documental, trechos encenados, depoimentos, ensaio, intervenção experimental, reportagem etc. Em meio a uma massa impressionante de som e fúria da cidade conflagrada, material sem dúvida necessário para resgatar e discutir um momento de inflexão na história carioca, o que mais me agrada é talvez o que está nas bordas, a loucura e a diversidade cotidianas, a vida torta e contraditória que pulsa nas ruas com ou sem manifestações diretamente políticas. A cidade como laboratório de experiências sociais, culturais, existenciais.


De resto, Rio em chamas é em tudo o oposto de Rio 2: em contraste com os milhões de dólares deste, deve ter custado uns poucos milhares de reais; em vez das 1.270 salas que exibem a animação, será visto nas brechas de um circuito mais do que alternativo. Será mostrado em 28 de abril no cine Odeon, na Cinelândia, ocasião em que cada espectador ganhará um DVD do filme. Antes, trechos serão projetados ao ar livre, em frente à Câmara Municipal. Depois, Rio em chamas irá para a internet e será exibido em tendas culturais, cineclubes, associações de bairro etc.

Em tempos de associação promíscua entre o poder político, o poder econômico e a mídia, a guerrilha cultural é quase uma imposição.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

"Outra visão sobre Ninfomaníaca" (Blog da Redação)

PICICA: "Para a sociedade, “vício em sexo” é doença. Para Lars Von Trier, apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar, para não se sentir doente"


Outra visão sobre Ninfomaníaca

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Para a sociedade, “vício em sexo” é doença. Para Lars Von Trier, apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar, para não se sentir doente

Por Bruno Lorenzatto*

Joe, a personagem principal de Ninfomaníaca, não é louca ou alienada, mas seu comportamento ou modo de vida é patologizado pela psiquiatria. Sua doença? O sexo compulsivo. Numa época em que a norma ou o normal significam nada menos que a produção e multiplicação das patologizações, das classificações intermináveis dos modos de vida como doenças possíveis, Joe é a resistência da vida que não se deixa capturar pelo discurso médico-psiquiátrico, isto é, em certo sentido, o discurso moral. De maneira que seus modos de subjetivação (isto é, como Joe se constitui como sujeito moral, racional, sexual etc no interior da sociedade) questionam o padrão, a norma, a pretensa igualdade entre os seres: a concretude da existência contra a abstração metafísica, tal é a luta que está em jogo em Ninfomaníaca.

Talvez seja preciso lembrar de Nietzsche — que subverte a dicotomia saúde x doença. Para a sociedade o “vício em sexo” é uma doença. Para Lars Von Trier é apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar (para não se sentir ela mesma doente).

Joe está além da moral porque não se preocupa em seguir as prescrições mais fundamentais impostas pelo código moral do Ocidente. Duplo crime, dupla marginalidade: ser mulher e ser “viciada” em sexo. A ética de Joe se dá precisamente onde não há mais ética pré-definida — este parece ser o ponto de vista delineado pelo filme. Ao afirmar sua diferença ou singularidade, Joe conjura a “Razão Universal”, recurso amplamente utilizado desde o iluminismo para prescrever normas e condutas morais. No entanto, a transgressão de Joe engendra uma ética possível: “Torna-te o que tu és”.
(Me pergunto se não seria possível uma abordagem feminista do filme: Joe, uma mulher: é o sujeito que fala. Joe, uma mulher: é o sujeito do desejo.)

Lá onde o espaço dos afetos, dos acontecimentos brutos e do “real” predominam, a história de Joe supera a ordem das representações – não há coerência ou ações previsíveis. O sujeito cede lugar às experiências contraditórias, limites e improváveis que o constituem, e ao mesmo tempo anulam sua aparente unidade, de modo a produzir uma multiplicidade de “Joes” irredutíveis. Espaço subjetivo sem dúvida perigoso e desconcertante, no qual a vida da personagem radicalmente se desdobra.
Importante observar: mesmo a culpa manifestada pela personagem, em decorrência de seus “desvios”, é ambígua, culpa performada ou teatralizada, em todo caso, provisória. Embora chame a si mesma de “mau ser humano” (essa fala se repete algumas vezes), deixa claro: a sociedade que a patologiza, Joe afirma, é ela mesma doente.

Lars Von Trier não oferece respostas ou soluções. Ele não se preocupa em responder as aporias, que atravessam a vida contemporânea, tematizadas em Ninfomaníaca. Sua abordagem é a da problematização, da abertura dos paradoxos que formam historicamente a sociedade ocidental. A sexualidade, o crime, o desvio, a norma, a doença, a verdade, a afirmação da vida, ou a negação da vida – tais são os temas que percorrem o filme. Se há uma tomada de partido (e creio que há) na estética de Ninfomaníaca, esta é: escutemos com atenção os paradoxos que constituem a sociedade – os mesmos que nos subjetivam.



Bruno Lorenzatto é licenciado em História e mestre em Filosofia pela PUC-Rio


Fonte: Blog da Redação

março 29, 2014

"Brasil: protesta social" (Comisión Interamericana de Derechos Humanos)

PICICA: "Situación de derechos humanos y protesta social en Brasil"

"Poética dos protestos entre nacional-popular e tropical-concreto", por Everton Moraes

PICICA: "Talvez seja interessante se perguntar como as manifestações que acontecem no Brasil, um pouco por toda a parte, desde junho de 2013, dialogam com essas duas memórias da resistência no Brasil. Como elas se relacionam com as potências nacional-populares ou as do tropical-concreto?"


Poética dos protestos entre nacional-popular e tropical-concreto

28/03/2014
Por Everton Moraes


Por Everton Moraes, doutorando em história pela UFPR, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações

“A experiência da ocupação das ruas parece estar mais próxima do tropical-concreto do que do nacional-popular.”

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 foto: Projeto HO


Toda uma série de discursos não cessa de falar da novidade indomável e da enorme dificuldade de explicar as manifestações que tomam de assalto as ruas do país desde junho de 2013. Não se sabe bem o que querem os manifestantes, já que as pautas são difusas e mutantes, ora reivindicando a redução da tarifa e a mudança da lógica da política de mobilidade urbana, ora com as “famílias” nas ruas gritando contra a corrupção, passando pela Copa do Mundo (com críticas que vão dos excessos nos gastos com os estádios até as desapropriações violentas realizadas em função das obras do evento); também não se sabe quem são os “verdadeiros” manifestantes, já que nem sempre parece fácil distinguir entre os violentos, os vândalos, os baderneiros e os “legítimos” cidadãos protestando “democraticamente”; nem se sabe, enfim, aonde pode levar a “crise de representação” que eles parecem escancarar e radicalizar.

Mas para além dessa leitura em que tudo é novo e ainda inenarrável, me proponho aqui a analisar como essas movimentações se relacionam com um certo passado, com certas memórias da resistência no Brasil. Penso sobretudo, em tradições de resistência que, apesar de possuírem origens remotas e difíceis de precisar, se consolidam e entram em uma disputa explícita por espaço na querela entre o “nacional-popular” e o “tropical-concreto”: de um lado, no caso da primeira, uma rigidez (às vezes quase militar), uma seriedade, uma confiança inabalável nos poderes da razão e da consciência, que acreditava que sua missão era levar a consciência da exploração e das possibilidades de transformação social para os “trabalhadores” explorados (estes desprovidos dessa consciência idealizada). Na qual era preciso falar a linguagem do “povo”, ser didático, dar-lhe a mão e ajudar-lhe a sair da condição de “subdesenvolvido” que o país lhe impunha. Essa esquerda talvez remonte aos Centros Populares de Cultura (CPCs), deixando marcas indeléveis em frações do Partido dos Trabalhadores e colocando o “desenvolvimento” como condição fundamental para a superação da desigualdade e a participação política comum.

De outro lado, no tropical-concreto (me refiro às experiências e trocas de neoconcretos e tropicalistas a partir do final da década de 1960 e não aos posteriores desdobramentos identitários e mercadológicos que reivindicaram uma herança associada ao nome ao “tropical”), nomes tão diferentes entre si quanto Caetano Veloso, Gilberto Gil, Hélio Oiticica, Haroldo de Campos, Torquato Neto e Waly Salomão, entre outros, apostavam em uma outra forma de resistir: alegre, festiva, não racionalista, não didática, que preferia antropofagizar o “povo” ao invés de “ensinar” lições; que se deixava afetar pelas potências “marginais”, essas que os adeptos do nacional-popular consideravam subdesenvolvidas e incapazes de transformar a história por si próprias. 

Parangolés, suplementos culturais, festivais de música popular viravam o espaço de uma relação outra com o “público”, com a “realidade” do país, com a pobreza, com a alteridade etc. Apostar na alegria, na festa, na provocação, no desafio escandaloso mais do que no braço em riste, nos gritos de guerra, no embate armado contra o Estado. Mais do que buscar o “desenvolvimento” era preciso, segundo eles, criar as condições para o livre uso do comum, sem o qual qualquer desenvolvimento ficaria restrito a reiterar as forças dominantes. E era a partir dessa leitura micropolítica, ou antes, infrapolítica, que se buscava atuar frente a demandas macropolíticas como luta contra a ditadura ou a disputa entre “projetos” de Brasil.

Talvez seja interessante se perguntar como as manifestações que acontecem no Brasil, um pouco por toda a parte, desde junho de 2013, dialogam com essas duas memórias da resistência no Brasil. Como elas se relacionam com as potências nacional-populares ou as do tropical-concreto? 

Não, certamente, para negar a novidade e a irredutibilidade das manifestações, mas porque talvez, a partir dessa pergunta, se possa pensar uma poética da resistência, ou antes, em termos de poéticas da resistência. Entendendo que estas são produzidas historicamente e orientam posturas e práticas adotadas durante os protestos. Penso que sua análise é fundamental não apenas para entender o que se passa com as manifestações, mas também para pensar o que estamos fazendo de nós mesmos enquanto “manifestantes” ou quais as implicações políticas e infrapolíticas do modo como nos relacionamos com as multidões que tomam de assalto as ruas do país.

A resistência nas manifestações se dá na própria prática do manifestar, isto é, na ocupação da rua, nas relações horizontais com outros manifestantes, na relação com a cidade, na invenção de novas táticas no calor do momento; mas também produz demandas frente ao Estado e suas instituições, como o Movimento Passe Livre (MPL) que, por exemplo, ao reivindicar a diminuição do preço do transporte urbano, tendo no horizonte a “tarifa zero”, vai do micropolítico ao macropolítico, lutando pelo direito comum de acessar a cidade como um instrumento fundamental para a participação política em sentido amplo. Assim, as manifestações seriam uma máquina de produzir corpos indóceis. 

E ainda que os militantes do MPL demonstrem uma enorme habilidade de expor suas pautas, a consciência que está em jogo é muito mais a de se saber afetado e atravessado pelos diversos microfascismos que afetam o cotidiano de todos nós, muito mais do que uma consciência idealizada de um sujeito universal. Em suma, o manifestante é o “qualquer um” afetado pela gigantesca fábrica de miséria humana que é o capitalismo contemporâneo. 

Apesar das tentativas de captura à direita e da crença de certas parcelas das esquerdas partidárias de que era fundamental estabelecer uma “liderança” e um processo de conscientização das “massas”, das leituras enviesadas e reducionistas da mídia ou mesmo da violenta repressão policial, as manifestações são um espaço de experimentação onde as mais contraditórias forças podem emergir; e é nessa experimentação que surgem as disputas entre forças estético-políticas.

Cabe então perguntar: que forças estão emergindo? Quais poéticas da resistência estão em jogo nessas manifestações?

O que, de alguma forma, emerge com as manifestações é a possibilidade de tecer uma outra relação entre as dimensões social, política, cultural e estética, isto é, realizar uma intervenção sem que haja a necessidade de líderes explicando didaticamente como devem agir os manifestantes, mas uma elevação destes a condição de agentes e não apenas objeto do discurso político de outrem. Nem mesmo do discurso das mídias oficiais, que apesar de produzirem narrativas que tentam capturar as múltiplas formas de resistência em linguagens previamente codificadas, perdem seu monopólio da “informação” com a emergência de uma miríade de filmagens e fotografias que produzem narrativas de resistência.

E ainda que as manifestações tragam signos ambíguos, paradoxais, a experiência da ocupação das ruas parece estar mais próxima do tropical-concreto do que do nacional-popular (apesar da presença de signos desta última estejam presentes), com toda a micropolítica simbolizada pela adoção da figura mitológico-política do “marginal”: aquele que, por estar à margem, tanto do “sistema” quanto do discurso das esquerdas tradicionais, opta por não seguir as regras vigentes no mundo social e político, ignorando a lógica da não-contradição, a prevalência da consciência, a racionalidade instrumental, o recurso obrigatório e prioritário as instituições tradicionais da luta política. As muitas “caras”, as demandas difusas, a ausência de um sujeito privilegiado, a não necessidade de uma consciência soberana e o imanentismo das manifestações são um exemplo disso.

Em suma, a transformação que esse personagem conceitual, o “marginal”, hoje transfigurado em uma multiplicidade de rostos, propicia, é o aparecimento de novas formas de resistir: o desejo concreto, não harmonioso dos oprimidos, ou mesmo seu dissenso, mais do que a bela consciência idealizada dos “engajados” no progresso da nação; a antropofagia que hibridiza estéticas distintas, mais do que a coerência e a linearidade do discurso desenvolvimentista das “esquerdas tradicionais”, que hoje se encarna o “governo”; a desrazão e o caos como forma de “desordenar” as formas de pensamento dominante. Como se os manifestantes estivessem tomados por um devir-marginal.

Mais do que desejar e lutar por uma nova sociedade, o marginal é aquele que sabota o funcionamento normal da sociedade atual. E esse caráter de “sabotagem” e de desorganização é fundamental para entender a poética das manifestações, isto é, entender que forma imprimem às suas práticas de protesto. Certamente não se trata mais daquela forma rígida, com uma ideia fixa de “desenvolvimento” econômico, que privilegiava um sujeito pseudo-popular como agente e apostava no combate a alienação através de uma racionalidade progressista. Ao contrário, a poética que parece estar em jogo é muito mais criativa, mutante, sabotadora, de-formante, muito mais do que formadora de identidade, capaz de fugir cada vez mais rápido de um Capital cada vez mais ágil em suas capturas.

Entender os manifestantes de hoje como reativadores das potências marginais de outros tempos não é reduzir o presente ao passado, ou hierarquizá-los de modo a exaurir a potência dos acontecimentos, mas abrir o presente à múltiplas possibilidades de releitura.

Divulgue na rede


Fonte: Universidade Nômade Brasil

"House of Cards, retrato de nossa época?" (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Ao revelar dramaticamente como a política distanciou-se dos cidadãos, seriado retrata tempo em que vivemos e assume um certo caráter shakespeariano"

House of Cards, retrato de nossa época?


Frank Underwoodf, protagonista da trama interpretado por Kevin Space
Frank Underwoodf, protagonista da trama interpretado por Kevin Spacey

Ao revelar dramaticamente como a política distanciou-se dos cidadãos, seriado retrata tempo em que vivemos e assume um certo caráter shakespeariano

Por Daniel D’Addario, na Salon | Tradução Cauê Seignemartin Ameni

“Bem antes de o Episódio 1 ter sido escrito, o seriado nos foi apresentado como se você fosse Lady Machbeth de Ricardo III”

Assim Robin Wright, astro de House of Cards, usou grandes referências inglesas para descrever a série de TV – e seu relacionamento com o personagem de Kevin Spacey – em recente mesa-redonda com jornalistas. Essa comparação é tão antiga quanto a própria trajetória do seriado, que estreou como uma série de  TV britânica adaptada posteriormente no canal Netflix. Spacey, que encenou como Ricardo III em 2011 e 2012, afirmou que o ponto central da série está totalmente relacionado com a peça de Shakespeare.

Molly Parker, que interpreta um parlamentear recém-eleito, na segunda temporada, disse na mesa-redonda: “sinto que o seriado tem um quê shakespeariano, é um tipo de Ricardo III – e refere-se, na temática a Macbeth”.

Isso parece, à primeira vista, risível. House of Cards foi indicado para Emmys e Globos de Ouro, mas compará-lo com a arte mais duradoura do cânone ocidental é um exagero — assim como comparar The Wire a um romance de Charles Dickens, o que também acontece com frequência.

House of Cards é de pequeno calibre, em certo sentido. Mostra-nos as maquinações políticas, mas ninguém percebe que a nação será significativamente diferente se tudo o que o pensamento de Frank Underwood maquina ocorrer. De certa forma, porque suas posições politicas parecem em grande parte destinadas a preservar seu poder. As negociações com o sindicato dos professores e as tramas com os governos estaduais aparecem como enredos menores, o que revela o efeito do poder sobre a alma mas não, exatamente, o que o poder pode realizar.

Mas isso não se encaixa, de certa forma, com o espirito do nosso tempo? De uns anos para cá, House of Cards parece uma encenação histórica sobre nossa época, prenunciando a completa desconexão entre os governos e os cidadãos. Suas fendas – o grau em que, numa série sobre política, os políticos são tão irreais – ilustra bem a baixíssima confiança nos governos. “Esse tipo de poder é muito transparente e muito shakespeariano, pois está relacionado a ganância”, disse Wright sobre o poder político. Na verdade, o seriado não descreve o efeito corrosivo do poder sobre uma nação, mas sobre uma única pessoa. Talvez, como Shakespeare, os roteiristas de House of Cards tenham capturado seu tempo de uma maneira em que as futuras gerações possam estudar.


E a alma corroída no centro do seriado, se não digna de Shakespeare, também não é um mero derivativo dele. Há algo em jogo que o escritor reconheceria. O personagem Frank Underwood é um arquétipo que não muda, mas vai se tornando mais complexo no decorrer do seriado, relevando novas faces ao público. Mas Ricardo III, um personagem maquiavélico, não é o único arquétipo na obra de Shakespeare. Portia, [a heroína de O Mercador de Veneza] é, no fundo, boa. Romeu é apaixonado e dramático. Hamlet, indeciso. Shakespeare foi um mestre das personalidades por ter sido o primeiro a pesquisá-las tão profundamente. Os tipos que ele usou parecem familiares quando comparamos a pureza manipuladora e a sede de poder de Frank Underwood, com o tipo bom e simples que ele aparenta ser.

No tempo de Shakespeare, seu trabalho era tão popular quanto o jogo mais sofisticados da época. House of Cards não esta inventando a concepção moderna da humanidade, como Shakespeare fez. Isso só pode ser feito uma vez. Nessa obra de arte popular, à qual flores ou tomates serão lançados, via Twitter, temos algumas verdades óbvias e elementares através de um enredo complexo, projetado para manter a audiência pelo maior tempo possível. A linguagem mudou, mas o método – tornar visível a realidade, por meio de personalidades especificas – nem tanto. Comparar House of Cards com Shakespeare não é pretensioso. Na verdade, deveríamos comparar mais coisas com Shakespeare. Se a obra do escritor é tão grandiosa, deveríamos procurar suas digitais em todos os lugares, e nos alegrar quando entendemos por que um seriado da TV é tão envolvente, a ponto de sacrificarmos um longo final de semana para nos empanturrarmos dele.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

março 28, 2014

"São Paulo entre Adoniram e Maluf", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Quem defende uma outra São Paulo, como a esquerda que ocupa e já ocupou a Prefeitura algumas outras vezes, só conseguirá mudar isso no momento em que entender que a saída para essa desgraça está, vejam só, mais na jinga de um Adoniran do que na dureza germânica dos escritos frankfurtianos."

São Paulo entre Adoniram e Maluf

Isso era São Paulo

A foto acima tem circulado pelas redes sociais e ilustra um artigo do Marcelo Rubens Paiva. A ilustração corresponde à São Paulo antiga, mais precisamente a uma parte do Centro que hoje é soterrada pelo famigerado "Minhocão", o elevado Costa e Silva. Embora eu pudesse começar pelo absurdo que é o nome do elevado ser uma homenagem a um dos ditadores militares brasileiros, o primeiro general da linha-dura, a verdade é que a obra faz jus ao nome que tem: nem seria o caso de mudar o nome do Minhocão, mas de implodi-lo mesmo só pelo desastre urbanístico que é -- e é justamente isso que o Marcelo propõe no seu artigo.



Para quem não conhece São Paulo, o elevado em questão liga à zona oeste próxima, a Barra Funda, ao Centro, passando por cima disso que vocês estão vendo. O artífice da obra, o ex-prefeito Paulo Maluf, sempre frisou a necessidade da obra: como chegaríamos ao Centro sem ele? A questão, no entanto, sempre foram outras duas: (1) qual Centro? e (2) quem chegaria, cara-pálida? Pois bem, a primeira se explica pela brutal degradação da zona central paulistana, cujo marco inicial foi justamente o elevado pela maneira como ele destruiu a cinelândia local; a outra é também muito mais simples, o "quem chegaria" são os proprietários de automóveis particulares. 



A submissão de São Paulo ao cinza do concreto e ao automóvel no lugar das grandes alamedas e do paisagismo foi o início do fim da Pauliceia. A questão é  que você não constrói uma cidade a partir do carro. São Paulo é péssima para moradores, pedestres, ciclistas, animais e plantas justamente por conta disso -- e objetivamente é pior para os próprios motoristas, mas dentro desse esquema, obviamente eles não percebem o problema, ou só sua exterioridade, o trânsito, o caos dos semáforos etc. O carrocentrismo malufista não construiu uma porcaria de cidade por si só, mas sim um absurdo urbano que é, também, um absurdo social, afetivo, ambiental e assim por diante. 



Interessante é o contraste disso com uma outra São Paulo, que ainda existe um pouco, a São Paulo  que ainda tinha garoa, samba e a figura de um tipo particular de malandro: estético como um italiano, lúdico como um brasileiro. Era o Adoniran Barbosa. O cara que mandava o progresso do Getúlio às favas. Uma espécie de pessoa capaz de desprezar o trabalho, por mais que estivesse na capital do discurso da dignificação via labor. Aquela coisa das cantinas do Bixiga, da Mooca, do samba no Brás, das gentes brancas e mestiças que conviviam mais com os povos dos antigos quilombos urbanos de São Paulo do que com os quatrocentões.



De uns tempos para cá, ou desde Maluf, a única coisa que escapou à destruição desse típico malandro paulistano -- uma destruição que só pode começar  pelo seu habitat -- foi em parte a Rua Augusta -- na parte do Centro -- e, talvez, a Vila Madalena. Isso até a gentrificação, que na Augusta começou tem poucos anos e que na Vila vem dos anos 90, subindo de Pinheiros. A Augusta, aliás, só foi "diferente" no momento em que esteve "abandonada", até ser retomada há pouco pela especulação imobiliária: e a questão não é o moralista, o "que bom que a prostituição está saindo da Augusta", porque, na real, a prostituição saiu de lá para os discretos flats, nos quais a exploração feminina pode ser bem maior, justamente por ser mais invisível.  Na Vila, apenas chegou aquilo que vinha de Pinheiros, capturando o ar autêntico  e genuíno do bairro, enlatando-o e pasteurizando -- enquanto os aluguéis sobem, eliminando lugares legais e expulsando os pobres.



A coisa, é óbvio, não é o Maluf pessoa, mas o Maluf histórico e político, responsável por dar vazão a um projeto nefasto desde muito. A verdade é que, por ora, Maluf venceu, ou venceu politicamente: a rigor, ele conseguiu fazer o que quis e isso prevaleceu por inércia, embora algumas medidas que contradigam sua lógica tenham sido tomadas em determinados momentos. Mas no interior do seu ser, São Paulo permanece malufista. Quem defende uma outra São Paulo, como a esquerda que ocupa e já ocupou a Prefeitura algumas outras vezes, só conseguirá mudar isso no momento em que entender que a saída para essa desgraça está, vejam só, mais na jinga de um Adoniran do que na dureza germânica dos escritos frankfurtianos.
Fonte: O Descurvo