maio 31, 2015

"Frente de esquerda para quê?", por Vladimir Safatle (Carta Capital)

PICICA: "Se fosse o caso de fornecer uma analogia histórica para a situação atual do Brasil, talvez o melhor a fazer seria voltar os olhos para a Argentina dos anos 1970. De certa forma, não há nada mais parecido com o atual governo Dilma do que a Argentina de Isabelita Perón. Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón do Cerrado."

Análise/Vladimir Safatle

Frente de esquerda para quê?

por Vladimir Safatle publicado 28/05/2015
 

Não é a falta de direção que acomete a ala progressista brasileira. É a falta de coragem, o que é muito mais grave 

José Cruz/ Agência Brasil
Dilma-Rousseff
Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón do Cerrado

Se fosse o caso de fornecer uma analogia histórica para a situação atual do Brasil, talvez o melhor a fazer seria voltar os olhos para a Argentina dos anos 1970. De certa forma, não há nada mais parecido com o atual governo Dilma do que a Argentina de Isabelita Perón. Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón do Cerrado.


Uma presidenta refém de seus operadores políticos, impotente diante da dissolução do acordo peronista entre setores da esquerda e setores conservadores em torno da figura de seu finado marido, Juan Domingo Perón, Isabelita foi a figura mais bem-acabada do esgotamento do ciclo de acordos, avanços e paralisias que marcou o peronismo. Ao se deixar guiar pelos setores mais conservadores do peronismo, Isabelita parecia uma morta-viva, a encarnação de um tempo que já acabara, mas ninguém sabia como terminar.


Agora, imaginem que estamos na Argentina dos anos 1970 e Perón não morreu. Como um fantasma, ele volta para tentar organizar a oposição contra o governo que ele mesmo elegeu, federando as vozes dos descontentes com o governo criado por ele mesmo e para o qual indicou vários ministros. Não, algo dessa natureza não poderia acontecer na Argentina. Algo assim só pode ocorrer no Brasil. Pois não é isso o que estamos vendo com um Lula reconvertido a arauto da “frente de esquerda” juntamente com o resto do que ainda tem capacidade de formulação no PT? O mesmo PT que, em um dia, vai à televisão para afirmar seu compromisso com a defesa dos direitos trabalhistas para, no dia seguinte (vejam, literalmente no dia seguinte) votar em peso a favor de um pacote de medidas que visam “ajustar” a economia não exatamente taxando lucros bancários exorbitantes, mas diminuindo os mesmos direitos trabalhistas que defendera 24 horas antes.


Nesse contexto, o que pode ser uma frente de esquerda a não ser a última capitulação da esquerda brasileira à sua própria impotência? Ou, antes, o reconhecimento tácito de que a esquerda brasileira só pode oferecer o espetáculo deprimente de discursos esquizofrênicos divididos entre o reino das boas intenções e a dureza das decisões no “mundo real”? Acreditar que aqueles que nos levaram ao impasse serão os mesmos capazes de nos tirar de tal situação é simplesmente demonstrar como a esquerda brasileira vive de fixações em um passado que nunca se realizou, que nunca foi efetivamente presente. É mostrar ao País que a esquerda não tem mais nada a oferecer de realmente novo e diferente do que vimos.


Se a esquerda quiser ter alguma razão de existência (pois é disso que se trata), ela deve começar por fazer uma rejeição clara do modelo que foi aplicado no Brasil na última década, seja no campo político, seja no campo econômico. O modelo lulista não chegou a seu esgotamento por questões exteriores, pressão da mídia ou inabilidades de negociação da senhora Dilma. Ele se esgotou por suas contradições internas e quem o criou não é capaz de criar nada de distinto do que foi feito.


Insistiria ainda em como é falsa a ideia de que a esquerda brasileira está de joelhos sem saber o que fazer. Há anos, vários setores progressistas têm alertado para o impasse que agora vivemos. Há anos, várias pautas foram colocadas em circulação, entre elas a revolução tributária que taxe a renda e libere a taxação sobre o consumo, a democracia direta com poder de deliberação, veto e gestão, o combate à especulação imobiliária através de leis que limitem a propriedade de imóveis, a reforma agrária, a diminuição da jornada de trabalho, a autogestão de fábricas e locais de trabalho, o salário máximo, o casamento igualitário, as leis radicais de defesa da ecologia, o fim da política de encarceramento sistemático, a exposição da vida financeira de todos os que ocupam cargos de primeiro e segundo escalão, a punição exemplar da corrupção, o fim do monopólio da representação política para partidos. Não é a falta de direção que acomete a esquerda brasileira. É a falta de coragem, o que é muito mais grave. 

Vladimir Safatle
 
Vladimir Safatle 
 Professor da Faculdade de Filosofia da USP, é autor do livro "A esquerda que não teme dizer seu nome"

"Reforma Política? Apenas para silenciar as ruas". Escrito por Raphael Tsavkko Garcia (Correio da Cidadania)

PICICA: "(...) o PT trouxe o tema da Reforma Política como farsa, apenas para silenciar as ruas em 2013. Agora, o feitiço virou contra o feiticeiro.

Eis que, em um momento de estelionato eleitoral e de aparente fraqueza do governo, acuado, vitimado por protestos gigantescos e sem capacidade de reagir – além de envolvido em inúmeros escândalos de corrupção – ou sequer pensar em alternativas, seu principal parceiro político resolve retomar sua agenda e transformá-la no pior dos mundos."

Reforma Política? Apenas para silenciar as ruas Imprimir E-mail
Escrito por Raphael Tsavkko Garcia   
Sexta, 29 de Maio de 2015


O tema da Reforma Política não é novo, porém ganhou força após os protestos de Junho de 2013. O tema sempre vinha e voltava no debate público, mas nunca voltou com tanta força quanto no auge dos protestos. Dilma foi a público anunciar suas propostas para superar o que ela achava ser a crise (e que não tinha relação alguma com o que se pedia nas ruas): Reforma Política.

Imediatamente, após o anúncio feito por Dilma, eu já havia alertado que não passava de uma jogada desesperada e que teria consequências no longo prazo, especialmente pela insistência do PT, posterior, em um modelo grotesco de "constituinte".

O PT imediatamente repassou a tarefa de arregimentar os crentes e movimentos cooptados (como UNE, CUT, MST e o eterno pau-pra-toda-obra PC do B, vulgo PSeudoB, dentre outros) para levar adiante uma consulta e promover uma constituinte "exclusiva". Em linhas gerais, a votação foi um fracasso e ninguém realmente se importou muito, mas a ideia ficou, como uma bola pingando na área esperando que alguém chutasse.

O PSOL infantilmente até tentou aproveitar o momento e adotar a bandeira, mas, no fim, foi Eduardo Cunha quem deu forma à tragédia.

Não vou me alongar na estupidez de pedir por reforma política ou mais ainda, de pedir uma constituinte, estando diante de um congresso conservador e com viés de piora, enquanto temos no poder um governo fraco e estelionatário - a questão, no fim das contas, é a de que o abacaxi adentrou a sala, ou o Congresso, e ameaça se tornar extremamente indigesto para o país. Não acredito que Cunha e sua gangue irão simplesmente deixar pra lá o assunto só porque sofreram uma derrota.

Falemos de responsabilidades, pois. É em grande parte do PT e de quem foi na onda. Ao invés de respostas efetivas aos protestos de Junho, tivemos apenas repressão e propostas pífias ou, no caso em tela, perigosas. Nada, porém, que efetivamente respondesse à voz das ruas, mas apenas algo que grita mais alto em sentido contrário.
 
A intenção de Dilma, PT e movimentos cooptados – também com ajuda do PSOL, que parece ser incapaz de se descolar do PT e se mostrar uma oposição de verdade – era a de jogar uma ideia, fingir que trabalhava nela, para depois jogar debaixo do tapete e continuar a mandar e desmandar, mas tirando proveito da propaganda que toda a mobilização pela Reforma Política causou e poderia vir a causar.

Veio a eleição e tudo foi esquecido. Ou quase.

Petistas entusiasmados com a vitória e com uma campanha francamente mentirosa falavam em resgatar bandeiras de esquerda, mas tudo que vimos até o momento foi o resgate das piores bandeiras do governo FHC, com direito a uma possível implosão do sistema político, que sem dúvida é ruim, mas pode piorar.

O tema da Reforma Política, enfim, voltou graças à tentativa do PT de calar a boca das ruas sem, no entanto, ter real intenção de impor a agenda – oras, se se mantinha no poder com o modelo atual, por que mudar? Melhor apenas usar o tema como propaganda, como tantos outros que nunca saíram do papel e são mesmo propositadamente deixados de lado, como reforma da mídia ou taxação de grandes fortunas. Acabou caindo no colo daquele que pertence ao mesmo partido do vice-presidente (Michel Temer), pese a massa petista o pintar como inimigo.

O PT escolheu o PMDB como aliado. Não existe isso de "não tinha opção", o PT já foi eleito quatro vezes para governar e escolheu o PMDB como aliado preferencial. Ninguém colocou uma arma na cabeça de Lula ou Dilma, nem para se aliar ao PMDB e nem para sair em fotos com Maluf, por exemplo. Escolhas foram feitas, assumam. O partido é aliado feliz do PMDB no Rio de Janeiro, estado de Cunha. Não há espaços para reclamação agora e nem para o consagrado "mimimi".

O modelo de Reforma Política proposto pelo PMDB e por Cunha é o pior dos mundos, com o famigerado "distritão", e conta com o apoio inclusive de Michel Temer, ou seja, conta com apoio no mais alto escalão governamental. Não é caso isolado, não é mera "birra" de Cunha, é uma política apoiada pelo principal aliado do PT.
Mas voltando ao tema, o fato é que o PMDB e especialmente Cunha adotaram o tema da Reforma Política e levaram adiante o projeto (o deles, claro) diante de um PT vendido ou ao menos se fingindo incapaz de resistir.

E digo que se finge porque teve força para impor a aprovação de MPs (664 e 665) ao Congresso que representa o maior retrocesso nos direitos trabalhistas na história recente do país, algo que sequer FHC foi capaz de conseguir (porque o PT, pasme, bloqueava enquanto era oposição). O PT foi capaz de impor pautas regressivas, privatizações, corte de direitos, mas, na hora de pautas progressistas e de esquerda, o congresso milagrosamente se torna um empecilho – ou, na verdade, a desculpa usada por um partido de direita para manter parte de uma militância que se pensa de esquerda na coleira.

Ou seja, o PT, quando quer, consegue impor suas pautas; pena que em geral estas sejam contrárias àquilo que pregavam antes das eleições ou mesmo durante toda sua história. Pautas de direita, retrógradas, contrárias aos interesses do povo e a seus direitos.
Resumindo, o PT trouxe o tema da Reforma Política como farsa, apenas para silenciar as ruas em 2013. Agora, o feitiço virou contra o feiticeiro.

Eis que, em um momento de estelionato eleitoral e de aparente fraqueza do governo, acuado, vitimado por protestos gigantescos e sem capacidade de reagir – além de envolvido em inúmeros escândalos de corrupção – ou sequer pensar em alternativas, seu principal parceiro político resolve retomar sua agenda e transformá-la no pior dos mundos.

Agora, fingindo correr atrás do prejuízo, os petistas tentam tirar o corpo fora: “a culpa é do PMDB”. “É do Cunha”. Oras, não cola. A culpa é de quem usou um tema tão importante apenas como marketing e agora finge ser atropelado pelo partido com quem governa o país em aliança, e com bilhões de reais desviados da Petrobrás como garantia.

Não nego que o modelo proposto por Cunha e PMDB, o "distritão", não seja do agrado de líderes do PT, mas não se trata deste debate. Não importa se o PT gosta ou não do modelo e sim que foi o responsável por permitir que chegássemos a este ponto. Não apenas por permitir, mas por ser o responsável por trazer o tema à tona sem qualquer compromisso em levar adiante o debate buscando dialogar com a sociedade, em busca de um modelo que efetivamente promovesse maior participação e representação democrática.

Em poucos meses após a reeleição de Dilma, tivemos os maiores cortes de direitos da história recente do país e a aprovação de um sistema político lamentável e prejudicial à democracia e aos partidos políticos. E os responsáveis são os mesmos: PT, PMDB, PSDB e seus aliados menores. PSDB, que liberou bancada, PMDB, que propôs a aberração e PT, que finge ser contra, mas cujo governo liberou a bancada. Ou seja...

Quem gritou durante as eleições por "reforma política" que assuma a responsabilidade por uma piora assustadora no sistema político brasileiro. Parabéns aos envolvidos, conseguiram tornar o ruim ainda pior, fingindo responder às ruas, mas na verdade lhes dando um tapa (ou pior).

Por sorte escapamos. Dessa vez. O que ainda nos espera?


Leia também:


Reforma Política proposta pelo atual Congresso eliminará de vez a voz da sociedade
 

Raphael Tsavkko Garcia, jornalista, doutorando em Direitos Humanos pela Universidad de Deusto (Bilbao) e mestre em Comunicação.

Fonte: Correio da Cidadania

"Eleições na Espanha: ‘o Podemos conseguiu o fato histórico de institucionalizar o descontentamento cidadão’". Escrito por Gabriel Brito (Correio da Cidadania)

PICICA: "Se no Brasil os levantes de junho de 2013 ainda não entraram na institucionalidade do país, na Espanha as grandes manifestações de 2011, cujo movimento ficou mundialmente conhecido como Indignados, acabam de desaguar em novos partidos e movimentos dentro da estrutura do poder. Para debater as eleições, seus resultados e a ascensão do Podemos, o Correio conversou com a professora e cientista política Esther Solana, madrilena radicada em São Paulo.

“Independentemente de orientações ideológicas, não podemos negar que a eleição do domingo foi histórica. Os movimentos populares organizados pela via da institucionalização podem chegar ao poder. O bipartidarismo estava completamente esgotado. A tendência na Europa é a radicalização, tanto à direita como à esquerda, e o surgimento de novos atores políticos, que respondem a esta lógica de radicalização do discurso partidário. Em tempos de crise é algo natural”, analisou.

No entanto, Esther alerta para os grandes desafios que se seguirão, especialmente quando vierem as eleições nacionais, nas quais o Podemos corre o risco de se aliar ao PSOE, o desgastado Partido Socialista. Por outro lado, destaca as prefeituras de Madrid, nas mãos de duas mulheres oriundas dos recentes movimentos de rua.

“O desafio será levar a cabo um verdadeiro programa de esquerda nos municípios onde as plataformas cidadãs governem. O programa de Colau (Barcelona) e Carmena (Madri) propõe lutar contra a pobreza urbana e a desnutrição infantil, evitar os cortes de água, luz e eletricidade dos mais afetados pela crise, parar com os despejos, revisar privatizações e contratos. Será difícil”, afirmou a professora da Unifesp." 

Eleições na Espanha: ‘o Podemos conseguiu o fato histórico de institucionalizar o descontentamento cidadão’ Imprimir E-mail
Escrito por Gabriel Brito, da Redação   
Sexta, 29 de Maio de 2015


Se no Brasil os levantes de junho de 2013 ainda não entraram na institucionalidade do país, na Espanha as grandes manifestações de 2011, cujo movimento ficou mundialmente conhecido como Indignados, acabam de desaguar em novos partidos e movimentos dentro da estrutura do poder. Para debater as eleições, seus resultados e a ascensão do Podemos, o Correio conversou com a professora e cientista política Esther Solana, madrilena radicada em São Paulo.

“Independentemente de orientações ideológicas, não podemos negar que a eleição do domingo foi histórica. Os movimentos populares organizados pela via da institucionalização podem chegar ao poder. O bipartidarismo estava completamente esgotado. A tendência na Europa é a radicalização, tanto à direita como à esquerda, e o surgimento de novos atores políticos, que respondem a esta lógica de radicalização do discurso partidário. Em tempos de crise é algo natural”, analisou.

No entanto, Esther alerta para os grandes desafios que se seguirão, especialmente quando vierem as eleições nacionais, nas quais o Podemos corre o risco de se aliar ao PSOE, o desgastado Partido Socialista. Por outro lado, destaca as prefeituras de Madrid, nas mãos de duas mulheres oriundas dos recentes movimentos de rua.
“O desafio será levar a cabo um verdadeiro programa de esquerda nos municípios onde as plataformas cidadãs governem. O programa de Colau (Barcelona) e Carmena (Madri) propõe lutar contra a pobreza urbana e a desnutrição infantil, evitar os cortes de água, luz e eletricidade dos mais afetados pela crise, parar com os despejos, revisar privatizações e contratos. Será difícil”, afirmou a professora da Unifesp.

A entrevista completa com Esther Solano pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em sua visão, quais os principais destaques das eleições municipais do Estado espanhol?

Esther Solano: A perda de legitimidade do modelo bipartidarista PP-PSOE. Só 52% dos eleitores votaram em algum dos dois partidos.

O PP ganhou as eleições em número de votos, mas diminuiu em 2.444.103 de votos com relação a 2011 e perdeu suas maiorias absolutas, com destaque para lugares emblemáticos como Valência ou Madri, tradicionalmente vinculados ao partido.

As candidaturas cidadãs de unidade popular que integram o Podemos – Barcelona em ComúAhora Madrid – foram as grandes vencedoras da jornada eleitoral

Correio da Cidadania: O que achou, neste sentido, da estreia eleitoral do Podemos? Que rumos a agremiação pode dar à política local? 

Esther Solano: Foi um sucesso porque as candidaturas que ele integra e as outras às quais deu muita força foram amplamente votadas. O Podemos conseguiu o fato histórico de institucionalizar o descontentamento cidadão surgido no movimento 15M (15 de março), transformá-lo em partido político e romper com a lógica bipartidarista. Tudo isso em pouquíssimo tempo. Fato histórico.
Agora, enfrenta o dilema das coalizões, essencialmente, de pactuar ou não com o PSOE para garantir Madri e Barcelona. Estas eleições municipais e regionais são indicativos para as nacionais, que serão em novembro. Tudo indica que o Podemos pode chegar com força ao parlamento nacional e, numa possível aliança com o PSOE, ter uma vitória sem precedentes.

Correio da Cidadania: Poderíamos dizer que, independentemente das inclinações de certos agrupamentos, esse pleito representa o movimento que ficou mundialmente conhecido como “Indignados”?

Esther Solano: Sem dúvida. Independentemente de orientações ideológicas, não podemos negar que a eleição do domingo foi histórica. Os movimentos populares organizados pela via da institucionalização podem chegar ao poder. Ou seja, os parlamentos e as prefeituras não estão tão longe da população como podem parecer. No entanto, essa população precisa de organização e interesse de utilizar os canais políticos tradicionais, com o intuito de mudá-los desde o interior de sua própria estrutura.

Correio da Cidadania: Chegou-se ao fim do bipartidarismo, período dominado pela polarização entre PP e PSOE? Trata-se de um indicativo do que pode ocorrer em outros países que caíram numa lógica parecida?

Esther Solano: Esse bipartidarismo estava completamente esgotado. Sim, a tendência na Europa é a radicalização, tanto à direita como à esquerda, e o surgimento de novos atores políticos, que respondem a esta lógica de radicalização do discurso partidário. Em tempos de crise é algo natural.

O exemplo de Grécia com Syriza, por um lado, e os neonazistas, pelo outro, é emblemático. Na França, a ultradireitista Frente Nacional nunca teve tanta força. Novos protagonistas políticos, mais polarizados ou velhos atores que se radicalizam (por exemplo, a posição de Cameron na Grã Bretanha, que vem dado uma virada intensa à direita) ,são uma tendência.

Correio da Cidadania: O que o Podemos, em seu entendimento, precisa fazer pra não cair na vala comum e ser apenas um fogo de palha?

Esther Solano: Esse é um grande risco. Preocupa-me, sobretudo, o fato de o Podemos ter uma cúpula muito hierárquica e centralizadora, que tem o risco de se afastar das bases. O discurso de partido sempre tem sido contra a casta e a velha política. Bem, ao se aliar com o PSOE para garantir o governo central, já está se aliando com essa velha política que tanto rejeita. Espero que, em nome da governabilidade, não venda sua alma, como já aconteceu em tantas outras ocasiões, mas não será fácil porque as velhas estruturas de poder continuam em pé

Correio da Cidadania: Em relação às regiões onde se discute a independência da Espanha, houve algum resultado que chamou atenção?

Esther Solano: Talvez o fato mais relevante é que Ana Colau, ativista anti-despejos, ganhe a segunda maior prefeitura do país, Barcelona. É algo altamente simbólico e excepcional. No País Basco, o nacionalismo continua sendo majoritário, o PP perdeu muito espaço e o Podemos entrou com força. Mas a disputa eleitoral continuou entre dois polos políticos nacionalistas: o PNV (Partido Nacionalista Basco, de direita) e o  EHBildu (País Basco Unido, de esquerda)

Correio da Cidadania: Quais as principais questões a serem enfrentadas daqui pra frente?

Esther Solano: Em um primeiro momento, as coalizões, os parceiros que as plataformas cidadãs querem ter no governo. A priori, a escolha mais natural seria que estas se aliassem ao PSOE, pela sua similaridade ideológica. Agora, o PSOE corre o risco de ser engolido pelo Podemos nas eleições nacionais. Outra opção, mais improvável, é um pacto entre PP e PSOE (como já sugerido por Esperança Aguirre) para afastar a Podemos do poder. Esse é o primeiro desafio das coalizões, o que sempre supõe perda de independência.

O segundo será levar a cabo um verdadeiro programa de esquerda nos municípios onde as plataformas cidadãs governem. O programa de Colau (Barcelona) e Carmena (Madri) propõe lutar contra a pobreza urbana e a desnutrição infantil, evitar os cortes de água, luz e eletricidade dos mais afetados pela crise, parar com os despejos, estabelecer uma fiscalização maior nas contas públicas, utilizar imóveis vazios para famílias com poucos recursos financeiros, revisar privatizações e contratos. Será difícil.

Correio da Cidadania: Os novos ventos políticos podem levar a uma rota de choque com os interesses dominantes na chamada comunidade europeia, a exemplo da Grécia e seu novo governo do Syriza?

Esther Solano: Sim, imagino que Alemanha, FMI e Banco Central Europeu não estão felizes com o resultado. Será uma disputa de forças interessante ver até que ponto uma agenda de esquerda pode ser implementada com as pressões da União Europeia e do FMI (que continua insistindo que Espanha deve levar a cabo mais reformas trabalhistas).

Mas isso irá se definir muito mais nas eleições nacionais, já que é o governo nacional quem dialoga diretamente com estas instâncias. Se a aliança Podemos-PSOE ganhar o poder nacional, aí, sim, muitos vão ficar descontentes. Porém, espero que respeitem a soberania do povo espanhol.

Gabriel Brito é jornalista.

Fonte: Correio da Cidadania

maio 30, 2015

"Espanha: é uma onda de levantes que começa". Entrevista com Paul B Preciado, por Paul Ludovic Laman

PICICA: "O filósofo Paul B. Preciado, personalidade dos estudos queer, é um estudioso observador e entusiasta das mutações políticas da Espanha. Depois da vitória de várias candidaturas cidadãs e “indignadas” nas eleições municipais, em particular Barcelona, um dos lugares onde mantém vínculo, o autor de Testo Junkie (Grasset, 2008) [edição brasileira no prelo, pela n-1 edições] retoma a gênese desses movimentos inéditos, que “repolitizam as classes médias empobrecidas pela crise”, e rompem com uma cultura política nascida da transição pós-ditadura franquista."

Espanha: é uma onda de levantes que começa

Entrevista com Paul B Preciado, por Paul Ludovic Laman, em Mediapart, 27/5/15 | Trad. Talita Tibola



PaulPreciado

O filósofo Paul B. Preciado, personalidade dos estudos queer, é um estudioso observador e entusiasta das mutações políticas da Espanha. Depois da vitória de várias candidaturas cidadãs e “indignadas” nas eleições municipais, em particular Barcelona, um dos lugares onde mantém vínculo, o autor de Testo Junkie (Grasset, 2008) [edição brasileira no prelo, pela n-1 edições] retoma a gênese desses movimentos inéditos, que “repolitizam as classes médias empobrecidas pela crise”, e rompem com uma cultura política nascida da transição pós-ditadura franquista.

O que mais lhe seduz na plataforma cidadã que ganhou as eleições no domingo, em Barcelona?

Eu acho tudo excitante. São partidos políticos novos, que não reproduzem a estrutura dos profissionais da política, que não têm nem dinheiro, nem as redes dos partidos “estabelecidos”. Na vitória de Ada Colau, várias coisas contaram que são bastante extraordinárias. Primeiro, a mobilização das classes médias empobrecidas, precarizadas pela crise depois de 2008. Essa politização é o resultado de um trabalho extraordinário, conduzido  por Ada Colau e a Plataforma dos Atingidos pelas Hipotecas (PAH; movimento contra despejos, lançado em 2009 na Catalunha), que soube alargar essa experiência e a sua força de transformação para além da própria rede de ativistas. Com a PAH, tocamos na questão da moradia, do habitat, da sobrevivência, da vulnerabilidade do corpo. A PAH soube organizar a vulnerabilidade para transformá-la em ação política. A comparação é forte demais, mas, pra mim, se passou em certa medida algo como as lutas pelos doentes de AIDS nos anos 80. Aquilo serviu de alavanca para repolitizar toda uma classe que passava por uma enorme depressão política. A captura dos desejos pelo capitalismo neoliberal produz uma depressão coletiva, que se exprime sob a forma de uma despolitização total. Inventando novas técnicas políticas, como o escracho, Ada Colau e outros reencantaram o campo da política. É sem dúvida o que há de mais belo na vitória deles. Os corpos saíram às ruas, e toda a cidade foi repolitizada pela presença deles.

Você fala de escrachos, essas ações conduzidas por Ada Colau e os ativistas da PAH para denunciar, um a um, diante de suas casas, os deputados “cúmplices” dos despejos imobiliários. São ações radicais, que dividiram os espanhóis. À época, era difícil prever que Ada Colau iria encontrar uma maioria ao redor de seu nome nas urnas…

Sim, são técnicas radicais, mas elas surgiram num momento em que a corrupção política era muito forte, e o fracasso do sistema democrático, significativo. É por isso que a Grécia e a Espanha constituem dois polos interessantes para acompanhar, engajados em processos de transição democrática recente. Na Espanha, tivemos 40 anos de ditadura e 40 anos de democracia. As nossas instituições democráticas são quase inexistentes. Elas são simples decorações mortas. Ainda se está em busca da democracia, poderíamos dizer que ela ainda é experimental. Existe uma fragilidade democrática que a França não conhece, onde tudo está mais estabelecido. Mas isso oferece uma possibilidade de experimentação institucional maior, – o que chamamos de “novas institucionalidades”. Tudo isso se inscreve também numa tradição política forte, na Espanha, na Catalunha, desde o século 19: aquela de um comunismo libertário, de um anarquismo, sempre marcado por uma dimensão muito utópica. Nós o vemos bem com Ada Colau que, ao mesmo tempo, é a mais pragmática de todas. É assim bem nítido em Teresa Forcades, com uma dimensão suplementar, um pouco mística [Teresa Forcades é uma religiosa hipermediatisada, conhecida pelo grande público por denunciar os lucros da indústria farmacêutica ao longo da epidemia de gripe aviária, e que apoiou a campanha de Ada Colau]. E nós podemos encontrar os traços em toda uma tradição espanhola, penso em mulheres como Clara Campoamor [feminista que contribuiu na redação da Constituição espanhola, em 1931], Federica Montseny [a primeira mulher ministra da República, em 1936, anarquista, feminista] ou ainda Dolores Ibárruri, la Pasionaria [secretaria do partido comunista espanhol entre 1942 e 1960]. Essa justaposição improvável entre anarquismo, comunismo libertário e um misticismo utópico, totalmente extraordinário, é com frequência encarnado, é verdade, por mulheres, mas não somente.

Nós lemos aqui e ali, artigos sobre o “protagonismo feminino” nesses movimentos cidadãos, encarnados por Manuela Carmena, em Madrid, e Ada Colau, em Barcelona. Você está de acordo?

Não. Há muitas mulheres na política, é tudo o que isso quer dizer… Senão, poderíamos dizer a mesma coisa na França com Marine Le Pen. Refletindo bem sobre isso, eu acho realmente essa questão escandalosa. É como se continuássemos definindo a política como um domínio reservado aos homens, e a partir do momento em que uma mulher tem o protagonismo político, se decreta que é excepcional. Eu lembro que há muitas mulheres poderosas à direita, no coração do PP, como Esperanza Aguirre [em Madrid] ou Rita Barbera [em Valencia], essas enormes “senhoras” da política. Portanto, não penso que podemos fazer uma análise de gênero do que acontece na França.

É também ligado ao fato que no Podemos, vemos, quase exclusivamente, homens no primeiro plano. É um problema?

Eu não acho. No Podemos, há também muitas mulheres, lésbicas, pessoas vindas do feminismo e do queer… eu não penso que o Podemos seja mais masculino, ou masculinista, que outros. O que continua me chocando, em contrapartida, são artigos da mídia espanhola sem nenhum interesse, desde o dia seguinte à vitória de Ada Colau, que apresentam o seu filho e o seu marido, que explicam como Ada Colau cozinha muito bem… isso volta a naturalizar, uma vez mais, a sua dimensão política.

Você fala da transição democrática espanhola. As eleições do 24 de maio marcam, enfim, uma ruptura com o regime de 1982, nascido da transição do franquismo?

O que está se passando é muito, muito importante. Nós chegamos a um momento de crise democrática maior. Os movimentos do 15M [referência ao 15 de maio de 2011, quando os “indignados” ocuparam as praças do país],  que os autoproclamados intelectuais de esquerda haviam desdenhado, julgando que não havia ali uma só ideia política, permitiram repolitizar as classes médias precarizadas. Isso engatilhou uma tomada de consciência, uma espécie de emancipação cognitiva diante das ditaduras simultâneas: de um lado, no fronte político, a continuidade das práticas ditatoriais de um sistema democrático – é a falência de um sistema democrático do qual falávamos. E do outro, uma falha econômica ligada com a ditadura do mundo financeiro. O que liga essas duas ditaduras é a corrupção. O que as pessoas fazem com o dinheiro público, como ele é gerido. Durante muito tempo, na Espanha, a denúncia da corrupção era acompanhada de uma forma de descompromisso geral:  “são todos ladrões, que se foda”. Graças ao 15M, passamos dessa constatação desabusada à invenção de novas práticas de controle democrático. Penso na PAH, mas também no Partido X, ou ainda em pessoas como Itziar González Virós e o parlamento cidadão – o Parlamento Ciutadà, um aparelho cidadão de contrapoder que se assemelha a movimentos heterogêneos para formar um contraparlamento. A questão não é mais: quem são os ladrões?, mas sim: quais são os mecanismos de controle democrático? É uma mudança muito importante.

Mas você cita estruturas herdadas do 15M, que são todas de contrapoder. Ada Colau acaba de se apropriar (tomar o) do poder. É diferente…

Nós não podemos compreender um sem o outro. As vitórias de Ada Colau e de Manuela Carmena são os simétricos de ação de contrapoder, de um conjunto de micropolíticas que reinventaram a política. Inventaram novas maneiras de controlar a democracia, num momento onde essa democracia espanhola havia desabado. O problema é que o sistema democrático continua muito degradado na Espanha, com instituições que funcionam de maneira não democrática. É toda a arquitetura do poder, regida pela Constituição, que contorna a democracia. E de repente, mesmo que você trabalhe no interior dessas instituições e que você queira fazer diferente, você percebe que não é possível.

É o mesmo debate que se coloca para a União europeia…

Sim. É a questão de transformações democráticas, Ou, vamos dizer, de práticas revolucionárias. Quando ouço Ada Colau ou Manuela Carmena falarem, eu ouço um discurso revolucionário. Como colocá-lo em ação, a partir das instituições que não são democráticas? É necessário pensar a revolução como um processo permanente, constituinte. Será preciso mudar radicalmente a arquitetura do poder – o sistema eleitoral, a Constituição e outras coisas. Não será fácil. Mas vivemos um momento extraordinário.

Você falou do terreno anarquista na Catalunha. Para Madrid, é muito surpreendente, não?

A tradição catalã é efetivamente mais libertária. Aconteceram jornadas libertárias nos anos 1970 na Catalunha. E fala-se sempre da movida madrilenha, mas foi em Barcelona que houve a verdadeira movida democrática. Em Madrid, tudo foi mais ligado ao partido comunista. Manuela Carmena  religa-se à tradição antifranquista, prova que se tem ainda necessidade disso em 2015. Desse ponto de vista, o diálogo Carmena-Colau permite fazer esse elo entre uma tradição antifranquista e os novos movimentos surgidos depois da crise de 2008, os “indignados”, o 15M etc. Às vezes, eu me digo que a direita não vai permitir que isso se passe assim, pois é muito bonito. Eu espero que o PP os deixe fazer as políticas que eles querem conduzir, que ele não as mate.

Você conhece bem a França, onde a paisagem política parece bem congelada. Não houve um momento fundador como o 15M em 2011. Existe mesmo assim elemento a copiar da Espanha, lições a tirar?

Eu gostaria que a efervescência pegasse também na França, que a extrema direita não fosse a única a aproveitar da crise. O aparelho do governo neoliberal opera em nível europeu e mundial. É preciso, portanto, uma grande rede de alianças de micropolíticas revolucionárias na Europa. Não são somente revoltas esparsas, mas é uma onda de levantes que começa. Não se trata de copiar as técnicas – os escrachos, ou primárias abertas na internet etc – mas de conseguir repolitizar o tecido social na França. Como fazer para repolitizar de outra maneira que não seja por uma política ultraidentitária? Pois a politização na França passa por uma linguagem nacionalista, pela questão de uma identidade francesa, pela política do medo. A questão é, portanto, de mudar as variáveis, de encontrar outras linguagens, outras práticas capazes de transformar o desejo coletivo.



Entrevista com Paul B. Preciado, por Ludovic Lamant,
Mediapart, 27 maio de 2015

Tradução: Talita Tibola


Fonte: UniNômade

"Uma islamização da revolta radical?". Entrevista com Alain Bertho (UniNômade)

PICICA: "Como o senhor interpretou os ataques terroristas do início do ano, em Paris?

Alguns dias depois dos atentados de 7 e 9 de janeiro, eu li Underground. Neste livro baseado essencialmente em entrevistas, o romancista japonês Haruki Murakami tenta compreender o ataque mortífero com o gás Sarin realizado pela seita Aum no metrô de Tokyo em 1995. Para isso, ele entrevistou vítimas, cujos testemunhos singulares ele restitui, além dos membros da seita. Seu trabalho mostra a que ponto, neste tipo de situação, duas experiências subjetivas inconciliáveis concorrem sobre o sentido do acontecimento: a das vítimas e a dos matadores. Na realidade, a experiência das vítimas é a de um porquê sem resposta. A repetição incessante dos testemunhos e da extrema dor não produz sentido.

Essa experiência de sofrimento físico e subjetivo é a matéria prima possível para construir enunciados sobre o período que se inicia. Vimos em janeiro na França, vimos novamente em Tunis em março. Quando « as palavras não são mais suficientes», ou até mesmo quando «não há palavras» para expressar, é que o acontecimento é, no sentido próprio do termo, «impensável». É o que nos mostra Haruki Murakami nos dois terços de seu livro consagrados aos passageiros do metrô cuja vida foi revirada, ou mesmo, aniquilada, pelo atentado. Mas o que dá sentido ao ato e garante a sua continuidade subjetiva antes, durante e depois, é o que pensam aqueles que foram seus atores ou que poderiam ter sido. É o que indaga Haruky Murakami ao dar a palavra a membros do Aum. Ele nos oferece à leitura uma intelectualidade compartilhada entre alguns assassinos e alguns japoneses muito mais pacíficos em nome de quem os atentados foram cometidos. Ele nos mostra como, ainda que a concretização do atentado seja sempre excepcional, ela se enraiza numa visão de mundo e numa experiência compartilhadas. É o elemento que nos falta hoje para compreender completamente os dias 7,8 e 9 de janeiro de 2015."

Uma islamização da revolta radical?

Entrevista com Alain Bertho, professor de Paris VIII, pela revista Regards, republicada online no blogue Mediapart, 13/5/15 | Trad. Clarissa Moreira



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Como o senhor interpretou os ataques terroristas do início do ano, em Paris?

Alguns dias depois dos atentados de 7 e 9 de janeiro, eu li Underground. Neste livro baseado essencialmente em entrevistas, o romancista japonês Haruki Murakami tenta compreender o ataque mortífero com o gás Sarin realizado pela seita Aum no metrô de Tokyo em 1995. Para isso, ele entrevistou vítimas, cujos testemunhos singulares ele restitui, além dos membros da seita. Seu trabalho mostra a que ponto, neste tipo de situação, duas experiências subjetivas inconciliáveis concorrem sobre o sentido do acontecimento: a das vítimas e a dos matadores. Na realidade, a experiência das vítimas é a de um porquê sem resposta. A repetição incessante dos testemunhos e da extrema dor não produz sentido.

Essa experiência de sofrimento físico e subjetivo é a matéria prima possível para construir enunciados sobre o período que se inicia. Vimos em janeiro na França, vimos novamente em Tunis em março. Quando « as palavras não são mais suficientes», ou até mesmo quando «não há palavras» para expressar, é que o acontecimento é, no sentido próprio do termo, «impensável». É o que nos mostra Haruki Murakami nos dois terços de seu livro consagrados aos passageiros do metrô cuja vida foi revirada, ou mesmo, aniquilada, pelo atentado. Mas o que dá sentido ao ato e garante a sua continuidade subjetiva antes, durante e depois, é o que pensam aqueles que foram seus atores ou que poderiam ter sido. É o que indaga Haruky Murakami ao dar a palavra a membros do Aum. Ele nos oferece à leitura uma intelectualidade compartilhada entre alguns assassinos e alguns japoneses muito mais pacíficos em nome de quem os atentados foram cometidos. Ele nos mostra como, ainda que a concretização do atentado seja sempre excepcional, ela se enraiza numa visão de mundo e numa experiência compartilhadas. É o elemento que nos falta hoje para compreender completamente os dias 7,8 e 9 de janeiro de 2015.

Regards. Como reconstituir completamente o quadro?

É a nossa vez de fazer esse trabalho e compreender o sentido dos atentados de Paris. Nossa subjetividade – podemos compreender isso – se recusou a fazê-lo. Ficamos siderados, chocados. Para fazer o luto deste trauma foi necessário construir uma narrativa que não é a dos assassinos. Mas, apesar do horror que isso nos inspira, devemos compreender o sentido que eles deram a seu ato. O qualificativo de terrorista é muito geral e genérico. Estamos lidando com o encontro de experiências pessoais e de uma figura contemporânea e mortífera da revolta que só a lógica policial e militar não vai conseguir neutralizar. Os atos de Amedy Coulibaly e dos irmãos Kouachi, como os de Mohammed Merah, são desfechos de histórias singulares, histórias francesas. Como aquela de alguns milhares de jovens franceses que partiram para a Síria. Como a história dos que, em número bem maior, não necessariamente olham com tanto horror como nós para esta guerra anunciada contra o Ocidente corruptor. Da mesma forma, os salafistas tunisianos, grupo de onde vêm os assassinos do Bardo, são especialmente bem estabelecidos em Sidi Bouzid e Kasserine, no berço da revolução, de dezembro de 2010- janeiro de 2011. Pior ainda, muitos deles eram atores desta revolução e não eram salafistas na época.

Regards. Os eventos passados ​​poderiam ajudar a entender o que está enraizado aqui e agora? Como você entende a conversão ao Islã de jovens sem ligação com a cultura árabe, por vezes, e por vezes vindos de ambientes de esquerda, muito engajados?

A meu ver é preciso entender que não estamos lidando com um fenômeno sectário isolado, especialmente porque não estamos lidando com uma “radicalização do Islã”, mas sim com uma islamização radical da revolta. Enquanto os atuais salafistas tunisianos mais ativos ainda não tinham se convertido ao Islã quando foram mobilizados contra Ben Ali, sabe-se que os candidatos franceses ao Jihad são frequentemente recém convertidos ou, como Coulibaly e os irmãos Kouachi, praticantes tardios. A verdade dos seus telefones celulares e de seu pensamento não deve ser procurada na teologia, no islamismo geral ou no wahhabismo em particular, mas nas propostas de coerência política contemporâneas que usam. Se a confessionalização do mundo e dos confrontos está realmente no centro destas propostas, elas estão longe de ter o monopólio hoje. Esta confessionalização mobilizou mais gente, na França ou em outros lugares, na rua (“Manif para todos“), como nos governos. O grande evento que nos trouxe até aqui é, sem dúvida, o colapso dos Estados comunistas e do comunismo no final do século 20 e, nesta mesma linha, o colapso da figura política moderna que fazia da conquista do poder uma base para as transformações coletivas. Perdemos no mesmo movimento a esperança revolucionária e o sentido da representação eleitoral. Perdemos ao mesmo tempo uma relação política e popular com o tempo histórico, na qual o passado tornava possível compreender o presente e o presente preparava o futuro.

Regards. Que formas adquire a ruptura desta ligação?

Para uma geração que chega hoje na idade adulta, uma coisa é óbvia: ao final do caminho tomado por seus pais, eles imigraram para uma vida melhor, militaram por um melhor amanhã ou trabalharam para seu “sucesso” pessoal, mas há um impasse. Acabou a esperança coletiva de revolução ou de progresso social e há pouca esperança de sucesso individual. A contagem regressiva do planeta começou sem que nada impeça a corrida ao desastre. Com a globalização financeira, a vida pública é dominada pela corrupção dos Estados e as mentiras dos governos. Sob estas condições, os valores da República Francesa podem parecer um pouco desencarnados. A referência obsessiva à memória substituiu a reflexividade da narrativa histórica. E nós perdemos o sentido do passado, porque não temos mais uma subjetividade coletiva do futuro. Tudo isso, sabemos mais ou menos. Mas precisamos pensar sobre as articulações e consequências. O que é uma revolta que não tem nem esperança nem futuro? Quando se tem isso em mente, compreendemos melhor o poder subjetivo de propostas jihadistas. O único futuro proposto é a morte: a “dos descrentes, dos judeus e dos cruzados”, como a dos mártires que terminarão no paraíso levando com eles setenta pessoas. Quando se tem isso em mente, também se entende melhor a publicidade feita por Daech em torno da destruição dos vestígios do passado e do patrimônio cultural. Se esse passado mentiu sobre o nosso futuro, ele só serve para mentir mais ainda.

Regards. O problema é que esta escolha se volta a um Islã dos mais regressivo, mais intrusivos …

Na verdade… O salafismo, porque é disso que se trata, repousa sobre um sentido dado à vida que não deixa nenhum espaço para a liberdade. É o Islã em uma versão das mais totalizantes. Uma de suas atrações é baseada no domínio do íntimo, a supressão dos desejos e prazeres, um enquadramento proposto para todos os atos e momentos da vida como um ato de resistência ao capitalismo e “ao Ocidente corruptor.” Em toda a organização da revolta, há uma figura de uma possível libertação e a dificuldade de uma luta, uma disciplina e uma ética. Vivemos o colapso de construções que combinaram essas duas dimensões ao mesmo tempo libertadoras e vinculativas. O comunismo foi no século 20, sua forma maior. Ele deu sentido ao sofrimento, à vida diária e ao mesmo tempo, ele propôs uma subversão. Nós ainda estamos no momento após o colapso do comunismo, mas também do Terceiro Mundo. O ciclo político do século XIX e XX se fecha.

Regards. A demanda não é expressa apenas no campo espiritual ou religioso. Ela adquire formas políticas explícitas, como com EI, o Estado Islâmico .

Há uma demanda por política e por um quadro de vida que se reflete no nome que se dá a este movimento radical, o Estado Islâmico. Ele não tem nada de um Estado no sentido moderno da palavra: ele não garante nem a paz nem o respeito pela alteridade. Em vez disso, baseia-se inteiramente sobre a guerra e a morte ao outro. Não é nem nacional, nem territorial, mas tem vocação universalista multilocalizada com o jogo de alianças, o que só vai aumentar. Mas é uma potência de combate a serviço desta radicalidade mortífera, uma potência que – como o poder maligno de Luc Besson no Quinto Elemento – é reforçada e ganha influência quando atacada.

Regards. Podemos traçar um paralelo entre a extrema esquerda hiper-politisada que se lançou ao terrorismo na década de 1970 e estes atos individuais, sem reivindicação?

O colapso da categoria «futuro» que discutimos, e que o antropólogo Arjun Appadurai tem como centro do seu último livro O futuro como fato cultural: ensaios sobre a Situação Global, é sem dúvida uma das dimensões tocadas pela onda de manifestações que atingiu o mundo desde o início deste século. Nos últimos anos, essa onda foi propagada por grandes movimentos coletivos como a chamada Primavera Árabe, a mobilização brasileira contra a Copa do Mundo, a mobilização Turca contra o projeto urbanístico da Praça Taksim… Acabamos de viver uma sequência de confrontos entre povos e autoridades equivalentes à “Primavera das Nações” de 1848, às revoluções comunistas após a Primeira Guerra Mundial e a 1968. Há dois desdobramentos possíveis para essa sequência de mobilizações: a construção de uma figura durável da revolta e da esperança encarnada em movimentos políticos organizados ou em perspectivas institucionais, ou a deriva rumo ao desespero e a violência das minorias. Após 1968 tivemos as Brigadas Vermelhas, o Baader Meinhof, e a deriva terrorista no Japão. Durante a última década, uma geração se revoltou. Se nada parece se mover, como se surpreender que alguns decidam mudar para a “fase 2″? É a experiência biográfica dos assassinos de janeiro. Em 17 de setembro de 2000, Amedy Coulibaly, que tinha então 18 anos de idade, rouba motocicletas com um amigo, Ali Rezgui, de dezenove anos. Eles são perseguidos pela polícia, que atira e Ali morre em seus braços em um estacionamento em Combs-la-Ville. Nenhuma investigação foi aberta sobre o episódio. Isso provoca dois dias de motim em Grand- Borne[1]. Onde estão todos os participantes das manifestações de 2005? E todos os que os observaram tudo aquilo com simpatia? Como é que eles olham para a vida e a política? Como eles viram os eventos de janeiro? Nós não os ouvimos nem antes, nem durante, nem depois, desde 7 de janeiro. No dia 8 à noite, eu não fui até a Praça da República, mas à manifestação em frente à Câmara Municipal de Saint-Denis, a cidade onde eu moro. Raramente vi tantas pessoas, tão comovidas. Mas ao mesmo tempo, eu raramente vi tão pouco “todo tipo de gente”. Houve certamente todas as redes militantes. Mas tão poucas pessoas comuns, desconhecidas, jovens dos bairros mais desfavorecidos. Tomados em nossa emoção coletiva, nós prestamos atenção na clivagem silenciosa que estava tomando forma ali?

Regards. Como você vivenciou a grande manifestação de 11 de janeiro?

É um evento complexo. Eu não sei se nós já conhecemos na história uma mobilização tão imensa, construída sobre o desespero. Eu a vivi um pouco como uma marcha fúnebre, o funeral da geração de 68. É sobre essa grande confusão que o Estado foi capaz de construir algum sentido, a que ele deu um nome: “o espírito de 11 de Janeiro “. Há na frase “Eu sou Charlie” pelo menos duas coisas que precisamos esclarecer. Primeiro, o “eu” que não é imediatamente um “nós” somos Charlie. Porque o nós não pré-existe a essa confusão, ele é construído ao compartilhar a emoção e encontros. É por isso que ele é ideologicamente plástico. Em seguida, houve Charlie. Pois houve três categorias de vítimas: os “incrédulos” (Charlie), os judeus (os «Hypercacher») e os “cruzados” (o oficial do 11º arrondissement e a polícia Montrouge). Mohammed Merah já havia atacado judeus e “cruzados” sem suscitar tanta emoção. E nós apostamos que se Coulibaly agisse sozinho e se irmãos Kouachi não tivessem atacado Charlie, a mobilização não seria absolutamente a mesma. Algo se uniu ao ataque a um jornal pouco conhecido e pouco lido, que se tornou o símbolo de uma liberdade coletiva de uma forma mais segura do que teria sido, talvez, outro jornal de grande circulação. Sem que soubessem, os assassinos atacaram testemunhas dos anos 60-70, tocando em memórias de infância e juventude, últimos vestígios da rebelião juvenil de uma outra época. Porque, por um lado, como os estudantes universitários disseram a seus professores, também foram assassinados “vovôs”. Mas parte do mal-entendido nacional está aí. De certa forma, uma equipe herdeira de Maio de 68 levou até o fim batalhas que se tornaram distantes ou distorcidas, em relação às questões de hoje. Charlie inscreveu sua irreverência face ao Islã na linhagem de sua oposição a igrejas e dogmas que bloqueiam a liberação da sociedade. Eles não tiveram a percepção de que na França do século 21, atacar deste modo o Islã, é também ferir o povo dominado para quem aquele era um ponto de apoio ético no enfrentamento do sofrimento social.

Regards. “O espírito de 11 de janeiro” não tocou o senhor…

Mais uma vez, quem detém o significado do evento? Quem o construiu? É o poder que fala do “Espírito de 11 de Janeiro.” Repito, o consenso da emoção foi construído sobre um não-dito. Os incidentes em torno do minuto de silêncio foram indicativos deste não-dito. E, em vez de ouvir o mal-estar que alguns exprimiram naquele momento, eles foram no sentido próprio «silenciados», sujeitos ao opróbrio geral, ou até mesmo «judiciarizados». Passamos assim da emoção compartilhada à emoção obrigatória. Pretendemos incutir os valores da República Francesa através da autoridade? Sabemos, há pelo menos uma geração, que estes valores são promessas quebradas. A obrigação de aderir a eles é mais uma forma de violência. Uma das grandes fraquezas do mundo institucional é a de pensar que podemos responder a tudo isso com os valores do passado, por meio da transmissão. Os valores verdadeiros de uma geração são aqueles que ela constrói ao retrabalhar o passado, colocando em questão sua própria experiência. A transmissão não é suficiente. O próprio dos valores é dar um sentido ético à experiência. Infelizmente, isso é o que faz para alguns, o significado da jihad e seu poder de atração.

Regards. Que relação entre os jihadistas daqui, que se vão para a Síria, e aqueles que contestaram o minuto de silêncio?

Somos confrontados com várias trajetórias subjetivas e de certo modo, desconexas. É um erro grosseiro equiparar aqueles que desafiaram o minuto de silêncio aos candidatos ao jihad, ou a seus admiradores. E mesmo aqueles que vão para a Síria não estão necessariamente condenados ao assassinato individual. Há nesta passagem para o ato radical uma desconexão ou surto irracional. Mas há um contexto, experiências ecoando, outras formas de compartilhar. Como em outras ocasiões, o contexto atual é poderoso o suficiente para polarizar surtos psíquicos ou dar um significado contemporâneo à loucura. Para os jovens de Grande-Borne, Amédy Coulibaly é identificado como “doido”, ou seja, um pouco desequilibrado em sua mente. De que contexto subjetivo estamos falando aqui? Esta é uma experiência compartilhada, de confusão e revolta contra a política, meios de comunicação social, institucional, que não levam em conta o desconforto ou a dor das classes populares, e que as confessionalisa e estigmatiza. Isso representa mais do que a experiência de uma “exclusão” objetiva. É a experiência coletiva de uma negação subjetiva. O que eles sentem não existe oficialmente.

Regards. Quais são as conseqüências dessa negação da existência?

Não devemos subestimar os efeitos devastadores destas experiências populares: a experiência da mentira permanente no discurso político e jornalístico, em seu próprio lugar. Esta experiência é destrutiva da própria noção de verdade e alimenta todos os boatos e todos os complots de que se alimentam Alain Soral e amigos. Se o “sistema” governa com mentiras, todo o discurso autorizado, mesmo o científico, é marcado pelo selo da suspeita. Além disso, a negação do sofrimento alimenta toda a concorrência vitimisante. A partir deste ponto de vista, a influência do humorista Dieudonné como herói “antissistema” deveria ter sido considerada como um sintoma mais global e não como um desvio moral isolado. Mas a indiferença geral à islamofobia também abriu o caminho para um renascimento antissemita muito além daqueles que foram suas vítimas. Sem desagradar ao presidente do Conselho Representativo das Instituições Judaicas(CRIF), os profanadores do cemitério Sarre-Union em fevereiro não eram muçulmanos. O resultado hoje é que a islamofobia progride, e o antissemitismo também. Diante da extrema-direita islamofóbica, oficialmente a FN (Frente Nacional), um terreno fértil está agora pronto para mais uma extrema-direita, “revolucionária”, como é chamada, popular e antissemita.

Regards. E agora?

Um período termina … A conversão para o jihadismo é agora uma possível figura da revolta. A resposta a esta tragédia não é, certamente, a criação de uma nova figura da ordem, mesmo se Republicana. A resposta virá com uma figura alternativa e contemporânea da revolta, uma revolta que não é o campo da negação do futuro, da negação do passado e do ódio ao pensamento. As duas principais questões que estão diante de nós são em relação ao possível e a paz. “Podemos”, diz o movimento de Iglesias em Espanha. Quando o poder da financeirização nos tranca em cálculos de probabilidades e riscos, é urgente abrir um possível sem o qual o futuro é apenas uma palavra vazia. E quando a guerra ou a ameaça de guerra (ou terrorismo) está se tornando uma forma de governo, é tempo para restaurar o significado de uma perspectiva de paz coletiva que não se dá através de uma política securitária nem através de ataques aéreos meio que em todas as partes do mundo. Talvez seja isso que os manifestantes do 11 de janeiro nos disseram. Eu não tenho certeza que eles tenham sido realmente ouvidos quanto a isso.


Esta entrevista foi extraída da «Pesquisa sobre o engajamento dos jovens» da edição de primavera da Revista «Regards», com a autorização da redação da revista.

PS. Essa discussão deve muito ao trabalho coletivo no seminário “As mobilizações face às figuras contemporêneas do Estado,” que eu conduzo com Sylvain Lázaro na Universidade de Paris 8.

NOTA

[1] Imenso conjunto habitacional na periferia de Paris.

Fonte: UniNômade

"Manuela Carmena: da reinvenção da justiça à reinvenção da democracia". Por Priscila Pedrosa Prisco

PICICA: "A votação expressiva da plataforma Ahora Madrid que tem Manuela Carmena como sua principal figura, 31%  na capital da Espanha ficando apenas um pouco atrás da candidata da situação, no último 24 de maio,  significa um grande passo para a democracia espanhola. Juíza emérita do Supremo Tribunal da Espanha, já aposentada, ela tem uma longa trajetória na defesa de direitos humanos dos trabalhadores. Também teve um grande papel na luta antifranquista como advogada trabalhista.

O que podemos aprender com Manuela Carmena?"

Manuela Carmena: da reinvenção da justiça à reinvenção da democracia

Por Priscila Pedrosa Prisco, UniNômade



Carmena



A votação expressiva da plataforma Ahora Madrid que tem Manuela Carmena como sua principal figura, 31%  na capital da Espanha ficando apenas um pouco atrás da candidata da situação, no último 24 de maio,  significa um grande passo para a democracia espanhola. Juíza emérita do Supremo Tribunal da Espanha, já aposentada, ela tem uma longa trajetória na defesa de direitos humanos dos trabalhadores. Também teve um grande papel na luta antifranquista como advogada trabalhista.

O que podemos aprender com Manuela Carmena?

A nova prefeita de Madri se dedicou a pensar uma forma de aproximar a justiça ao justo. Ou seja, considera que o poder judiciário só será independente quando os seus dirigentes puderem ser eleitos pelo congresso através de um processo de consulta cidadã. Não só isso, ela também propõe que os cidadãos participem diretamente da administração da justiça e atuem tanto na hora da prevenção quanto na hora da repressão pelo poder judiciário, através de mecanismos complexos capazes de restaurar o valor da dignidade humana.

Sua crítica se estende ao isolamento da justiça que acarreta em uma falta de vinculação com a sociedade. Neste ponto, temos muito a aprender, já que o Judiciário brasileiro também parece estar isolado no formalismo e afastado do conceito de justiça. Muitas vezes, se concentra em dar eficácia às injustiças legais. Desta forma, a crise do sistema jurídico pode ser pensada de forma analítica dentro de um sistema que não pretende referir-se a realidade social, pressupondo o que o sociólogo Niklas Luhmann de tautologia circular, que ocorre quando o sistema se autorrefere operativamente sem se comunicar com o entorno.

A magistrada nos traz algumas soluções possíveis de corrigir esta falha do sistema jurídico, pois a sua crítica ao sistema é no sentido de que as leis acabam se convertendo em algo feito por um governo, independentemente dos efeitos que produzem na sociedade, advertindo para os perigos da busca pela mera eficácia, sem levar em conta os destinatários da norma.

No Brasil, as jornadas junho de 2013 deixaram ilesos em sua crítica os sistemas de justiça e acabaram sendo desmobilizados por uma interferência política na criminalização de manifestantes. Talvez Manuela nos sirva como um bom exemplo para começar a pensar em formas criativas e originais de participação cidadã na administração da justiça, que valorizem a defesa de valores democráticos para a implementação de uma justiça equitativa e igualitária.

Uma das principais questões para a reinvenção da justiça, segundo Manuela Carmena, passa pela comunicação das estruturas judiciárias com os cidadãos, estes considerados por ela como potenciais agentes de transformação. Para lograr esse intento seria necessária a quebra das liturgias e hierarquias simbólicas dos tribunais, que acabam por criar uma imagem de superioridade entre magistrados e cidadãos na aplicação da lei. Em uma sociedade violenta como a nossa, humanizar a justiça não implica em deixar de responsabilizar aqueles que violam as leis, mas sim desenvolver um novo método que aproxime a sociedade dos valores multidimensionais a serem considerados na hora de identificar as causas da violação.

O caso do médico esfaqueado na Lagoa parece ter sido a gota d´água do caos social em que nos encontramos. A completa ausência de políticas sociais capazes de incluir negros e pobres na sua condição de cidadãos, nos arrasta para mais uma triste forma de empurrar as causas da violência para baixo do tapete. O discurso moralizante da análise do crime já parece ter perdido o consenso, mesmo no tratamento pela imprensa. Não foi outra a conclusão que cheguei ao ver a diferença das capas do jornal O globo e jornal Extra na descrição do mesmo evento.

Infelizmente, a resposta reativa majoritária ainda vem sempre com espetáculos de discursos criminalizantes, que contaram até com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil, na proposta desengavetada ontem pelo congresso nacional de criminalização do porte de faca. O populismo penal parece atender a histeria coletiva que já não sabe lidar com medidas preventivas, através da elaboração de programas que valorem programas complexos, contando com a participação de instituições, sociedade civil, legisladores, polícia, juízes, prisões e também coletivos de voluntariado para um trabalho diário de reeducação e reinserção dos setores marginalizados. Prestar atenção em Manuela Carmena vale a pena, sobretudo pelo seu esforço em salvar vidas e preservar na cultura o valor de qualquer vida.



Fonte: UniNômade

maio 28, 2015

Carl Hart em visita ao Brasil (vídeo completo)

PICICA: "Em maio de 2014, o CESeC promoveu a vinda ao Brasil de Carl Hart, neurocientista da Universidade de Columbia e estudioso dos fenômenos científicos e sociais relacionados ao uso de crack. Durante sua passagem pelo país, Hart realizou palestras e participou de encontros com estudiosos e ativistas de várias instituições, além de ter lançado a versão brasileira de seu livro 'Um Preço Muito Alto', traduzido pela Editora Zahar.

O Estúdio Fluxo documentou a visita de Carl Hart e a transformou em uma série de vídeos, que também podem ser vistos aqui, no canal da campanha Da Proibição Nasce o Tráfico.

www.daproibicaonasceotrafico.com.br
www.ucamcesec.com.br
www.fluxo.net"


Carl Hart em visita ao Brasil (vídeo completo)

Da Proibição Nasce o Tráfico

"Metrópoles e Multidão: das políticas públicas às políticas do comum." Entrevista especial com Alexandre Mendes (IHU)

PICICA: "Compreender o espaço urbano à luz dos conceitos “metrópole”, “neoliberalismo” e “biopolítica” é fundamental para perceber como este se constitui enquanto um “território das lutas e da produção de uma nova subjetividade, aquela correlata às modificações da relação entre produção e espaço”, pontua Alexandre Mendes em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.


Na avaliação dele, a metrópole é hoje uma “verdadeira ‘fábrica social e difusa’, uma nova usina produtiva que opera, não por linhas, moldes e rígidas topologias, mas por redes, modulações e apreensões intensivas do fluxo social”. Ele explica que essas “apreensões buscam, justamente, a apropriação de tudo que é produzido em comum através das relações e cooperações que entram em ebulição no movimentado caldeirão das metrópoles”.

Na entrevista a seguir, Mendes traça ainda uma distinção entre o que vem a ser a cidadania concebida a partir da ideia de “comum” e as formas keynesianas ou neoliberais que propõem a gestão do espaço urbano, sinalizando que o conceito de comum “nos ajuda a pensar também nas formas atuais de fazer política e luta na metrópole”. As políticas do comum, diferente das demais, pontua, “assumem o desafio de caminhar para além do bem-estar e da dívida (do público e do privado), buscando potencializar formas de conduta e de subjetivação que deslizam dos mecanismos disciplinares-fabris e do biopoder das finanças (...). Elas assumem o terreno biopolítico e produtivo da metrópole garantindo e proliferando espaços de cooperação, encontro de singularidades, mobilização e constituição relativamente autônoma da vida. Elas miram naquilo que Lefebvre e Bachelard definiam como uma poética do espaço: o habitar como poeta, a vida como obra de arte”.
Alexandre F. Mendes (foto abaixo) é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Criminologia e Direito Penal pela Universidade Cândido Mendes – UCAM. Foi Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2011, tendo coordenado o Núcleo de Terras e Habitação (2010).

Atualmente pesquisa Teoria Política e Teoria do Direito e realiza investigações em Sociologia Jurídica e Sociologia Urbana. É pesquisador associado do Laboratório Território e Comunicação – LABTEC da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e participa da rede Universidade Nômade e dos Círculos de cidadania – Rio de Janeiro, Publicou, com Bruno Cava, o livro A vida dos direitos. Violência e Modernidade em Foucault e Agamben (2006). É coeditor da Revista Lugar Comum: Estudos de Mídia, Cultura e Democracia, da UFRJ." 

Metrópoles e Multidão: das políticas públicas às políticas do comum. Entrevista especial com Alexandre Mendes

“A metrópole venceu: ela implodiu-explodiu todos os muros disciplinares que pretenderiam governar o espaço e irrompeu como um fenômeno global”, afirma o pesquisador.

Foto: Blog adcidade
Compreender o espaço urbano à luz dos conceitos “metrópole”, “neoliberalismo” e “biopolítica” é fundamental para perceber como este se constitui enquanto um “território das lutas e da produção de uma nova subjetividade, aquela correlata às modificações da relação entre produção e espaço”, pontua Alexandre Mendes em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.



Na avaliação dele, a metrópole é hoje uma “verdadeira ‘fábrica social e difusa’, uma nova usina produtiva que opera, não por linhas, moldes e rígidas topologias, mas por redes, modulações e apreensões intensivas do fluxo social”. Ele explica que essas “apreensões buscam, justamente, a apropriação de tudo que é produzido em comum através das relações e cooperações que entram em ebulição no movimentado caldeirão das metrópoles”.

Na entrevista a seguir, Mendes traça ainda uma distinção entre o que vem a ser a cidadania concebida a partir da ideia de “comum” e as formas keynesianas ou neoliberais que propõem a gestão do espaço urbano, sinalizando que o conceito de comum “nos ajuda a pensar também nas formas atuais de fazer política e luta na metrópole”. As políticas do comum, diferente das demais, pontua, “assumem o desafio de caminhar para além do bem-estar e da dívida (do público e do privado), buscando potencializar formas de conduta e de subjetivação que deslizam dos mecanismos disciplinares-fabris e do biopoder das finanças (...). Elas assumem o terreno biopolítico e produtivo da metrópole garantindo e proliferando espaços de cooperação, encontro de singularidades, mobilização e constituição relativamente autônoma da vida. Elas miram naquilo que Lefebvre e Bachelard definiam como uma poética do espaço: o habitar como poeta, a vida como obra de arte”.

Alexandre F. Mendes (foto abaixo) é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Criminologia e Direito Penal pela Universidade Cândido Mendes – UCAM. Foi Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2011, tendo coordenado o Núcleo de Terras e Habitação (2010).


Atualmente pesquisa Teoria Política e Teoria do Direito e realiza investigações em Sociologia Jurídica e Sociologia Urbana. É pesquisador associado do Laboratório Território e Comunicação – LABTEC da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e participa da rede Universidade Nômade e dos Círculos de cidadania – Rio de Janeiro, Publicou, com Bruno Cava, o livro A vida dos direitos. Violência e Modernidade em Foucault e Agamben (2006). É coeditor da Revista Lugar Comum: Estudos de Mídia, Cultura e Democracia, da UFRJ. 


Confira a entrevista.

Foto: Cristina Guerini
IHU On-Line – De que maneira devemos compreender a Metrópole contemporânea? Por que ela se tornou um conceito-chave para decifrarmos os desafios do século XXI?
 
Alexandre F. Mendes - Há muito tempo se percebe um sonho disciplinar com relação à cidade. Do acampamento romano ao planejamento moderno, trata-se de esquadrinhar o espaço a partir de uma lógica hierárquica, geométrica e funcional, que busca organizar os fluxos da cidade através de fronteiras bem determinadas. Le Corbusier, o famoso arquiteto suíço, abre o seu livro L’Urbanisme invocando o caminhar do homens, aquele que avança em linha reta, com postura altiva, sendo coberto de racionalidade, contra o caminhar das mulas, andar torto, em curvas, direcionado ao chão, que gera confusão e produz uma mistura perigosa para os homens. No mesmo livro, a metrópole de Nova York aparece como o contraexemplo ruidoso de todo urbanismo possível: amálgama pernicioso, espaço dissonante, usina tóxica de homens perdidos. No entanto, no confronto com a utopia da cidade-racional, talvez seja o caso de afirmar que a metrópole venceu: ela implodiu-explodiu todos os muros disciplinares que pretenderiam governar o espaço e irrompeu como um fenômeno global. Não por acaso, em seus breves comentários sobre o urbano, Foucault notou que a escola americana (os urbanistas de Chicago) tinha captado a tendência biopolítica das cidades: não esquadrinhar o espaço a partir de um marco zero, mas compreender e estar inserido nos fluxos produzidos pelo próprio urbano.


A metrópole, então, é este híbrido biopolítico, espaço da desmedida, território mil-folhas, terreno da proliferação. Se, para Foucault, o controle da peste reclama uma solução disciplinar, a metrópole deve ser pensada através do contágio e da proliferação. É evidente que nos deparamos, portanto, com novas e sofisticadas formas de controle (a normalização cujo modelo, para o filósofo, é o controle da varíola), mas também com extraordinárias possibilidades de disseminação de novas resistências.

IHU On-Line – Nesse sentido, como as concepções da Metrópole e da Multidão inauguram categorias sociológicas e filosóficas com potência para o surgimento de novas construções democráticas e de direitos em nossas sociedades?


Alexandre F. Mendes - É interessante notar que vários autores, de diferentes matrizes, perceberam que na virada política dos anos 1970 residia uma nova forma de abordar o urbano. Henri Lefebvre, no livro A revolução urbana, recusou ver o espaço como um meio indiferente, como aquela “soma dos lugares onde a mais valia se forma e se distribui” (Lefebvre, H. 1970), para reconhecer que, cada vez mais, o espaço era produzido por um trabalho social de caráter global. O urbano irrompe, portanto, como um conjunto de relações que penetra e constitui o espaço como um campo de interações e atividades sociais, afastando o papel central do mapa físico e da utopia do plano (Simoni de S., 2013). Na mesma década, o filósofo Antonio Negri provocou uma interessante polêmica em torno da passagem do conceito de operário-massa para o operário-social. Tratava-se de constituir o urbano como o território das lutas e da produção de uma nova subjetividade, aquela correlata às modificações da relação entre produção e espaço. Recentemente, a metrópole é percebida como uma verdadeira “fábrica social e difusa”, uma nova usina produtiva que opera, não por linhas, moldes e rígidas topologias, mas por redes, modulações e apreensões intensivas do fluxo social. Essas apreensões buscam, justamente, a apropriação de tudo que é produzido em comum através das relações e cooperações que entram em ebulição no movimentado caldeirão das metrópoles. Por isso podemos facilmente tecer uma relação entre metrópole, neoliberalismo e biopolítica. O neoliberalismo, segundo Foucault, seria justamente uma arte de governar que busca um governo da sociedade, uma política da vida, isto é, ele não se caracteriza por um governo econômico das trocas, mas da condução e constituição das próprias relações sociais, do “ambiente social” e das subjetividades a partir da forma-empresa.


É possível provocar um novo tipo de “greve” (ou seja, de luta social e por direitos), no horizonte móvel das metrópoles biopolíticas? A resposta é, sem dúvida, afirmativa e poderia ser desdobrada em inúmeros exemplos. Para mencionar um deles, é curioso perceber que, a partir da década de 1990, iniciou-se uma reflexão sobre a governança global das metrópoles, convertidas não apenas em verdadeiros players, mas em máquinas de produção de novas hierarquias. É a figura simbólica do “arranha-céu” de Saskia Sassen (o comando está no topo), mas também dos “territórios de fragmentação e dinheiro” de Milton Santos (as solidariedades verticais cujo epicentro são as empresas hegemônicas). Por outro lado, não poderíamos afirmar que, a partir da crise de 2008 e do ciclo de lutas da primavera árabe, não se formou uma cooperação, desde baixo, entre várias metrópoles insurgentes: Cairo, Madrid, Atenas, Nova York, Istambul, São Paulo, Rio de Janeiro etc., renovando e requalificando as lutas anteriores por outra globalização (Seattle, Gênova, Bangalore, Cochabamba etc.)?


Centralidade do comum


É a partir de ambos os ciclos que podemos enxergar um amplo e intenso trabalho de reflexão e construção de uma nova linguagem e composição de direitos que têm como fio condutor a centralidade do comum: direitos relacionados à proteção e ao compartilhamento autônomo de saberes, informações e linguagens; direitos voltados para o acesso e organização democrática dos serviços relacionados diretamente à vida (energia, água, tecnologia etc.), direitos relacionados ao bem viver (no vocabulário restrito do Fórum Social Mundial V: “os bens comuns da Terra e dos povos”), direito de auto-organização de territórios indígenas, direito a viver e se expressar a partir de diferentes culturas e cosmovisões, direitos relacionados a uma cidadania global etc. Além disso, recentemente, os direitos relacionados à mobilidade urbana, à preservação dos espaços comuns da metrópole (parques, áreas de uso comum etc.) e, fundamentalmente, os direitos clássicos (políticos e sociais) requalificados como direitos à produção da própria metrópole, marco que está para além da ideia municipalista e cívico-republicana de participação. É talvez nesse último ponto também que reside a dupla distância entre uma cidadania concebida a partir do comum e as formas keynesianas ou neoliberais de gestão da vida e do urbano.

"A metrópole é este híbrido biopolítico, espaço da desmedida, território mil-folhas, terreno da proliferação"




"A metrópole é este híbrido biopolítico, espaço da desmedida, território mil-folhas, terreno da proliferação"

 




IHU On-Line – Como podemos caracterizar as políticas públicas e as políticas do comum?


Alexandre F. Mendes - Poderíamos afirmar, de forma bem sumária, que o século XX, especialmente no período entre guerras e após a Segunda Guerra Mundial, conviveu, em grande parte, com políticas de distribuição cuja referência é o bem-estar (New Deal, keynesianismo, Plano Beveridge etc.) e o terreno de sustentação era a regulação salarial fordista (Cocco, 1999). A política social era pensada ou como contrapeso às características selvagens da acumulação capitalista, ou como resultado positivo e generoso de uma política econômica bem-sucedida. A repartição dos recursos deveria ocorrer por uma permanente regulação pública que buscava efeitos de igualdade material e socialização do consumo. No campo político, a negociação da distribuição se dava através de uma representatividade garantida por processos de homogeneização produtiva e social (partidos, sindicatos e movimentos sociais setorizados). Sabemos que as lutas em torno de uma distribuição sempre mais vantajosa, associadas às revoltas contra os processos de disciplinamento do operário-massa, produziram uma reviravolta cuja reposta são as políticas neoliberais que já tinham sido concebidas contra os primeiros movimentos de socialização e planificação da economia do início do século.


Financeirização da vida

Tendo a desigualdade como regulador geral da sociedade, o neoliberalismo propõe que cada indivíduo-empresa possa, ele próprio, se garantir contra os riscos inerentes à existência humana, através de contratos de seguro, da financeirização e da privatização dos serviços (moradia, saúde, educação etc.), da propriedade individual como instrumento de alavancagem e de um permanente esforço de aprimoramento do “capital humano” para fazer frente ao nível estrutural de desemprego. A homogeneização fordista se dilui em um sem-número de formas de contratação, realocação produtiva, arranjos organizativos móveis e flexíveis, transformação da forma-empresa e modulação do salário na direção de rendas sempre variáveis. As finanças se transformam no dispositivo de governo da nova força de trabalho através da dívida e de mensuração permanente uma produção que, como vimos, é cada vez mais socializada e correlata à própria vida. Com relação à tradição do bem-estar, a passagem para uma política do indivíduo-empresa endividado (Lazzarato, 2012) gerou dois movimentos curiosos: primeiro, a adesão de uma série de partidos sociais-democratas e socialistas ao neoliberalismo, fenômeno cuja história remete ao SPD alemão nos anos 1960 e que encontra uma série de exemplos na atualidade; segundo, uma defesa cada vez mais nostálgica, pelo tradicional campo de esquerda, de políticas de bem-estar e regulação pública que não encontram mais um terreno material de sustentação no pós-fordismo.


Os dois processos podem ser explicados por uma interessante observação de Foucault em suas aulas sobre o neoliberalismo: o socialismo nunca possuiu uma “arte de governar” própria, necessitando pegar de outras governamentalidades a sua razão e os seus princípios. Isso explicaria tanto sua rápida oscilação para as políticas neoliberais de individuação, como sua total falta de imaginação para contrapor essas políticas com uma razão governamental que não seja keynesiana, planificadora e interventiva. As políticas do comum, pelo contrário, assumem o desafio de caminhar para além do bem-estar e da dívida (do público e do privado), buscando potencializar formas de conduta e de subjetivação que deslizam dos mecanismos disciplinares-fabris e do biopoder das finanças (Marrazzi, 2011). Elas assumem o terreno biopolítico e produtivo da metrópole garantindo e proliferando espaços de cooperação, encontro de singularidades, mobilização e constituição relativamente autônoma da vida. Elas miram naquilo que Lefebvre e Bachelard definiam como uma poética do espaço: o habitar como poeta, a vida como obra de arte (Naback, 2015). Seu instrumentos não se reduzem aos mapas físicos, eles priorizam uma cartografia afetiva do território; não buscam elaborar um plano, operam por intensidades já existentes nas próprias interações sociais. Como propõe o urbanista Andy Merrifield, trata-se de estender o conceito de direito à cidade para ampla política de encontros no terreno das metrópoles globais.


IHU On-Line – Como as políticas do comum se tornam alternativas? O que há de novo nesta perspectiva?


Alexandre F. Mendes - A questão é como pensar uma política da vida que deslize, ao mesmo tempo, das tradicionais perspectivas de bem-estar e também da biopolítica neoliberal do endividamento. Poderia citar dois eixos de debates interessantes sobre o assunto: na América Latina, em torno do conceito de bem viver e, na Europa, em torno do conceito de commonfare. Em ambos os casos assume-se o terreno do alterfordismo descolonial e do chamado capitalismo cognitivo para pensar políticas de renda universal, de produção do comum a partir de novas concepções de natureza e cultura, de acesso e gestão comum dos recursos naturais/artificiais, de mobilizações produtivas que não passam pelo neoextrativismo, pelo crescimentismo ou formas de acumulação que hibridizam velho desenvolvimentismo e neoliberalismo? Como pensar os direitos e a democracia como ponto de partida e não de chegada do que convencionamos chamar “desenvolvimento”?


No campo da denominada Reforma Urbana, cuja origem remonta ao desenvolvimentismo social da década de 1960, não há mais como adiar esse debate. É preciso superar o saudosismo de uma regulação estatal distributiva e assumir inflexões que são urgentes: pensar o comum para além da função social da propriedade (da regulação pública para a auto-organização dos recursos urbanos), pensar a participação social como coprodução e ocupação do urbano, para além do ideário cívico e da delegação e representação nas instâncias participativas, pensar as lutas da metrópole e as novas plataformas de mobilização, para além da forma-movimento tradicional e, fundamentalmente, ter generosidade política e intelectual para deixar-se atravessar por essas novas dinâmicas. Percebo que há uma geração de pesquisadores/ativistas que já estão inteiramente mergulhados nesses desafios.

"Como pensar os direitos e a democracia como ponto de partida e não de chegada do que convencionamos chamar 'desenvolvimento'?"

"Como pensar os direitos e a democracia como ponto de partida e não de chegada do que convencionamos chamar 'desenvolvimento'?

IHU On-Line – De que maneira a viabilização de novas plataformas de mobilização estão imbrincadas com a construção das políticas do comum?


Alexandre F. Mendes - O conceito de comum nos ajuda a pensar também nas formas atuais de fazer política e luta na metrópole. Poderia destacar dois pontos importantes das experimentações realizadas nos últimos anos, cujo ponto de condensação foram as Jornadas de Junho de 2013, que no Rio se estenderam de forma potente até, pelo menos, fevereiro de 2014. Em primeiro lugar, a liberdade de constituição das mobilizações. Até 2013, as lutas da cidade eram majoritariamente protagonizadas por movimentos sociais que já estavam consolidados na cidade e que encontram seu ponto de origem, ou na década de 1980, ou na expansão do terceiro setor dos anos seguintes. Em junho, o comentário das redes tradicionais de ativismo era que finalmente tornava-se possível “participar de protestos e encontrar pessoas totalmente novas fazendo política”.


Quem eram essas pessoas? Como estavam se organizando? Por que estavam nas ruas? As incertezas geradas pela novidade produziram um efeito paradoxal: por um lado, apareceu um número de pessoas nas ruas e nas redes que realmente intimidou o poder e o fez assumir, de forma momentânea, várias demandas clássicas do movimento social; por outro, o estranhamento gerou uma série de questionamentos sobre as formas de organização, a gramática e a estética das lutas, a autonomia da mobilização, a presença ou não de uma narrativa segura ou um “projeto claro” etc. Do sindicalismo de categorias fechadas, imaginou-se um novo sindicalismo metropolitano baseado na produção social do espaço e nos trabalhadores da cidade (assembleias populares, ocupas, a luta dos garis, dos professores, tendo como ponto de conexão o bem viver na metrópole); da lógica centralizada de convocação para ações políticas e transmissão de informações, criou-se uma rede polifônica de autoconvocação, de produção de imagens, signos e novos enunciados; da forma coordenada e hierarquizada de organizar atos e protestos, testaram-se composições transversais, múltiplas e de código aberto.


Linguagem comum


Uma linguagem comum foi criada a partir de uma circulação contundente e afetiva: “Amarildo”, como sabemos, foi um dos nomes dessa linguagem. Sem dúvida, foi o momento de uma riqueza comum e infinita. Infelizmente, depois da restauração operada em 2014, através de uma mistura de repressão, chantagem interna realizada no período eleitoral e performances repetitivas no campo do ativismo, essa experiência de liberdade desapareceu. A grande vitória (de Pirro) do governismo foi ter destruído a imaginação e a liberdade de junho colocando-o novamente sob direção das organizações tradicionais enfraquecidas que negociam permanentemente com a cúpula petista. O resultado é o abandono atual, pelas chamadas “forças de esquerda”, de qualquer possibilidade de interação com a indignação social e de uma base material para a construção de sentidos radicalmente democráticos. A chamada “onda conservadora”, que domina o Congresso e parcialmente as ruas, não pode ser vista como um raio que caiu de um céu azul, ela é o resultado imediato do aniquilamento da potência criativa e rebelde da multidão de junho.


IHU On-Line – De que maneira a criação de novos dispositivos políticos de radicalização democrática são emperrados pela lógica que fez emergir um consenso autoritário?


Alexandre F. Mendes - A irrupção de 2013 significou um forte dissenso com relação à ideia de um Brasil Maior, um país de suntuosos projetos, grandes obras, agrobusiness e megaeventos alavancados sobre um terreno de desigualdade, racismo, péssimos e caros serviços urbanos, problemas estruturais nos serviços sociais, ausência de direitos básicos etc. No mesmo movimento operou-se uma dinâmica destituinte desse tipo de concepção de “desenvolvimento” e um poder constituinte que expressava outra ideia de democracia, produção do urbano e de bem viver na cidade e na floresta. É certo que, depois do susto, houve uma restauração “por cima” realizada por uma calculada reestruturação das forças de segurança em âmbito nacional e estadual e um vigilantismo que, mesmo atabalhoado, transformou as redes em territórios extremamente vigiados.


Por exemplo, a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática - DRCI, no Rio de Janeiro, funciona como um verdadeiro DOI-CODI dos novos movimentos, instaurando inquéritos que envolvem boa parte dos coletivos e redes que se propõem a prolongar democraticamente o dissenso. Mas confesso que, ultimamente, tenho refletido sobre a restauração realizada “por baixo”, aquela que parte da premissa que a Soberania, hoje, só consegue se exercer através de um biopoder capilar e insidioso. Participei recentemente de uma banca de mestrado sobre a luta das prostitutas do prédio da Caixa em Niterói (Brandão, 2015), uma luta importante que questionava a gentrificação promovida por uma operação urbana consorciada de “revitalização”. E o que é narrado no trabalho? Que uma prostituta por ter participado de uma audiência pública sobre o caso foi sequestrada e passou a ser ameaçada de morte. Que a polícia civil, sem qualquer ordem judicial, invadiu os apartamentos do prédio espalhando o pânico entre as trabalhadoras. Que em razão do ativismo as protagonistas do movimento estão sem trabalho e sobrevivendo com o apoio de ONGs. Posso dizer, a partir da minha experiência anterior de defensor público e por acompanhar vários casos parecidos até hoje, que isso se repete diariamente no Rio de Janeiro.


Que tipo de biopoder é esse?


Que tipo de biopoder é esse que encara o dissenso democrático mais elementar como uma razão para represálias brutais? Como uma pessoa pode ser ameaçada de morte por participar de uma audiência pública? E outro ponto curioso do trabalho, o prefeito que enviou os projetos legislativos da OUC e enaltece a “revitalização” desconsiderando a luta das prostitutas é do Partido dos Trabalhadores. Não digo isso para dizer que o PT responde diretamente por todas as camadas de violência que se formou no Brasil através de séculos, mas para afirmar que ele não demonstra mais qualquer incômodo de participar dos empreendimentos especulativos sustentados por uma trama urbana que é mafiosa e truculenta. Ora, e se colocamos o fato publicamente, se afirmamos a indistinção dessa forma de fazer política com relação à forma dos partidos brasileiros tradicionais e reacionários (PMDB, PSDB, DEM etc.), olhos abismados ou debochados serão direcionados para nós, como se estivéssemos anunciando um absurdo. Nesse sentido, o novo arranjo (a)político que se formou no pós-eleição, ou seja, a ideia de que vivemos uma polarização entre uma direita fascista e uma esquerda vitimada, é mantido capilarmente por um extensa rede de relações sociais e comunicacionais que tenta recuperar grandes escalas de consenso a partir da resposta a estímulos, diria “jogos de cena”, lançados nas redes.

 


"O desafio é constituir novamente uma multidão de mídias que afirme o dissenso com criatividade, liberdade e recupere uma comunicação viva"

O “homem mediatizado”, figura analisada pelo filósofo Antonio Negri num livro recente, não é apenas aquele que é silenciado pela grande mídia. A subjetividade mediatizada é aquela que perde completamente a capacidade de distinguir a informação viva (a linguagem comum das lutas) da informação morta (a linguagem vazia do poder), destituindo-se de qualquer potência de criação. O fato escandaloso não é a simples utilização dos “robôs” que multiplicam a propaganda das redes sociais. O incrível é perceber a operação no campo da produção de subjetividade, que transforma sujeitos insurgentes em simples reprodutores de um marketing cada vez mais falacioso. Nesse sentido, para além do binarismo “mídia hegemônica” versus “mídia contra-hegemônica”, o desafio é constituir novamente uma multidão de mídias que afirme o dissenso com criatividade, liberdade e recupere uma comunicação viva que rompa com o atual “governo das condutas” operado nas redes.

"O desafio é constituir novamente uma multidão de mídias que afirme o dissenso com criatividade, liberdade e recupere uma comunicação viva"




IHU On-Line – Partindo do diagnóstico realizado, como seria possível desbloquear as plataformas de radicalização democrática para além da imposição do consenso?


Alexandre F. Mendes - Acredito que o primeiro desafio é sentir-se livre para a experimentação de muitas formas de comunicação, encontros, momentos de trocas, reflexão e ação no espaço metropolitano. É evidente que não há fórmula a ser seguida e que o fundamental é termos uma multiplicação de iniciativas diversas que retomem a abertura de espaços de ação político-afetiva no território. Pessoalmente, tenho participado dos chamados círculos de cidadania, que surgiram com o propósito bastante modesto de promover algumas ações cidadãs no urbano, a partir de dinâmicas territoriais, social-sindicais e de reflexão sobre o momento político. É interessante notar que um dos últimos textos de Henri Lefebvre discutia o papel da cidadania no horizonte globalizado e metropolitano do capitalismo contemporâneo. Para ele, uma cidadania no mundo urbanizado passava pela inflexão do cidadão formal (o citoyen de base nacional) para o citadino: aquele que é capaz de ações políticas e de construir poéticas próprias para uma vida urbana plena. Nesse sentido, como produzir uma cidadania “a quente”, que nos permita viver a metrópole como uma experiência do comum? É uma pergunta que nos permite imaginar um repertório de possíveis respostas e tentativas, e uma boa parte delas já está sendo ensaiada no terreno vibrante e, ao mesmo tempo, perigoso, das metrópoles globais.


Por Ricardo Machado e Patricia Fachin

Fonte: IHU