junho 30, 2015

Outra velhice é possível?, por Lilian Primi (OUTRAS MÍDIAS)

PICICA: "Eles ousaram nos anos 60 e hoje reinventam sua irreverência, ampliam fronteiras da vida e inovam para as próximas gerações"

Outra velhice é possível?

Os atores Maria Alice Vergueiro e Luciano Chirolli, na peça "Why the horse"
Os atores Maria Alice Vergueiro e Luciano Chirolli, na peça “Why the horse”

Eles ousaram nos anos 60 e hoje reinventam sua irreverência, ampliam fronteiras da vida e inovam para as próximas gerações

Por Lilian Primi, na Caros Amigos | Imagem: Sidnei Martins

– Então, você continua usando drogas?

– Hã, como? O que você está pensando? – Sem saber se ficava bravo ou se ria, o velho chacoalhava as mãos ao lado das orelhas, como se pudesse desfazer a pergunta no ar.


O velho é o poeta Claudio Willer, hoje com 74 anos, precursor do movimento beat no Brasil, o terror da São Paulo dos anos 60, amigo e parceiro intelectual de Roberto Piva – outro poeta ainda mais maldito. E na cabeça da repórter, interessada em vasculhar sua velhice, passavam as histórias que tinha lido e ouvido sobre aquela turma desde muito tempo.


O pretexto da entrevista era buscar experiências reais do que os estudos demográficos vêm mostrando a partir de meados da primeira década deste século. Os velhos de hoje, que em parte são os hippies de ontem, não se comportam nem são exatamente o que se espera de um vovô. “É a geração que fez uma grande revolução de comportamento, principalmente entre as mulheres, e que agora está chegando aos 60 até 70 anos”, diz a economista Ana Amélia Camarano, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso.

Ana é autora do livro Os Novos Idosos Brasileiros – Muito Além dos 60?, em que detalha esse novo perfil, e também coordenadora do estudo Novo Regime Demográfico, e afirma que vivemos um momento de contração da população, associada a um superenvelhecimento. Movimentos em certa medida provocados pela vitória de parte dos ideais da geração Paz e Amor. “Tivemos a pílula, na questão reprodutiva, que desvinculou o sexo da maternidade; e a legalização do divórcio. Hoje ninguém mais casa virgem e há uma tolerância muito maior com a homossexualidade”, explica. A pesquisadora diz que ainda resta muito do antigo conservadorismo, mas liberdades que estavam na pauta da militância dos anos 60 hoje estão disseminadas por toda a sociedade, incluindo a classe média, sempre preocupada em preservar os costumes. “Porque depende de aceitação social”, explica Ana.

O superenvelhecimento da população se dá porque essas mudanças nos arranjos sociais acontecem ao mesmo tempo em que cresce a expectativa de vida, graças aos avanços da medicina. “Hoje há uma supervalorização da carreira profissional da mulher associada à desvalorização da maternidade. Isso veio depois, com forte ajuda da mídia, e está nos levando a um grande desequilíbrio. Somos uma sociedade que não se reproduz. Está difícil nascer e (por conta dos avanços da medicina) está difícil morrer também”, avalia Ana Amélia. “Se você for ver as novelas, revistas femininas, tudo mudou”, continua. “A mídia valorizou demais certos aspectos da revolução social”.

Por exemplo, se antes a família feliz das novelas era aquela em que havia um casal com muitos filhos, em que a mãe sempre aparece de avental; depois da revolução de costumes, essa mesma família feliz da ficção tem poucos ou nenhum filho e a mulher é uma profissional invariavelmente bem colocada e independente. “Também não há mais um padrão como antes, em que havia um casal com filhos onde o homem é o provedor e a mulher, a cuidadora doméstica. Hoje se aceita todo tipo de arranjo, incluindo famílias de casais homossexuais, mesmo idosos, como nesta última novela da Globo”, aponta Ana. As projeções, não apenas no Brasil, indicam que a população irá começar a diminuir em, no máximo, 20 anos.

Velhos Pioneiros

Neste novo cenário, as pessoas com mais de 60 anos estão inovando também na forma como encaram os problemas e limites da velhice. “Costumamos ver a adolescência como a idade que inventa novas formas de vida, mas quero crer que desta vez teremos uma geração de velhinhos pioneiros. A clínica vem mostrando isso de forma radical e inquestionável”, diz o psicólogo Christian Dunker, professor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, graças aos recursos virtuais, hoje só permanece viúvo ou viúva quem quer. “Ou quem resiste às novidades. Só fica limitado sexualmente na terceira idade quem tem preconceito contra Viagras e Cialis, por exemplo”, argumenta.


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Sentado na mesa do café, com um copo de soda italiana nas mãos, Willer parece como tantos outros da mesma idade. A transgressão está nas escolhas que fez, expressas na sua poesia. Nos anos de 1960 morava sozinho numa quitinete vizinha ao apartamento de seus pais, na esquina da Nove de Julho com a Major Quedinho, no centro da cidade; transformado em sede da contracultura paulistana. Apesar das farras e bebedeiras, fazia duas faculdades (psicologia e sociologia e política), lia e escrevia freneticamente e era um agitador cultural conhecido pelos saraus de poesia marginal, eventos que frequentemente provocavam escândalos, mas sempre de alta qualidade literária.

Sua rotina hoje não é muito diferente, com exceção dos escândalos. Mantém o mesmo roteiro de estudo-arte-balada. “As ações mais diretas, não me arrependo delas, mas numa certa altura ficaria redundante. Saio para dançar ou alguma programação”, diz. Vive de dar aulas, oficinas e workshops e continua escrevendo. O poeta mantém um blog na rede, com um público médio de 900 pessoas por dia, que considera muito bom, já que não é exatamente um artista de massa. É verdade também que hoje é bem mais difícil provocar escândalos, graças justamente à ação de pessoas como ele. Ainda mora sozinho, embora não mais na quitinete do centro, pois não se casou nem teve filhos por opção ideológica. “Nem me passa pela cabeça ter família. Sou um anarco-individualista. Afinal, ou se é contra a instituição ou não!”, afirma.

Questionado a respeito do medo da solidão, um temor característico da idade, reage surpreso. “Que solidão? Não tem solidão. Apenas não me casei. Tive companheiras, mas nunca tive vontade de ter filhos. Sei lá por que. Gosto de ser eternamente freelancer”, justifica. Ele reafirma as escolhas que fez no passado. “Aprontar, insultar literatos, fazer manifesto, agitar, fazer farras, eu absolutamente não me arrependo e faria muito mais se pudesse”. Limitações? Apenas financeiras. “Hoje, se fosse manter o mesmo ritmo e padrão de consumo da minha juventude, ia à falência. E naquela época eu vivia de mesada”, diz. Tem ótima saúde.

Sobre o que seriam “ações mais diretas”, ele sugere a leitura de Dentes da Memória, um relato franco sobre os tempos da quitinete, feito por ele, Roberto Piva, Antonio Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli, companheiros mais próximos, com participação de Massao Ohno, o editor que revelou todos eles, e também Jorge Mautner, Sergio Cohn, Antonio Bivar, entre outros nomes de peso da cultura de vanguarda. Parte dos escândalos vinha das opções pessoais de Piva, que além de poeta genial e absolutamente anárquico, era um homossexual assumido numa sociedade que achava normal espancar gays, prostitutas e hippies. No relato de Dentes da Memória, há o caso de dois rapazes que foram internados em um manicômio simplesmente por andarem com o Piva. A turma decidiu, uma noite, invadir o hospital e sequestrar os dois.

Coerência ou falta de noção?

Christian Dunker ressalta que a atual geração de idosos tem a seu favor a experiência, uma vez que é pioneira pela segunda vez. “São os herdeiros da contracultura dos anos 60, da geração que fez a revolução sexual criando, ao mesmo tempo, outro modelo do que viria ser uma vida bem realizada”, explica. Não foram atingidos pela imagem de vida feliz que Ana cita dos roteiros das novelas, que iria prosperar depois, nos anos de 1980. “Não são dominados pela narrativa do trabalho-consumo que marcou os babies boomers do pós-guerra. Os nossos velhinhos flowers-power são também, por aqui, os que fizeram e sofreram a ditadura. Quem tinha 20 anos em 1964 e hoje está com 70 anos, está desprovido de uma referência para o que vem a ser envelhecer”, explica o psicólogo.

A atriz Maria Alice Vergueiro tornou-se um ícone desse grupo de velhinhos por manter profunda coerência com as escolhas que fez ao longo da vida. Aos 71 anos, virou um fenômeno da comunicação virtual com um bem humorado vídeo, batizado de Tapa na Pantera, termo que designa “fumar um baseado”, sobre sua relação de 30 anos com a maconha. Lançado em agosto de 2006, foi visto até o momento por mais de 6 milhões de pessoas e levantou um grande debate: Maria Alice seria ou não usuária real de maconha? Afinal, ela fuma ou não fuma todos os dias há 30 anos, como diz no vídeo, formalmente classificado como uma peça de ficção? “Sim, fumo, meu neurologista diz que é ótimo para controlar o Parkinson e é mesmo”, garante hoje, oito anos e várias reedições de Tapas na Pantera depois, incluindo uma versão mais completa em livro.


A atriz recebeu a reportagem no apartamento que herdou do pai, no bairro de Higienópolis, com Luciano Chirolli, também ator, 50 anos, com quem vive há 23 anos. “Tivemos um encontro de alma, de arte, de tudo”, diz ele, que conta o tempo ao lado da amada pelo número de peças que montaram juntos. “Estamos juntos há oito espetáculos”, informa. No último, a peça Why the horse?, Maria Alice encena sua morte. Era para ser uma comédia, na linha do Tapa na Pantera, mas as pessoas se emocionam. “Existe uma turma que chora na plateia. Levei um susto! A pessoa chorar e me esperar lá embaixo chorando. Juro que eu não entendi….”, diz a atriz.

“É um público fiel dela, que fica muito tocado ao vê-la entrar sem a cadeira de rodas. Encaram como uma superação”, explica Luciano, que além de ajudar no dia a dia e na arte, é o seu cuidador. Ultimamente também ajuda “dando” (dizendo, no jargão do ator) o texto quando o Parkinson a faz tropeçar nas palavras. Foi assim na entrevista e é assim em cena. Hoje com 80 anos, os cabelos já todos brancos e dificuldade de movimento por causa de complicações ocorridas depois de uma queda – uma bactéria se alojou na prótese que tem no joelho –, a atriz se prepara para uma cirurgia. “Até lá, estamos controlando com antibióticos, para evitar que essa bactéria se espalhe pelo corpo”, explica o parceiro.

A rainha do underground, a tetaraneta do Conde Vergueiro, professora da USP que deu as costas para sua classe e fugiu com o circo – ela tinha então 16 anos de magistério; a atriz famosa e mãe que foi na TV dizer que gosta de namorar com meninos e meninas, que viveu uma relação afetiva com 20 pessoas ao mesmo tempo, não ia ficar sentada esperando a hora chegar. Enquanto espera a cirurgia, Maria Alice segue com apresentações de Why the Horse? e negocia a venda de uma turnê para o Sesc. E faz planos. “A gente não poderia… pensei nisso agora, vender o meu velório? Hoje em dia tem funerárias que compram. Pode até ter música”.

Filhos na loucura

“Sabe, quem me faz entrevistas, geralmente não entra nessa parte. Porque é tão fora de propósito que ninguém acredita que seja eu mesma. Não acham que sou eu, os meus vizinhos, por exemplo. Acham que aquilo é um personagem. Então eu fico com essas duas possibilidades”. A pergunta era como ela lida com a questão do consumo de drogas com seus dois filhos, com o motorista do táxi ou o português da padaria. Nos anos de 1970, no entanto, quando decidiu se juntar definitivamente ao Teatro Oficina – ou fugir com o circo, como ela diz –, esse jogo de personagens que usa hoje para contracenar com o social do cotidiano não era possível. E com os filhos, em momento nenhum. “Nunca escondi deles”, diz.

Quando decidiu ir morar no teatro, os dois filhos de Maria Alice eram adolescentes, nascidos de um casamento recém desfeito com um promotor público. Além da vida realmente coletiva – dormiam todos juntos –, havia a repressão política. “As crianças ficaram com a minha mãe. É a velha história. Até tentei levá-los para lá, mas era impossível”, diz. “Ir morar no Oficina tinha uma lógica política. Éramos um coletivo de resistência, com a participação de pessoas de fora do teatro também”, conta. O teatro foi invadido várias vezes pela polícia, as montagens começaram a ser proibidas até que o diretor, José Celso Martinez Correia, foi preso. Nesse momento houve uma batida no teatro, que obviamente estava bem abastecido de aditivos. Todos os que estavam no local foram presos como traficantes. “Tudo que a gente colocava a mão estava subvertendo. Era sempre uma ação política, mas na verdade era uma política enrolada, né? Eles queriam nos pegar pela droga e a gente dizia que fazer droga, tomar droga era também ato político. Na verdade a gente segurava uma barra política”, conta. Maria Alice não foi presa. “Eles deviam me achar louca demais”, pondera, e solta o riso.

A experiência de Helena Ignez, atriz e diretora de cinema, ex-mulher de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, foi mais dura nesse sentido. Casou-se com Glauber quando tinha 19 anos e vivia o auge da revolução hippie na ultraconservadora Salvador, Bahia, no final dos anos 1950. Foram cinco anos de intensa relação afetiva e profissional, segundo ela, que gerou uma filha, Paloma, hoje diretora de TV. Na época, o divórcio não era legal. Havia apenas o desquite e a mulher ficava “marcada”, como se dizia.

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“Eu me casei e me separei e tinha essa vida libertária que hoje ficou normal. As chances de uma mulher divorciada criar os filhos eram praticamente inexistentes. Era impossível. Perdi a guarda da minha filha só porque descasei. A Paloma foi criada pela avó, mãe do Glauber. Esse esquema existe até hoje em algumas partes do mundo. Em certos países asiáticos, por exemplo, em comunidades ciganas, quando a mulher se separa, a primeira coisa que fazem é tomar a criança, para que a mãe volte. Esse comportamento medieval com a mulher era normal no começo dos anos 60. Não me lembro de ninguém que tenha achado uma injustiça o que aconteceu comigo e com a Paloma”, conta a atriz. Ela diz que felizmente, não perdeu a relação e o afeto e apesar de não poder morar com a filha, a acompanhou a vida toda.

Helena é, como seus colegas, completamente ativa aos 73 anos, segue uma evolução natural em sua carreira, como se a velhice não existisse, quanto mais aposentadoria. Quando achou que tinha experimentado o suficiente como atriz, partiu para direção. Aos 60 anos, estreou com o curta Alice Dinossauro e hoje, 13 anos depois, assina 40 filmes. “O que aconteceu naquele tempo foi radical. A vivência disso é intransferível. Você encontrava com uma pessoa em um mês de um jeito e alguns meses depois, estava fisicamente diferente. O cabelo grande, as roupas. Entraram as drogas psicodélicas e o mundo ficou moderno”, conta.

Depois de Paloma, teve outras duas filhas e as três lhe deram três netas, que por sua vez, lhe deram três bisnetas. “Um verdadeiro matriarcado”, define. Não acha que a maconha possa ser considerada droga. “Abandonei completamente as drogas e também não gosto das poligamias. Agora, maconha não é droga. Droga é álcool e tabaco. A minha moeda de destruição foi álcool e tabaco”, diz.

Veteranos bem sucedidos

O médico alemão Rolf Weyel, um dos pioneiros no uso de acupuntura no Brasil, companheiro de Eliezer Cerqueira Mendes nos estudos sobre somatização e no desenvolvimento de terapias chamadas de psicotranse, vive no Brasil o sonho hippie há 40 anos, em duas comunidades que montou na capital de São Paulo e em Planaltina, no Distrito Federal. As duas foram durante um tempo comunidades terapêuticas, mas sempre funcionaram dentro dos preceitos de amor, harmonia e liberdade defendidos pela sua geração. “O meu ponto de partida, a minha base de vida nos últimos 40 anos foram os preceitos do ‘faça a paz, não faça a guerra’. A gente se sente como veteranos bem sucedidos daquele movimento”, afirma.


Formado em medicina na Alemanha, Rolf emigrou com a esposa e a primeira filha ainda bebê, em 1976, e aqui aprofundou os seus estudos a respeito da origem espiritual das doenças. Nesse caminho, criou e montou comunidades residenciais terapêuticas e participou da luta antimanicomial. Para aplicar suas propostas de cura, levava seus pacientes para casa, que era a comunidade, que se tornava assim, uma comunidade terapêutica. “Experimentei todo tipo de droga, induzido por meus pacientes. Para saber com quem estava lidando e também com que tipo de substância estava lidando”, explica.

Com esse espírito fraterno, Rolf teve cinco filhas de quatro mães diferentes. Diz reconhecer três casamentos, incluindo o que vive agora, há cerca de dez anos. “Pode ser que seja o quarto, o quinto, não sei. Essas coisas não se definem tão marcantemente”, explica. Maria Alice teve a mesma dificuldade para definir a sua relação com Luciano, o Lucci, marcada por muito companheirismo, afeto e amor, com alguma intimidade, mas sem sexo. “Não sei o que somos. Sei que é bom”, afirma a atriz.

Rolf continua seu relato: “O que quero destacar é que a relação de harmonia com todas essas pessoas (mães e filhas) se mantém até hoje. Tenho ótima relação com minhas filhas, já tenho oito netos! Todo mundo formado, bem de vida. E em contraposição à vida que levei – por que eu nunca tive uma família de verdade, a minha família tinha mais essa índole espiritual esse tempo todo”, conta.
Segundo o terapeuta, todas as suas filhas, criadas nessa “família de índole espiritual”, procuraram relações estáveis e são muito bem sucedidas nisso. “Elas me entendem, percebo que me amam e é muito bom isso. Só tenho a agradecer”, avalia. Ele enxerga uma evolução na forma como suas meninas construíram as suas vidas afetivas com conceitos opostos aos seus. “Tive uma abertura muito grande no conceito, para muitas pessoas, principalmente as de minha vida mais íntima, mas isso não quer dizer que as ideias foram herdadas. Elas foram incorporadas e passaram por uma evolução. Agradeço e respeito esse fenômeno de que o que sai da semente nem sempre é a árvore que a gente espera”, afirma.

Hoje, com 68 anos, preserva apenas o hábito de fumar maconha para meditação e se “alimenta da força da natureza”. As duas comunidades continuam, porém com outra finalidade e sem nenhuma atividade terapêutica. Rolf é o único entre os entrevistados nessa reportagem que escolheu descansar na velhice. “Do que sinto sede e real satisfação é de sossego, do contato com a natureza, que tenho aqui na chácara de Planaltina”, diz. A garantia desse sossego vem em parte de sua atual companheira, que cuida das despesas de manutenção da chácara. “Vivemos felizes eu e ela, com ela entrando e saindo de outros relacionamentos, mas sempre juntos, numa relação fundada”, diz. E financiada pela herança que ele recebeu ainda jovem do pai. “Se não tivesse tido independência financeira, não teria conseguido nada disso”, avalia.

Confusão de papéis

A pesquisadora Ana Amélia, do Ipea, concorda com a vitória dos ideais da Paz e Amor, mas diz que, no momento, as sociedades vivem uma fase de transição em que a principal característica é uma confusão de papéis. A variedade gigantesca de arranjos familiares é uma expressão prática dessa confusão. “O papel social do homem foi tomado pelas mulheres, que continuam avançando sobre esses campos. Não sabemos onde isso vai dar”, diz. Uma das possibilidades é o crescimento de homens adultos “nem, nem”, ou seja, nem trabalham, nem estudam. “No Japão esse grupo aparece nas estatísticas. Eles assumem os cuidados domésticos e são sustentados pelas esposas”, conta Ana. Uma situação que, embora seja crescente também no Brasil, gera muito preconceito.


O cartunista Laerte Coutinho pode ser um exemplo limite da confusão de papéis. Não é um “nem, nem”, mas um transgênero: pessoa que se sente bem com roupas e aparência do sexo oposto. Pai de três filhos de casamentos absolutamente convencionais, resolveu assumir sua homossexualidade quando o terceiro deles chegou ao fim. “Sufoquei minha homossexualidade porque a achava uma espécie de maldição. Tive experiências homossexuais antes, mas isso só me dava mais medo, do preconceito”, conta.

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Quando resolveu encarar esse medo, terminou como transgênero: hoje se veste e se apresenta como mulher. “Continuo com minha genitália, por que não tenho problemas com ela. Pensei em mudar de nome, para Sônia, mas já desisti. Me sinto bem com Laerte”, explica. “As pessoas se espantaram tanto quanto eu quando abri essa história, mas foi bom. Não quero outra vida”, afirma. Garante que não tem conflitos com sua família por isso. “Por que minha família é ótima. Todo mundo fala, opina, mas ninguém agride, ou manda pastar”, diz. Uma harmonia que Ana Amélia explica com a proximidade maior entre as gerações, também um legado da luta dos jovens dos anos de 1960. “Principalmente entre os filhos e netos dos hippies. Há muito mais proximidade, de valores e desejos”, afirma. Em alguns casos, como no de Laerte e Rolf, os filhos são até mais conservadores do que os pais. “É que a geração anterior quebrou grande parte dos tabus. Não há mais rupturas a serem feitas e isso pode ser um problema também, porque adolescentes precisam dessa experiência para amadurecer. Muitos estudos apontam o aumento do banditismo entre jovens da classe média como resultado dessa falta de tabus”, diz.

Christian argumenta que esta geração chega ao período derradeiro da vida com muito tempo sobrando e uma indefinição sobre como sobreviver a esse tempo. “Serão os primeiros a montar uma infraestrutura mais ‘comunitária’ para seus últimos dias”, explica, o que é mais ou menos o que fazem Maria Alice e Rolf. “A questão crucial é subjetiva. É uma questão leninista que se deslocou dos anos 1960 para os 2015: o que fazer?”, conclui Christian.

Alguns dados
 

87,1% dos idosos do sexo masculino chefiam famílias, 72,6% trabalham 40 ou mais horas por semana e apenas 12,7% percebem um rendimento inferior a um salário mínimo mensal.
 

Quase 20% das mulheres idosas vivem em casa de parentes
 

18,5% não têm renda,
 

17,1% não têm autonomia
 

8,3% não enxergam
 

Entre os homens, 13,3% não têm autonomia e 7,4% não enxergam

Fonte: OUTRAS MÍDIAS

Guimarães Rosa especula sobre o ato de celebrar (OCA / OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Escritor descobre, no fundo do sertão mineiro, os sentidos e funções das festas que atravessam os tempos e os lugares"

Guimarães Rosa especula sobre o ato de celebrar

Escritor descobre, no fundo do sertão mineiro, os sentidos e funções das festas que atravessam os tempos e os lugares

“Ia haver festa”. Inicia João Guimarães Rosa o seu conto “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)” a declarar um tema: a celebração. Entramos na malha de suas palavras, diversos tecidos de signos estão ali misturados e vão se mostrando aos poucos, como se de uma bacia de roupas coloridas Guimarães fosse estendendo uma a uma na corda ao sol. Desde o que move o íntimo do herói até os sentidos que o transcendem em muito, arquetípicos, tudo vira palavra, que Guimarães sabe arrumar e ofertar como ninguém.

O íntimo, o social e o arquetípico, Guimarães faz estes planos se atravessarem uns aos outros, e nem sempre a transição é evidente. Vejamos: onde é que a estória nos situa? Será em algum lugar no sertão do norte de Minas Gerais: os vaqueiros, as mulheres cuidando da preparação da capela para a festa, as gentes que chegam e acampam, o riachinho que secou e motivou a dedicação de uma capela à santa, são coisas que vão construindo e povoando a paisagem. Mas há um nome que nos tira do lugar: chama-se “a Samarra”, o mesmo nome de uma cidade milenar à margem do rio Tigre, no atual Iraque, antiga Mesopotâmia, que aprendemos a chamar de “o berço da civilização”. Um “qualquer lugar” que é também o “Lugar”, a origem. Aqui a passagem do regional ao universal é sublinhada por uma maiúscula, como aliás em outros casos: há a casa de Manuelzão e a Casa; a festa e a Festa.
Nesse ínterim, as pedras que sustentam e dão forma à celebração vão se mostrando, na forma de um “roteiro” que, a seu modo a cada vez, se repete em toda festa. Começa antes mesmo do início oficial das celebrações, com a chegada das gentes a demandar hospitalidade e sendo acolhidas conforme o rito cabível. A festa mesma começa com a missa, sagração do lugar e do dia. Depois, há música e dança, olhares, gestos, namoros e saudades, quem sabe conta estórias, os outros ouvem. E o anúncio do fim é dado pelo sol, que ressurgirá no horizonte para completar o turno de uma noite festeira, pequeno ciclo luminoso circunscrito nos círculos da vida.

“E… era uma vez uma vaca Vitória: caiu no buraco – e começa outra estória… e era uma vez uma vaca Tereza: saiu do buraco – e a estória era a mesma…

Outra festa, a mesma festa. Ficamos logo sabendo que vão inaugurar uma capela, construída por Manuelzão para fazer daquele fim de mundo um lugar – “queria uma festa forte, a primeira missa. Agora, por dizer, certo modo, aquele lugar da Samarra se fundava”. O marco fincado no chão estabelece o zero do tempo-espaço, o lugar nasce para o seu porvir. O nome de um personagem, espécie de acompanhante de Manuelzão, lembra a temporalidade deste ponto zero que se lança infinitamente ao passado e ao futuro: o Promitivo – o “primitivo” em fusão com a “promessa”. Então esta é a Samarra ancestral, onde homens e mulheres resolveram assentar para cultivar grãos e criar rebanhos, e ao mesmo tempo uma outra onde apenas se plantou o primeiro cruzeiro. O rito é sempre a repetição formal da origem.

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Nos caminhos de tempos que Guimarães percorre, surge uma cultura sertaneja que em muito mantém viva a Europa pré-moderna, medieval. É a ética cavalheiresca dos vaqueiros, a forte religiosidade que pauta o ritmo das vidas comuns e que apenas ocasionalmente é regrada pela instituição da Igreja, a poesia oral acompanhada de rabecas e violas, as estórias. Manuelzão tem o corte de um senhor feudal, como personificação do poder local, mas que deve fidelidade a um Rei suserano – no caso, o proprietário da terra, nomeado Federico Freyre – e à Igreja. Quanto aos pobres que chegam, “rogavam para o rugoso Céu, com estrelas, mas cheios de sobrolhos, serenando na estrada-de-santiago”. Sua peregrinação é, sempre, a de Compostela.

A festa é a interrupção do trabalho cotidiano. Pois “trabalhar é se juntar com as coisas, se separar das pessoas”. Então existe a festa. Deixamos as nossas vacas, galinhas, roças (e computadores) para estarmos disponíveis apenas às pessoas. Cada um vai querer se mostrar no seu modo mais encantador – por isso há roupas especiais, cabelos ou joias, mas também as falas bem colocadas e a facilidade do sorriso, o gostar um pouco mais de quem está conosco na trajetória. É um jeito de lembrar que, dos milhões de lugares do mundo, calhou de eu viver aqui; das bilhões de pessoas viventes, são essas dezenas que constituem a minha humanidade. São “os vizinhos de todas as veredas, o mundo”.

Guimarães escreve como é que a festa “devia de ser”: “o risonho termo e começo de tudo, a gente desmanchando tudo, até o feito com seu suor do trabalho de sempre; e sem precisar, depois, de tornar a refazer”. Compara com as “estórias contadas”: “Chegava na hora, a estória alumiava e se acabava. Saía por fim fundo, deixava um buraco. Ah, então, a estória ficava pronta, rastro como o de se ouvir uma missa cantada”.

A festa, a estória e a vida – outra tríade a ressoar através do conto. Porque a festa é esta clareira para a qual cada um traz a sua estória, é um encontro de fios de vida que de repente se emaranha e forma linda teia reluzente. O conjunto de amigos e familiares não são vidas em teia que podem escolher brilhar juntas? A boa festa reflete esse brilho, faz passar acima do difícil da vida, nem que seja por uma noite, para ganhar a força que o afeto partilhado produz. “A ver: ô mundo, esta vida, quando descansa de ser ruim, é até engraçada.”

Guimarães deu ao seu conto a forma que talvez mais corresponda à festa: uma rapsódia. É uma coletânea de estórias de autores conhecidos ou não, pois é um registro escrito de cultura oral. A festa também é assim: cada qual traz a sua estória e a faz circular ali, para procurar e encontrar elos com as estórias dos demais presentes. Nisso, duas personagens ganham relevo: Joana Xaviel e seu amigo, ou companheiro, o velho Camilo. Ambos podem ser chamados de rapsodos – como Homero na Grécia, como tantos na Idade Média europeia e tantas figuras similares em outras culturas de oralidade forte: são aqueles que contam as estórias do lugar, que detêm a arte de dar a elas a voz e o contorno adequados para marcar a memória da comunidade.

O velho Camilo é descrito como “apenas uma espécie doméstica de mendigo”, alguém que “olhava para as mãos dos outros, como quem espera comida ou pancada”. O rapsodo é algo assim como um vazio – é alguém que, mesmo sendo um contador de estórias, ouve muito mais do que fala, pois sua voz não é a expressão de um indivíduo, está somente a serviço do lugar e de sua gente. A estória que Camilo conta é que dá o arremate ao tecido.

A festa chacoalha as pessoas, faz cada uma ser mais ela mesma e lembrar-se de si e dos seus. As coisas e os vínculos, às vezes, precisam de dançar para encontrar melhor o caimento em seus lugares. O que estava errado, duvidoso, vai achar um contorno até o fim da festa. Isso porque “a música derretia o demorado das realidades”, diz o narrador entremeado nas divagações de Manuelzão. “Mas dava receio. Assim a música amolecia a sustância de um homem para as lidas, dessorava o rijo de se sobresser.” Receio que logo se desfaz, pois a vida tratará de pôr de volta os anteparos que dão a homens e mulheres o tônus necessário ao seu enfrentamento diuturno. Porém, após a festa, estão mais maleáveis, assimilam melhor, se machucam menos.

O ciclo ocorre e se acaba. Vê-se que “A festa não é pra se consumir – mas para depois se lembrar…” Assim resume Manuelzão: “A boiada vai sair. Somos que vamos”.

Fonte: OCA / OUTRAS PALAVRAS

Entrevista: Jésus Santiago sobre a maioridade penal (DIRETORIA NA REDE)

PICICA: "Ao dar o “play”, vocês poderão acompanhar elaborações de Jésus Santiago sobre esse tema, sob a perspectiva do corpo falante e do texto de Jacques-Alain Miller, “Em Direção à adolescência”1. Comentários que se estendem ao recente filme “Mad Max”2 articulando-o à noção lacaniana de escabelo. E ainda, contribuindo para dar o exato ritmo e tom dessa entrevista, Dário Moura3 escolheu a arte de Pedro Ninja e a música de Pedro Luis e a Parede."

Entrevista: Jésus Santiago sobre a maioridade penal


A redução da maioridade penal segue em pauta no Congresso Nacional. Contudo, diferente de outros tantos projetos de lei, não se encarcerou neste! O debate conquistou a cidade. O tema tem espaço nas manifestações de rua, na timeline do nosso Facebook, no almoço de domingo em família, nas universidades, nos bares, invade nossas caixas de email e agora também o DR!

Primeiro entrevistamos Marcus André, e, agora Jésus Santiago. Com esse ciclo de entrevistas, a Ação Dobradiça segue com sua proposta de contribuir para que os analistas, na permeabilidade própria aos debates da cidade, possam transmitir: “o que a psicanálise de orientação lacaniana tem a dizer sobre a redução da maioridade penal”!

Ao dar o “play”, vocês poderão acompanhar elaborações de Jésus Santiago sobre esse tema, sob a perspectiva do corpo falante e do texto de Jacques-Alain Miller, “Em Direção à adolescência”1. Comentários que se estendem ao recente filme “Mad Max”2 articulando-o à noção lacaniana de escabelo. E ainda, contribuindo para dar o exato ritmo e tom dessa entrevista, Dário Moura3 escolheu a arte de Pedro Ninja e a música de Pedro Luis e a Parede.

Fernanda Costa



1 minascomlacan.com.br/blog/author/jacques-alain-miller

2 “Mad Max: A Estrada da Fúria”, dirigido por George Miller.

3 Responsável pela sireção de audio e vídeo

O direito à saúde e os médicos: uma questão de interesses, por Bruna Silveira (BRASIL DE FATO)

PICICA: "Dados escancaram o fato de que grande parte da categoria médica brasileira não tem comprometimento com as demandas populacionais e que temem o avanço de uma saúde pública de qualidade"

O direito à saúde e os médicos: uma questão de interesses


Dados escancaram o fato de que grande parte da categoria médica brasileira não tem comprometimento com as demandas populacionais e que temem o avanço de uma saúde pública de qualidade


29/06/2015


Por Bruna Silveira*


O The New England Journal of Medicine, a mais antiga e uma das mais prestigiadas publicações científicas da área da saúde, divulgou o artigo de James Macinko e Matthew J. Harris sobre a Estratégia de Saúde da Família (ESF) brasileira.


Apesar de escancarar as principais falhas e contradições do sistema, o texto, publicado no último 4 de junho, pontua avanços do Sistema Único de Saúde (SUS), fala sobre o Programa Mais Médicos Para o Brasil, destaca o uso extensivo e eficaz dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e conclui: "o mundo pode aprender algumas lições da experiência brasileira".


Os elogios ao SUS e ao Mais Médicos, além de um horizonte de esperança para uma saúde pública de qualidade, foram suficientes para desencadear uma furiosa reação de grande parte da categoria médica brasileira contra a revista científica inglesa nas redes sociais. Além de bradarem que o artigo é mentiroso, alguns médicos acusam os autores e o jornal de terem sido comprados pelo governo brasileiro.


Uma forte polarização e um clima de intolerância têm tomado conta do cenário político. Nem mesmo as ações mais bem sucedidas do governo merecem qualquer reconhecimento aos olhos de seus opositores. Isso se evidencia, com muita força, nas disputas políticas enfrentadas dentro da área da saúde nos últimos anos.


O SUS é fruto do movimento pela reforma sanitária e da luta pelos direitos de um povo até então negligenciado. Uma das principais perdas políticas à época de sua construção, no entanto, foi a aprovação do artigo 199 da Constituição Federal, referente ao SUS, que vigora até hoje: "a assistência à saúde é livre à iniciativa privada".


É por isso que, apesar de haver dois setores bem distintos (público x privado), o SUS se denomina como um sistema "único" de saúde. Mas é desse ponto que se originam muitas das contradições desse sistema, e é exatamente de onde emerge todo esse incômodo da categoria médica.


Dados


O estudo "Demografia Médica do Brasil", desenvolvido em parceria, pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), de fevereiro de 2013, aponta que o Brasil já conta com quase 400 mil médicos em atividade. Com esse número, o Brasil poderia atingir uma taxa de dois profissionais por 1 mil habitantes. No entanto, essa não é a realidade. Apesar de crescer de forma acelerada e constante, a população médica brasileira é mal distribuída pelo país e dentro das especialidades, com forte inserção no setor privado.


Seguem alguns dados importantes do estudo:


1. Há quatro vezes mais médicos no setor privado do que no setor público;


2. Dentre os 387.736 profissionais em atividade no país, 53,68% são especialistas e 46,32% não têm nenhum título de especialista;


3. Os especialistas em Atenção Primária à Saúde (APS) correspondem a apenas 1,21% de todos os especialistas. Em número absoluto são apenas 3.253 médicos com título em Medicina de Família e Comunidade, enquanto, por exemplo, a Anestesiologia conta com mais de 18 mil profissionais, a Radiologia com quase 8 mil, a Dermatologia com quase 6 mil e a Cirurgia Plástica com quase 5 mil.


4. Do total de médicos ativos no país, a região Sudeste tem 2,61 profissionais para cada 1 mil habitantes, enquanto o Norte do país tem menos de um (0,98) para cada 1 mil habitantes. Essa situação ainda é agravada pela concentração de profissionais nas capitais ou polos de grande porte. Enquanto a cidade de São Paulo tem 4,33 médicos por 1 mil habitantes, o estado de São Paulo tem 2,58.


O levantamento conclui que o Brasil é um país marcado pela desigualdade no que se refere ao acesso à assistência médica. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou outro estudo em julho de 2013 informando que medicina é a carreira que tem o melhor desempenho trabalhista no Brasil, sendo que, das carreiras analisadas, é a que tem mais escassez de mão de obra.


Assim, foi no intuito de reduzir essas desigualdades, que o Programa Mais Médicos foi criado. Todos os médicos que vieram pelo programa, formados em outros países, são especialistas em Atenção Primária à Saúde, ou seja, têm formação na especialidade correspondente em seu país em Medicina de Família e Comunidade. Esses médicos têm um contrato de intercâmbio de três anos, recebem formação semanalmente pela UNASUS e são supervisionados periodicamente.


Outros países


Segundo o artigo do New England Journal of Medicine, "a evidência sugere que as equipes de saúde da família e a Estratégia de Saúde da Família proporcionam um melhor acesso e com mais qualidade, e resultam em maior satisfação do usuário do que os postos e centros de saúde tradicionais ou até mesmo algumas unidades de cuidado de saúde do setor privado".


Enquanto em outros países os profissionais de saúde têm um comprometimento ético e social com as demandas da população e a saúde é realmente um direito e uma questão de seguridade social, no Brasil, a saúde é tratada como mercadoria e a profissão médica é tratada como um bom negócio. No Canadá, por exemplo, o governo regula as vagas de residência (especialização) médica de acordo com as necessidades da população e, portanto, quase metade dos médicos são especialistas em Atenção Primária à Saúde.


No projeto inicial do Programa Mais Médicos, constava uma proposta de regulação das vagas de residência médica semelhante a do Canadá. Porém, essa proposta foi vetada por pressão da categoria médica e essa questão, que é de interesse social, continua reduzida às leis de mercado.


É certo que especialidades como dermatologia, cirurgia plástica, radiologia e anestesiologia são fundamentais e imprescindíveis à composição do sistema de saúde, não sendo possível afirmar que uma especialidade é mais importante que a outra. Mas é no mínimo curioso que a maioria dos profissionais se interessem mais por essas áreas de maior remuneração no setor privado, ao passo que há tão pouco interesse na área de Medicina de Família e Comunidade.


De qualquer modo, o Mais Médicos prevê a ampliação e a universalização da residência médica, e uma formação médica voltada às necessidades do povo brasileiro.


SUS


Os princípios norteadores do SUS são a universalidade, a equidade e a integralidade. Esses princípios garantem a toda população (inclusive a estrangeiros que estejam de passagem pelo país) o acesso universal e irrestrito ao sistema de saúde, bem como busca diminuir as desigualdades e disparidades e garante atendimento integral aos usuários (da promoção e prevenção à resolução das questões de saúde).


De fato, o SUS ainda tem muitas questões a melhorar, como o próprio artigo da revista científica inglesa aponta, principalmente no que se refere aos desafios financeiros e organizacionais. Embora a despesa total em saúde no Brasil seja semelhante à média de cerca de 9% do produto interno bruto (PIB) encontrada entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), menos da metade deste montante provém de fontes públicas – uma proporção que coloca o Brasil muito abaixo da média da OCDE na participação do governo dos gastos com saúde.


Ainda assim, o artigo aponta que o Brasil tem feito rápidos progressos rumo à cobertura universal da população. Os medicamentos mais comuns são universalmente acessíveis e gratuitos em muitos locais de atendimento para todas as cidadãs e todos os os cidadãos, mesmo aqueles 26% da população inscritos em planos de saúde privados. Das lições que o mundo pode aprender com a experiência brasileira, o artigo cita que os cuidados primários com base na comunidade podem funcionar se feitos corretamente.


Ao final, o artigo faz um importante alerta: "o futuro da estratégia de saúde da família do Brasil, sua expansão sustentada para os demais centros urbanos e para o acesso da categoria média, e sua integração efetiva na atenção secundária e terciária exigirá engajamento dos prestadores de cuidados de saúde e continuidade dos investimentos públicos financeiros, técnicos e intelectuais – todos os quais, em última instância, dependem de apoio político."


Para que esse apoio político se concretize dentro da categoria médica, é fundamental que a medicina deixe de ser uma profissão tão elitizada e, para tal, é preciso, dentre outras ações, democratizar o acesso ao ensino médico e retomar a proposta de universalização e regulação das vagas de residência médica de acordo com as necessidades sociais. Além disso, são imprescindíveis os trabalhos de organização e mobilização dos usuários do SUS.


*Bruna Silveira é médica de Família e Comunidade

Fonte: Brasil de Fato

''A encíclica papal é uma virada histórica.'' Entrevista com Naomi Klein (IHU)

PICICA: "A sacerdotisa antiglobalização encontra o Papa Francisco: nasce uma santa aliança em nome da salvação do planeta. Naomi Klein foi convidada para o Vaticano nos dias 2 e 3 de julho para falar em uma conferência internacional que o Pontifício Conselho Justiça e Paz dedicará à encíclica Laudato si'."

''A encíclica papal é uma virada histórica.'' Entrevista com Naomi Klein

A sacerdotisa antiglobalização encontra o Papa Francisco: nasce uma santa aliança em nome da salvação do planeta. Naomi Klein foi convidada para o Vaticano nos dias 2 e 3 de julho para falar em uma conferência internacional que o Pontifício Conselho Justiça e Paz dedicará à encíclica Laudato si'.

A reportagem é de Federico Rampini, publicada no jornal La Repubblica, 28-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Klein, canadense, autora de No Logo, A Doutrina do Choque e Una rivoluzione ci salverà [Uma revolução nos salvará] (Ed. Rizzoli), é uma das pensadoras mais influentes dos movimentos ambientalistas, terceiro-mundistas, de contestação ao liberalismo. As suas ideias atraíram ao longo do tempo o Occupy Wall Street, os indignados e o Podemos. Nós a entrevistamos enquanto ela está prestes a partir para a Itália: feliz com a oportunidade, entusiasta da encíclica.

Eis a entrevista.

O que você gosta do documento papal sobre as mudanças climáticas?

É uma verdadeira reviravolta, uma ruptura histórica, com implicações importantes: tanto políticas quanto econômicas. O Papa Francisco faz uma leitura radical da emergência ambiental, no sentido literal da palavra: vai às raízes da crise. Ele decidiu chamar pelo nome o motor desencadeante: o modelo econômico, um capitalismo baseado no lucro de curto prazo. É uma encíclica para se estudar e para se digerir bem. Vivemos em uma cultura que quer simplificar tudo. O modelo são as famosas "listicles" do Buzzfeed. A tentação é a de resumir: as 10 coisas que o papa diz sobre o ambiente. Não, o papa abraça a complexidade, e as suas mensagens são complexas.

O seu livro mais recente, Uma revolução nos salvará, é considerado o mais otimista da sua trilogia. Portanto, é possível se salvar e salvar o planeta?

Eu parti de onde tinha ficado no meu livro anterior, Doutrina do Choque, isto é, do fato de que esse sistema econômico – baseado na ditadura do lucro individual – usa as crises para enriquecer ainda mais as elites. As mudanças climáticas não são uma exceção. O furacão Katrina e aquilo que, desde então, aconteceu em Nova Orleans são uma manifestação disso: um sistema econômico brutal explorou o desastre para promover ainda mais privatizações, um agravamento das desigualdades. É o cenário que nos mostram os filmes hollywoodianos de maior sucesso popular, de Mad Max a Jogos Vorazes: um futuro de violência, brutalidade, desigualdades cada vez mais ferozes. O desafio é imaginar como podemos mudar esse futuro. Esse é o tema do meu último livro. Eu não sou otimista em sentido ingênuo. Não assumo como óbvio que o cenário melhor vai acontecer. Conecto-me justamente ao espírito da encíclica papal, que aborda os valores culturais e morais dominantes. O nosso sistema de valores atual não nos prepara para cooperar entre nós para a salvação coletiva.

Você é severa contra duas das receitas adotadas no passado para enfrentar as mudanças climáticas: as megacúpulas internacionais de Kyoto em diante; e os sistemas de regulação das emissões através de um mercado, o chamado "cap and trade", ou seja, a troca de cotas de emissão.

O limite das megacúpulas é o mesmo limite dos governos. Se eles não têm a força de tomar certas decisões em nível nacional, por que deveriam se comportar de forma diferente só porque se reúnem juntos em uma cúpula? As elites ainda estão imersas na ideologia neoliberal, não têm a força para se opor às multinacionais da economia do carbono. Veja o exemplo de Barack Obama, que faz belos discursos sobre o ambiente, mas, depois, dá à Shell a permissão de perfurar no Ártico, porque dizer-lhe não seria muito difícil. Quanto ao sistema "cap and trade", ele também é um sintoma da falta de vontade de regulamentar as empresas. Criou-se um mercado das emissões de carbono que gera novas oportunidades de lucro e também muitas fraudes, em vez de estabelecer simplesmente limitações por lei. Esse sistema foi imposto pelos Estados Unidos a uma Europa recalcitrante. Os europeus capitularam nos tempos das negociações sobre o Protocolo de Kyoto (na Alemanha, Merkel era ministra do Meio Ambiente naquela época), a fim de obter que os Estados Unidos assinassem aquele tratado. E depois os norte-americanos também não o assinaram.

Você indica que as novidades mais positivas emergiram em nível local.

Sim, a mobilização dos cidadãos a partir de baixo, em alguns casos, forçou os políticos a dizer "não" aos interesses do capitalismo do carbono. Um exemplo recente de Nova York: o governador Andrew Cuomo quis autorizar a extração de gás e petróleo com a tecnologia do fracking, mas os movimentos contrários o obrigaram a banir essa técnica perigosa e prejudicial. Outro exemplo interessante é o forte movimento antinuclear na Alemanha, que, depois da tragédia de Fukushima, forçou o governo Merkel a acelerar a transição para as energias renováveis: hoje, ela já fornecem 30% da demanda alemã.

Uma das questões levantadas pelo Papa Francisco na Laudato si' é a necessidade de repensar as nossas democracias, junto com os valores éticos que guiam as nossas escolhas cotidianas: como consumidores e como cidadãos.

Sim, a questão da democracia é central. Um exemplo de atentado à democracia: uma multinacional sueca apelou contra a Alemanha, acusando-a de violar os seus direitos, quando Berlim decidiu abandonar a energia nuclear. As democracias nacionais, mesmo aquelas que funcionam melhor, podem ser ameaçada pelos novos tratados de livre comércio com as cláusulas em favor das grandes empresas. Uma das qualidades dessa encíclica papal é a sua abordagem holística, que une ambiente, economia, política. São dimensões inseparáveis. Enquanto, ao contrário, quando há uma crise econômica, ela é enfrentada por compartimentos estagnados. Veja a crise da zona do euro: os cortes nos orçamentos públicos tornaram-se o pretexto para reduzir o apoio às energias renováveis, relançar as perfurações marítimas, penalizar os transportes públicos, aumentando as suas tarifas. Quando falamos dos danos causados pela euroausteridade, regularmente nos esquecemos disto: o dano ao ambiente.

Fonte: IHU

junho 29, 2015

"À esquerda e à frente!" Por Nildo Ouriques (O REAL QUE NÃO SE VÊ)

PICICA: "O diagnóstico que motiva a Frente de esquerda ou a Frente pela esquerda é, no entanto, superficial. Há, de fato, certa desinibição da direita no país. A razão fundamental da direitização é resultado direto e em primeiro lugar, da aliança de classe que o PT assumiu sem vacilação antes mesmo de conquistar o primeiro mandato presidencial. A tentativa petista de hegemonizar o pacto de classe - considerada por muita gente boa e não poucos oportunistas como um ato de sabedoria - era clara: tirar dos tucanos o monopólio da autoridade sobre o Plano Real. Não há dúvidas que o giro a direita foi exitoso. No entanto o custo não foi apenas elevado, mas fatal. Na operação, o PT como partido de esquerda fracassava historicamente de maneira definitiva! Os "dirigentes" do partido ficaram embriagados com o resultado e esqueceram que a classe dominante brasileira dispensa os partidos políticos para sua dominação classista, caso contrário não teria lançado mão de uma ditadura de 21 anos! Esqueceram também que sua transformação em principal partido da ordem cumpriria apenas uma função defensiva necessária: manter os trabalhadores afastados do radicalismo político. A precoce adesão do PT a ordem dominante, criou o SISTEMA PETUCANO, esta particular aliança que opõem dois partidos na luta parlamentar enquanto os iguala no horizonte histórico e programático. Esta crise não tem solução nos termos do quadro partidário atual e impede o PT de ressurgir das cinzas, negando-lhe a possibilidade converter-se no futuro em Ave Fênix." 


À esquerda e a frente!


Há em curso uma tentativa de realizar uma "frente de esquerda" no Brasil. A imprensa anuncia que a iniciativa foi de João Pedro Stédile, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). O álibi é sempre o mesmo: enfrentar a onda conservadora em ascenso no parlamento e nas ruas. Há também, outras defesas para a mesma proposta. A Esquerda Marxista, por exemplo, conclama a todos para a adesão a uma frente que "retome os princípios que estiveram na origem do PT, que ajude a abrir uma saída para a atual situação, para organizarmos a continuidade da luta pelas reivindicações, por um novo mundo, pelo socialismo". ("O que Lula pretende com as críticas ao governo e ao PT?") Neste caso, devemos reconhecer que a empreitada não é pequena e os poderes conferidos a tal "frente de esquerda" são enormes, virtudes quase capazes de justificar nossa existência.

Em nota distribuída dia 26 de junho em resposta ao chamado do líder do MST, o presidente nacional do PSOL, Luiz Araújo, defende uma frente pela esquerda. No entanto, numa reunião realizada em São Paulo no dia 27 de junho, o jornal paulista Folha de São Paulo anuncia que um grupo "com dirigentes do PC do B, PT e PSOL" criaram um embrião de coalizão que se chamará Grupo Brasil, destinado a criar e divulgar uma pauta de eventos em defesa de direitos dos trabalhadores. O deputado federal Ivan Valente teria enviado representante e Leo Lince, articulador do PSOL/RJ, teria comparecido.

A dupla natureza da crise

O diagnóstico que motiva a Frente de esquerda ou a Frente pela esquerda é, no entanto, superficial. Há, de fato, certa desinibição da direita no país. A razão fundamental da direitização é resultado direto e em primeiro lugar, da aliança de classe que o PT assumiu sem vacilação antes mesmo de conquistar o primeiro mandato presidencial. A tentativa petista de hegemonizar o pacto de classe - considerada por muita gente boa e não poucos oportunistas como um ato de sabedoria - era clara: tirar dos tucanos o monopólio da autoridade sobre o Plano Real. Não há dúvidas que o giro a direita foi exitoso. No entanto o custo não foi apenas elevado, mas fatal. Na operação, o PT como partido de esquerda fracassava historicamente de maneira definitiva! Os "dirigentes" do partido ficaram embriagados com o resultado e esqueceram que a classe dominante brasileira dispensa os partidos políticos para sua dominação classista, caso contrário não teria lançado mão de uma ditadura de 21 anos! Esqueceram também que sua transformação em principal partido da ordem cumpriria apenas uma função defensiva necessária: manter os trabalhadores afastados do radicalismo político. A precoce adesão do PT a ordem dominante, criou o SISTEMA PETUCANO, esta particular aliança que opõem dois partidos na luta parlamentar enquanto os iguala no horizonte histórico e programático. Esta crise não tem solução nos termos do quadro partidário atual e impede o PT de ressurgir das cinzas, negando-lhe a possibilidade converter-se no futuro em Ave Fênix.

Na outra ponta, a crise do capitalismo dependente aparece como crise da política econômica. Neste terreno, a breve primavera que permitiu ao pacto de classe petucano e aos governos petistas conceder a caridade cristã aos trabalhadores na forma de migalhas da política social, chegou ao seu fim. A crise financeira do Estado brasileiro é apresentada como crise fiscal e assumida pelo PT e seu governo como tal. Agora há o inconveniente de que não se pode atender aos dois senhores ao mesmo tempo, razão pela qual o petismo recruta um obscuro funcionário do sistema financeiro para manejar a política econômica em completo acordo com os tucanos. No fundo, com pequenos percalços, o apoio parlamentar a Joaquim Levy é completo e funciona como a única razão consistente para que os tucanos não assumam o "fora Dilma" como bandeira política tática. Ainda assim, até mesmo o mais desatento analista pode observar a persistência das denuncias de corrupção envolvendo o PT e o PSDB (este em menor medida, é claro), seus parlamentares, funcionários de estado, juízes de cortes, etc... A denuncia permanente da corrupção - sempre limitada a alvos menos importantes - é funcional a classe dominante e tanto o PT como o governo se revelam impotentes diante da situação. A razão é clara: a disputa no interior do Estado implica, necessariamente, em compromisso com a permissividade da corrupção que, de fato, não respeita fronteiras políticas e ideológicas. É prova disso a incapacidade do PT em oferecer uma resposta dura ao tema da corrupção em seu último congresso, realizado num hotel da Bahia. Uma semana após sua realização, o ex-presidente Lula atacava o partido abertamente explicitando a senilidade das "resoluções" estabelecidas na evento. Foi, sem dúvida, o congresso mais miserável da historia do PT, incapaz de gerar qualquer efeito prático na opinião pública, na política partidária, na luta sindical ou nos movimentos sociais.

O sistema petucano não é capaz de renovação

O sistema político brasileiro - o petucanismo - é, portanto, impotente para a renovação política que milhões de pessoas, mesmo difusamente, desejam A reforma política em curso revela o tamanho da farsa parlamentar como resposta à crise e, de quebra, também exibe a incapacidade de uma saída parlamentar progressista para a crescente e justificada insatisfação popular. No limite, o parlamento sufragará o golpismo na modalidade e no momento que a classe dominante julgar conveniente (se julgar necessário!).  

O que pode fazer uma frente de esquerda neste contexto? Muito pouco!Na prática, uma frente de esquerda teria que consolidar uma aliança entre os partidos que figuram na oposição ao governo e nunca poderia estar limitada ã luta contra o "ajuste fiscal" e contra o "conservadorismo social e parlamentar"; ademais, uma frente de esquerda poderia, nas circunstancias atuais, reunir exclusivamente o PSOL, o PSTU e o PCB. E poderia admitir nas suas filas apenas militantes que não mantém filiação nos partidos da "base aliada" do governo. A existência de "parlamentares rebeldes" com filiação nos partidos da base governista não deveriam ser admitida por razão elementar: é preciso reconquistar a confiança popular nas organizações de esquerda sem qualquer vinculo com o governo e o PT! Ao contrário do que muitos apressadamente diriam, esta orientação não é sectária e muito menos irreal: é precisamente a única possibilidade de acumular forças fora do arco conservador que tem revelado grande capacidade para ganhar o centro político nas disputas eleitorais. A direita brasileira tem logrado apoio considerável nas classes populares precisamente porque estas se sentem e de fato estão sem representação partidária. Na luta para não perder tudo, as classes populares podem apenas contar - ainda assim de forma limitada - com seus sindicatos que lentamente despertam da modorra lulista.  

Há muito pouco a fazer no terreno parlamentar neste momento histórico da luta de classes. É preciso acumular força nas organizações populares e sindicais contra o governo e sua base aliada sem vacilação ou inibição de qualquer ordem. A disputa atual é para identificar quem e quais organizações e em qual medida, existe uma oposição de esquerda ao governo. A oposição mais visível ao governo é obviamente de direita. A tarefa tática imediata de todos os setores identificados com a esquerda brasileira é construir sólida e sistemática oposição de esquerda. É neste momento em que pode ser necessário uma frente à esquerda, amparada tao somente nas lutas sociais e na inexorável combatividade sindical em defesa dos salários num ano em que a inflação será novamente de dois dígitos! Neste contexto, no momento nada há que resgatar da origem petista ou ainda seguir alimentando ilusões com a disputa no interior do estado na elaboração de políticas sociais quando a crise arrastou seu dinamismo para uma solução mais radical do ponto de vista da classe dominante. A adesão a qualquer iniciativa de frente política que conte com a presença dos partidos da base aliada ou mesmo um namorico com lideranças como Lula representa, nas condições atuais, muito mais do que um erro, representará rasa estupidez. Não será senão a materialização de uma velha e surrada ideologia petista - segundo a qual o governo estaria em disputa - criada exclusivamente para justificar a domesticação do PT como partido submetido a razão de estado que o levou ao fracasso histórico sem remissão.  O governo de Dilma, assim como os dois mandatos de Lula, jamais esteve em disputa!     

O governo Dilma e a ideologia do ajuste passageiro 

Todas as últimas medidas anunciadas pela presidente Dilma reforçam a economia exportadora, a estrutura fundiária baseada no latifúndio, garantem a continuidade do mega processo de endividamento estatal, os lucros extraordinários para os rentistas de distintas extração (comerciantes, industriais, banqueiros, etc) e avançam na direção de aprofundar a superexploração da força de trabalho como fundamento da dependência que finalmente nos caracteriza como país. Não somente anunciam novas etapas do lento e relativamente silencioso processo de privatização como também já se costura nos bastidores do sistema petucano a retirada de novos direitos quando entrar em debate a "necessidade" de uma nova e sempre interminável "reforma trabalhista" e novo assalto ao estado com a reforma tributária... 

A ideologia do governo Dilma se sustenta em duas ilusões: a primeira, é que a crise do Estado brasileiro é fiscal e, jamais financeira; a segunda, que o ajuste produzirá no curto prazo as condições para um novo ciclo virtuoso do crescimento econômico no longo prazo que devolverá o emprego e a renda para os trabalhadores. É pura ideologia para consumo da consciência ingenua dos trabalhadores. No entanto, a análise fria indica que a crise financeira do estado não terá solução alguma sem a auditoria da dívida e a anulação parcial ou total que inexoravelmente implicará, tamanha a corrupção e ilegalidade que sua contração e as sucessivas re-negociações engendrou.

A ambiguidade é sempre fatal em política e especialmente mortal em épocas de crise. A esquerda somente cumprirá seu papel se contribuir de maneira mais intensa e acelerada para a redefinição de um novo radicalismo político, mais urgente e necessário e viável agora, no momento em que precisamente as antigas ilusões sobre "o modo petista de governar" caiu em total e definitivo descrédito.

A ambiguidade política mata

A crise é, portanto, do governo. E o governo atual não tem recuperação. No contexto atual, caminha para derrota eleitoral inexorável nas próximas eleições presidenciais ou sofrerá eventual substituição no âmbito parlamentar, motivado por sucessivos escândalos de corrupção que são próprios do estado burgues e incapazes de encontrar no PT e sua "base aliada" resposta adequada. Mas é também uma crise do sistema político, pois amplos setores sociais não acreditam que o governo, o parlamento, os tribunais possam superar o descrédito produzido pela politização ingenua que emergiu das últimas eleições presidenciais. A sociedade em geral e as classes populares em particular, não possuem neste momento referencias críticas, tal como no passado. A posição da esquerda ou das forças que pretendem ocupar este espaço, dependerá tão somente de sua capacidade em recusar pactos que pretendam unicamente renovar a credibilidade de um governo que já não pode carregar seu próprio peso. Ora, uma frente de esquerda que mantenha a ambiguidade em relação ao Plano Real e reproduza ilusões sobre o atual sistema política, jogará as forças que restam na esquerda no terreno da ambiguidade. Uma frente de esquerda que não marque clara oposição ao atual governo - e não somente ao "ajuste" como se, de fato, as medidas fossem do ministro-banqueiro e não da presidente - será incapaz de enfrentar a direitização (real e potencial). Uma frente de esquerda que não delimite sua clara oposição ao governo e sua base aliada produzirá outro fenômeno nada desprezível: em tempos de crise, a ambiguidade mata!   

"Grécia x Troika: o referendo e a democracia". Por Costas Douzinas (UniNômade)

PICICA: "A ameaça sentida de um sucesso da Syriza e de uma redução da dívida grega, seguidamente declarada inviável pelo FMI, é política e não econômica. As elites europeias temem o contágio ao longo do sul da Europa de uma instância anti-austeridade surgida entre o povo e o governo grego. O resultado das eleições municipais espanholas, o voto anti-austeridade na Escócia e os resultados das pesquisas de opinião sobre o Sinn Féin indicam que as pessoas atingidas pela austeridade começaram a se mexer. O governo da Syriza está liderando o ataque contra o mantra neoliberal de que “não há alternativa”. Mesmo um sucesso limitado mostraria que a única luta que não pode ser vencida é a luta não assumida." 

Costas Douzinas é professor de direito e diretor do Instituto Birkbeck, em Londres. Colabora com The Guardian e seu último livro Philosophy and Resistance in the Crisis (Polity) foi lançado em 2013.
Fonte: UniNômade