maio 31, 2014

"Caminho para o nada, janelas para o abismo", por José Geraldo Couto

PICICA: "Volta, em DVD, filme de Monte Hellman que passou despercebido, injustamente. Poucas vezes cinema desnudou-se tão plenamente como “mentira a 24 quadros por segundo”"

Caminho para o nada, janelas para o abismo


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Volta, em DVD, filme de Monte Hellman que passou despercebido, injustamente. Poucas vezes cinema desnudou-se tão plenamente como “mentira a 24 quadros por segundo”

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

No mercado cinematográfico americano – e também no brasileiro – parece haver uma lei não escrita segundo a qual quanto mais relevante for o filme, quanto mais questões ele suscitar, menos espaço ele terá no circuito exibidor e menos visibilidade na mídia.

É o caso do esplêndido e perturbador Caminho para o nada, de Monte Hellman. Lançado há três anos nos cinemas brasileiros, passou praticamente despercebido aqui, a exemplo do que ocorrera nos EUA. Por sorte, ele chega agora ao DVD, pela Lume Filmes, dando aos cinéfilos uma segunda chance de conhecê-lo – ou de vê-lo de novo e explorar suas múltiplas camadas.


Pois é de camadas sobrepostas – ou antes, contrapostas, refratadas como num jogo de espelhos – que se trata aqui, neste filme sobre um filme. Esclarecendo: num lugarejo atrasado da Carolina do Norte, um jovem cineasta, Mitchell Haven (Tygh Runyan), tenta reconstituir num longa-metragem de ficção um rumoroso drama local, a dupla morte de uma moça cubana, Velma Duran, e seu amante, o escroque Rafe Taschen.


Fundos falsos

Tendo como principais fontes uma blogueira do lugarejo (Dominique Swain) e um investigador de companhia de seguros (Waylon Payne), Haven se move num cipoal de dúvidas e versões. Assassinato, suicídio, trocas de identidade, fraude imobiliária, sonegação fiscal, promiscuidade entre o capital, a polícia e o poder político, tudo isso se embaralha numa narrativa feita de fundos falsos, em que nunca sabemos o que é “de verdade” e o que é encenado.

Para complicar, o cineasta se apaixona pela atriz (Shannyn Sossamon) que encarna Velma Duran e que tem tanta semelhança com a própria a ponto de causar perplexidade nele, na polícia e no espectador.

Hitchcock costumava chamar de McGuffin o pretexto em torno do qual gira a ação. Em geral é algo (um documento, um segredo, uma arma secreta etc.) que tem muita importância para os personagens, mas que só interessa ao cineasta como dispositivo que faz a narrativa avançar e cria momentos de tensão e emoção.

Pois bem: em Caminho para o nada, de certa forma, tudo é McGuffin. Não há um “real verdadeiro” a ser alcançado por trás da representação, mas apenas mais representação.

Janelas para o abismo

No primeiro diálogo do filme, Haven, o cineasta, diz à blogueira que lhe serviu de fonte: “Velma Duran foi a janela que me levou para dentro dessa história”. E janela, de fato, é a imagem que define o modo de construção do filme de Monte Hellman. Enquanto Haven conversa com a blogueira, vemos, pela “janela” da tela do computador, Velma (ou a atriz que a representa) na cama, secando as unhas e os cabelos. No plano seguinte, a câmera vai até uma janela, de dentro para fora vemos um carro chegar. “Atravessamos” a janela, vemos o homem pegar alguma coisa no carro, colocar num saco plástico. Em seguida, há uma casa vista do exterior, à noite. Um homem chega e entra, um tiro é disparado, fora do quadro.

Trata-se da mesma casa? Das mesmas janelas? Não importa. De fora para dentro ou de dentro para fora, queremos atravessar a janela, ver o que há do outro lado. Às vezes o filme nos mostra, às vezes nos sonega. Às vezes embaralha o exterior de uma casa com o interior de outra. Cria um espaço virtual, mental, que só existe na imaginação, isto é, no cinema.

Mais do que simplesmente embaralhar os tempos e lugares na montagem descontínua, como já é moeda corrente há décadas no cinema narrativo, o que Caminho para o nada faz a todo momento é puxar o tapete das certezas debaixo dos pés do espectador, deixando-o num vácuo de dúvida e curiosidade. Mesmo num momento dramático crucial, em que um personagem (não vou dizer qual para não estragar a surpresa) se move atarantado num quarto onde duas pessoas acabam de ser mortas, um brevíssimo contraplano mostra uma equipe de filmagem captando a cena. Não é por acaso que se costuma chamar esse procedimento de “construção em abismo”.

Xadrez com a morte

Poucas vezes o cinema se desnudou tão plenamente como “a mentira a vinte e quatro quadros por segundo”, para usar a definição sarcástica de Brian DePalma. Traições, assassinatos, suicídios, tramas políticas mirabolantes, é como se tudo isso fosse visto num sonho em que as partes não se conectam plenamente e o sentido geral nos escapa. “Se tudo fizesse sentido, eu não estaria interessado”, diz o cineasta à blogueira, certamente ecoando o pensamento do próprio Monte Hellman.

Outras pistas para ler Caminho para o nada e multiplicar suas implicações são os filmes que ele cita explicitamente. Em As três noites de Eva, comédia de Preston Sturges em que uma vigarista (Barbara Stanwyck) se passa por uma lady inglesa, há o tema da troca de identidade; em O espírito da colmeia, de Victor Erice, há o trânsito entre a fantasia cinematográfica e a vida cotidiana; em O sétimo selo, por fim, há a tentativa de driblar a morte (mediante uma partida de xadrez).

São essas três ideias básicas que norteiam – ou desnorteiam – a estrada de Monte Hellman. O cinema como jogo de identidades, transfusão entre fantasia e realidade, xadrez para ludibriar a morte.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

"Em busca dos Sacís do Boal", por Léa Maria Aarão Reis

PICICA: "Os Sacís sumiram. Às vezes têm-se notícias de que alguma estatueta apareceu à venda em leilão. Vários atores conseguiram recuperar os premios. Boal, não."

Em busca dos Sacís do Boal

Os Sacís sumiram. Às vezes têm-se notícias de que alguma estatueta apareceu à venda em leilão. Vários atores conseguiram recuperar os premios. Boal, não.





Léa Maria Aarão Reis Instituto Boal
Agosto de 1968. Data emblemática que deixava o mundo em suspenso, de pernas para o ar. Nas ruas de Paris o chienlit coroava a nova maneira de viver a contracultura: sonhar com o impossível, proibir o proibido. Manifestações de rua contra o sistema se multiplicavam em diversos lugares. Desde junho, em Praga, Dubcek preparava a primavera da então Tchecoslováquia – meses depois abortada. Os americanos percebiam, com algum estupor, que, desde janeiro, com a histórica ofensiva do Tet, começavam a perder a guerra do Vietnã.

No Brasil a atmosfera era sombria. Quatro Atos autoritários tinham sido baixados pelos militares e o famigerado quinto viria quatro meses mais tarde, em dezembro. Aqui, imperava o medo que pouco mais tarde se transformaria em terror com a ditadura civil-militar instalada. Em São Paulo a classe teatral reagia e corajosamente resistia à censura e à violência. Um grupo de paramilitares invadira o palco de Roda Viva e surrara as atrizes do elenco da peça de Chico Buarque dirigida por José Celso. Bombas de gás lacrimogêneo eram lançadas nas salas de vários teatros. No Arena a atriz Norma Bengell era raptada por soldados do Exército ao sair de cena e só seria liberada dias depois, no Rio de Janeiro.

Muitos outros episódios como estes são lembrados no irônico livro de memórias póstumas "imaginadas", no dizer do autor, Augusto Boal, lançado este ano. Em 'O filho do padeiro', o mestre do Teatro do Oprimido pinta, em narrativa humorada, irônica e absorvente, o ambiente dos tempos em que o país viveu sob o golpe contra o governo de Jango que se abatera quatro anos antes – mas que fora construído durante os dez anos anteriores.
"1960 foi o começo," escreve Boal. "O pior viria." Ele lembra que "muitos líderes foram mortos. O desejo de liberdade era tão grande, sincero (...) Torturados, assassinados a sangue-frio. Mortos em combate, diziam as Forças Armadas."

Mas há um episódio relatado em suas memórias bem real. Nada de imaginado. Atualmente, a família de Boal, falecido em 2009, se mobiliza sobre esse assunto com o objetivo de tornar mais rico ainda o acervo do legado deixado pelo teatrólogo para que as gerações futuras possam estudar e pesquisar o Teatro do Oprimido.  "O acervo deverá guardar todos os premios e todos os objetos do Boal," diz Cecília Thumin, psicanalista e presidente do Instituto Augusto Boal, viúva do teatrólogo. Hoje, o Instituto, pessoa jurídica, funciona por enquanto informalmente na sua residência e no seu consultório, no Rio.

Há tempos Cecília procura encontrar o paradeiro de duas estatuetas – "minhas estatuazinhas" como chamava Boal as peças em bronze criadas pelo escultor Victor Brecheret com a figura do personagem de Monteiro Lobato. Eram Sacís ganhos pelo marido, em 68, recusados e jogados fora por ele e dezenas de companheiros da classe teatral igualmente contemplados pelo mais prestigioso premio instituído pelo jornal Estado de São Paulo desde os anos 50, originalmente para os que se distinguiam no cinema brasileiro.

Cacilda Becker estava no grupo. Tempos depois inclusive comentou que tinha devolvido os seus Sacís "com muita dor." Os premios haviam sido criados e escolhidos por um dos mais eruditos críticos de teatro do país, intelectual de estirpe, Decio de Almeida Prado, que assinava no Estadão. Logo após a devolução/protesto coletivo, Almeida Prado, um socialista na juventude e admirador da obra de Boal, se aposentou. Não concordava, é claro, com a censura e não podia se alinhar com o jornal que publicara pouco antes um editorial simpático à causa da lei do ferrolho. Encerrava-se em 68 a carreira dos Sacís e de Almeida Prado.

No relato do seu livro Boal é discreto. Com a graça que sempre foi uma característica marcante ele escreve: "Um escritor, que jamais havia sido premiado, propôs que devolvessemos os prêmios que havíamos recebido de um jornal paulistano. Tratava-se de premio prestigioso, o Sací, espécie de Oscar, Tony ou Obie* nativo. Devolver representava tapa na cara do jornal, mas causaria também certa dor nostálgica nos premiados."

Na assembléia da classe onde se decidiria sobre a devolução, continua Boal, "a maioria dos assembleistas (sic), não premiada, gritava ensandecida, pedindo que  as lindas estatuetas de Brecheret fosse jogadas no chão do hall do jornal. Bofetada e pontapé."

Boal, o ator Antonio Pedro e muitos outros companheiros foram contra. Achavam que devolver era decisão pessoal de cada um.  A votação foi feita e às quatro e meia da manhã, "eu, rouco, afônico", registra o autor, "Antonio Pedro na presidência, fez-se a votação: ganhou o bota-fora!"

"O jornal foi tomado pela polícia. Chegamos, cada premiado com seus premios, eu com minhas duas estatuazinhas tão bonitinhas. Não nos deixaram entrar. Decidiu a maioria que jogássemos as estátuas nos jardins do jornal."

Conclusão: durante as décadas seguintes o Estado de São Paulo só se referia a Augusto Boal como aboal. Proibia para sempre que seu nome fosse publicado por extenso, no jornal! Vingança sórdida de quem achava que ele era o instigador da devolução/protesto. Não era. Mas permaneceu de castigo, condenado ao gelo como costuma fazer a velha mídia quando empaca com algum desafeto. "Sobreviveu", como escreve brincando. "Na época", ele fecha assim o capítulo: "a assinatura aboal' doeu." Hoje, o seu nome há muito está restituído.

Mas os Sacís que eram seus sumiram. Às vezes têm-se notícias de que alguma estatueta apareceu à venda em leilão. Vários atores conseguiram recuperar os premios. Boal, não. Teve que se exilar menos de um ano depois do sucedido e só voltou ao Brasil  mais de dez anos depois.

Cecília e o Instituto criado com os filhos em homenagem a um dos mais brilhantes homens do teatro brasileiro, conhecido, respeitado, reconhecido e venerado não apenas pelas legiões de fieis amigos brasileiros, mas também pela tribo do Teatro no mundo inteiro - o carioca Augusto Boal%u20B filho de padeiro do bairro da Penha, no Rio de Janeiro -, procuram as suas "estatuazinhas". Tentam achá-las através de alguma informação ou de alguém por cujas mãos elas tenham passado.

Será mais uma ação de restabelecimento da realidade até aqui escamoteada, dos anos de chumbo. Um episódio que, apesar da graça com que Boal conta a passagem, no seu livro, é mais um descalabro ocorrido naqueles tempos sinistros.

Basta fazer contato com o contact@instboal.org.
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* Premios do teatro off-Broadway.

Créditos da foto: Instituto Boal

Fonte: Carta Maior

"Zygmunt Bauman: Sobre la educación en un mundo líquido" (Lejos del tiempo)

PICICA: "Desde los años cincuenta las expectativas sociales iban siempre al alza. En los tiempos malos que abuelos o padres debieron atravesar existían dificultades, pero a pesar de todo siempre se veía la luz al final del túnel. Para la generación de jóvenes que desde 2008 debe enfrentarse a la crisis, la luz está envuelta en tinieblas, no se vislumbra con claridad la salida. Educados en la idea de que podrían superar a sus padres por muy lejos que éstos hubieran llegado, la realidad les ha caído encima y deben enfrentarse a un mundo duro e inhóspito. Por otro lado, no han sido preparados para una economía de trabajos volátiles en el que el desempleo sobrevuela sus vidas." 

Zygmunt Bauman: Sobre la educación en un mundo líquido

Zygmunt Bauman: Sobre la educación en un mundo líquido (Paidós, 2013) Por Bernabé Sarabia
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Doctor honoris causa por 15 universidades, con su pipa de siempre, este judío universal sigue buscando las claves de la sociedad actual. Tras acuñar el concepto de modernidad líquida y aplicarlo a escudriñar aspectos esenciales de la vida actual, Zigmunt Bauman sigue siendo uno de los analistas más claros e incisivos de la Tierra.

Nacido en Poznan en 1925, Bauman tuvo que huir con su familia a la Unión Soviética cuando Polonia fue invadida en 1939 por los nazis. Participó en la Segunda Guerra Mundial como artillero y tomó parte en la batalla de Berlín en 1945. En 1954 comenzó su carrera académica en la Universidad de Varsovia. Purgado y desposeído de su nacionalidad en 1968, abandona Polonia. Tras enseñar en la Universidad de Tel Aviv, en 1971 obtuvo una cátedra en Leeds. Desde entonces abandona el polaco como lengua de expresión escrita y adopta el inglés, su tercer idioma contando el ruso.

En los últimos meses, la editorial Paidós ha vertido al español dos excelentes textos de este profeta de la incertidumbre. En 2012 vio la luz Esto no es un diario, una reflexión personal que en formato de diario es en realidad una reflexión personal destinada a entender los signos que marcan nuestro siglo XXI. Ya en 2013, la aparición de Sobre la educación en un mundo líquido adopta la forma de entrevista para insistir en la importancia de la educación.

Estamos ante el segundo libro de conversaciones publicado por Bauman. El primero fue un brillante y profundo diálogo con Keith Tester, catedrático de Teoría Social en la Universidad de Portsmouth (Polity Press, 2001). En esta ocasión es Ricardo Mazzeo, también dedicado a la docencia, la contraparte de esta serie de veinte entrevistas. Dichas conversaciones comenzaron con ocasión de la invitación recibida por Bauman para inaugurar un congreso celebrado en Rímini en 2009 bajo el título La calidad inclusiva de la escuela y finalizaron durante las conferencias que pronunció en Módena en septiembre de 2011.

El marco temporal que circunscribe este conjunto de textos está marcado por el estallido de la burbuja económica y sus consecuencias. Miles y miles de jóvenes compartían, antes de la debacle, la creencia de que en lo alto de la pirámide social existía un hueco para ellos. Se creía que bastaba un título universitario para entrar en un sistema que prometía la felicidad a través del consumo.

Desde los años cincuenta las expectativas sociales iban siempre al alza. En los tiempos malos que abuelos o padres debieron atravesar existían dificultades, pero a pesar de todo siempre se veía la luz al final del túnel. Para la generación de jóvenes que desde 2008 debe enfrentarse a la crisis, la luz está envuelta en tinieblas, no se vislumbra con claridad la salida. Educados en la idea de que podrían superar a sus padres por muy lejos que éstos hubieran llegado, la realidad les ha caído encima y deben enfrentarse a un mundo duro e inhóspito. Por otro lado, no han sido preparados para una economía de trabajos volátiles en el que el desempleo sobrevuela sus vidas.

Los últimos treinta años registran una expansión gigantesca de la educación superior, un imparable crecimiento en el número de estudiantes y profesores. El título universitario era una promesa de trabajos atractivos y duraderos. Sin embargo, la crisis y los recortes en los presupuesto educativos coinciden con un aumento tremendo de las matrículas universitarias, especialmente notorio en los estudios de postgrado.

La promoción social a través de la educación, en opinión de Bauman, se ha quebrado. Los graduados tienen empleos muy por debajo de las expectativas generadas por sus títulos o, incluso, no tienen trabajo y continúan viviendo a la sombra de sus familias. Los afortunados que consiguen trabajar se ven envueltos, con demasiada frecuencia, en relaciones tensas o conflictivas con los jefes, los compañeros de trabajo o los clientes.

En este penoso horizonte las nuevas tecnologías desempeñan un papel lleno de ambivalencia. Los ordenadores, las tabletas o los teléfonos inteligentes se introducen en casa, en los fines de semana o en las minivacaciones. Informan y nos conectan con los amigos o los seres queridos pero a la vez impiden la separación de la oficina, del trabajo o del jefe. Apenas queda excusa para no trabajar en sábado o domingo si hace falta completar un informe inacabado o el proyecto que debe entregarse el lunes.

Con todo, el problema de fondo de la “crisis de la educación” no es instrumental. No se trata sólo de si la Universidad prepara mejor o peor para el futuro laboral de sus estudiantes. El desafío central para Bauman reside en que la esencia de la idea de educación, tal como estaba concebida a lo largo de la modernidad, se ha venido abajo. Se han puesto en tela de juicio los elementos constitutivos de la pedagogía tradicional.

La naturaleza cambiante y sujeta a mutaciones imprevisibles, de la sociedad actual descoloca los viejos principios del aprendizaje. Principios que fueron concebidos para un mundo perdurable en el que la memoria era un activo positivo. Ya en el siglo XXI la memoria es vista como algo inútil, potencialmente incapacitante o, incluso, engañosa.

El “mundo líquido” que presenta Bauman se caracteriza por su volatilidad, por el cambio instantáneo. En un mundo desregularizado e imprevisible los objetivos de la educación ortodoxa tienen un encaje lleno de dificultades. Los hábitos consagrados, las costumbres arraigadas, los marcos cognitivos sólidos o el elogio de valores estables, se convierten en impedimentos. El mercado del conocimiento ya no pide lealtad a largo plazo, vínculos duraderos o compromisos irrompibles. En el mercado abierto y desregulado puede ocurrir cualquier cosa y el éxito puede ser una derivada que nada tenga que ver con el esfuerzo educativo y que quizá no vuelva a repetirse. Grandes estrellas del firmamento mediático como Steve Jobs, Jack Dorsey, el inventor de Twitter, o Damien Hirst, ídolo del BritArt, han pasado por la experiencia del abandono escolar.

En la sociedad de la información, el conocimiento se presenta en forma de cascada de datos e informaciones que con demasiada frecuencia son fragmentarios e inconexos. Cuando la cantidad de información tiende a aumentar y se distribuye a una velocidad cada vez mayor, la creación de secuencias narrativas se vuelve, como afirma Bauman, cada vez más difícil. La “cultura líquida moderna” ya no es una cultura de aprendizaje y acumulación, es, sobre todo, una “cultura del desapego, de la discontinuidad y del olvido”.

Sobre la educación en un mundo líquido es un brillante texto que encaja en lo que a lo largo de la última década Bauman ha definido como el tránsito a la postmodernidad, un tiempo en el que las personas han dejado de creer en las grandes promesas hechas por las modernas ideologías. Vivimos una “modernidad líquida”, entendida ésta como una “sociedad de consumidores individualizada y sin regulaciones”. Una sociedad en la que, pese a los muchos motivos de preocupación, no cabe caer para Bauman en la desesperación.

Como en toda conversación el diálogo abandona y vuelve al hilo conductor. De ahí que el turno de palabras entre Bauman y Mazzeo se deslice hacia hechos que por su relevancia marcan el tiempo de la actualidad. La Primavera árabe o los movimientos sociales y juveniles que han florecido espontáneos al calor del descontento social y de Internet estos últimos años son pespuntes que dan color e interés a un texto cuyo telón de fondo está marcado por los efectos que sobre el ser humano está teniendo esta devastadora crisis.
Fuente: OJOS DE PAPEL

Fuente: Lejos del tiempo

maio 30, 2014

"As histórias da esquerda e a linha de cor", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Se o levante comandado por brancos, independente dos meios empregados, é indiscutivelmente político e merecedor de deferência, quando é realizado por negros se torna manipulado, complicado, problemático. A palavra “tráfico” praticamente pula sozinha, como “todo mundo sabe”. Quando a esquerda branca se insurge, são heróis até que se prove o contrário; mas quando é a favela, seus participantes são imediatamente caluniados como delinquentes, e o ônus da prova é invertido. Suas ações resultado de impulsos desordenados, como se estivessem revertendo para a “barbárie original da raça”. A pacificação brutal não está tão distante desse automatismo em que a esquerda muitas vezes incorre, sempre com a palavra “tráfico” a tiracolo."

As histórias da esquerda e a linha de cor
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Foto: Lana de Souza – Coletivo Papo Reto.



O sofrimento dos torturados na ditadura é identificado como parte da história moral do Brasil e os ativistas reconhecidos como protagonistas indiscutíveis das lutas. Isto não é verdade para as lutas dos negros. A luta contra a ditadura, quer seja glorificada ou não, é reconhecida como uma ação política, ideológica, calcada sobre a consciência. De 1964 a 1985, quando militantes eram presos, ninguém colocava em questão que eram “presos políticos”, opositores ao regime, e que por isso mereciam ser separados dos “presos comuns”. Isto não vale para os negros. A longa história de revoltas e resistências de favelas e periferias é sempre turvada com a grande sombra do crime organizado.

Se o levante comandado por brancos, independente dos meios empregados, é indiscutivelmente político e merecedor de deferência, quando é realizado por negros se torna manipulado, complicado, problemático. A palavra “tráfico” praticamente pula sozinha, como “todo mundo sabe”. Quando a esquerda branca se insurge, são heróis até que se prove o contrário; mas quando é a favela, seus participantes são imediatamente caluniados como delinquentes, e o ônus da prova é invertido. Suas ações resultado de impulsos desordenados, como se estivessem revertendo para a “barbárie original da raça”. A pacificação brutal não está tão distante desse automatismo em que a esquerda muitas vezes incorre, sempre com a palavra “tráfico” a tiracolo.

Como a Ocupa Alemão, esse coletivo atuante num complexo de favelas no Rio, quando escreveu ontem que “favelado é tratado como bandido até que se prove o contrário”. O que é gravíssimo porque, como se sabe, no Brasil bandido bom é bandido morto.
O fato é que a esquerda brasileira ainda temos um problema sério com a questão racial (basta ver o comportamento vacilante na questão das cotas), o que aparece nas narrativas fundadoras e sua mitologia de origem, a começar na luta contra a ditadura. Aparece na superexposição de algumas lutas, quase com caráter sagrado, e na desqualificação cotidiana de outras.

É preciso renovar essa esquerda, para que passemos a linha de cor no lugar certo, e assim possamos reconhecer nossas lutas e companheiros, e nossos mortos. Precisamos começar a recontar as histórias e desarmar os automatismos de uma esquerdologia racista. O levante do ano passado, desdobrado até hoje num forte ciclo de novas organizações e lutas de favelas e periferias, praticamente exige isso.

Fonte: Quadrado dos Loucos

"Fora do mapa: documentário levanta debate sobre marginalização das favelas" (Geledés)

PICICA: "Moradores das favelas do Rio de Janeiro afirmam que o governo do estado teria solicitado à empresa Google Maps a retirada do nome “favela” do mapa, causando indignação nos moradores, que se sentiram ainda mais diminuídos e excluídos da sociedade. Tal iniciativa implicaria que as favelas e suas comunidades seriam invisíveis, não apenas para o Estado, mas para o resto do mundo. Diante desses questionamentos e reivindicações é que foi desenvolvido o documentário “Todo mapa tem seu discurso”, realizado pela Rede Jovem e dirigido por Francine Albernaz e Thaís Inácio."

Fora do mapa: documentário levanta debate sobre marginalização das favelas

 


Filme mostra que cada mapa representa muito mais do que uma cartografia geográfica de um determinado local, possuindo uma história social e política, um discurso

Por Adital

A marginalização das favelas

Moradores das favelas do Rio de Janeiro afirmam que o governo do estado teria solicitado à empresa Google Maps a retirada do nome “favela” do mapa, causando indignação nos moradores, que se sentiram ainda mais diminuídos e excluídos da sociedade. Tal iniciativa implicaria que as favelas e suas comunidades seriam invisíveis, não apenas para o Estado, mas para o resto do mundo. Diante desses questionamentos e reivindicações é que foi desenvolvido o documentário “Todo mapa tem seu discurso”, realizado pela Rede Jovem e dirigido por Francine Albernaz e Thaís Inácio.

Segundo os realizadores do documentário, a ideia surgiu quando o projeto “Wikimapa”, um aplicativo que promove o mapeamento das favelas de forma colaborativa com os moradores, começou a ganhar popularidade na comunidade e entre turistas que iam visitar as favelas.

Durante o filme, moradores das comunidades Cidade de Deus, Capão Redondo, Favela da Maré, entre outras, falam sobre a vida cotidiana nas favelas e verbalizam a indignação de serem tratados como uma população invisível, ao ponto de não constarem no mapa oficial da sua própria cidade.

Depoimentos como o de Dálcio Marinho, geógrafo do Observatório de Favelas, afirma que o fato de não constar no mapa implica problemas políticos, econômicos e sociais em grande proporção. Ele declara que quando a favela não consta no mapa da cidade não há como se destinarem os devidos recursos financeiros, pois não se tem dimensão real do tamanho geográfico dessas áreas e tampouco sobre as adversidades sofridas pelos moradores.

A obra se destaca pela iniciativa de tentar desmistificar a ideia de que o mapa seja apenas um objeto simbólico, uma simples ferramenta de localização. O filme mostra que cada mapa representa muito mais do que uma cartografia geográfica de um determinado local; cada mapa possui uma história social e política, um discurso. Os questionamentos e reivindicações afloradas durante o filme servem de base para reflexões e debates sobre a exclusão social das favelas.

Ficha técnica:
Título: Todo mapa tem seu discurso
Gênero: documentário
Direção: Francine Albernaz e Thaís Inácio
País: Brasil
Fonte: Revista Fórum

Fonte:  Geledés

"Sobre De-humanidade e Os Usos do Sofrimento Negro". Texto de Gustavo Melo Cerqueira (Gustavo Mello), ator e performer

PICICA: "O sofrimento negro é uma extensão do corpo não-negro, uma amplificação desse corpo. O sofrimento negro é ilegível quando portado por um corpo negro, muito embora seja sobre esse corpo que o sofrimento deva acontecer para que os corpos não-negros eventualmente nele se projetem e dele usufruam sem causar risco real aos seus próprios corpos. Portanto, o que eu estou argumentando, e faço isso na esteira dxs pensadores já aqui citados como Fanon, Wilderson e Hartman, dentre tantxs outrxs, é que a humanidade, não apenas como discurso mas também como fenômeno existencial, se forma ou adquire os contornos com os quais a conhecemos hoje, não só através da negação sistemática e estrutural do valor de humanidade ao corpo negro, mas também pela posse e manipulação desse sofrimento."

Sobre De-humanidade e Os Usos do Sofrimento Negro

SLIDE-Companhia-de-dança-de-Uberlândia-MG-apresenta-espetáculo-O-Corpo-Negro-na-Dança-para-o-Palco-Kairós-Foto-Rodrigo-Zefferino-Divulgação*
 
Há pouco mais de um ano estava eu numa conferência internacional na Duke University, na cidade de Durham, Carolina do Norte. A conferência reunia pesquisadores, artistas e ativistas de diversos países do continente Americano. Variados temas seriam abordados na conferência, e na mesa de abertura estava Walter Mignolo, que viria a ser co-convener do grupo de trabalho sobre decolonialidade do qual eu participaria. Aproveitando o momento, e na onda de muitas discussões sobre afropessimismo nas quais eu estava envolvido na Universidade do Texas em Austin, perguntei aos integrantes da mesa de abertura: já que estamos falando sobre decolonialidade, não seria também o caso de começarmos a nos questionar, e mesmo a investir na formação de uma corrente de pensamento sobre de-humanidade? Digo, não está na hora de de-humanizarmos um pouco a discussão, em vez de sempre recorrermos a uma tal essência humana que pretensamente nos une a todxs?

As repostas a essas questões foram as mais diversas. Houve quem me interpelasse inicialmente para ter certeza de que eu não estava falando do emprego de meios de cruéis para quaisquer fins. Outras pessoas achavam que, sim, o direito dos animais deveria ser abordado com maior contundência em discussões sobre política e performance (do que eu não discordo, mas de-humanizar não significa tornar humanos os animais). Outras pessoas, ainda, me interpelaram depois para debater a noção de ciborgue, discussão que pode vir a ser extremamente frutífera dentro do que possa vir a ser o conceito de de-humanização.

Uma intervenção, porém, me chamou ainda mais a atenção em relação a todas as outras, justamente por ter trazido a questão racial e escravocrata para o debate. A essa altura já estávamos todxs no coffee break, e eu aproveitava o verde gramado do campus da universidade para me sentar e elaborar um pouco mais essa noção de de-humanidade, ideia sobre a qual nunca mais tive tempo de pensar até o presente momento. Pois bem, eis que essa mulher, branca, jovem, estadunidense, veio até mim e, com ares de quem está se aproximando de algo um tanto perigoso – fosse esse perigo o tema que ela queria abordar ou a minha mera presença – começou a falar da sua ancestralidade: ela teve um tataravô; esse tataravô tinha uma fazenda; esse tataravô tinha uma fazenda que cultivava plantas e criava animais (ok, já entendi que era uma plantation); esse tataravô tinha uma fazenda que cultivava plantas e animais e tinha gente que trabalhava lá (por óbvio, eu diria); esse tataravô blá, blá, blá e tinha gente escrava que trabalhava lá. Silêncio. Ela desviou os olhos. Não sei se os olhos dela lacrimejaram, ou se foi alguma canastrice performática que ela desenvolveu com o passar dos anos. Com os olhos quase na direção dos meus (existe um espaço entre a orelha e o ombro para o qual algumas pessoas olham como se estivessem a olhar nos olhos) ela me disse que trabalhava com crianças numa situação de adversidade da qual não me lembro, mas era algo entre o que chamaríamos no Brasil de menores carentes ou em situação de risco. Segundo ela, muitas dessas crianças eram “de cor”. Vale esclarecer (sic) que a expressão crianças “de cor” geralmente significa que as crianças pertencem a qualquer grupo étnico e racial não definido como branco, muito embora a definição de quem é ou quem não é branco nos Estados Unidos tenha mudado várias vezes ao longo do tempo. Mexicanxs, por exemplo, já foram consideradxs brancxs. Italianxs, por exemplo, nem sempre foram consideradxs brancxs. Mexicanxs, hoje, não são brancxs. Italianxs são.

Pois bem, ela prosseguiu dizendo que muitas das crianças “de cor” com as quais ela trabalhava eram negras (a palavra “negras” veio acompanhada de um encolher de ombros e um meneio de cabeça que desviou o seu olhar do intervalo entre a orelha e o ombro e se dirigiu para o meu plexo. Ela estendeu uma mão espalmada para cima, com dedos apontados quase que sem-intenção para o mesmo ponto onde o olhar dela se fixava, indicando que algo em mim me identificava com as crianças negras com as quais ela trabalhava). Após toda essa performance de culpa pela fato de seu avô ter sido senhor de escravos, somado à performance do “eu trabalho para remediar e reparar isso”, com direito a sugerir uma identidade entre mim e as crianças negras, ela finalmente disse que entendia o que eu falava sobre desumanizar (em inglês fica realmente difícil distinguir entre desumanizar no sentido de tornar menos humano, e de-humanizar, a ideia que eu estava sugerindo, de desmantelamento da ideia de humanidade). Segundo ela, impingir sofrimento às outras pessoas, como fez o seu tataravô, também desumaniza. Ou seja, sem querer reduzir os horrores da escravidão para negrxs, seu tataravô certamente foi também duramente desumanizado pelo processo escravocrata.

Poderia aqui dar uma pausa dramática, mas ela não aconteceu. Prontamente eu disse a ela que seu tataravô não foi desumanizado pela escravidão. Ele se fez humano graças à escravidão. Assim como todo o chamado hemisfério ocidental (pelo menos) só é humano graças à escravidão e ao colonialismo. Um senhor de escravos e escravas, uma senhora de escravos e escravas se fazem humanos e humanas por serem escravocratas, e cada vez que a gente se defende, se afirma, ou se pretende humano ou humana, é em celebração às graças do processo escravocrata e ao colonialismo. Disse, por fim, que de-humanizar seria desmantelar esse processo, em vez de investir em manter a mesma direção, ainda que em sentido reverso.

Ela fez uma cara de asco, levantou-se, e disse que conversaríamos melhor depois. Evitou se aproximar de mim durante todo o resto da conferência. Foi levemente rude num outro momento. E pelo fato de eu ter ido à conferência sem cartão de visitas – eu quis dar a ela o meu contato anotado num pedaço de papel para que continuássemos conversando – ela foi jocosa e fez piadinha comigo em frente a uma colega dela que era também jovem, mulher, branca e estadunidense, mas de cujo tataravô eu não tenho maiores informações. Enfim, por muito pouco, muito pouco mesmo, acho que a jovem “desumanizou”.

Das várias nuances contidas nessa história, me impressionou a expressão de assombro e asco no rosto da jovem estudante branca estadunidense. Depois me dei conta de que aquela expressão facial era parte de uma reorganização corporal causada por uma diferente abordagem acerca do sofrimento negro. Afirmar que a humanidade de seu tataravô – e, por conseguinte, a sua própria – fosse composta, fundamentalmente, de sofrimento negro, beirou a esfera do impensável. Porque não se tratava de falar de privilégios, de assumir os privilégios diários de classe legados pela história da escravidão e do racismo. Não se tratava, tampouco, de abrir mão desses privilégios, pois isso seria como repetir o gesto de ter a mão espalmada para cima e os dedos casualmente direcionados para uma criança “de cor”. A humanidade dessa branca jovem estudante estadunidense estava atada, há gerações, ao uso do sofrimento negro como extensão do próprio corpo. De-humanizar implicaria em ser mutilada dos múltiplos usos desse sofrimento.

Disputar o sofrimento – seja negro ou não-negro – implica em disputar humanidade, mas também pode significar desafiá-la. Uma acadêmica estadunidense branca de nome Robin Bernstein, ao estudar as várias qualidades atribuídas à noção de childhood, ou infância, no século XIX nos Estados Unidos – provavelmente à época em que o tataravô da jovem estadunidense estudante branca explorava sua plantation – investiga de que modos a dor, enquanto critério de aferição de humanidade, também define parâmetros para o que se considera infância. Através de uma abordagem fenomenológica e considerando várias fontes – do sucesso da versão ilustrada de A Cabana do Pai Tomás, passando pelo script de violabilidade/sofrimento de bonecas, sobretudo as negras, e indo até o famoso experimento das bonecas para aferir identificação racial – a autora demonstra que as crianças brancas são entendidas como suscetíveis à dor (aquelas que sofrem), enquanto as crianças negras são vistas e representadas como imunes à dor (aquelas que não sofrem).

Em similar diapasão, Saidiya Hartamn, uma autora negra estadunidense – também estudando o tempo em que provavelmente viveu e se humanizou o tataravô da jovem estadunidense estudante branca – demonstra que, para além dos meios óbvios e espetaculares – como chibatadas e mutilações – outros meios mais sutis, mas não menos insidiosos, fazem parte da gama de usos do sofrimento negro. Mais, Hartman demonstra que o sofrimento negro não é legível, exceto por meio de identificação e empatia, dois mecanismos que na relação (sic) brancx / negrx, denotam o caráter de fungibilidade do corpo negro escravizado. Ou seja, de acordo com Hartman, para além da fungibilidade do corpo negro enquanto mercadoria, desenvolveu-se também a fungibilidade do corpo negro no que tange ao seu sofrimento, dentre outros aspectos. Entre os exemplos que Hartman cita, está o de abolicionistas brancos que, ao relatarem em cartas o sofrimento negro, precisavam convidar o leitor a imaginar o autor da carta e sua família (brancos), como vítimas do sofrimento (negro) descrito. Ao fazer isso, porém, e apesar da boa intenção, o abolicionista apaga o corpo negro escravizado não só enquanto vítima, mas principalmente enquanto, eu diria, sujeito do sofrimento.

Assim, o sofrimento se torna legível quando imaginado branco. Se há uma ansiedade em relação ao corpo negro, como argumenta Frantz Fanon, impingir-lhe e roubar-lhe o sofrimento são medidas fundamentais para aplacar essa angústia e, posteriormente, fazer uso desse sofrimento para afirmar a humanidade (não-negra). E esse mecanismo tem implicações políticas com as quais lidamos diariamente. Conforme argumentado pelo autor estadunidense negro Frank B. Wilderson, pode-se dizer que existe uma política de sofrimento associada ao corpo negro que define, por meio dos limites entre a violência estrutural/gratuita e a violência ocasional, quem é humano/cidadão e quem não é humano/cidadão.

O sofrimento negro é uma extensão do corpo não-negro, uma amplificação desse corpo. O sofrimento negro é ilegível quando portado por um corpo negro, muito embora seja sobre esse corpo que o sofrimento deva acontecer para que os corpos não-negros eventualmente nele se projetem e dele usufruam sem causar risco real aos seus próprios corpos. Portanto, o que eu estou argumentando, e faço isso na esteira dxs pensadores já aqui citados como Fanon, Wilderson e Hartman, dentre tantxs outrxs, é que a humanidade, não apenas como discurso mas também como fenômeno existencial, se forma ou adquire os contornos com os quais a conhecemos hoje, não só através da negação sistemática e estrutural do valor de humanidade ao corpo negro, mas também pela posse e manipulação desse sofrimento.

Assim, e isso talvez precise ficar mais evidente, não há sentido em se pensar em humanizar o corpo negro como se isso estivesse ao alcance de qualquer corpo. Não está! Que bom! Há que se pensar em de-humanizar os corpos não-negros como modo de revelar as estruturas antinegras sobre as quais esses corpos não-negros ouvem, cheiram, pensam, se comunicam e existem. O projeto humano precisa ser radicalmente desmantelado como forma de alterar os modos como hoje nos enxergamos e nos relacionamos. Clamar por subjetividade humana – seja ela existencial, emocional ou política – bem como atribuir humanidade a quem quer que seja, costumam configurar, eventualmente, em práticas de subjugação e de opressão antinegras.

Desmantelar o humano! Insisto com a palavra desmantelar, em vez de substituir, descontruir ou reformular porque acho importante enfatizar os corpos negros em situação concreta, corpórea, de de-humanizar os corpos não-negros, consequentemente abrindo mão de estratégias humanas, humanizantes ou humanizadoras. Penso nas possibilidades das ações dos corpos negros não apenas para alterar o esquema facial de um outro corpo – a cara de asco da branca jovem branca estudante branca estadunidense branca – mas que possa desmantelá-lo visceral, mental, emocional, psicológica e politicamente. E o mais desafiador: que nossos corpos negros possam fazer isso sem medo de nos sentirmos, também, inteiramente desmantelados no curso dessas práticas.

Reclamar o sofrimento não traz humanidade ao corpo negro, mas expropria do não-negro seu principal componente humano. Quando o negro reclama o seu sofrimento, e caminha com ele, expondo seu corpo e permitindo que sua aproximação aos corpos não-negros ameace de-humanizar a sociedade, amputando a extensão dos corpos que a compõem, estamos beirando o impensável – mas impensáveis também foram os corpos negros da Revolução Haitiana, como bem nos lembra Susan Buck-Mors.

Corpos negros são impensáveis.

Corpos negros juntos podem de-humanizar.

Corpos negros reclamando seu sofrimento sem intenção de seduzir, sem intenção de tornar seu sofrimento legível, sem intenção de sensibilizar a sociedade, ameaçam.

Corpos negros que não deixam que lhes roubem suas dores, ameaçam a existência do mundo tal qual o conhecemos.

Corpos negros juntos, carregando sua dor, são a representação mesma do impensável.
Referências

Bernstein, Robin. 2011. Racial innocence: performing American childhood from slavery to civil rights. America and the long 19th century. New York University Press.
Buck-Morss, Susan. 2000. “Hegel and Haiti”. Critical Inquiry 26 (4): 821–65.
Fanon, Frantz. 2008. Black Skin, White Masks. New York; [Berkeley, Calif.]: Grove Press ; Distributed by Publishers Group West.
Hartman, Saidiya V. 1997. Scenes of subjection: terror, slavery, and self-making in nineteenth-century America. Race and American culture. Oxford University Press.
Wilderson, Frank B. 2010. Red, White & Black: Cinema and the Structure of US Antagonisms. Duke University Press.

Texto de Gustavo Melo Cerqueira (Gustavo Mello), ator e performer, em apoio a 2ª Marcha Nacional Contra o Genocídio do Povo Negro, para Reaja ou Será Mort@.


Frente ao Genocídio do Povo Negro, Nenhum Passo Atrás!
#2marchacontragenocidiopovonegro
#quilomboxis
#campanhareaja

evento: https://www.facebook.com/events/228503680633212/?fref=ts
blog: http://reajanasruas.blogspot.com.br/
perfil: https://www.facebook.com/ReajaOuSeraMortoReajaOuSeraMorta?fref=ts

Companhia de dança de Uberlândia (MG) apresenta espetáculo O Corpo Negro na Dança para o Palco Kairós – Foto: Rodrigo Zefferino

Fonte: Das Lutas

Evento: Contra o Genocídio da População Negra: Subsídios Técnicos e Teóricos para Psicologia



Evento: Contra o Genocídio da População Negra:
Subsídios Técnicos e Teóricos para Psicologia


Data:
31 de maio de 2014 (sábado)
Horário: 9h às 18h
Local: Auditório do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP 06
Endereço: Rua Arruda Alvim, 89, Jd. América, São Paulo, SP
Importante: Sua reserva será garantida até as 9h00
Entrada gratuita

Nos últimos anos houve um aumento significativo da violência contra a população negra no Brasil. Segundo pesquisa realizada pelo IPEA e pelo dossiê realizado pelo Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica da cidade de São Paulo, os dados que relacionam mortes por assassinato à faixa etária e raça são alarmantes:

- Há uma projeção de que 32 mil adolescentes serão mortos violentamente entre 2007 e o final de 2013. A possibilidade de um adolescente negro ser vítima de violência é 3,7 vezes maior em comparação com os brancos;
- Em 2011, o número de mortes por autos de resistência apenas no Rio e em São Paulo foi 42,16% maior do que todas as execuções promovidas por 20 países em que há pena de morte!
- Em São Paulo, só em 2012, 546 pessoas foram mortas em decorrência de confronto com a Polícia Militar;
- A cada três assassinatos no País, dois vitimam negros;
- A possibilidade de o negro ser vítima de homicídio no Brasil é maior inclusive em grupos com escolaridade e características socioeconômicas semelhantes.
- A chance de um adolescente negro ser assassinado é 3,7 vezes maior em comparação com os brancos.
- Assassinatos atingem negros numa proporção 135% maior do que os não-negros;

Diante dessa conjuntura, várias entidades, grupos e setores organizados em torno da luta antirracista vêm se organizando nos últimos anos para denunciar, discutir e propor estratégias de enfrentamento à essa situação.

Somando-se a esses esforços, o CRP SP convida para o debate Contra o genocídio da população negra: subsídios teóricos e técnicos para a psicologia, no intuito de refletir como os psicólogos que atuam nas mais diversas áreas e instituições que lidam direta ou indiretamente com esse problema podem ampliar seus referenciais de atuação no enfrentamento dessa questão. Participaram ativistas do movimento negro, psicólogos e estudiosos da temática.

O evento terá transmissão online, via CRP WEB TV. Acesse: www.crpsp.org.br/aovivo

Programação:

08h30 às 09h00
Credenciamento e Café de Boas-vindas

09h00 às 09h15    Mesa de Abertura

Coordenação:
Jonathas Salathiel da Silva - Conselheiro do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP 06. Psicólogo com especialização em teoria psicanalítica. Aprimoramento na Clínica com o Bebê. Aprimoramento pelo PAVAS/USP em Violência Sexual. Atendimento Clínico com bebês, gestantes e adultos em geral. Acompanhante Terapêutico. Psicólogo de um CAPS - AD.

09h30 às 11h30    Mesa I: Análise sobre o genocídio da população negra e debate sobre a desmilitarização da polícia.

Mediação:
Marcio Farias - Possui graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente é mestrando em Psicologia Social na PUC SP. Pesquisador do NEGRI PUC SP (Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade) e Bolsista CNPq. Atua como Educador no Museu Afro Brasil. Tem experiência em estudos sobre pensamento social brasileiro e relações raciais; Marxismo, negritude e lutas de classes no Brasil; Juventude Cultura e Resistência; Psicologia, Educação, Arte e Cultura.

Debatedores:
Hamilton Borges dos Santos - Graduando em Direito, escritor e ator. É militante do movimento social negro, tendo iniciado sua militância nos anos 80 no Estado da Bahia. É responsável pela criação do Teatro Negro e Atitude, em Belo Horizonte/Minas Gerais, onde foi coordenador municipal do Movimento Negro Unificado organização nacional - e promoveu inúmeras ações permanentes de combate ao racismo e discussões sobre masculinidades. Articulador e coordenador da Campanha Reaja ou será morto, reaja ou será morta, contra o racismo, sexismo e todas as formas de discriminações correlatas e coordenador/articulador da Quilombo Xis - Ação Cultural Comunitária.
                                   
Alessandro de Oliveira dos Santos - Professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, atuando nas linhas de pesquisa: Processos Psicossociais Básicos - Relações Indivíduo-Grupo; e Psicologia Social, Saúde Coletiva e Política. Tem experiência nos temas: relações étnico-raciais e interculturais; desigualdades; direitos humanos; religiosidade; conflitos socioambientais; turismo e planejamento em saúde comunitária no Vale do Ribeira e Amazônia.

Dennis de Oliveira - Possui graduação em Comunicação Social. Habilitação em Jornalismo pela Universidade de São Paulo, mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor em Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa na Universidade de São Paulo. É coordenador do Centro de Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação, vice-líder do Alterjor (Grupo de Pesquisa de Jornalismo Alternativo e Popular) e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro), todos da Universidade de São Paulo. É professor do Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da EACH/USP e do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP.

13h00 às 15h00  Mesa II: Genocídio da Juventude Negra, pobre e periférica: questões objetivas e subjetivas em debate.

Mediação:
Lidiane A. de Araujo e Silva - Psicóloga (Universidade Presbiteriana Mackenzie), Especialista em Saúde da Família (Faculdade Santa Marcelina). Na saúde pública do município de São Paulo, trabalhou no CAPS AD da Freguesia/Brasilândia e atualmente está na Atenção Primária no NASF.

Debatedores:                                    
Catarina Pedroso - Psicanalista, membro do Margens Clínicas - grupo que atende vítimas de violência policial - e trabalha na Pastoral Carcerária com egressos do sistema prisional.

Rafael Alves Lima - Psicanalista. Graduado em Psicologia pelo IPUSP, Mestre em Psicologia Clínica pelo IPUSP. Professor do Depto. de Psicologia do Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (IELACHS-UFTM). Membro do grupo Margens Clínicas, que oferece atendimento psicanalítico a vítimas de violência policial. Membro da Rede Clínica do Laboratório Jacques Lacan (IPUSP) e do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP).

Joselicio Junior - mais conhecido como Juninho, é Jornalista e pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC/ECA-USP. É membro da coordenação Nacional do Círculo Palmarino, corrente do movimento negro, e presidente do Instituto de Estudos Afro-Brasileiro Manuel Querino. Tem uma atuação no campo cultural estando a frente do Ponto de Cultura "Circulo Palmarino de Periferia para Periferia valorizando a cultura afro-brasileira" que desenvolve atividades como Sarau Palmarino e o acervo Carolina Maria de Jesus.

15h00 às 18h00 Mesa III: Enfrentamento e resistência: cultura, identidade e negritude.
                                  
Mediação:
Bruno Simões - Conselheiro do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP 06. Psicólogo. Coordenador do Núcleo Questões da Terra/Etnia/Raça do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP 06.

Debatedores:
Veridiana S. Machado - Graduada em Psicologia pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Especialista em Psicoterapia Junguiana. Mestranda em Psicologia na Universidade de São Paulo - FFCLRP/USP. Pesquisadora do Laboratório de Etnopsicologia. Integrante do Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Raciais - CRP/BA. Colaboradora do Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Raciais - CRP/SP. Colaboradora do Grupo de Trabalho Psicologia e Povos Indígenas CRP/ SP. Dedica-se aos estudos das relações étnico - raciais, cultura e religiosidade.

Elizabete Figueroa: Psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Desde a graduação dedica-se ao estudo das relações etnico-raciais pelo prisma da Psicologia Social.

Bob Controversista - Presidente da Associação Cultural e Educacional Movimento Hip Hop Revolucionário. Coordenador da Casa da Cultura Hip Hop de Guarulhos e do Alto Tietê. Coordenador do Ponto de Cultura com P de Protagonismo. Membro do Conselho Gestor do Programa Juventude Viva.

Lilian Sankofa - mulher, preta, mãe, trabalhadora, militante do Coletivo de Esquerda Força Ativa, integrante do grupo de rap Sankofa, professora do Estado, atriz, poeta, tendo o hip hop como forma de resistência e enfrentamento às opressões de classe.

Debate

19h00     Encerramento

Informações e inscrições:
Departamento de Eventos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP 06
Tel.: 11 - 3061.9494, ramais 334, 336, 337, 355, 356 e 357.
E-mail: eventos02@crpsp.org.br
Site: www.crpsp.org.br/genocidio/

Estacionamento: Car Park
Rua Cardeal Arcoverde, 201, Jardim América, São Paulo, SP
Para obter o desconto, retire o selo na recepção do CRP SP.

Facebook Youtube do CRP SP Atendimento Site do CRP SP

"A falência de um modelo de gestão", por Silvio Caccia Bava

PICICA: "Depois da crise dos transportes públicos, em junho passado, que levou milhões de brasileiros às ruas em quatrocentas cidades do Brasil, temos agora a crise do fornecimento de água, e já se anunciam os apagões e a falta de luz pela sobrecarga do sistema existente e a falta de investimentos em sua melhoria. Sem falar da deterioração da telefonia, especialmente a móvel, cuja expansão não garantiu a qualidade dos serviços.
Tais crises na prestação de serviços públicos essenciais têm uma explicação mais prosaica, mundana, que não mobiliza as forças divinas.

O modelo de gestão pública, adotado principalmente a partir dos anos 1990 e que lançou e lança mão de privatizações, concessões e terceirizações, orienta-se para viabilizar o maior lucro possível para essas operadoras, mesmo sacrificando o interesse público e as necessidades básicas dos cidadãos. Nesse modelo, o Estado é capturado pelos interesses dos poderes econômicos e atua em favor deles. A simbiose entre governos e empresas se aprofunda com o financiamento por empresas privadas das campanhas eleitorais."

A falência de um modelo de gestão
Claudius
por Silvio Caccia Bava

Como é que chegamos ao ponto de faltar água, um bem público essencial, nas torneiras de muitas de nossas casas? O racionamento já está em vigor em regiões como a de Campinas, no interior, e na Grande São Paulo, mesmo que o governo do estado se recuse a reconhecer oficialmente essa política. No Rio de Janeiro, bairros como Brás de Pina e Cordovil, na zona norte, e Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste, sofrem há meses com a falta de água. E não há perspectivas de curto prazo para a solução desse problema. Especialistas na área alertam que o rodízio no fornecimento de água pode se tornar regular, como é hoje o rodízio da circulação dos automóveis.


Com mais essa crise instalada num ano eleitoral, procuram-se os responsáveis. E a conta cai no colo de São Pedro, que não nos mandou um volume suficiente de chuvas. Na verdade, São Paulo precisa de mais um sistema de fornecimento de água do tamanho do Sistema Cantareira, que abastece 9 milhões de pessoas. No Rio de Janeiro é a mesma coisa: a água disponível não dá para todos. Além do fornecimento de água, precisamos de políticas efetivas de preservação dos recursos hídricos e de melhor aproveitamento da água disponível.

A necessidade existe, mas os investimentos não são feitos. Em 2013, dos R$ 759,4 milhões previstos para serem investidos em saneamento pelo governo do estado do Rio de Janeiro, 16,8% (R$ 127,6 milhões) foram efetivamente gastos. O mesmo acontece em São Paulo, onde a Sabesp deixou de investir R$ 815 milhões, entre 2007 e 2011, nas redes de água e esgoto previstos nos contratos firmados com prefeituras paulistas. “A Arsesp [Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo] considera que a subexecução desses investimentos contratuais criou um benefício extraordinário, que foi apropriado pela Sabesp e, portanto, deverá ser devolvido aos usuários no ciclo tarifário seguinte (2013-2016)”.1

Depois da crise dos transportes públicos, em junho passado, que levou milhões de brasileiros às ruas em quatrocentas cidades do Brasil, temos agora a crise do fornecimento de água, e já se anunciam os apagões e a falta de luz pela sobrecarga do sistema existente e a falta de investimentos em sua melhoria. Sem falar da deterioração da telefonia, especialmente a móvel, cuja expansão não garantiu a qualidade dos serviços.
Tais crises na prestação de serviços públicos essenciais têm uma explicação mais prosaica, mundana, que não mobiliza as forças divinas.

O modelo de gestão pública, adotado principalmente a partir dos anos 1990 e que lançou e lança mão de privatizações, concessões e terceirizações, orienta-se para viabilizar o maior lucro possível para essas operadoras, mesmo sacrificando o interesse público e as necessidades básicas dos cidadãos. Nesse modelo, o Estado é capturado pelos interesses dos poderes econômicos e atua em favor deles. A simbiose entre governos e empresas se aprofunda com o financiamento por empresas privadas das campanhas eleitorais.

A situação não permite remendos no modelo atual. Impõe-se uma discussão de fundo para garantir direitos e assegurar para todos o fornecimento de serviços públicos essenciais de qualidade. A premissa é que esses serviços são bens públicos comuns, são de todos, e não propriedade de ninguém. Não podem, portanto, ser vendidos por empresas privadas, cujo objetivo maior é o lucro.

Transportes coletivos, água, luz, gás, saúde e educação devem se converter em bens públicos comuns, geridos diretamente pelo Estado e fornecidos gratuitamente para toda a população, o que significa que não é o usuário que paga diretamente a conta, e sim os impostos arrecadados de todos.

Evidentemente, um Estado em simbiose com as empresas não é capaz de fazer isso. É um Estado corrupto, que favorece interesses privados. Garantir os direitos das maiorias e a prestação de serviços públicos essenciais de qualidade requer a reapropriação da máquina pública pela cidadania, isto é, uma profunda democratização do modelo de gestão, em que a participação cidadã, pela via de plebiscitos e referendos e pela presença em canais institucionais de participação, possa definir os investimentos, ou seja, quem paga a conta, e exercer o controle social das políticas públicas.

Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil

1  Relatório técnico da Arsesp de abril de 2014, que autoriza o aumento das tarifas de água em 5,4% a partir de maio. A Sabesp, em função da crise, declara que o reajuste será praticado em data oportuna.

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

"Pelo Direito de Manifestação, Pelo Direito de Ir e Vir", por Tainá Moraes

PICICA: "preocupados com o trânsito, quinze importantíssimos, conhecidíssimos & poderosíssimos acadêmicos assinaram um manifesto contra as frequentes manifestações que assolam o país. mas a plebe rude ficou confusa e quer saber: se os governos já estão descendo o sarrafo nos manifestantes, o que eles, intelectuais, sugerem? um novo ai-5? execuções sumárias? prisão perpétua? a massa da mandioca exige que os universitários, para fazerem jus ao título, têm obrigação de dizer como, na prática, se concretizará o tal “basta”. o populacho ignaro também quer saber porque eles nunca se manifestaram ou fizeram abaixo-assinado contra as péssimas condições do transporte público no brazyl, condições estas que ferem, diariamente, o direito de ir e vir da maioria dos brasileiros."

Pelo Direito de Manifestação, Pelo Direito de Ir e Vir

Tava todo mundo no avião de Lost... O manifesto veio de lá...


Foto: Leonardo Carrato



preocupados com o trânsito, quinze importantíssimos, conhecidíssimos & poderosíssimos acadêmicos assinaram um manifesto contra as frequentes manifestações que assolam o país. mas a plebe rude ficou confusa e quer saber: se os governos já estão descendo o sarrafo nos manifestantes, o que eles, intelectuais, sugerem? um novo ai-5? execuções sumárias? prisão perpétua? a massa da mandioca exige que os universitários, para fazerem jus ao título, têm obrigação de dizer como, na prática, se concretizará o tal “basta”. o populacho ignaro também quer saber porque eles nunca se manifestaram ou fizeram abaixo-assinado contra as péssimas condições do transporte público no brazyl, condições estas que ferem, diariamente, o direito de ir e vir da maioria dos brasileiros.

heim, Simon Schwartzman? heim, Alba Zaluar? a ralé quer saber.

Cá está o manifesto. Mas recomendo cuidado ao ler o texto, é muito tocante. http://tinyurl.com/k6nawsr

Os 15:

Alba Zaluar UERJ
Carlos Alberto de Bragança Pereira USP
Dani Gamerman UFRJ
Elizabeth Balbachevsky USP
Gauss Moutinho Cordeiro UFPE
Glaura C. Franco UFMG
Helio S. Migon UFRJ
Luiz Felipe de Souza Coelho UFRJ
Manuel Thedim IETS
Marcio da Costa UFRJ
Maria Alice Nogueira UFMG
Maria Lígia Barbosa UFRJ
Nelson do Valle Silva UERJ
Renan Springer de Freitas UFMG
Simon Schwartzman IETS

___________

Rapidinhas da petição pública:

“…há um claro conflito entre o legítimo direito de expressão de opiniões, reivindicações, de manifestar apoio ou repúdio ao que quer que seja e o não menos importante direito de ir e vir.”
“Raro o dia em que não se veem nos meios de comunicação notícias sobre as vidas de milhões de pessoas transtornadas por conta de manifestações públicas que adotam como tática o bloqueio de grandes vias de transporte.”

“Isso não é democracia, mas prepara sua destruição.”

“É deprimente e alarmante ter as forças da ordem pública assistindo passivamente ou mesmo contribuindo com o transtorno pelo bloqueio de grandes vias, preferencialmente nos horários de rush.”

“Conclamamos à reação contra a escalada antidemocrática das manifestações que não respeitam os direitos elementares dos cidadãos.”

“É hora de um BASTA!”

Fonte: Coletivo Carrancas

maio 29, 2014

"O Adeus do Subcomandante Marcos: notas sobre a Imanência e Fascismo como Apatia", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Quem era Marcos? Um personagem, um ser sem rosto, sem nome, sem patente: sua liderança, simbólica, estava posta sob o comando coletivo. Marcos seria o nome de um colega tombado na batalha, mas poderia ser o ajuntamento dos nomes das localidades onde primeiro se levantaram os zapatistas, no pobre estado mexicano de Chiapas. Quem seria Marcos de jure, mesmo que o governo mexicano tenha chegado a possível verdade, pouco importa. Um subcomandante. Os guerrilheiros tecnizados usavam a nascente Internet, mas se declaram índios. Estava na imanência das lutas e na imanência das lutas Marcos se desfez -- ao se refazer."

O Adeus do Subcomandante Marcos: notas sobre a Imanência e Fascismo como Apatia


Esta semana, o Subcomandante Marcos anunciou seu fim. Sua despedida, sua revolta ao corpo coletivo do qual jamais transcendeu, pondo a seguir um ciclo, um movimento de re-volta e re-torno -- um desaparecimento por afirmação, Marcos será agora Galeano, companheiro morto recentemente, na imanência pela imanência. Paradoxalmente, a extrema-direita cresceu na eleições do Parlamento Europeu,  foi ao segundo turno das eleições colombianas, os neoliberais venceram na Ucrânia e os conservadores hindus chegaram ao poder na Índia poucos dias antes.
Marcos era o porta-voz mascarado, de origem enigmática e ideias firmes do Exército de Libertação Zapatista -- possivelmente, o primeiro movimento de relevo do ciclo de lutas da globalização: eram tempos agrestes quando eles surgiram, anunciava-se o Fim da História, seu México estava sendo tragado pelos EUA  e boa parte da América Latina, após conseguir se libertar das ditaduras militares, se via agora entrando no ciclo neoliberal que devorava as esperanças a respeito de suas jovens democracias. 
Quem era Marcos? Um personagem, um ser sem rosto, sem nome, sem patente: sua liderança, simbólica, estava posta sob o comando coletivo. Marcos seria o nome de um colega tombado na batalha, mas poderia ser o ajuntamento dos nomes das localidades onde primeiro se levantaram os zapatistas, no pobre estado mexicano de Chiapas. Quem seria Marcos de jure, mesmo que o governo mexicano tenha chegado a possível verdade, pouco importa. Um subcomandante. Os guerrilheiros tecnizados usavam a nascente Internet, mas se declaram índios. Estava na imanência das lutas e na imanência das lutas Marcos se desfez -- ao se refazer.
Em boa parte dos outros processos eleitorais nos quais triunfou a extrema-direita, um clima de indisfarçável apatia toma conta do cenário. O fascismo será sempre a atitude transcendente e totalizadora do Sistema se manter, a qualquer custo -- apoiado por pessoas suficientemente exauridas, física e mentalmente, para lhe servirem de anteparo.  No mundo da modernidade, o fascismo era a resolução negativa do homem do medo e da esperança; hoje, é a radicalização do desespero e do delírio paranoico securitário. A eleição do fascismo não é fruto da falta de "pragmatismo", de "prudência", de "estratégia", mas da própria apatia social e política, sobretudo entre quem poderia mudar algo.
Se o Subcomandante Marcos foi-se, como no "fim" de uma zona autônoma temporária, uma vontade de eterno [na potência] marca a complexa maquinaria da qual decorre, e se sustenta, as variadas formas de neofascismo -- o fundamentalismo hindu, o uribismo narco-bélico, o racismo dos Le Pen. A ideia de uma eternidade na potência, um imobilismo primeiro, como a máquina primordial do aristotelismo se associa com um movimento, e um jeito de garantir um certo movimento: num mundo onde o capital é plenamente livre, nenhum tipo de fluxo, nem mesmo o trabalho, pode deixar de ser represado.

Fonte: O Descurvo