fevereiro 28, 2015

"House of Cards, retrato de nossa época?" Por Daniel D’Addario

PICICA: "Ao revelar dramaticamente como a política distanciou-se dos cidadãos, seriado retrata tempo em que vivemos e assume um certo caráter shakespeariano"

House of Cards, retrato de nossa época?


Frank Underwoodf, protagonista da trama interpretado por Kevin Space
Frank Underwoodf, protagonista da trama interpretado por Kevin Spacey

Ao revelar dramaticamente como a política distanciou-se dos cidadãos, seriado retrata tempo em que vivemos e assume um certo caráter shakespeariano

Por Daniel D’Addario, na Salon | Tradução Cauê Seignemartin Ameni

“Bem antes de o Episódio 1 ter sido escrito, o seriado nos foi apresentado como se você fosse Lady Machbeth de Ricardo III”

Assim Robin Wright, astro de House of Cards, usou grandes referências inglesas para descrever a série de TV – e seu relacionamento com o personagem de Kevin Spacey – em recente mesa-redonda com jornalistas. Essa comparação é tão antiga quanto a própria trajetória do seriado, que estreou como uma série de  TV britânica adaptada posteriormente no canal Netflix. Spacey, que encenou como Ricardo III em 2011 e 2012, afirmou que o ponto central da série está totalmente relacionado com a peça de Shakespeare.

Molly Parker, que interpreta um parlamentear recém-eleito, na segunda temporada, disse na mesa-redonda: “sinto que o seriado tem um quê shakespeariano, é um tipo de Ricardo III – e refere-se, na temática a Macbeth”.

Isso parece, à primeira vista, risível. House of Cards foi indicado para Emmys e Globos de Ouro, mas compará-lo com a arte mais duradoura do cânone ocidental é um exagero — assim como comparar The Wire a um romance de Charles Dickens, o que também acontece com frequência.


House of Cards é de pequeno calibre, em certo sentido. Mostra-nos as maquinações políticas, mas ninguém percebe que a nação será significativamente diferente se tudo o que o pensamento de Frank Underwood maquina ocorrer. De certa forma, porque suas posições politicas parecem em grande parte destinadas a preservar seu poder. As negociações com o sindicato dos professores e as tramas com os governos estaduais aparecem como enredos menores, o que revela o efeito do poder sobre a alma mas não, exatamente, o que o poder pode realizar.

Mas isso não se encaixa, de certa forma, com o espirito do nosso tempo? De uns anos para cá, House of Cards parece uma encenação histórica sobre nossa época, prenunciando a completa desconexão entre os governos e os cidadãos. Suas fendas – o grau em que, numa série sobre política, os políticos são tão irreais – ilustra bem a baixíssima confiança nos governos. “Esse tipo de poder é muito transparente e muito shakespeariano, pois está relacionado a ganância”, disse Wright sobre o poder político. Na verdade, o seriado não descreve o efeito corrosivo do poder sobre uma nação, mas sobre uma única pessoa. Talvez, como Shakespeare, os roteiristas de House of Cards tenham capturado seu tempo de uma maneira em que as futuras gerações possam estudar.

E a alma corroída no centro do seriado, se não digna de Shakespeare, também não é um mero derivativo dele. Há algo em jogo que o escritor reconheceria. O personagem Frank Underwood é um arquétipo que não muda, mas vai se tornando mais complexo no decorrer do seriado, relevando novas faces ao público. Mas Ricardo III, um personagem maquiavélico, não é o único arquétipo na obra de Shakespeare. Portia, [a heroína de O Mercador de Veneza] é, no fundo, boa. Romeu é apaixonado e dramático. Hamlet, indeciso. Shakespeare foi um mestre das personalidades por ter sido o primeiro a pesquisá-las tão profundamente. Os tipos que ele usou parecem familiares quando comparamos a pureza manipuladora e a sede de poder de Frank Underwood, com o tipo bom e simples que ele aparenta ser.

No tempo de Shakespeare, seu trabalho era tão popular quanto o jogo mais sofisticados da época. House of Cards não esta inventando a concepção moderna da humanidade, como Shakespeare fez. Isso só pode ser feito uma vez. Nessa obra de arte popular, à qual flores ou tomates serão lançados, via Twitter, temos algumas verdades óbvias e elementares através de um enredo complexo, projetado para manter a audiência pelo maior tempo possível. A linguagem mudou, mas o método – tornar visível a realidade, por meio de personalidades especificas – nem tanto. Comparar House of Cards com Shakespeare não é pretensioso. Na verdade, deveríamos comparar mais coisas com Shakespeare. Se a obra do escritor é tão grandiosa, deveríamos procurar suas digitais em todos os lugares, e nos alegrar quando entendemos por que um seriado da TV é tão envolvente, a ponto de sacrificarmos um longo final de semana para nos empanturrarmos dele.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

Entrevista Coletiva com Eliane Brum

PICICA: Entrevista Coletiva recebeu Eliane Brum -- jornalista, ex-colunista do site de ÉPOCA, atual colunista do jornal El País (Brasil) e autora de cinco livros, entre eles "O Olho da Rua" (Globo) e o romance "Uma Duas" (Le Ya). Saiba como é seu processo de apuração e vivência com as personagens para contar suas histórias.

Entrevista Coletiva com Eliane Brum 



A Coluna Prestes, segundo a jornalista Eliane Brum

PICICA: Depois de 70 anos da Coluna Prestes, Eliane Brum, uma jornalista com uma incomum capacidade de audição, refez todo o trajeto e colheu histórias surpreendentes, omitidas pela historiografia de esquerda.

A Coluna Prestes, jornalista Eliane Brum, Provocações TV Cultura 07-02-12

Entrevista com o historiador Daniel Aarão Reis (OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA)

PICICA: "O historiador pesquisou nos arquivos da Internacional Comunista mas esclarece que não conseguiu acessar arquivos do Estado Soviético, que permanecem como importante fontes para futuras biografias sobre o exílio de Prestes"

BIOGRAFIA

Entrevista com o historiador Daniel Aarão Reis

Alberto Dines | Programa nº 762 | 24/02/2015 |



O Observatório da Imprensa apresenta uma entrevista com Daniel Aarão Reis, autor da biografia “Luis Carlos Prestes – um revolucionário entre dois mundos “. O historiador,  autor mais de 30 livros, se debruçou na trajetória do 'Cavaleiro da Esperança' que foi líder militar, estrategista político, patriarca do Comunismo e da esquerda no Brasil. No programa, ele revela detalhes da vida de Prestes e como o líder  ajudou a construir a história do país. Aarão Reis fala do movimento tenentista de 22, do qual Prestes participou, da decepção e saída do Exército, de sua adesão ao Comunismo no final dos anos 20, da Intentona de 1935 e da liderança do PCB que acabou assumindo. O historiador pesquisou nos arquivos da Internacional Comunista mas esclarece que não conseguiu acessar arquivos do Estado Soviético, que permanecem como importante fontes para futuras biografias sobre o exílio de Prestes. Aarão destaca que, pela experiência negativa de 35, Prestes sentiu que não haveria condições para a luta armada nos anos 60.

fevereiro 27, 2015

"Sniper, Velho Oeste no Oriente Médio". Por José Geraldo Couto

PICICA: "Pesa sobre Clint Eastwood um equívoco virtualmente insolúvel. Como ele é um cidadão declaradamente conservador (chegou a ser prefeito de Carmel, na Califórnia, pelo Partido Republicano), seus filmes são vistos – ou antes, não vistos – por muita gente como expressão do reacionarismo norte-americano, com tudo o que isso implica: direitismo político, militarismo, machismo, carolice.

Esse silogismo rasteiro funciona principalmente diante de obras que tratam de temas ideologicamente controversos, como a biografia de J. Edgar Hoover ou, no atual Sniper americano, a trajetória militar do atirador de elite Chris Kyle (Bradley Cooper), sagrado herói nacional depois de matar 160 pessoas no Iraque durante a intervenção americana.

Felizmente, Sniper é muito mais sutil e perspicaz que seus “críticos automáticos”. Quem acompanha a carreira de realizador de Clint Eastwood sabe que, pelo menos desde Os imperdoáveis (1992), ele vem problematizando certos valores centrais da cultura americana e, em particular, a figura do herói justiceiro. Seu novo filme é um passo adiante nesse processo."

Sniper, Velho Oeste no Oriente Médio


POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 20.02.2015


Pesa sobre Clint Eastwood um equívoco virtualmente insolúvel. Como ele é um cidadão declaradamente conservador (chegou a ser prefeito de Carmel, na Califórnia, pelo Partido Republicano), seus filmes são vistos – ou antes, não vistos – por muita gente como expressão do reacionarismo norte-americano, com tudo o que isso implica: direitismo político, militarismo, machismo, carolice.

Esse silogismo rasteiro funciona principalmente diante de obras que tratam de temas ideologicamente controversos, como a biografia de J. Edgar Hoover ou, no atual Sniper americano, a trajetória militar do atirador de elite Chris Kyle (Bradley Cooper), sagrado herói nacional depois de matar 160 pessoas no Iraque durante a intervenção americana.


Felizmente, Sniper é muito mais sutil e perspicaz que seus “críticos automáticos”. Quem acompanha a carreira de realizador de Clint Eastwood sabe que, pelo menos desde Os imperdoáveis (1992), ele vem problematizando certos valores centrais da cultura americana e, em particular, a figura do herói justiceiro. Seu novo filme é um passo adiante nesse processo.

Protótipo do herói

De certa maneira, Sniper dialoga subterraneamente com o próprio Os imperdoáveis. Pode ser descrito como um faroeste urbano no Iraque. (Não por acaso, a certa altura do filme, ao chegar a uma cidade iraquiana particularmente conturbada, um soldado diz: “Aqui é o Velho Oeste do Oriente Médio”.) Nesta leitura, Chris Kyle seria um legítimo herdeiro ou avatar de Bill Munny, o pistoleiro condenado a matar “tudo o que anda ou rasteja” no western de 1992.

Na narrativa de Eastwood, Kyle é o protótipo do herói americano forjado na saga da conquista do Oeste: forte, corajoso, altruísta, temente a Deus, reto, íntegro. Íntegro como uma mula, na verdade. Uma espécie de autômato ou zumbi, cumprindo a missão para a qual foi programado desde a infância, desde o primeiro tiro de rifle disparado no primeiro animal, sob a supervisão severa e protetora do pai (numa das cenas iniciais do filme).

O Kyle de Sniper carrega nas costas, sem se dar conta, toda uma mitologia. Nascido no coração do Texas, queria ser um caubói, mas não há mais lugar para os caubóis, a não ser nos rodeios, e ele acaba se colocando a serviço da “defesa da pátria” contra os inimigos externos. “Defendo meu país porque é o melhor lugar do mundo”, diz ele, quando ainda não tinha sequer saído do Texas e mal sabia da existência de outros países.

A grandeza do filme de Eastwood está em mostrar a continuidade entre o culto da virilidade, a leitura moralista e normativa da Bíblia, a vocação expansionista – enfim, tudo o que caracteriza o mito do Oeste – e as apocalípticas intervenções norte-americanas atuais.

Da cavalaria à máquina de guerra



Todo o problema de Chris Kyle é encarnar o herói magnânimo e voluntarioso num contexto em que a luta entre mocinhos e bandidos complicou-se enormemente e a cavalaria transformou-se em gigantesca máquina de guerra. Neste sentido, as primeiras imagens são eloquentes: um tanque americano visto de muito perto, com todas as suas mortíferas engrenagens em ação.

Sem entender onde estão e menos ainda o que fazem ali, Kyle e seus companheiros continuam a utilizar a linguagem antiga: chamam indistintamente os iraquianos de “selvagens” e os combatentes inimigos de “bad guys”. Eastwood enfatiza o paralelo ao filmar o avanço dos comboios militares como incursão de carruagens em território indígena, e os confrontos de rua como tiroteios entre os aliados do xerife e a gangue dos malfeitores escondidos em becos e telhados.

Não falta nem mesmo o duelo final entre o mocinho e o bandido-mor, o exímio atirador Mustafa (Sammy Sheik), que o filme apresenta como “campeão olímpico de tiro”, adicionando mais uma característica central da cultura americana, a competitividade.

Idiota rural

Mesmo depois da voltar da guerra, o protagonista – chamado de “A Lenda” pelos companheiros e pela mídia – segue sendo um idiota rural incapaz sequer de perceber que não passou incólume pela experiência de matar 160 pessoas. Sua tragédia pessoal é o descompasso entre a ideia que faz de si mesmo – um homem em paz com a consciência por ter “cumprido sua missão” – e a ruína humana em que se transformou. Por trás da aparente “saúde de vaca premiada”, para usar a expressão de Nelson Rodrigues, há um homem em frangalhos. É o que restou do mito do herói americano no mundo contemporâneo. O filme de Clint Eastwood não é um épico, mas um réquiem.


José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.

Fonte: Blog do IMS

"O trabalho nas telas", por Thomaz Wood Jr.

PICICA: "Documentários indicados ao Oscar fazem refletir sobre o sentido da labuta"

O trabalho nas telas

Documentários indicados ao Oscar fazem refletir sobre o sentido da labuta 
O Sal
Cena de O Sal da Terra, de Wim Wenders

Entre os cinco documentários indicados ao Oscar de 2015 encontram-se duas obras sobre fotografia: The Salt of the Earth, codirigido por Wim Wenders e Juliano Salgado, e Finding Vivian Maier, codirigido por John Maloof e Charlie Siskel. Além de tratar de fotografia, os dois filmes expõem, nos entrequadros, a tempestuosa relação entre o homem e o trabalho.

The Salt of the Earth (que este escriba não assistiu) mostra a vida e a fabulosa obra fotográfica do brasileiro Sebastião Salgado. Nascido em Aimorés (MG), em 1944, Salgado graduou-se em economia e exilou-se na Europa durante o período militar. A partir da base parisiense viajou pelo mundo, trabalhando para organizações internacionais. No início da década de 1970, desistiu de uma boa oferta de trabalho e aventurou-se nas trilhas do fotojornalismo, uma ocupação totalmente nova para ele. Trabalhou para as grandes agências do mundo, inclusive a mitológica Magnum, antes de criar, com a esposa e colaboradora, sua própria agência.

Seguiram-se projetos de grande vulto, que geraram exposições e livros. Estão sempre presentes em sua obra a visão humanista e a preocupação com temas sociais: a pobreza, a injustiça, os conflitos pela terra, as migrações e o trabalho. Seu último projeto, Genesis, resultou de quase uma década de viagens ao redor do mundo, em busca de paisagens intocadas pelo homem e de comunidades que ainda vivem segundo tradições ancestrais. Em entrevistas, Salgado declarou que, antes de Genesis, vivia um momento difícil, de depressão e descrença, motivadas pelo contato com as mais contundentes tragédias humanas do planeta. O projeto representou uma reviravolta positiva na vida e no trabalho do fotógrafo.

Finding Vivian Maier (assistido por este escriba) traz duas narrativas paralelas: apresenta a obra da fotógrafa norte-americana e conta as aventuras do codiretor e coprodutor John Maloof para descobrir a pessoa por trás das imagens. Tudo começou quando Maloof arrematou, por acaso, em um leilão, uma caixa cheia de negativos de fotografia. Seguiu-se a descoberta de uma obra ímpar, cujas imagens lembram grandes nomes da fotografia do século XX, como Diane Arbus, Robert Frank, Weegee e Dorothea Lange. Ocorre que Maier nunca mostrou ou divulgou suas fotografias. Sobreviveu como babá, aproveitando seus momentos de folga e suas férias para fotografar.

A investigação de Maloof revela um pouco de Maier e deixa outro tanto por conta da imaginação da plateia. Ela era gentil com as crianças, porém eventualmente cruel. Vivia reclusa e era um pouco excêntrica. Tinha uma personalidade reservada e morreu solitária, pouco antes de ter sua obra descoberta por Maloof.

O trabalho é fonte de prazer e sofrimento, realização e frustração. Um trabalho que faz sentido, afirmam os especialistas, é aquele que permite a autorrealização e o aprendizado, que conseguimos fazer bem-feito e que gera algo socialmente útil, que garante o sustento e favorece as relações com os nossos pares. Na vida real, quando encontramos alguns desses requisitos, outros nos escapam, mas continuamos a persegui-los.

The Salt of the Earth e Finding Vivian Maier retratam duas trajetórias diferentes de busca do sentido do trabalho. Sebastião Salgado projeta em deslumbrantes imagens suas convicções, sua sensibilidade e a técnica de um incansável artesão. Tem na companheira Lélia Wanick Salgado o par ideal, a construir a ponte entre a ideia e o projeto, entre o registro e a audiência. Especular sobre a enigmática Vivian Maier é um risco, mas não deixa de ser sedutor vê-la como profissional de pureza singular, a preservar seu trabalho do mundo ao redor, um mundo que poderia ignorá-lo ou celebrá-lo, ou pior, nele interferir.

Sorte nossa que Salgado enfrentou seus fantasmas e continua a nos despertar profundas emoções e reflexões. Sorte nossa que Maier preservou durante décadas sua capacidade de captar com sensibilidade e sobriedade o cotidiano, e agora nos ofertou um magnífico presente. Talvez ela seja desconcertante porque, como sugeriu Rose Lichter-Marck, na revista The New Yorker, Maier não se ajusta à ideia que fazemos do que um artista, uma pessoa ou uma mulher deveriam ser. Ela aparentemente não se interessava por dinheiro ou por mostrar suas imagens. Porém, garantiu a si mesma total liberdade para fazer seu trabalho: fotografar.


 

"Alternativas ao deserto da polarização da representação política". Por Marcelo Castañeda

PICICA: "Temos que nos voltar para o Brasil menor, aquele do cotidiano e das lutas, na medida em que o sonho do Brasil Maior cultivado por Lula e Dilma ruiu com o escândalo de corrupção da Petrobrás. A crise na principal empresa do país, de capital aberto, mas sob controle majoritário do governo federal, não vem de hoje, os tucanos que o digam, mas a sua crise simboliza a ruína do neodesenvolvimentismo que tentou ser intensificado durante o primeiro governo Dilma e que teve nas megabarragens, megaprojetos e megaeventos seus símbolos principais, com Eike Batista, agora empresário falido e penhorado. Junte-se a isso, por exemplo, o recente cancelamento de seis projetos de hidrelétricas na Amazônia. Não por conta de qualquer preocupação ambiental, mas por falta de capacidade de investimento, e teremos o cenário de ruína deste Brasil Maior que se pretendia onipotente. O atual governo acerta quando falha — seria irônico não fosse trágico."

Alternativas ao deserto da polarização da representação política

Por Marcelo Castañeda, UniNômade

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Temos que nos voltar para o Brasil menor, aquele do cotidiano e das lutas, na medida em que o sonho do Brasil Maior cultivado por Lula e Dilma ruiu com o escândalo de corrupção da Petrobrás. A crise na principal empresa do país, de capital aberto, mas sob controle majoritário do governo federal, não vem de hoje, os tucanos que o digam, mas a sua crise simboliza a ruína do neodesenvolvimentismo que tentou ser intensificado durante o primeiro governo Dilma e que teve nas megabarragens, megaprojetos e megaeventos seus símbolos principais, com Eike Batista, agora empresário falido e penhorado. Junte-se a isso, por exemplo, o recente cancelamento de seis projetos de hidrelétricas na Amazônia. Não por conta de qualquer preocupação ambiental, mas por falta de capacidade de investimento, e teremos o cenário de ruína deste Brasil Maior que se pretendia onipotente. O atual governo acerta quando falha — seria irônico não fosse trágico.

O revés do neodesenvolvimentismo veio a reboque de uma austeridade econômica que nos faz sentir o clima da década de 1990 no ar: cortes e mais cortes nos orçamentos federal e estaduais, com a tesoura de Levy, quase um primeiro-ministro, servindo de exemplo. Junte-se a isso, na esfera política, uma polarização sempre reavivada entre PT e PSDB, tendo o PMDB como fiel da balança de uma governabilidade sempre instável. A crise é o paradigma dos bons negócios: onde muitos perdem, uns poucos ganham e é assim que o capital segue triunfante. É com este cenário que tento aqui buscar uma análise da derrocada política e econômica em que estamos inseridos neste começo de 2015, o que chamo de deserto da polarização da representação política, buscando vislumbrar saídas para não ficar somente no terreno da crítica.

Essas saídas do deserto passam pelas lutas que continuam acontecendo, apesar da fragmentação concomitante com o processo de restauração que a repressão, a Copa do Mundo e as eleições comandaram durante o ano de 2014: a revolta se instaura nas favelas do Rio contra a militarização/pacificação, revolta de professores, funcionários públicos e caminhoneiros do Paraná contra a austeridade, nas ruas de São Paulo e Rio de Janeiro contra o aumento das passagens de ônibus, nas formas biopolíticas que ousam desafiar o biopoder. São essas lutas que podem vir a contaminar as cidades e o país por mais democracia. As lutas autônomas darão o tom das possíveis saídas a construir-se no deserto da polarização da representação política que se instaurou em 2015.

E não estou aqui falando de possíveis protestos pelo impeachment da presidenta ou reações a este movimento, que já surgem de forma antecipada, em ambos os casos renovando a polarização que nos governa há mais de 20 anos. Fosse com o PSDB ou mesmo Marina Silva, o governo federal estaria aplicando o mesmo receituário de austeridade, talvez com gritos de “eu avisei: eles eram neoliberais”. Aliás, essa reação em tom de guerra, bradada por Lula, clamando pelo “exército de Stédile” vem reafirmar a irresponsabilidade do PT. Tal reação intensificou-se a partir de junho de 2013, quando os protestos foram desqualificados pela esfera governista como se fosse um “golpe da direita”, reproduzindo um binarismo artificioso e mistificado, bem como justificando a opção preferencial pelo poder em detrimento à potência das lutas. O governo e o PT moveram-se assim cada vez à direita que tanto invoca como inimigo externo, como demonstram as primeiras tristes ações governamentais em 2015. O problema começa quando a austeridade é aplicada com afinco pela coalizão comandada pelo PT, praticante hoje do neoliberalismo.

Mas como criticar a onda vermelha que contagiou corações e mentes no final de outubro, tornando-os quase estéreis em seu apego a símbolos sagrados em vez de ações reais de mudança? A saída mais simples é dizer que todos os problemas começaram com o PSDB e FHC. Ao reforçar essa polarização perniciosa da representação, esvaziadora de qualquer debate e comprometedora da construção de outras vias, somos colocados cada vez mais num deserto de alternativas. Não é, portanto, pela repolarização em 2015 que pretendo caminhar. É hora de romper com o simplismo esquemático da polarização, que se perpetua como um moto contínuo entre dois lados que se definem pela negação belicosa do outro. Ou alguém acha que o PSDB governar há mais de 20 anos São Paulo é pouca coisa? Ou então: até que ponto seria legítimo pedir o impeachment de Beto Richa (PSDB-PR), sem achar que isso não vai resvalar no mesmo pedido para Dilma Rousseff?

Não vejo saída por dentro das instituições atuais, e aqui incluo os próprios movimentos sociais e o campo ativista de um modo geral, quando arrastados pelo redemoinho de subjetividades, produzido pela polarização molar, desde cima. As alternativas só podem ser construídas a partir de lutas autônomas que consigam passar inteiramente ao largo da polarização PT/PSDB. Não podemos nunca esquecer, o teatro da polarização tem o PMDB como uma espécie de regente necessário. Sair da polarização e da pemedebização vigentes, bem como criar novas instituições e também movimentos, é o desafio para sair do deserto em que estamos. Sem saber muito bem se encontraremos um oásis.
Precisamos de novas experiências de organização e instituições e isso leva tempo e dá trabalho, pois não existem fórmulas, mas uma construção aberta, precária, e que envolve desejo e afeto de quem está disposto a fazer e a experimentar. E até errar, mais até do que simplesmente pensar ou diagnosticar. Estamos no momento de prognósticos mais ações.

Neste cenário, talvez, a cidadania seja uma ideia-chave para tatear pela saída. De que falamos quando pensamos em cidadania? A nossa constituição vilipendiada pode dar boas pistas de como podemos trabalhar nos marcos da legalidade, para constituir um movimento cidadanista que se faça em múltiplas escalas.

Ir além da polarização significa pensar uma democracia que seja constituída de encontro ao simulacro que se apresenta atualmente e mata diariamente nas favelas do Rio, ocupa o complexo da Maré com o exército, processa criminalmente uma geração de ativistas não alinhados com o governo no Rio de Janeiro, e cuja política econômica de austeridade vai afetar, principalmente, os mais pobres. Sair do deserto é a única alternativa, sendo que não se trata, como imaginou Bruno Cava recentemente, de um labirinto onde podemos nos perder. No entanto, as infinitas possibilidades do deserto podem nos deixar tontos, perdidos e com sede, do mesmo modo.

Em conclusão, o que melhor podemos fazer é caminharmos juntos com a indignação que paira no ar e alimenta a esperança de construir alternativas, institucionais inclusive. Ir devagar, mas urgentemente estabelecendo o que queremos: um com outra, mais outro e mais uma e mais até sermos uma ciranda de círculos cidadãos que se configurem algo além do que está falido. Esse é um projeto de Brasil menor, do cotidiano e das lutas, para irmos além do deserto da polarização e construirmos democracia de fato.


Marcelo Castañeda é sociólogo, pós-doutorando pela UERJ, participa da UniNômade e do Círculo de Cidadania Rio

Fonte: UniNômade

"Que força tem Basaglia?", por Hiram Firmino (Revista Ecológico)

PICICA: "Se estivesse vivo, o maior defensor do fim dos manicômios veria Minas como o estado brasileiro mais revolucionário na assistência pública aos doentes mentais. Mas a luta continua"

Que força tem Basaglia?

Se estivesse vivo, o maior defensor do fim dos manicômios veria Minas como o estado brasileiro mais revolucionário na assistência pública aos doentes mentais. Mas a luta continua

Hiram Firmino - redacao@revistaecologico.com.br
Seminário 35 anos de Basaglia no Brasil – A Marca de uma Prática Revolucionária - Crédito: CRPMG
Seminário 35 anos de Basaglia no Brasil – A Marca de uma Prática Revolucionária - Crédito: CRPMG


Foi emocionante, de se chegar às lágrimas. E politicamente esperançoso, confirmando a pegada petista quando se trata de assistir as minorias, a realização do “Seminário 35 anos de Basaglia no Brasil – A Marca de uma Prática Revolucionária”, promovido pelo Fórum Mineiro de Saúde Mental e a Associação dos Usuários dos Serviços Mentais de Minas Gerais (Asussam), com apoio da Revista Ecológico. Foi durante os dias 3, 4 e 5 de dezembro último, no auditório da Escola Superior Dom Helder Câmara, na capital mineira.

A emoção teve início com o posicionamento firme e engajado do ministro da Saúde, o médico sanitarista e doutor em Saúde Coletiva, Arthur Chioro. Filiado do PT e adepto do espiritismo, ele conclamou a plateia de médicos, pacientes e estudantes a manterem a luta pela liberdade e o tratamento humanizado aos doentes mentais. Direitos esses conquistados pela chamada “revolução psiquiátrica mineira” desde o final dos anos 1990, quando o psiquiatra italiano Franco Basaglia veio ao Brasil e comparou os hospícios do Galba Veloso, Raul Soares e Barbacena a “verdadeiros campos de concentração nazistas”.  E equiparou seus médicos e atendentes a “carcereiros, carrascos e torturadores”, convidando-os também a abandonarem suas práticas medievais.

Na própria pele

“Eu também vivi na pele essa realidade. Até hoje eu sinto e trago em mim o cheiro característico dos hospícios e de seus doentes ali abandonados” – disse o ministro, que fez sua residência médica em hospital psiquiátrico público. “E é por isso que a revolução inspirada em Basaglia tem de continuar e vocês devem se manter vigilantes na luta. Infelizmente, ainda temos muitos manicômios em funcionamento no país e uma direita médica retrógrada que deseja tanto a volta da ditadura quanto desse sistema asilar. Isso é triste! Eles ainda não aceitam ser possível cuidar do doente mental de uma forma diferente, mais humana e inclusiva no sistema hospitalar geral de saúde.”
Chioro lembrou que, comparativamente, os chamados loucos, cujo único pecado foi a vida ter lhes colocado um transtorno mental, ou serem pobres e negros, ainda vivem em condições mais sub-humanas que os condenados por crimes nos presídios: “A América Latina e o Brasil ainda têm uma dívida enorme com esses excluídos sociais para pagar. Somente, então, poderemos sonhar com uma sociedade definitivamente sem manicômios”.
Escuta, Pimentel!

Por fim, o ministro da Saúde elencou, aplaudiu e propôs uma série de novas conquistas e apoios em curso na luta antimanicomial brasileira iniciada com Basaglia. Ele enfatizou a oportunidade política que o movimento de resistência pela saúde mental em Minas terá agora com o governo Fernando Pimentel, do mesmo partido. O que foi corroborado pelo ex-secretário nacional de Atenção à Saúde e ex-secretário municipal de Saúde de BH, Helvécio Magalhães, atual secretário de Estado de Planejamento do Governo Pimentel.

Segundo Helvécio, um governo que na sua propaganda político-eleitoral utilizou o slogan “Ouvir pra governar” tem tudo para, de fato, escutar melhor a sociedade, saber o que acontece e avançar na área de saúde pública, notadamente na causa dos portadores de transtorno mental. “O desafio de um cuidar diferente deles é o que nos estimula e confere um dever social”, afirmou.

 
O “Seminário 35 anos de Basaglia no Brasil” teve apoio da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais e do Ministério da Saúde.




Fonte: Revista Ecológico

"Política urbana e gentrificação no Centro de Santos" (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES)

PICICA: "O artigo “Revitalização para quem? Política urbana e gentrificação no Centro de Santos”, de André da Rocha Santos, é um dos destaques da Revista Cadernos Metrópoles nº 32. O número traz o dossiê  “Desenvolvimento desigual e Gentrificação na cidade conteporânea”, que analisa o  conceito de “gentrificação”em suas múltiplas escalas, do global ao local, da cidade ao bairro e à rua. Várias formações urbanas e fenômenos são analisados, como os condomínios fechados, as operações urbanas, os projetos de renovação urbana, a gentrificação comercial, a questão do patrimônio histórico, a museificação, a revitalização urbana, a valorização do solo e a obtenção de rendas, etc." 

Política urbana e gentrificação no Centro de Santos 
  
Centro Histórico de Santos Crédito: Reprodução/Web


Como visões pró-mercado, referente à temática urbana, têm influenciado na elitização das cidades e na gentrificação de suas áreas centrais? Este artigo analisa o processo de revitalização do Centro Histórico da cidade de Santos que vem ocorrendo desde meados da década de 1990. O estudo integra o Dossiê “Gentrificação na cidade contemporânea” da Revista Cadernos Metrópole nº 32.

O artigo “Revitalização para quem? Política urbana e gentrificação no Centro de Santos”, de André da Rocha Santos, é um dos destaques da Revista Cadernos Metrópoles nº 32. O número traz o dossiê  “Desenvolvimento desigual e Gentrificação na cidade conteporânea”, que analisa o  conceito de “gentrificação”em suas múltiplas escalas, do global ao local, da cidade ao bairro e à rua. Várias formações urbanas e fenômenos são analisados, como os condomínios fechados, as operações urbanas, os projetos de renovação urbana, a gentrificação comercial, a questão do patrimônio histórico, a museificação, a revitalização urbana, a valorização do solo e a obtenção de rendas, etc.

Revitalização para quem?

Por André da Rocha Santos


O termo gentrification deriva de gentry que, por sua vez, deriva do francês arcaico genterise que significa "de origem gentil, nobre". Desta feita, entende-se também a reestruturação de espaços urbanos residenciais e de comércio independentes com novos empreendimentos prediais e de grande comércio, ou seja, causando a substituição de pequenas lojas e antigas residências. Nas últimas décadas, esse fenômeno tem, por exemplo, ocasionado a mudança radical da natureza das lojas de Queen St. West em Toronto no Canadá ou o enobrecimento de vários bairros antes populares de São Francisco nos Estados Unidos. O fenômeno afeta uma região ou bairro pela alteração das dinâmicas da composição do local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local. Tal valorização é seguida de um aumento de custos de bens e serviços, dificultando a permanência de antigos moradores de renda insuficiente para sua manutenção no local cuja realidade foi alterada.
Apesar de a expressão inglesa gentrificationter sido usada pela primeira vez pela socióloga britânica Ruth Glass, em 1964, ao analisar as transformações imobiliárias em determinados distritos londrinos, apenas com o geógrafo britânico Neil Smith o processo foi analisado em profundidade e consolidado como fenômeno social presente em diversas cidades contemporâneas. Smith identificou os vários processos de gentrificação em curso nas décadas de 1980 e 1990 e tentou sistematizá-los, especialmente os ocorridos em Nova York. Esse processo nos bairros populares e/ou degradados pode tornar-se um problema social de sérias consequências quando a oferta de moradia a preços menores é inexistente (Smith, 2006).

Corroborando visões como a de Botelho (2005) que destaca a disseminação de experiências de revitalização no Brasil e sua relação com o processo de gentrificação – sendo as cidades de Salvador, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro as principais vitrines –, esse autor apresenta outros casos de intervenção nas regiões centrais em municípios menos estudados como Vitória, Fortaleza e São Luís. Questionando se revitalização virou sinônimo de gentrificação e qual o papel da cultura como elemento diferenciador, contribui na constituição de uma análise desses processos nas grandes cidades brasileiras ressaltando a distinção entre os procedimentos adotados nos Estados Unidos e no Brasil, em que “o principal elemento diferenciador diz respeito ao papel do poder público como condutor dos processos de revitalização” (p. 56).

Nesse sentido, nas últimas décadas, algumas cidades brasileiras marcadas pelo declínio de certas áreas têm apresentado diversas ações do poder público voltado para se reverter tal situação. Em épocas de crise ou instabilidade em que o mercado e suas forças sociais não conseguem dar conta de uma determinada situação social, o Estado é chamado a intervir ou assumir a direção de atividades que se haviam preservado no nível do mercado. Quando as forças produtivas e as relações de apropriação ou produção entram em dissonância, o Estado ganha novas tarefas e se impõe em outras esferas da vida econômica e social. Para controlar e reorientar as manifestações inesperadas da realidade, surge de maneira mais visível e ampla em épocas críticas (Ianni, 2004).

Segundo Castells (1982):

[...] o Estado não é um agente neutro; nem tampouco o instrumento de uma minoria oligárquica como certas visões esquemáticas, às vezes, tratam de assinalar. A intervenção do Estado é uma intervenção complexa, determinada no plano do urbanismo, em primeiro lugar, pelos conflitos políticos e sociais subjacentes à ação pública, quer dizer, pelo enfrentamento no seio do Estado e com relação ao Estado de grupos sociais e de grupos de interesse. (Castells, 1982, p. 69)

As décadas de 1970 e 1980 marcaram a época de crise da ideia de plano ou de planejamento no sentido modernista. Por oposição à prática do planejamento urbano, as práticas pós-modernistas passaram a se pautar por projetos urbanos, abandonando a visão do espaço como algo a ser moldado para propósitos sociais, ou seja, sempre subordinadas a um projeto abrangente e macroestrutural e passando a ver as intervenções nos espaços urbanos mais parciais ou pontuais, como coisa “independente e autônoma a ser moldada segundo objetivos e princípios estéticos que não têm necessariamente nenhuma relação com algum objetivo social abrangente (...)” (Harvey, 1992, p. 69).

Esse processo ocasionou várias mudanças em muitas cidades que, diante de inúmeros fatores como a desindustrialização, o enxugamento da produção e precarização do trabalho (com declínio das profissões formais, aumento da subcontratação e do desemprego estrutural), a perda da capacidade de investimentos do setor público e o aumento do setor de serviços, financeiro, de consumo e de entretenimento, vêm induzindo a certa mudança de visão nas práticas tradicionais, não só do Estado, mas de outros agentes interventores sobre o espaço urbano.

Surgiu, assim, um novo momento no processo de intervenção urbana. Por serem ações voltadas a tecidos urbanos já existentes, no sentido de adequá-los outra vez, ou readaptá-los, essas realizações vêm recebendo, a cada novo contexto, novas denominações, geralmente com o prefixo re, como, por exemplo, revitalização, requalificação ou revalorização (Vasconcellos e Mello, 2006).

Segundo Harvey (1992) e Smith (2006;2007), esse período foi o reflexo de um novo modelo de produção, ou seja, o intervalo de tempo em que ocorreu a transição do regime de acumulação de capital fordista-keynesiano para um regime de acumulação flexível. Em certos projetos de renovação urbana, as intervenções significaram uma perspectiva de atuação que passou a atender demandas de grupos de maior poder aquisitivo, ou o poder do mercado, contribuindo, muitas vezes, para uma elitização do contexto urbano da área central. Desse processo decorreu que, sobretudo em certas cidades, áreas foram revitalizadas e passaram a ser utilizadas por grupos sociais de maior renda, com tendência à criação de determinados atritos e à expulsão dos usuários originais de baixa renda ou de origem étnica distinta daquela dos novos consumidores.

Em certos casos, articularam-se intervenções urbanas de caráter mais pontual, justificadas ideologicamente pelas mudanças de ajuste urbano à globalização, muito marcadas pelas alianças entre interesses do capital e do poder público. Isso resultou em processos marcados por práticas excludentes, já que essas intervenções estão norteadas pelo mercado, tendo como público preferencial as classes médias e altas (Frúgoli Júnior, 2000; Nobre, 2003; Vainer, 2000). Desse modo, torna-se de suma importânciaatentar para a crítica a esse tipo de ação que, em certos casos, acabam introduzindo mudanças ou intervenções que terminam por favorecer o uso de determinados espaços apenas por grupos sociais mais privilegiados, criando, assim, uma espécie de “gentrificação cultural” levando consigo o processo de “gentrificação urbana”.

Segundo Smith (2007):

Na mídia, a gentrificação tem sido apresentada como o maior símbolo do amplo processo de renovação urbana que vem ocorrendo. Sua importância simbólica ultrapassa em muito sua importância real; é uma pequena parte, embora muito visível, de um processo muito mais amplo. O verdadeiro processo de gentrificação presta-se a tal abuso cultural da mesma forma que ocorreu com a fronteira original. Quaisquer que sejam as reais forças econômicas, sociais e políticas que pavimentam o caminho para a gentrificação, e quaisquer que sejam os bancos e imobiliárias, governos e empreiteiros que estão por trás do processo, o fato é que a gentrificação aparece, à primeira vista, e especialmente nos EUA, como um maravilhoso testemunho dos valores do individualismo, da família, da oportunidade econômica e da dignidade do trabalho (o ganho pelo suor). Aparentemente, ao menos, a gentrificação pode ser tocada de forma a executar alguns dos acordes mais ressonantes de nosso piano ideológico. (p. 18)

Arantes (2000) também analisou de forma esclarecedora o processo de gentrificação: Associados aos políticos, ao grande capital e aos promotores culturais, os planejadores urbanos, agora planejadores-empreendedores, tornaram-se peças-chave dessa dinâmica. Esse modelo de mão única, que passa invariavelmente pela gentrificação de áreas urbanas "degradadas" para torná-las novamente atraentes ao grande capital através de mega-equipamentos culturais, tem dupla origem, americana (Nova-York) e européia (a Paris do Beaubourg), atingindo seu ápice de popularidade e marketing em Barcelona, e difundindo-se pela Europa nas experiências de Bilbao, Lisboa e Berlim. (p. 31)

Vainer (2000), numa posição desfavorável à elitização de certas áreas da cidade, aponta essa tendência como a venda daqueles atributos específicos que constituem insumos valorizados pelo capital transnacional. Segundo o autor, a ideia da cidade como uma mercadoria (de luxo) a ser vendida num mercado extremamente competitivo – em que outras cidades também estão à venda – é uma das ideias mais populares entre os projetos atuais de renovação urbana de áreas centrais da cidade.

Assim, a discussão em torno de políticas públicas, visando à revitalização de áreas urbanas que se encontram em processo de deterioração, passou a representar uma resposta possível à crise instaurada. A partir de determinado momento, grandes investimentos em megaprojetos, que até recentemente estavam concentrados em áreas periféricas ou em áreas de expansão imobiliária, passaram a dirigir seus esforços e atenções para áreas situadas em pontos centrais, históricos e de grande valor simbólicos nas cidades.


A intenção, portanto, é averiguar, para o caso de Santos, quais foram e como se organizaram as principais intervenções e projetos no processo de revitalização a partir da política urbana implantada pelas administrações municipais/poder público na estruturação dos equipamentos urbanos. Pretende-se também analisar quais concepções têm norteado tais intervenções, levando-se em conta o planejamento urbanístico da área central nas recentes e diferentes gestões.

Leia o artigo completo “Revitalização para quem? Política urbana e gentrificação no Centro de Santos” na edição nº 32 da Revista Cadernos Metrópole.

Fonte: OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES

fevereiro 26, 2015

"A barbárie se tivermos sorte". Por Carla Rodrigues

PICICA: "O filósofo húngaro István Mészáros propõe uma redução da jornada de trabalho que funcionaria como “dinamite social”. Ela seria baseada em “metas autodeterminadas de realização da vida dos indivíduos particulares" e poderia também alterar relações familiares, promovendo igualdade na divisão das tarefas domésticas. O que me inquieta é ele ser mais um pensador de esquerda a aceitar a democracia liberal como a forma final de governo humano."

"A barbárie se tivermos sorte"

POR Carla Rodrigues Carla Rodrigues | 25.02.2015


A frase do título é do filósofo marxista húngaro István Mészáros, autor do recém-lançado “A montanha que devemos conquistar – reflexões acerca do Estado” (Boitempo Editorial), e expressa de forma contundente uma percepção que compartilho. Daí meu interesse pelo lançamento do livro, motivo também para a excelente entrevista ao repórter Leonardo Cazes. Há em Mészáros um debate pertinente e difícil acerca do papel do Estado nas sociedades contemporâneas. A montanha a ser conquistada – que dá título ao livro – é o Estado, na sua avaliação até hoje capturado pelos interesses do capital, cujo resultado é o “agravamento das condições [de vida] em todos os lugares, com políticas de austeridade impostas impiedosamente pelos governos capitalistas sobre a população trabalhadora, mesmo nos países avançados mais ricos em termos de capitalistas”.

Conquistar o Estado pode parecer uma velha proposição socialista, cujo fim estaria anunciado pelo menos desde a queda do muro de Berlim, nos idos do século passado (sei que só se passaram pouco mais de 25 anos, mas em termos de tempo histórico, 1989 parece estar muito mais longe). Não é. A conquista do Estado proposta por Mészáros tem menos a ver com a nostalgia de um estado socialista e mais a ver com um dos pontos centrais do livro: sempre que houve Estado, foi a serviço dos interesses do capital. Conquistar o Estado, então, passa a ser condição fundamental para a transformação dos modelos políticos e econômicos atuais.

Na proposta de Mészáros, a luta pelo Estado estaria a serviço da sua proposta de democracia substantiva, associada à igualdade substantiva. Ambas passam por um tema que me interessa particularmente: a questão do uso do tempo. Se no sistema capitalista o imperativo econômico é o do acúmulo, na proposta de igualdade substantiva de Mészáros seria preciso abandonar a ideia de produção para acumulação pela “adoção consciente do tempo disponível como regulador geral da produção”. Por isso, ele propõe uma redução da jornada de trabalho que poderia funcionar como “dinamite social”, reorganizando o trabalho tanto no sentido quantitativo – aquele que é medido em horas – quanto no sentido qualitativo – medido pela intensidade. Trabalhar em função de “metas autodeterminadas de realização da vida dos indivíduos particulares, cujo tempo disponível deve prevalecer para os objetivos escolhidos com base em sua igualdade substantiva” pode parecer absolutamente utópico, mas é proposto por Mészáros como forma de resistência às crescentes exigências do capital, como solução para o “desemprego estrutural” e como atenuante para a crise ambiental que nos ameaça.



Ingênuo? Talvez. Mas considerando, por exemplo, as críticas de David Harvey, de Richard Sennett, de Luc Boltanski – para mencionar apenas alguns – em relação ao uso total do tempo do trabalhador a partir das transformações no modo de produção capitalista, pode-se considerar que de fato Mészáros tem um ponto. Trabalhar o suficiente – sendo a definição de suficiente dada pelo trabalhador – poderia ser uma inversão no jogo da exploração capitalista.

Não acho que caberia aqui entrar no debate de como colocar isso em prática, ainda que o autor desça a detalhes e proponha que o Estado se torne uma instância reguladora deste tipo de demanda substantiva. Penso, no entanto, que há qualidade na proposição de Mészáros na medida em que a regulação do uso do tempo poderia alterar relações trabalhistas, sociais e familiares, promovendo igualdade, por exemplo, nas relações entre os casais na divisão das tarefas domésticas e no cuidado com os filhos e os idosos, atividades que, enquanto forem tidas como não lucrativas pelo sistema capitalista, continuarão a ser realizadas sem que se altere o tempo dedicado ao trabalho.

Há, no entanto, algo no livro de Mészáros que me inquieta: ele é mais um autor do campo da esquerda pautado pela necessidade de repensar a democracia liberal. Do meu ponto de vista, nisso já reside uma vitória da democracia liberal: pautar o debate político em torno da democracia como única forma de governo, o que de certa forma fecha as possibilidades do debate. Explico: desde que Francis Fukuyama publicou “O fim da história e o último homem”, no final dos anos 1980, multiplicam-se os discursos de que a democracia liberal, tal qual experimentada nos EUA, é a forma final de governo humano, e toda a história do mundo teria nos orientado a essa forma de governo, ao livre mercado como forma mais natural de organização econômica, e ao capitalismo como o triunfo ao comunismo ou ao socialismo. Com essas supostas conquistas, estaríamos enfim livres das guerras – que teriam girado em torno da disputa entre capitalismo e socialismo – e poderíamos nos acomodar em um pacífico estilo de vida liberal democrata.

Nada mais falso. No entanto, para encerrar retomando a minha inquietação, há nesses discursos a força de pautar o debate exclusivamente em torno do aprimoramento da democracia. Nesse sentido, temos a democracia deliberativa, em Jünger Habermas; democracia direta, em Norberto Bobbio; democracia porvir, em Jacques Derrida; democracia agonística, em Ernest Laclau e Chantal Mouffe; e agora democracia substantiva, em Mészáros. Poucos foram os que resistiram a elaborar uma proposta em torno do ideal democrático sem fazer a esse ideal uma crítica.

Embora todas tenham seus méritos e partam de diagnósticos importantes, são autores que se mantêm, de certa forma, reforçando a ideia de que a democracia existe enquanto tal. Derrida é um dos que avançam tanto na crítica ao fim da história quanto na desconstrução da ideia de que uma democracia possível é uma democracia sempre em dívida, capaz de se reconhecer incompleta. Mas nessa direção é outro filósofo franco-argelino, Jacques Rancière, que me parece dar uma importante contribuição ao debate político contemporâneo quando afirma que a democracia representativa não passa de um mecanismo de manutenção, no poder, de representantes da oligarquia política e econômica que se perpetua a partir do estabelecimento de uma pauta de seus próprios interesses. Se a democracia só se repete como farsa, vem daí a contundência da frase de Mészáros: “A barbárie se tivermos sorte”.


Carla Rodrigues
Carla Rodrigues exerceu a profissão de jornalista durante tantos anos que prefere não somar. Fez especialização, mestrado, doutorado em Filosofia na PUC-Rio e pós-doutorado na Unicamp. Hoje é professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e uma das coordenadora do Khôra - laboratório de filosofias da alteridade. Dedica-se a pesquisar o pensamento do filósofo Jacques Derrida.

Fonte: BLOG DO IMS

"O Podemos entre hegemonia e multidão: Laclau ou Negri", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "A diferença do populismo para a teoria da multidão, de Negri e Hardt, consiste em que, para a última, a potência não está na construção de um povo. O povo falta na multidão, porque ela consiste de forças singulares que não admitem qualquer tipo de unificação. O “significante vazio”, dessa maneira, não passa de uma abstração estruturalista, que perde de vista como o vazio é produto de um êxodo e não de um deslocamento estrutural. O êxodo vai ao deserto porque está prenhe de mundo e não precisa de significantes" 
(...)
"Para Negri e Hardt, não é que a construção de um nacional-popular esteja moralmente errada porque tentaria unificar a diversidade de identidades políticas não-representadas, a conformar-se segundo outro projeto de poder (“nacional-popular” ou não). É que, primeiro, tais “identidades” não podem ser representadas, porque são singularidades em permanente transformação. E, segundo, porque a tentativa de unificação subtrai o poder próprio da diferença que elas exprimem. É que a potência está com a multidão. O que condiz com o fundo marxista da teoria, visto que a multidão é um conceito de classe e quem faz a revolução é a luta de classe. A essência da multidão é a sua própria potência, no sentido que suas forças singulares são imediatamente produtivas — de formas de vida, afetos ativos, direitos vivos, capacidades criadoras de cidade."

O Podemos entre hegemonia e multidão: Laclau ou Negri
Iglesias  e Ejerron 
Pablo Iglesias e Iñigo Errejón, do Podemos


Populismos

A diferença do populismo para um discurso liberal clássico está em que, para o primeiro, o povo é algo ainda a construir-se, enquanto para os liberais o povo já está dado. No primeiro caso, a construção do povo implica a construção de uma nova representação. No segundo, cabe à representação apenas contemplar uma sociedade que lhe preexiste, já formada.

No populismo, a história da construção de um povo passa pela divisão entre um “nós” e um “eles”. Denuncia-se a falsa universalidade da ordem representativa existente, que não mais nos representa, para a seguir reclamar uma nova universalidade. Nas revoluções burguesas, foi a luta contra o ancien régime, a partir do que seria possível libertar-se da aristocracia parasitária para formar a nação e a cidadania burguesa, doravante considerada universal. Nas lutas anticoloniais, se lutava contra a metrópole e o imperialismo, em nome da unidade da libertação nacional. Com o filósofo Antonio Gramsci, a construção do povo reúne intelectuais, operários e camponeses numa consciência coletiva nacional-popular, que se liberta dos burgueses. 

Já para os tecnocratas, mais ligados ao discurso liberal clássico, não haveria necessidade de construir povo algum: basta escolher as pessoas certas, adotar “ideias que funcionam” e implantar a melhor gestão para cada situação específica.


A construção do nacional-popular

No Brasil, as ideias do nacional-popular estiveram presentes na versão desenvolvimentista, em que a modernização nacional se atrela à emancipação popular mediante ações mobilizadoras, pedagógicas e organizativas. A conquista do poder não poderia ocorrer, simplesmente, com a tomada do estado, devendo passar por um laborioso alastramento cultural e ideológico de formação nacional, desde as bases. O papel dos intelectuais subdesenvolvidos, nesse projeto, consiste em liderar o processo de esclarecimento das massas, segundo um programa emancipador. Evita-se, dessa maneira, cair nalgum determinismo econômico segundo o qual bastaria industrializar o país para formar um proletariado consciente. Sem a tarefa militante de emancipação popular, a modernização invariavelmente produzirá ainda mais dominação de classe.

A teoria política mais próxima dessa promessa nacional-popular, ainda que elaborada no contexto das sociedades industrializadas das economias centrais, é a teoria gramsciana. Para Gramsci, escrevendo na primeira metade do século passado, o exercício do poder no capitalismo não se sustenta somente com coerção e medo. É preciso, sobretudo, fabricar uma legitimidade difusa que, mediante inúmeras instituições coletivas culturais, colha continuamente o consentimento da maioria. A esfera representativa em seu conjunto, formada por governos, partidos e sindicatos pode, assim, operar como se representasse o “interesse geral”, preenchendo fissuras e estancando os desvios.

A ideologia, aí, não aparece como um sistema de engodo sistemático. Como se a ideologia fosse um véu aposto à realidade, um cortinado místico separando as pessoas da verdade sobre as reais relações de poder. Mais do que isso, a ideologia tem um caráter material: determina os comportamentos e se infiltra nos hábitos. O capitalismo, em essência, não engana alguém, e são ingênuas as perspectivas de que poderia perder força diante da denúncia de suas mistificações. As pessoas já sabem que o capitalismo é um complexo de exploração que gera, numa ponta, luxo e desperdício e, na outra, miséria e violência.

Hegemonia e contra-hegemonia

É isto que Gramsci chama de hegemonia: a forma normal de política em sociedades desenvolvidas e complexas, onde vigoram democracias representativas. É uma operação cultural de grande escala, antes que unidade forçada pelo estado, determinando a existência de um grupo hegemônico que se coloca como portador do “interesse geral”. Em termos de hegemonia, o xis da questão não é perguntar como o capitalismo funciona, mas como nós próprios fazemos ele funcionar. O capitalismo tem uma evidência e uma querência, impregnadas, em que estamos implicados ao elaborar o nosso dia a dia, nossos planos e nós mesmos.

O confronto contra-hegemônico, portanto, passa por um enfrentamento igualmente no terreno ideológico e cultural, com a gradual infiltração no sistema e ocupação de posições-chave — o que o teórico marxista chamou guerra de posição. É o esforço de rearticular as identidades políticas para romper a hegemonia e afirmar duas posições antagônicas, nós (o povo) x eles (a burguesia). Quando bem sucedido, isto significa construir o povo noutros termos, segundo uma consciência nacional-popular marcada pela identidade de classe operária e camponesa, a que corresponde a representação socialista.

Laclau e o significante vazio

Ernesto Laclau, o pós-marxista argentino, se distancia de Gramsci ao se afastar da ideia que a contra-hegemonia configura uma luta de classe. Escrevendo no final do século 20, para Laclau vivemos uma realidade pós-ideológica, em que a sociedade não pode mais ser interpretada no esquema dualista das classes. A luta de classe é somente um aspecto, entre outros. A luta de contra-hegemonia se deslocaria, assim, para os novos movimentos que articulam identidades políticas variadas, envolvendo também lutas raciais, étnicas, de gênero, sexualidade, imigrantes.

Em momentos de crise da representação, a estrutura vigente de sentido perde consistência. Como se, devido à instabilidade, se abrisse uma brecha no bloco hegemônico, o que Laclau chama de significante vazio. É um lugar estrutural, em que os sentidos passam a flutuar ao sabor dos múltiplos atritos provocados pela contra-hegemonia. A luta culmina seja com a colmatação das fissuras, numa reforma social e do estado que recupera as demandas, coopta os intelectuais e restaura a ordem existente (em termos gramscianos, a revolução passiva); seja com a ocupação do significante vazio por um grupo capaz de afirmar uma nova universalidade, uma nova ordem do discurso atravessada pela totalidade social até então subrepresentada.

Como o leitor vê, Laclau situa o discurso no centro da atividade política. A contra-hegemonia laclauliana envolve uma redefinição discursiva da universalidade. A autonomia do político se dá num embate que, em última instância, se resolve em termos de linguagem. A força só consegue consolidar-se ao rearticular a vontade coletiva num sentido social global. Tal cristalização de identidades políticas até então subrepresentadas determina um novo bloco histórico, numa unidade simultaneamente cultural e política.

Populismo 2.0 do Podemos

Iñigo Errejón, intelectual espanhol do novo partido Podemos, tomou Laclau como referência em sua tese de 650 páginas sobre a chegada ao poder de Evo Morales e do Movimento ao socialismo (MAS) na Bolívia. O autor explica como, depois do ciclo insurgente entre 2000 e 2006, que inclui as contendas da água e do gás, Evo e o MAS conseguiram reconstruir uma hegemonia a partir da integração das lutas sindicais/cocaleiras, indigenistas/camponesas e antineoliberais de esquerda. O resultado histórico foi a sutura de uma nova totalidade discursiva que, superando as partes, pôde ocupar o significante vazio aberto pela crise da representação boliviana, no começo do século 21. Contornando tendências movimentistas, mistificações do indigenismo (e do próprio Evo) e sem “pagar mistério” sobre o paradigma do viver bien e o pachamamismo, Errejón conclui que a transformação social implicou, necessariamente, a reforma do estado e a recriação das instituições noutros termos, ao reconhecer outras identidades políticas como sujeitos ativos do processo.

O plano estratégico do Podemos, hoje a maior força eleitoral projetada da Espanha, é inteiramente baseado nessa concepção hegemonista, que vem de Gramsci, Laclau e Errejón. A leitura é que as jornadas do Movimento do 15 de Maio (15-M), a partir de 2011, romperam o horizonte de sentido do regime monarquista de 1978, em sua alternância entre o PSOE e o PP. Abriu-se com o 15-M, assim, um significante vazio, que entrou em disputa. No entanto, até agora, nenhuma força organizada conseguiu ocupá-lo para conferir um novo sentido social global. Tal incapacidade levou o regime antigo a prolongar-se, apesar da crise destituinte, inclusive iniciando ações de restauração aos moldes da revolução passiva.

O surgimento avassalador do Podemos se explica, assim, por estar no lugar certo na hora certa, assumindo a tarefa de tomar para si o significante vazio do 15-M. Isto implica assumir um discurso capaz de reunir uma maioria social, atraindo segmentos da sociedade que se encontram flutuantes, reunindo as forças dispersas (e dispersadas pela repressão) e os múltiplos sentidos políticos. Daí a ideia, tão presente no discurso de Pablo Iglesias, de tomar o “centro do tabuleiro”. Ou seja, de afirmar uma nova universalidade que seja composta pela integralidade da sociedade pós-15M. Isto significa uma síntese ampla e transversal que, à semelhança do MAS na Bolívia, possa consolidar o ciclo insurgente num novo ciclo institucional, levando à reforma do estado e da representação, a partir dos novos movimentos como sujeitos ativos.

A investida contra-hegemônica do Podemos, segundo a concepção de seus líderes, não é nem frentista — que seria mera unificação quantitativa e tática de forças de oposição — nem imposição vanguardista — uma tentativa de tomada do poder descolada das forças sociais não-representadas. Significaria, em vez disso, uma mudança qualitativa e douradoura no horizonte de sentido, integrando as diversas demandas, desejos e sujeitos políticos para uma nova universalidade concreta.

A crítica ao populismo

Uma primeira crítica das teorias da hegemonia, de Gramsci a Iglesias, está no fato que ela confere demasiada importância aos intelectuais. Evidentemente, intelectual, aqui, não se confunde com acadêmico. Em gramscês, intelectual é qualquer um que produza discurso. Em sociedades do capitalismo tardio, isto significa líderes culturais, músicos, celebridades, âncoras de TV, enfim, a produção de mídia em geral. Nas teorias pós-gramscianas, a comunicação assume uma centralidade grande.

No Brasil, tal tendência pode ser constatada com a profusão de análises que sobrevalorizam o papel da “grande mídia” na articulação da vontade coletiva. Não admira que, segundo o diagnóstico dessa linha hegemonista, um dos maiores obstáculos para a contra-hegemonia consista na impermeabilidade de rádio e TV em relação a identidades políticas subalternas. O “significante vazio” restaria bloqueado.

Para Gramsci, os intelectuais alinhados com forças historicamente emergentes devem mergulhar na atividade militante cotidiana, em participação orgânica na vida prática como construtor, organizador, convencedor. Mais do que fundir-se ao povo, ele estaria trabalhando, assim, para a construção da consciência nacional-popular, que aspira a tornar-se povo.

No Brasil, no século 20, multiplicaram-se os intelectuais, geralmente formados nas camadas médias, que se atribuíram a missão histórica de conscientizar (e, pelo menos num primeiro momento, liderar) os proletários. O que vai desde a pedagogia do oprimido de Freire ou o teatro de arena de Boal, dedicados à ativação de classe desde dentro, até as lideranças de movimentos sociais, como Guilherme Boulos, do MTST.

No “populismo 2.0″ de um Podemos, a leitura é outra. Mudou a composição de classe na base dos movimentos, de maneira que não faz mais sentido organizar no esquema dialético cúpulas/bases. A própria ideia de “trabalho de base” se tornou anacrônica, em termos de maioria social. A diversificação dos espaços sociais, a mobilidade das pessoas entre eles e a velocidade comunicativa impõem outra maneira de abrir brechas no bloco hegemônico. Daí a concentração nem tanto na capacidade intelectual propositiva, de sedução e síntese, quanto na vocalização transversal de amplos setores dispersos e autônomos em seu próprio direito. Desaparece a figura do intelectual orgânico junto às massas, de cariz gramsciano: Iglesias se coloca no cenário midiático como intelectual pós-orgânico, ou melhor, inorgânico.

Multidão x hegemonia

A diferença do populismo para a teoria da multidão, de Negri e Hardt, consiste em que, para a última, a potência não está na construção de um povo. O povo falta na multidão, porque ela consiste de forças singulares que não admitem qualquer tipo de unificação. O “significante vazio”, dessa maneira, não passa de uma abstração estruturalista, que perde de vista como o vazio é produto de um êxodo e não de um deslocamento estrutural. O êxodo vai ao deserto porque está prenhe de mundo e não precisa de significantes.

A crise é gerada pela convergência de plenitudes constituídas por singularidades, do que por alguma lacuna entre identidades e a totalidade. Muda a perspectiva. O 15-M, nesse sentido, é antes uma experiência de viver o “sim”, uma experimentação de cooperação, rede e amor à potência comum, do que um mero deslocamento de significados. O trabalho da multidão não está em consolidar uma “universalidade concreta” mediante a sutura dos sentidos, mas multiplicar pontos de atrito numa variedade de táticas, visando ao aprofundamento das conquistas.

Para Negri e Hardt, não é que a construção de um nacional-popular esteja moralmente errada porque tentaria unificar a diversidade de identidades políticas não-representadas, a conformar-se segundo outro projeto de poder (“nacional-popular” ou não). É que, primeiro, tais “identidades” não podem ser representadas, porque são singularidades em permanente transformação. E, segundo, porque a tentativa de unificação subtrai o poder próprio da diferença que elas exprimem. É que a potência está com a multidão. O que condiz com o fundo marxista da teoria, visto que a multidão é um conceito de classe e quem faz a revolução é a luta de classe. A essência da multidão é a sua própria potência, no sentido que suas forças singulares são imediatamente produtivas — de formas de vida, afetos ativos, direitos vivos, capacidades criadoras de cidade.

Laclau e Negri divergem quanto às coordenadas da luta nas condições atuais. Se Laclau postula uma era pós-ideológica, em que a luta de classe cede à diversidade de identidades que buscam se afirmar; Negri aponta uma mutação no capitalismo determinada por uma nova forma de vida social, baseada na autonomia dos sujeitos, na colaboração transversal e, na esteira de Deleuze e Guattari, na amálgama entre humano e não-humano, no plano maquínico. Não é que a classe tenha se dissolvido numa diversidade de “novos movimentos”, nos termos de Laclau; em realidade, a classe se reorganiza nas condições da organização social do capitalismo hoje, e é sobre esse terreno que a multidão poderá emergir — sempre no antagonismo e na ação criadora.

A crítica do populismo 2.0


Com o foco na teoria do discurso, o “populismo 2.0″ (Errejón) perde de vista todo o substrato com que funciona o próprio capitalismo. Com as mutações de que falam Negri e Hardt, desaparece qualquer possível divisão entre o terreno material das lutas em que se constituem os sujeitos, e o terreno cultural e ideológico em que são articuladas as vontades coletivas. Não tanto que cultura e ideologia sejam super-estrutura de relações econômicas, — o que seria marxismo vulgar, — mas sim que estão imediatamente atravessadas pelo plano pré-discursivo ou pré-linguístico, o plano maquínico do desejo.

As experiências de luta dos novos movimentos e de ciclos insurgentes — na Bolívia ou na Espanha — produzem transformações no nível da sensibilidade, uma nova maneira de sentir a democracia e a ação comum. Os afetos gerados pelos bons encontros são cristalizados em hábitos, mesclando-se com os comportamentos mais “naturalizados”. Se o capitalismo tem uma evidência e uma querência, tais construções político-afetivas têm o condão de produzir outras evidências e outras querências.

A mudança real não pode ser totalizada em ideologia abrangente que substitui a velha ordem e não procede desta forma, ficando no plano linguístico. Com prioridade ontológica, a mudança real precisa ser metabolizada pelos próprios movimentos minoritários na construção de novos hábitos, afetos e agenciamentos maquínicos. Isto não é privilegiar alguma micropolítica localista romantizada, mas praticar movimentos expansivos com capacidade propagadora de alta intensidade, atravessando fronteiras, identidades, espaços delimitados. Afinal, as minorias são todo mundo.

Muitas transformações, da segunda metade do século passado em diante, dessa maneira, não passam pela reforma da representação, nem pela ocupação de algum significante vazio, de resto um esquematismo a-histórico igualmente vazio. O leitor veja, por exemplo, a revolução sexual e das drogas dos anos 1960, ou então uma série de mutações de sensibilidade que, por vezes, são entendidas impropriamente como “evolução social”, mas que no fundo significam a produção de práticas concretas, afetos cristalizados, hábitos. O plano da linguagem não capta um mundo de fluxos e reagenciamentos operantes diretamente entre os corpos e a composição dos corpos, inclusive com corpos não-humanos, maquínicos, em sua dimensão molecular.

No fundo, a luta da multidão é mais potente do que a construção discursiva de um povo porque opera no mesmo fundo inconsciente da vida comum que o capitalismo coloniza e explora. Isto vale, inclusive, para a questão da mídia, denotando o vício daqueles tão maceteados pela oposição ao Leviatã da “grande mídia”. Nenhum órgão de comunicação tem o poder de emitir enunciados que, uma vez recebidos, passam a circular pelo tecido social. Esta seria uma análise molar e discursiva do fenômeno. O máximo que podem fazer é conectar-se ou conjugar-se a redes de afetos e fluxos desejantes pré-existentes, que adquirem certa consistência. Basta ver como a força de um telejornal de uma grande emissora está, através dos circuitos do desejo, ligada à maquinaria da telenovela e do futebol.

Obviamente, tal percepção não nos deve levar a subestimar o “poder da mídia”, mas a entendê-lo melhor na medida em que nós fazemos ele funcionar (querendo ver o jogo no Galvão, por exemplo).

O Podemos na berlinda?


Disso tudo, não deveríamos cair num esquematismo precipitado. Como se a descrição do MAS a partir do hegemonismo laclauliano, ou a autoelaboração do Podemos por seus professores-ideólogos, fosse determinante para apreender o sentido histórico e material daqueles. É preciso atentar que existe um lag entre o que falam de uma experiência (mesmo aqueles implicados nela), e o que essa experiência nos interpela.

A busca da maioria social do Podemos já foi criticada como captura dos devires do 15-M, vago sincretismo populista, conchavo elástico demais, personalismo de Iglesias ou, como escreveu o antropólogo argentino Salvador Schavelzon, uma tradução político-cultural deficiente (oportunista?) dos experimentos da América do Sul. O Podemos levaria à Espanha não o que de melhor teria sido produzido na América do Sul, mas justamente a parte problemática que tem levado governos a fechar-se em termos de poder constituinte. Seria por demais luta hegemonista, socialista e nacional-popular, e por de menos anti-pós-colonialista, plurinacional e cosmopolítica.

O caso é que, por outro lado, assim como na Bolívia, na Espanha quem disse que o Podemos abafará o povo que falta, isto é, a multidão? Na Bolívia, o fechamento progressivo do governo de Evo e do MAS levou à abertura de novos atritos e frontes de disputa, que se somaram aos anteriores irresolvidos, o que o marxista boliviano (e vice-presidente) Alvaro Linera chama de empate catastrófico. A multidão seguiu atuando com Evo, a despeito de Evo, contra Evo — simultaneamente, segundo uma variedade de táticas.

De maneira semelhante, se o “poder do Podemos” consiste no atravessamento pela multidão, não será um governo podemista refém da força dispersa, que agora nele parece apostar enquanto tática eleitoral? Se a potência está com a multidão, por que ter medo de uma alternativa hegemonista cuja força depende dela em primeiro lugar?

O erro não seria, talvez, considerar o Podemos, em moldes gramsciano-laclaulianos, como uma estratégia de construção de povo — em vez de mais uma das táticas da multidão, uma maneira de concatenar poder e potência (potestas e potentia)? Traçar um destino para a experiência organizativa em face de sua ideologia assumida não é, exatamente, confirmar pela via negativa que aquela ideologia descreve e prescreve a própria experiência?
De onde vejo, essa questão está em aberto.
Dedicado ao companheiro sul-americano Santiago Arcos, cujo ímpeto de debate e luta é uma referência de engajamento não-hegemonista.



Referências básicas


BEASLEY-MURRAY. La clave del cambio social no es la ideología, sino los cuerpos, los afectos y los hábitos. Eldiário.es, 2015.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-Édipo. 34, 2010.

ERREJÓN, Iñigo. La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Tese de doutorado. Madrid, 2012.

FERNÁNDEZ-SAVATER, Amador. Fuerza y poder; reimaginar la revolución. Eldiario.es, 2013.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, 6 vols. Civilização Brasileira, 1999-. 

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Record, 2005.

____. Commonwealth. Harvard, 2009.

LACLAU, Ernesto. A razão populista. EdUERJ, 2013.

SÁNCHEZ, Raúl Cedillo. O poder do Podemos. UniNômade, 2014.

SCHAVELZON, Salvador. Podemos, América do Sul e república plurinacional. UniNômade, 2015.

Fonte: Quadrado dos Loucos