outubro 31, 2015

Histórico diálogo entre Fidel Castro y Salvador Allende

PICICA: "Publicado em 2 de out de 2012
Histórico diálogo entre Fidel Castro y Salvador Allende

Por estos días la televisión pública argentina difundió El Diálogo de América, charla en noviembre de 1971 entre el líder de la Revolución cubana, Fidel Castro, y el extinto presidente Salvador Allende, durante la visita de tres semanas realizada por el primero a Chile.
Una información de Prensa Latina señala que filmado por el cineasta Álvaro Covacevich y con la participación, como entrevistador, del destacado periodista chileno y asesor personal de Allende, Augusto Olivares, El Diálogo de América fue estrenado mundialmente en París en abril de 1972 como testimonio de la lucha por el proceso chileno.

Hace referencia a que el diario argentino Página 12 recuerda que sus presentadores entonces fueron el fallecido escritor y poeta chileno Pablo Neruda y el actor Marcel Marceau.

Este documental, restaurado por la televisión pública argentina fue difundido por primera vez en el país, tras ser recuperado recientemente entre el patrimonio de Covacevich, quien luego del golpe militar de 1973 se exilió en México.

La distendida conversación tuvo lugar en los jardines de la casa presidencial, en la cual temas como la llamada Vía chilena, emprendida por la Unidad Popular (UP) para encaminar las transformaciones en el país, o la decisiva participación de la clase obrera en los procesos de cambio en una y otra sociedad, fueron analizados por ambos estadistas.

También se refirieron a los principales obstáculos enfrentados por la UP para llevar adelante su programa, y por la Revolución cubana para lograr su supervivencia y avanzar.

Estos obstáculos, precisó Allende en aquel entonces, nacen de una oligarquía con bastante experiencia que defiende muy bien sus intereses y tiene el respaldo del imperialismo.

En el caso de Cuba, Fidel Castro indicó que el principal obstáculo era de orden exterior, y mencionó al imperialismo norteamericano, que ejerce, dijo, una formidable oposición, utilizando para ello armas políticas, económicas y militares, pese a lo cual no tiene -aseguró- la más remota posibilidad de aplastar a la Revolución."

Histórico diálogo entre Fidel Castro y Salvador Allende (Completo)

Periódico Liberarce

Deleuze - K de Kant (RAZÃO INADEQUADA)

PICICA: "[...] todos os filósofos são um pouco, como diz Nietzsche, castos, pobres, etc. Mas ele acrescenta: “Mas tentem adivinhar para que serve isso?” Para que serve a castidade, a pobreza e tudo o mais? Kant tinha seu passeio diário, mas isso não é nada. O que acontecia durante este passeio diário? O que ele olhava? Era bom saber. Se os filósofos são seres com hábitos é porque o hábito é contemplar. O hábito é a contemplação de alguma coisa. No verdadeiro sentido da palavra, “hábito” é contemplar. O que ele contemplava em seus passeios? Não sei. Os meus hábitos… Sim, sou cheio de hábitos. Meus hábitos são as contemplações. Eu saio para contemplar. Às vezes, são coisas que sou o único a ver. Este seria um hábito." 



CP: De todos os filósofos que você estudou, Kant parece ser o mais distante do seu pensamento. Mas você diz que todos os autores que estudou tem algo em comum. Há alguma coisa em comum entre Kant e Spinoza?


GD: Eu prefiro, se me permite, a primeira parte da pergunta. Por que estudei Kant já que ele não tem nada em comum com Spinoza, nem com Nietzsche, apesar de este último ter lido muito Kant? Não temos a mesma concepção de filosofia. Mas por que, mesmo assim, Kant me fascina? Por dois motivos. Kant é tão cheio de sinuosidades. Um dos motivos é o fato de ele ter instaurado e levado a extremos o que nunca fora levado em Filosofia até então, que é a instituição de tribunais, talvez sob a influência da Revolução Francesa. Mas até então tentamos falar de conceitos como se fossem personagens. Antes de Kant, no século 18, que o precedeu, apresentou-se um novo tipo de filósofo, o investigador. Investigação. Investigação sobre o entendimento humano, investigação sobre isso e aquilo. O filósofo era visto como um investigador. Ainda mais cedo, no século 17, Leibniz foi, sem dúvida, o último representante desta tendência. Ele era visto como um advogado, ele defendia uma causa. E Leibniz pretendia ser o advogado de Deus! Como se Deus tivesse algo a ser repreendido. Leibniz escreveu um maravilhoso opúsculo sobre a causa de Deus. Era a causa jurídica de Deus, a causa de Deus defendida. Há um encadeamento de personagens: o advogado, o investigador e, com Kant, houve a chegada do tribunal, do tribunal da razão. As coisas eram julgadas em função de um tribunal da razão. E as faculdades, no sentido do entendimento, a imaginação, o conhecimento e a moral eram medidas em função deste tribunal. É claro que através de um determinado método prodigioso criado por Kant que chamaram de “método crítico”, que é o método propriamente kantiano. Todo este aspecto me deixa horrorizado, mas é um horror fascinado também, pois é genial ao mesmo tempo. Dentre os inúmeros conceitos que Kant inventou, está o do tribunal da razão que é inseparável do método crítico. Meu sonho não é esse. Este é um tribunal do juízo. É o sistema do juízo, só que este não precisa mais de Deus. É um juízo baseado na razão, e não em Deus. Não abordamos este problema, mas posso fazê-lo agora, assim não precisaremos voltar a este assunto. Podemos procurar entender… Há um mistério nisso tudo. Podemos tentar entender por que alguém em particular, eu ou você, estaríamos ligados ou nos reconhecemos em determinado tipo de problema e não em outro? O que é a afinidade de alguém com um tipo de problema? Parecem-me os maiores mistérios do pensamento. Nós nos consagramos a problemas. E não é qualquer problema, isso também vale para os cientistas. A afinidade de alguém para determinado problema e não para outro. E uma filosofia é um conjunto de problemas com consistência própria, mas não pretende cobrir todos os problemas. Ainda bem! Eu me sinto ligado aos problemas que procuram meios para acabar com o sistema do juízo e colocar outra coisa no lugar. Dentre os grandes nomes dos que buscam isso, você tinha razão em falar de oposição, estão Spinoza, Nietzsche e, em Literatura, há Lawrence, e guardo um dos maiores para o final: Artaud. Todos para acabar com o juízo de Deus. Isso é muito importante, não é loucura: acabar com o sistema do juízo. Todas estas coisas fariam com que eu não tivesse tanto… Mas, por baixo disso tudo, e, como sempre, é preciso buscar os problemas que se escondem sob os conceitos. E Kant traz problemas impressionantes, são maravilhas. Ele foi o primeiro a ter feito uma inversão de conceitos impressionante. É por isso que tanto me entristece quando vejo ensinarem aos jovens, mesmo no nível de vestibular, uma filosofia tão abstrata sem tentar fazer com que participem de problemas, que são fantásticos e muito interessantes. Posso dizer que até Kant o tempo derivava do movimento. Ele era secundário em relação ao movimento. Ele era considerado como número ou medida do movimento. O que fez Kant? Não importa como, pois há criação de um conceito. Em tudo o que digo, só tem isso! Estamos sempre avançando no tema “o que é um conceito”. Ele criou um conceito porque inverteu a subordinação. Para ele, é o movimento que depende do tempo. De repente, o tempo muda de natureza, deixa de ser circular. Porque quando o tempo está subordinado ao movimento, por razões longas demais para explicar agora, é o grande movimento periódico, é o movimento de rotação periódica dos astros. Portanto, o movimento é circular. Mas quando o tempo se liberta do movimento e que este passa a depender do tempo, o tempo se torna uma linha reta. Sempre me faz pensar na frase de Borges, apesar de ele ter alguma coisa a ver com Kant: “O labirinto mais terrível do que um labirinto circular é um labirinto em linha reta“. Isso é uma maravilha, mas é Kant! É ele que destaca o tempo. Além do mais, estas histórias de tribunal que medem o papel de cada faculdade em função de tal finalidade… Até que, no final de sua vida, ele foi um dos raros a ter escrito já muito velho um livro onde reviu tudo. A crítica da faculdade do juízo. Ele chega à ideia de que é preciso que as faculdades se relacionem desordenadamente, que se oponham e se reconciliem, mas que haja uma batalha das faculdades e não mais as medidas que justifiquem um tribunal. Ele lançou sua teoria sobre o sublime em que as faculdades entram em discordância, em acordos discordantes. Aí, eu gosto muito disso, destes acordos discordantes, deste labirinto em linha reta, sua inversão da relação. Toda a filosofia moderna veio daí, de que não era mais o tempo que provinha do movimento e, sim, o contrário. É uma criação de conceitos fantásticos. E toda a concepção do sublime com os acordos discordantes das faculdades me tocam profundamente. É claro que ele é um grande filósofo. Um grande filósofo. Ele tem um embasamento que me entusiasma, mas o que está construído em cima disso não me toca em nada. Não estou julgando. É apenas um sistema de juízo que gostaria de ver acabado. Mas não julgo.


CP: E a vida de Kant?


GD: A vida de Kant… Isso não estava previsto!


CP: Há outro aspecto que poderia ter lhe interessado em Kant que é relativo a Thomas de Quincey, aquela fantástica vida regrada por hábitos, aquele passeio matinal… A vida do filósofo como se pode imaginar popularmente. Algo muito particular no qual também podemos imaginar você, com esta vida mais regrada. O hábito sendo muito importante.


GD: Acho que…


CP: Na vida de trabalho.


GD: Entendo o que quer dizer. O texto de Quincey a entusiasma e a mim também, é uma obra-prima. Mas diria que isso pertence a todos os filósofos. Eles não têm os mesmos hábitos, mas são criaturas com hábitos. Pode parecer que eles não saibam… Mas é preciso que sejam criaturas com hábitos. Acho que Spinoza não tinha uma vida muito cheia de imprevistos. Ele tinha a vidinha dele, com as lentes dele, polindo as lentes. Ele recebia algumas visitas, etc. Ganhava a vida polindo lentes. Não era uma vida agitada, a não ser pelos acontecimentos políticos. Kant também passou por fatos políticos intensos. Tudo o que dizem sobre aparelhos que Kant inventava para levantar as calças ou as meias, etc. faz dele um personagem com muito charme. Mas todos os filósofos são um pouco, como diz Nietzsche, castos, pobres, etc. Mas ele acrescenta: “Mas tentem adivinhar para que serve isso?” Para que serve a castidade, a pobreza e tudo o mais? Kant tinha seu passeio diário, mas isso não é nada. O que acontecia durante este passeio diário? O que ele olhava? Era bom saber. Se os filósofos são seres com hábitos é porque o hábito é contemplar. O hábito é a contemplação de alguma coisa. No verdadeiro sentido da palavra, “hábito” é contemplar. O que ele contemplava em seus passeios? Não sei. Os meus hábitos… Sim, sou cheio de hábitos. Meus hábitos são as contemplações. Eu saio para contemplar. Às vezes, são coisas que sou o único a ver. Este seria um hábito.


CP: Agora, L de Literatura.


GD: Vamos ao L?

O feminismo acolhe Foucault. POR Margareth Rago (RAZÃO INADEQUADA)

PICICA: "“Para mim, o estudo de Foucault não foi paradoxal em relação ao feminismo, mas um percurso teórico que me levou a ter um questionamento maior em relação também à História. Um encontro maravilhoso, uma nova possibilidade de fazer ciência, que destruía aquela pretensão de verdade única dos marxistas (…) Foucault abre comportas e não apenas portas…” (Tânia N. Swain, entrevista realizada em 15/02/2009)"

O feminismo acolhe Foucault.
   Margareth Rago.*
 
– a historiadora e o filósofo

“Para mim, o estudo de Foucault não foi paradoxal em relação ao feminismo, mas um percurso teórico que me levou a ter um questionamento maior em relação também à História. Um encontro maravilhoso, uma nova possibilidade de fazer ciência, que destruía aquela pretensão de verdade única dos marxistas (…) Foucault abre comportas e não apenas portas…” (Tânia N. Swain, entrevista realizada em 15/02/2009)

Com essas palavras, a historiadora feminista Tânia Navarro Swain define sua relação com Michel Foucault, cujas problematizações e conceitos lhe fornecem um olhar apurado para perceber as práticas feministas e pensar diferentemente a produção do conhecimento histórico. Ao seu lado, outras intelectuais feministas, como Margaret McLaren, Dianna Taylor, Ladelle McWhorter, Chloe Taylor, Jana Sawicki, Karen Vintges, Norma Telles e esta autora, também revelam uma atitude receptiva e atenta aos modos de pensar que a filosofia de Foucault inaugura, acolhendo sua enorme contribuição para os feminismos. Em seu livro Feminism, Foucault and Embodied Subjectivity (2002), por exemplo, Margaret McLaren propõe-se a mostrar como as reflexões foucaultianas sobre o corpo e a subjetividade, para além das discussões sobre o poder, trazem importantes recursos teóricos para os feminismos; já Tânia N. Swain não apenas analisa as práticas feministas nessa perspectiva teórica, como desdobra conceitos inspirados no filósofo, a exemplo do “dispositivo amoroso”, para discutir as formas de captura do corpo e da subjetividade femininos nas relações de gênero (SWAIN, 2008: 297).

Caminhando nessa direção, nesse trabalho, mostro como esse “casamento teórico” aparece nas reflexões originais e nas críticas contundentes ao patriarcado que Tania N. Swain constrói em seus inúmeros textos, artigos e livros. Mais do que isso, destaco como a partir desse trabalho intelectual, novas formas de pensar são criadas, denunciando as relações de poder constitutivas dos saberes dominantes e abrindo espaços para a imaginação criativa.

Parto da constatação de que o feminismo tem transformado profundamente a cultura e a vida pública, no Brasil, a partir de lutas que se dirigem para frentes muito diversificadas, no âmbito da política, no da religião e especialmente no do pensamento. Lutar contra a violência que sofrem as mulheres significa, a meu ver, não apenas enfrentar situações palpáveis como o estupro, a violência doméstica, a inferiorização, a humilhação e a exclusão física das mulheres, mas enfrentá-las também no plano simbólico e do imaginário social, transformando as formas misóginas e sexistas de pensar que hierarquizam o mundo e produzem regimes de verdade autoritários e excludentes. Significa dissolver as narrativas históricas masculinas, universalistas e binárias, como lembra Tania N. Swain, para que seja possível

“[…]a construção de uma nova memória social, de um novo sujeito político, filosófico, artístico, que não é mais o ‘outro’, nem o ‘diferente’, que não é mais o ‘feminino’, cuja definição seria por oposição e inferioridade. […] Quando se recusa a ‘natureza’ dos seres, se lhes confere uma plasticidade ‘impossível’ nas condições de imaginação patriarcais. “(SWAIN, 2013: 59)

Se Foucault tem sido importante para Tania desenvolver seus argumentos em relação aos feminismos, também me é útil para perceber a crítica inovadora que ela constrói ao longo de décadas, e as perspectivas que abre também para pensar a história dos excluídos, não apenas a das mulheres. Nesse sentido, a noção foucaultiana de parresia, ou coragem da verdade, constitutiva das artes da existência dos antigos, e a de heterotopia inspiram-me a focalizar alguns movimentos dessa historiadora militante, seja pela ousadia de afirmar um novo regime de verdades, na contramão das interpretações e saberes instituídos, seja pela invenção de “outros espaços” subjetivos, simbólicos e políticos, antes não imaginados.
– audácia de pensar e dizer

Diz Foucault que a parresia, ao contrário da retórica, pode ser definida como dizer a verdade, o falar francamente não importa para quem, mas que não se trata de qualquer enunciação da verdade, e sim daquela que comporta um risco. O parresiasta não é um professor, nem um sábio ou profeta. Diz ele,
“Para que haja parresia, é preciso que, dizendo a verdade, abra-se, instaure-se, afronte-se o risco de machucar o outro, de irritá-lo, de deixá-lo em cólera e de suscitar de sua parte um certo número de condutas que podem ir até a mais extrema violência. É portanto a verdade, no risco da violência” (FOUCAULT, 2009:12).

Já as heterotopias referem-se a outros espaços, à possibilidade de reinventarmos e darmos novos sentidos aos espaços físicos, geográficos, políticos, afetivos ou subjetivos, que aprendemos a ver de maneira empobrecida na Modernidade, perdendo sua multiplicidade. Ao contrário das utopias que levam a lugar nenhum e a algum tempo distante no futuro, as heterotopias dizem respeito ao aqui e agora e à possibilidade de transformar o mundo exterior e interior, individual ou coletivamente. Segundo Foucault, “Elas são a contestação de todos os outros espaços.” (2014: 28)
Enfrentar a rigidez do pensamento hierárquico masculino nos meios universitários, ousar dizer a própria verdade às autoridades científicas não foi menos difícil aí do que no interior do partido político ou da igreja, como atestam as experiências de várias militantes feministas em vários momentos da história. A abertura para novos conceitos, teorias, críticas, interpretações e questionamentos, especialmente aqueles vindos do feminismo, mesmo nas universidades, teve de ser conquistada a partir de muitos conflitos e disputas. Afinal, é a partir da luta política que nasce uma linguagem feminista. Tania conheceu na carne a violência dos preconceitos sexistas que precisou enfrentar para afirmar novas formas de pensar, com Foucault e os saberes feministas.

Tendo estudado em Paris e convivido com os movimentos feministas franceses nos anos setenta, apenas no século XXI, vinte anos depois de ser contratada como docente pela Universidade de Brasília, consegue colher os primeiros frutos palpáveis de seus investimentos: com o auxílio de outra historiadora feminista, Diva do Couto Gontijo Muniz, implanta uma área de concentração em “Estudos Feministas e de Gênero”, no Programa de Pós-Graduação em História dessa instituição. Diz ela:

“Então nós criamos, conseguimos, imagina, criar mestrado e doutorado em Estudos Feministas, foi a glória!” (Tania, entrevista concedida em 15/02/2009).

Certamente, olhar retroativamente o passado, quando as conquistas já se efetivaram pode não deixar claro como o percurso foi caótico, cheio de tentativas, acertos e erros, cheios de nuances. Desconstruir velhas concepções, questionar o regime de verdades que inferioriza as mulheres, trazer para a pesquisa histórica temas da esfera da vida privada, propor e defender a existência de uma escrita feminina, lutar pela criação e desenvolvimento de uma epistemologia feminista, enfim, desfazer espaços confinados do saber, num mundo em que a grande maioria não suportava nenhum desses termos significou travar uma luta árdua, exaustiva. Como ela mesma rememora, em entrevista de 2007,

“O momento negativo mais marcante de minha carreira foi justamente a época do totalitarismo de um deus ex machina marxista, redutor, que impunha suas verdades, suas análises teleológicas e positivistas e só se admitiam textos e discussões em torno de tese/antítese/síntese, de dominador /dominado, e de uma futurologia desencarnada de um comunismo paradisíaco, finalidade de toda história humana. Imagem caricatural, mas reveladora de um fascismo ideológico que grassou na UnB durante muitos anos, invertendo apenas o discurso da Ditadura Militar, para impor a sua. “(Tania, entrevista concedida a Estevão C. de Resende Martins, 2007: 297).

Para ela, portanto, Foucault trouxe expressivas contribuições para os feminismos, permitindo, com seus operadores conceituais, dar visibilidade a outras estórias, fenômenos e processos vividos pelas mulheres, silenciados pela racionalidade masculina. Um destes operadores é a noção de genealogia, que supõe uma forma de história que explica a constituição de saberes, discursos e domínios de objeto, sem ter como referência um sujeito transcendental em relação ao campo de eventos, ou que permanece o mesmo ao longo da história.

Essa rejeição do sujeito foi tomada por muitas feministas como recusa da capacidade de ação moral e política e de transformação social, como discutem McLaren (2002) e McWhorter (1999), por entenderem que o sujeito da filosofia de Foucault é totalmente determinado, produzido por relações de poder, sem capacidade de ação e resistência. Deixou-se de perceber, assim, que, para ele, no capitalismo industrial, generaliza-se uma forma de poder – as “disciplinas” – que visa a domesticar ou a assujeitar os indivíduos, produzindo “corpos dóceis”. Ponto que Tânia compreendeu muito bem e estendeu para pensar a produção de “corpos dóceis” femininos, distribuídos e classificados entre as “normais” e as “anormais”, as “castas” e as “histéricas” e “fatais”.

Para essa historiadora, a epistemologia feminista e o pensamento foucaultiano convergem, permitindo-lhe encontrar novos modos de pensar a História, os mecanismos de dominação na atualidade, inclusive na produção do passado e das identidades, e elaborar com maior clareza teórica as suas próprias dúvidas e posições.

“A História, hoje, seria fator de desordem do discurso, apontando a falácia das hegemonias, como construções interpretativas”, observa ela (SWAIN, 2004).

É nesse contexto intelectual que sua proposta de uma “história do possível” adquire forma. Em relação a esta, Tania revela sua insatisfação com a maneira pela qual se começara a construir uma história das mulheres, mantendo-se os mesmos moldes tradicionais da narrativa histórica dominante, como se a mera inclusão das novas personagens num discurso tradicional fosse suficiente para dar conta da presença feminina no mundo. A seu ver, não se configurava uma história construída na perspectiva do feminismo e, portanto, a narrativa histórica, mesmo incluindo mulheres, ao reproduzir o sistema binário que define homens e mulheres de uma determinada maneira, conservava seu formato masculino, legitimador das desigualdades sexuais, como se em todas as sociedades, mulheres e homens fossem considerados do mesmo modo, de acordo com uma natureza imutável, com seu “destino biológico”. Como afirma,

“[…]a História, esta narrativa que recorta a vida e o passado em textos produzidos segundo a percepção da realidade dos historiadores, esconde e ignora imensos períodos do viver humano” (SWAIN, 2000: 12).

Tratava-se de pensar a produção de outras narrativas históricas, fora da ordem discursiva androcêntrica, que explicitassem os valores e representações que as informavam e que fossem capazes de dar a perceber diferentes formas de vida, diferentes interpretações, outros códigos de conduta e referências simbólicas também no passado. Aceitando com Foucault e posteriormente com a “virada linguística”, a importância do discurso como prática discursiva, como materialidade que constitui os objetos e sujeitos de que fala, Tania defende como uma das tarefas fundamentais, na escrita da história, a busca dos múltiplos sentidos que podem ser encontrados em cada gesto, atitude, ação, sentimento ou emoção. Para além dos inúmeros artigos em que esclarece suas concepções, suas palavras a esse respeito, proferidas em entrevista, são bastante esclarecedoras:

“[…] a história do possível é uma perspectiva feminista em que se pensa a história como uma invenção, (…) o que se tem feito é repetir o que se conhece proximamente, não apenas esse presente, mas um passado muito próximo (…), então, outros espaços de outros tempos que nos deixaram poucos indícios, em que esses indícios não foram trabalhados, podem ter havido relações sociais muito distintas do que conhecemos hoje entre homens e mulheres marcados essas violências profundas. O que me instiga, o que quero estudar é: será que existiam essas figuras Mulher e Homem? Será que não existiam outros tipos de relacionamento que não passavam pela sexualidade? Essas ideias, não tirei do meu bolso, é uma questão que percebi em leituras e viagens, no Taiti, são sociedades que foram encontradas no século XVIII, totalmente diferentes do que conhecemos… (SWAIN, entrevista concedida em 27/01/2009).

Tania explica que, em suas pesquisas históricas e antropológicas, deu-se conta das profundas diferenças que caracterizam as sociedades e que passam despercebidas. Assim, em algumas delas, por exemplo, o sonho tem enorme importância e aquele que sabe contá-lo ganha certo status, tornando-se uma espécie de mensageiro especial (SWAIN, 2008b). Outro exemplo esclarecedor diz respeito ao emprego de termos que invisivelmente reforçam representações sociais dominantes, como o uso do termo “vagina”, ao invés de “vulva”, para se referir aos órgãos sexuais femininos, especialmente nas comparações com o sexo masculino: “vulva é externo, vagina é interno, fica lá dentro, (é melhor dizer) o pênis e a vulva, já que a vagina é uma parte da genitália feminina.”

Seus exemplos poderiam se suceder infindavelmente, mas destaco o artigo “História: construção e limites da memória social” (2008b), em que Tania relê a história da colonização no Brasil, desde o século XVI, comparando as fontes primárias com as interpretações feitas posteriormente pelos historiadores. Seu olhar feminista desconstrói as narrativas desqualificadoras e as representações sexistas e racistas construídas pelos viajantes sobre as formas de organização dos indígenas, sobre a sexualidade das mulheres, supostamente fogosas e promíscuas, instituindo sua amoralidade. Num excelente trabalho genealógico, mostra como os documentos foram apropriados e reinterpretados pela historiografia masculina, subsumidos por conceitos misóginos que cristalizam imagens profundamente negativas a respeito dos e das primeiros habitantes da terra, tidos como bárbaros, incivilizados e incapazes de cidadania. Ela destaca como, nesse registro histórico, o estupro, ao lado de outras formas da violência de gênero, nunca aparece, como se a Colônia fosse mesmo o “Paraíso Tropical” imaginado ou desejado: “Tudo se passa também em uma espécie de euforia lasciva, onde a violência está ausente e a sexualidade é a celebração de uma enorme festa em prol da mestiçagem”. Como denuncia a historiadora, Gilberto Freyre, por exemplo, não hesita em afirmar que as índias se ofereciam para os brancos fogosamente, enquanto “as mais ardentes se esfregavam nas pernas daqueles que ‘supunham ser deuses’” (FREYRE apud SWAIN, 2008b: 40).
– o feminismo como poética do pensamento

Se Tania constrói uma ampla crítica ao imaginário social e aos modos de existência vigentes em nossa atualidade, onde a violência de gênero física e simbólica se faz insistentemente presente; se desconstrói as representações sociais instituídas como naturais e universais, evidenciando sua contingência ao mostrar que foram produzidas historicamente, pode-se dizer que o foco de suas análises se centra nas discussões teóricas em torno da sexualidade, do corpo e da subjetividade. Inspirada por Foucault e em diálogo com outras teóricas feministas, sua opção a coloca na intersecção entre a história, a antropologia, a filosofia e os estudos literários, já que está mais voltada para a crítica das condições de produção do pensamento ocidental, dos discursos sexistas e dos modos como a produção científica se realiza.

Em seus inúmeros textos e livros, nota-se a busca constante da transformação dos modos de conhecer, a intenção de fazer ciência na perspectiva feminista, isto é, trazendo para a linguagem a corporalidade, a sexualidade e a subjetividade e desfazendo antigas fronteiras demarcadas pelo sistema de pensamento binário. Nesse sentido, seu trabalho abre espaços que ouso chamar de heterotópicos, como diz Foucault (2014), pois inventam “outros espaços” no plano do pensamento, permitindo a emergência da multiplicidade de fenômenos, temporalidades, sentidos, contestações, antes encobertos pelo sentido único instituído como verdadeiro.

Assim, vinculando-se ao “feminist criticism” e em busca da superação do “campo de possibilidades epistemológicas” que, a seu ver, restringe os meios de percepção de outros fenômenos e práticas, ela explica, recorrendo a Gayle Rubin:

“Por “campo de possibilidades epistemológicas”, entendo um horizonte de percepção do social/humano, um universo discursivo povoado de representações e imagens, constituindo uma rede categorial, que tende a reduzir a apreensão do mundo e da história a densos esquemas interpretativos, que seriam denominados por Foucault de “regimes de verdade” (Foucault, 1979: 14). Estes blocos de ferramentas analíticas intentam produzir a verdade última e definitiva sobre o mundo físico ou social e contra estes totalitarismos científicos erigiram-se os movimentos feministas da atualidade e o ‘feminist criticism’” (SWAIN, 2002b).

Crítica radical da lógica da identidade, fundada em oposições binárias, Tania desafia as definições masculinas da identidade feminina, as partilhas entre masculino e feminino, natureza e cultura, heterossexualidade e homossexualidade, normal e patológico, razão e loucura, desmistificando as interpretações falocêntricas que, da igreja à ciência e à mídia, pretendem produzir os corpos, formar a opinião pública e instituir o imaginário social. Segundo suas análises, o desejo masculino aparece como regulador dessa ordem social e moral, como aquele que define e impõe modos de ser e sentir ditos verdadeiros e únicos para todos, incluindo as mulheres, construindo, portanto, os significados estigmatizantes da diferença, do desvio e da anormalidade.

Assim, a preocupação com os limites sexuais da produção do conhecimento se evidencia em seu trabalho intelectual, o que implica o questionamento constante das representações sociais que instituem os lugares sociais para mulheres e homens, as primeiras na esfera da vida privado ou na natureza, e os segundos no mundo público e na cultura. É claro que, com essas motivações, a transformação não só dos temas, mas do próprio discurso histórico se torna uma questão fundamental. Num balanço sobre o seu trabalho de historiadora, ao discutir as práticas e procedimentos da disciplina, ela afirma que o considera essencialmente interdisciplinar.

“Os aportes das teorias feministas (com destaque para Teresa de Lauretis, Linda Hutcheon, Colette Guillaumin, Monique Wittig, Adrienne Rich), de Análise do Discurso, de Representações Sociais, do Imaginário e Imaginação Social e, sobretudo, da extraordinária obra de Michel Foucault têm me auxiliado a compor uma interpretação do real e uma concepção de ciência sobre a qual constitui meu trabalho. Algumas noções, oriundas destes diversos vieses teóricos, foram nodais ao longo de minha carreira acadêmica, tanto na docência, quanto na produção bibliográfica, tais como: discurso, descontinuidade, sexo social, patriarcado, tecnologias de produção de gênero, dispositivo da sexualidade (ao qual acrescentei o dispositivo amoroso, da violência), processo de subjetivação, assujeitamento, pedagogias sociais, condições de possibilidade, condições de produção e de imaginação, matrizes discursivas, política de localização, inteligibilidade social, matrizes de sentido e muitas outras, suscetíveis de fundamentar minha interpretação do real, etc “(SWAIN, 2002b).

É interessante observar a aceleração do ritmo que toma seu pensamento na virada do milênio, fruto também do amadurecimento pessoal e profissional. Várias de suas reflexões adquirem uma forma mais densa, enquanto a inspiração intelectual também se estende a Deleuze e às feministas deleuzianas, como Rosi Braidotti e Elisabeth Grosz, cujas análises aparecem desde o primeiro número da revista Labrys, estudos feministas, criada em 2002.
– heterotopias feministas

Dois anos antes, a convite de outra conhecida “feminista histórica”, Danda Prado, Tania publica O que é Lesbianismo? (2000), livro em que desconstrói de maneira polêmica e impactante a suposta identidade lésbica, embaralhando inúmeras possíveis respostas à questão em jogo e revelando as armadilhas aí supostas. Simulando várias situações em que atos, pensamentos e sonhos são perscrutados, a autora pergunta: o que faz de uma mulher uma “lesbiana”? Suas ações? Seus sonhos? Seus desejos?,   acenando de modo contundente para o estreito universo dos enquadramentos com que opera o sistema hegemônico de interpretações sociais.

Vale lembrar que, até algumas décadas atrás, o lesbianismo era visto como monstruosidade ou “perversão sexual”, segundo o discurso médico construído desde o século XIX, com base em assunções morais religiosas. A lésbica, por negar na prática o ideal de mulher-mãe-assexuada, era estigmatizada e marginalizada como ser abjeto, como mostram as pesquisas do feminismo lésbico e de autores vinculados ao movimento gay, desde a década de 1970. Aliás, segundo Tania, mesmo a conexão entre feminismo e lesbianismo não se deu sem problemas, as feministas considerando-se mulheres “normais”, em oposição às figuras que destoavam de seu padrão identitário. Ainda não se havia aprofundado o amplo debate sobre “o sujeito do feminismo”, nem se falava em feminismos plurais e múltiplos, no Brasil, como ocorre nas décadas seguintes.

“Deserto: outrora terra árida, extensão de sal. Atualmente todo lugar que não é habitado pelas lesbianas.”

Com esta epígrafe sugestiva de Monique Wittig, Tania inicia seu livro, logo seguido por uma “pequena advertência”, em que conta que, no primeiro dia do curso do ano anterior, escrevera no quadro a seguinte frase: “Minha única pretensão é mudar o mundo!”, mas em que avisa que toda resposta tem valor transitório.

Num estilo irônico, às vezes, cômico, Tania imagina duas jovens que passeiam e se acariciam, ou duas senhoras grisalhas que se encontram e abraçam, e pergunta como defini-las: “amigas? irmãs? amantes? lésbicas?”. É assim que cria várias situações e jogos que nos surpreendem em sua familiaridade e, ao mesmo tempo, questionam nossas interpretações e reações cotidianas. Essas cenas permitem-lhe desconstruir a noção de lesbianismo, revelar sua triste história, tanto quanto destacar os efeitos de poder que teve sobre uma enorme quantidade de mulheres, excluídas como não-mulheres e, pior ainda, como aberrações.

Vale lembrar como agiram os regimes totalitários em relação às figuras da anormalidade, baseados nas concepções eugenistas do século XIX. A “heterosexualidade compulsória” serviria, segundo esse ideal racista, para garantir a construção e perpetuação de uma “humanidade eugênica”, como analisa ela. Observa também como agem as “tecnologias de reprodução do gênero” (LAURETIS, 1994) que, nos meios de comunicação, no cinema, na literatura, nas artes, na imprensa reafirmam as imagens tradicionais de mulheres e homens, veiculam representações asimétricas de sexualidade e banalizam a violência sexual e de gênero. Tania encerra o denso livro, perguntando novamente em tom jocoso: “Mas o que é ser lésbica? O que é ser mulher?”, ao que travessamente responde: “boa questão!” (SWAIN, 2000: 95).

Desdobrando essa discussão, no trabalho intitulado “Identidade Nômade: Heterotopias de mim”, Tania propõe um jogo performático por meio da sua própria narrativa autobiográfica (SWAIN, 2002a). Irônica, põe em discussão o tema deleuziano do nomadismo, da invenção de novas subjetividades, valendo-se também da noção foucaultiana de “heterotopia” (Foucault, 2014). Ao mesmo tempo, essa estratégia narrativa centrada no eu também lhe é útil para lançar críticas ao pensamento falocêntrico, que naturaliza a identidade. Assim, ela pergunta:

“Quem somos “nós”, assim, encerrados em corpos sexuados, construídos enquanto natureza, passageiros de identidades fictícias, construídas em condutas mais ou menos ordenadas? Quem sou eu, marcada pelo feminino, representada enquanto mulher, cujas práticas não cessam de apontar para as falhas, os abismos identitários contidos na própria dinâmica do ser?” (SWAIN, 2002a: 327)

Se aqui Tania visa a desestabilizar noções naturalizadas que afirmam a identidade sexual ancorada no corpo biológico, nas discussões apresentadas nos textos seguintes, dedicados ao tema da velhice, aparecem as mesmas estratégias discursivas e referências teóricas. No artigo “Velha? Eu? Auto-retrato de uma feminista” (2006a) parte com humor e originalidade para uma crítica performática dos estigmas modernos que encerram o corpo, a sexualidade e a identidade da mulher madura na categoria da velhice, associada, por sua vez, à da menopausa. “É ainda e sempre o ‘dispositivo da sexualidade’ em ação, descrito por Foucault”, denuncia ela.

Lembre-se que a menopausa foi definida pelo discurso médico como o “ocaso” da sexualidade feminina, ou seja, como um momento em que sua vida sexual se encerraria, e em que, ao contrário dos homens, as mulheres deixariam de ter desejo sexual, sendo, portanto, despojadas de seu principal papel na sociedade, o de reprodutoras e mães, como desconstroem os saberes feministas. Expondo-se ousadamente no texto e afirmando uma recusa radical de um corpo e de uma identidade pré-estabelecidos, Tania desafia:

“Meus cabelos são compridos e brancos, crime de lesa majestade para uma mulher no Brasil. Visto-me como bem me apetece, para escândalo das/dos colegas e para alegria dos alunos, que partilham minhas preferências. Nunca torturei meus pés nestes sapatos pontudos e de salto alto (elegantes!) que nos impedem de correr, saltar, ter uma postura correta. Sinto-me bem e confortável nos meus running shoes que me transportam entre conferências e palestras, das bancas de tese às aulas habituais.” (SWAIN, 2006: 263).

Sua crítica desconstrói as interpretações que fazem da velhice um período associado à degenerescência e à morte, um momento de perda de potência das mulheres, brancas ou negras, de quem se exigem padrões estéticos elevados, entre beleza e juventude:

“Mas o que é afinal a velhice? Vemos florescer, mesmo nas fileiras dos feminismos, os “grupos de jovens”, face às feministas “clássicas”, tradicionais, “idosas”, velhas, enfim. O que faz a coerência dos grupos de “jovens”? Quais são seus limites, seus objetivos, seus laços? Como a idade pode determinar o pertencimento, senão em um mundo traçado, estabelecido, definido, onde os gostos e preferências se estabelecem segundo a publicidade, a propaganda, avatar último de uma globalização avassaladora em marcha? E quais são os detalhes sutis que colocam alguém, inexoravelmente entre as “velhas”? A terceira idade começa aos 30 ou 31 ou 42 ou 54? E a quarta idade e a quinta? Qual é a ruga ou a quantidade de cabelos brancos que determinam esta passagem?” (SWAIN, 2006: 264).

Enquanto muitas feministas rejeitaram as lições de Foucault, Tania opta por aprender com este pensador incendiário. Nessa direção, questionando os limites do que o filósofo francês concebe como “dispositivo da sexualidade”, bastante pertinente para pensar a produção dos corpos e das identidades naturalizadas no mundo masculino, a historiadora propõe a noção de “dispositivo amoroso”. Nesse caso, tem em vista dar contas das diferenças que afetam as mulheres. Como ela explica, no imaginário social, enquanto para os homens o sexo é fundamental, para elas, o amor é colocado em primeiro lugar, como se os primeiros fossem feitos para o prazer, enquanto as mulheres, futuras mães cívicas, fossem destinadas exclusivamente ao amor pelo próximo e ao cuidado com o outro. Diz ela:

“Nas fendas do dispositivo da sexualidade, as mulheres são “diferentes”, isto é, sua construção em práticas e representações sociais sofre a interferência de um outro dispositivo: o dispositivo amoroso. Poder-se-ia seguir sua genealogia nos discursos – filosóficos, religiosos, científicos, das tradições, do senso comum – que instituem a imagem da “verdadeira mulher”, e repetem incansavelmente suas qualidades e deveres: doce, amável, devotada (incapaz, fútil, irracional, todas iguais!) e, sobretudo, amorosa. Amorosa de seu marido, de seus filhos, de sua família, além de todo limite, de toda expressão de si.” (SWAIN, 2008a: 297).
– o dispositivo amoroso

As reflexões que se seguem, nesse texto, são bastante instigantes, pois ampliam e desdobram o conceito foucaultiano de “dispositivo da sexualidade”, para dar conta da produção dos corpos femininos a partir de outras práticas culturais e sociais, de tecnologias de gênero diferenciadas. O “dispositivo amoroso” – esse conjunto de práticas discursivas, técnicas, instituições, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas e morais, como explica Foucault em relação ao termo “dispositivo” (FOUCAULT, 1979: 244) – é criado, então, para evidenciar a maneira pela qual as mulheres são assujeitadas pela disciplina corporal e pela educação dos sentidos impostas em casa, na família, na escola, pela pedagogia, pela ciência, pelas artes, pelo cinema, pelas propagandas veiculadas pela mídia. Diz ela:

“O dispositivo amoroso, assim, cria mulheres e, além disto, dobra seus corpos às injunções da beleza e da sedução, guia seus pensamentos, seus comportamentos na busca de um amor ideal, feito de trocas e emoções, de partilha e cumplicidade. A sexualidade às vezes é até acessória. As tecnologias sociais do gênero investem os corpos-sexuados-em-mulher em práticas discursivas que propõem como axioma a “natureza” feminina, um pré-conceito ancorado no senso comum, propagado e instituído por um conjunto de discursos sociais.” (SWAIN, 2008a: 298).

Discutindo as múltiplas formas de servidão impostas às mulheres, na atualidade, a partir desses jogos de saber-poder, o artigo progressivamente se desloca de uma crítica mais geral para referir-se ao próprio eu, afirmando sua própria percepção do que se configura como uma forma de dominação em nosso mundo, e de como responder a esta. Lê-se nessa “escrita de si”:

“Sinto necessidade de mudar de nível, de mudar, apenas. Não, não sou contra a sexualidade, ao contrário. Tenho, entretanto, um engajamento feminista, um engajamento comigo mesma, que impede o cego assujeitamento às imposições do social sobre meu corpo e meu ser. Procuro, ao contrário, perfurar as evidências infladas de certezas e verdades, as que criam obrigações e fixam identidades, encobrindo a face do poder.” (SWAIN, 2008a: 301)

Em seguida, ela explicita sua interpretação da noção de “estética da existência”, porém, referida à sua própria experiência:

“Quem sou eu, fora da sexualidade? Quem sou, fora das normas do sexo? Por que devo me curvar às regras que impõem a sexualidade como fundo de verdade do ser? De fato, pouco me interessa saber quem eu sou, já que não sou mais a mesma, no momento desta enunciação.

A liberdade não é uma palavra vã. Se ela se encontra no fim do arco-íris, sua conquista é o caminhar crítico da construção de mim, que me leva onde nunca fui, que me afasta daquilo que não serei nunca mais, livre, porém, das servidões bio-sociais. É assim que concebo a estética da existência: a produção crítica de mim, enquanto sujeito político e histórico, transitando em temporalidades e lugares inusitados, quebrando os grilhões do natural, da sexualidade compulsória, das novas servidões que se anunciam ao criar nossos corpos.” (SWAIN, 2008a: 301)
– uma revista digital feminista

Sonho projetado há muito tempo, produto de muitos contatos realizados no Brasil e no exterior, a revista feminista digital internacional Labrys, estudos feministas, também publicada em francês e com artigos em inglês e em espanhol, foi criada no segundo semestre de 2002, por sua iniciativa, com o apoio de Marie-France Depêche. Conta com um grupo de feministas de várias instituições, integrando o conselho editorial.

A palavra grega Labrys designa um machado com lâmina dupla, utilizado como arma ou instrumento sagrado pelas antigas populações das Amazonas, segundo os registros arqueológicos; para Tania, é “um símbolo maior de afirmação do feminino”, como afirma no número 3 da revista. Em todos os números, uma cuidadosa explicação histórica sobre o termo dá conta das formas de sua utilização ao longo do tempo, do sentido sagrado que possui em diferentes culturas, justificando sua escolha para dar nome à publicação. Eis um fragmento dessa explicação:

“[…] Imersas no mito, as Amazonas revivem em seus símbolos, como a “Labrys”, que imprime suas lâminas duplas nos muros do palácio de Cnossos, o “palácio da dupla machadinha”. Creta contém imagens e esculturas da Labrys, feita de diversos materiais, de todo tamanho, das joias buriladas à escultura gigante. Labrys aparece também nos selos, e orna vasos, sarcófagos, decorações murais. É associada a várias divindades femininas da mitologia greco-romana, como Gaia, Réa, Ártemis, Diana e aparece também em outros lugares do mundo, como na Índia e no Egito. Labrys é ainda hoje, um símbolo maior de afirmação do femininº.” (labrys)

Já no primeiro número, o editorial defende, com todas as letras, a importância dos feminismos, em suas múltiplas expressões, enfatizando sua dimensão transgressora e subversiva. Explicitando seu desejo de reinvenção, criando o que define como uma “poética do pensamento”, e buscando criar pontes que articulem as feministas de regiões próximas ou distantes, tecendo novas redes, ela escreve:

“Labrys – estudos feministas” pretende ser um lugar de fala feminista, um lugar de inquietação sobre o feminismo, cadinho de experiências e experimentações, onde os modelos teóricos “verdadeiros” dão lugar a uma poética do pensamento, descentrado, sem medo do paradoxo e da aporia, cérberos dos caminhos pavimentados pela “verdade”. Este é um espaço de re-invenção: criar laços de solidariedade que atravessem os continentes, misturar as pistas que levam às largas avenidas do senso comum, dos discursos redutores que agrilhoam o humano em moldes corporais e identitários. E sobretudo, criar práticas sociais que busquem as similitudes, em lugar das diferenças” (nº.1-2. julho-dezembro 2002).

Desde o início, Tania destaca a dimensão política desse ativismo feminista cultural, que recusa enquadramentos conceituais, teóricos ou de qualquer outro tipo, e que visa a uma profunda transformação social e cultural. Entende que para destruir a ordem patriarcal é necessário muito esforço, a começar dando visibilidade ao que vem sido reprimido, silenciado, não dito e não publicado: as vozes feministas e o árduo e longo trabalho das feministas em todo o mundo, questionando, criticando, subvertendo a cultura patriarcal, acenando para outras possibilidades de existir, de organizar socialmente e de construir para o bem público. A palavra é a principal arma dessa militância, já que, segundo ela, “a palavra é ação e o gesto que desfaz os contornos é também um movimento de criação contínua” (Idem). O feminismo como uma “poética do pensamento” é o que advoga Tania, abrindo novas formas de expressão para as mulheres em luta.

O movimento feminista, na medida mesmo em que se amplia, em que adentra múltiplos espaços, em que dialoga com outros movimentos sociais que proliferam no Brasil, e em que se institucionaliza, ao ser chamado a dialogar com o Estado e a participar de espaços como os Conselhos da Condição Feminina e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, criada em 2004, sofre profundas transformações. Uma delas, menos positiva, refere-se à captura do potencial subversivo que apresentava nos primeiros tempos, como alertam várias feministas (OLIVEIRA, 1990, THAYER, 2010). Essa investida biopolítica reflete-se também no próprio discurso feminista, muitas vezes, árido, “realista” e objetivo, ou seja, masculino, eliminando toda sorte de preocupação com a forma e com as próprias dimensões femininas da linguagem, como a subjetividade e a imaginação poética.
É contra essa tendência que feministas como Tania se rebelam, evidenciando a importância de transformar não apenas as práticas sociais e políticas, não apenas o mundo da política institucional, as leis e o direito, o que é absolutamente necessário, como se sabe, mas também os modos culturais, as formas de pensamento e de expressão que configuram esses efeitos nas várias áreas da atuação pública ou social.

Não é de se estranhar, nessa direção, que Foucault, Deleuze e Derrida se tornem referências teóricas das mais impactantes para ela. Suas discussões sobre a linguagem, portanto, têm um sentido altamente político, já que se trata de reivindicar o direito à expressão feminina e feminista, o que implica uma subversão dos modos discursivos dominantes, ou, em outras palavras, o que convoca à criação de uma poética feminista.

Poética feminista é aqui entendida como subversão das formas narrativas tradicionais, desbloqueamento das palavras e embaralhamento dos gêneros literários, de modo a construir uma linguagem feminista ao mesmo tempo corporificada, que dê passagem à imaginação feminina, não mais demonizada como perigo ou histeria. Caótica, anárquica, excessiva, para além das normas instituídas da gramática universal, essa escrita foge dos enquadramentos disciplinares da ciência e busca saídas na literatura. Entre a ciência e a arte, imbuída de razão e emoção, articulando o discurso científico e o artístico, colocando-se no espaço “entre”, em constante devir, é uma escrita de fronteira como as subjetividades de que se nutre ou que produz.

No contexto dessas discussões, Ana Carolina A. de Toledo Murgel chama a atenção para as críticas que fazia Heloísa Buarque de Hollanda, em 1981, quando, no artigo “A imaginação feminina no poder”, reclamava das dificuldades que enfrentava o feminismo, com “uma certa incapacidade, enquanto linguagem, para enfrentar seus fantasmas mais delicados” (apud MURGEL, 2010: 116). Segundo Hollanda, na busca da igualdade, o feminismo acabara por reproduzir um discurso masculino e, com ele, “os mitos que sustentam o modo de produção capitalista.”

Showalter desdobrou ousadamente essa discussão, ao propor para a área de estudos literários a “ginocrítica”, como modo cultural de conhecer a literatura produzida por mulheres, sem enquadrá-la em modelos masculinos que tenderam a desvalorizá-la (SHOWALTER, 1986: 8). Buscava, portanto, libertar a escrita feminina dos moldes masculinos de uma história linear da literatura, que mais exclui do que dá conta da experiência feminina. Para ela, essa tarefa é absolutamente necessária para dar visibilidade à potencialidade da cultura feminina, levando-se em conta que as mulheres certamente ficam muito divididas tanto porque são filhas de uma tradição masculina, como porque caminham em busca de novas formas femininas de escrita de si. Em suas palavras:

“Somos tanto filhas da tradição masculina, dos nossos professores do colégio, dos da universidade, dos orientadores e editores, de uma tradição que nos pede para sermos racionais, marginais e agradecidas, quanto irmãs de um movimento de novas mulheres que engendra outro modo de consciência e compromisso, que pede que renunciemos ao pseudo-sucesso de símbolos da feminilidade e às irônicas máscaras do debate acadêmico “(SHOWALTER, 1986: 18).

É claro que nem sempre essas discussões são bem-vindas nos meios em que se respeitam divisões como as que colocam as feministas “práticas”, de um lado, e as “teóricas”, de outro, instalando-se inadvertidamente na oposição binária teoria/ação, que o próprio feminismo critica. Segundo esta lógica, as questões da linguagem refletem um idealismo tradicional, ao que opõem o materialismo de suas atividades, dando continuidade às antigas querelas com que se defrontavam marxistas e não-marxistas, “materialistas” e “idealistas”, nas décadas de 1960 e 1970. Para as feministas denominadas “práticas”, a militância só pode ser pensada fora das universidades, fora da produção intelectual e dos seminários e congressos acadêmicos feministas, muito embora os resultados das realizações intelectuais, os resultados das pesquisas históricas, antropológicas ou sociológicas sejam rapidamente absorvidos quando da publicação e circulação dos livros e artigos produzidos.

Nessa direção, vale ainda lembrar a provocativa crítica de Foucault, quando argumenta que o pensamento é também uma forma de experiência, que há “acontecimentos do pensamento”, e que os historiadores deveriam se perguntar por que a história das ideias em geral se refere ao pensamento das elites, enquanto a história social trabalha com as práticas e comportamentos das camadas populares. Conversando com Arlette Farge, ele aponta:

“Se é verdade que as representações foram muito frequentemente interpretadas em termos de ideologia (primeiro erro); que o saber foi frequentemente considerado como um conjunto de representações (segundo erro), o terceiro erro consiste em esquecer que as pessoas pensam e que seus comportamentos, suas atitudes e práticas são habitados por um pensamento”. (FOUCAULT, 1994: 654)

Essa é, sem dúvida, uma discussão que ultrapassa as fronteiras nacionais, sendo vários os livros que debatem o tema, questionando a rejeição ao pensamento pós-estruturalista por parte de muitos grupos feministas. É também uma discussão importante para Tania, leitora de Foucault, Deleuze e Derrida, que, preocupada com a criação de novas formas de expressão do pensamento e, em especial, do pensamento feminista, abre um amplo espaço de debate e circulação de ideias com o lançamento da revista Labrys, estudos feministas.

Os vinte e cinco números existentes foram lançados semestralmente ao longo de mais de uma década. Todos são esteticamente trabalhados com imagens específicas, em cores e portam algum tipo de som musical, referenciado pela temática. Reúnem artigos de feministas de inúmeros países, desde o Brasil, Peru, Bolívia e Argentina ao Canadá, França, Espanha, Índia e China, até o momento, podendo ampliar-se ainda mais. Mulheres escritoras, artistas, poetas, intelectuais, cientistas, militantes políticas, aventureiras do passado e da atualidade são estudadas, interpretadas e descritas pelos olhares feministas de outras mulheres. A revista, nesse sentido, cumpre um amplo papel de aglutinação das intelectuais feministas, de divulgação de autoras nacionais e internacionais, de difusão de suas ideias e de promoção de debates na área dos feminismos. Em se tratando de uma produção digital, pode ser acessada por quem quer que seja, gratuitamente, e assim traz uma gama de autoras e de temas feministas a que não se teria acesso com facilidade e rapidez.

Os números 1-2, referentes a julho-dezembro de 2002, trouxeram a pioneira dos estudos feministas no Brasil, a socióloga Heleieth I. B. Saffioti, falecida em 2010, que analisa as “Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero”. Outros artigos discutem as teorias e os movimentos feministas, com Elizabeth Grosz, Francine Descarries, Linda Hutcheon, Lola G. Luna e Rosi Braidotti, dando também a conhecer a história desses movimentos no Brasil e no exterior. Intelectuais brasileiras, como Rachel Soihet, Diva Gontijo Muniz, Norma Telles, Lúcia Helena Vianna, Marie-France Dépêche, Marilda Ionta, Elisabeth Rago, Susel Oliveira da Rosa, Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel, Luana S. Tvardovskas, Célia Orlato Selem, entre outras, contribuem com pesquisas inovadoras, escrevendo a história de mulheres desconhecidas e de suas valiosas obras, desfazendo as densas névoas de silêncio que as ocultaram por décadas ou séculos.

Sexualidade, homossexualidade, corpo, gênero e teoria queer são temas também abordados por especialistas como Guacira Lopes Louro, Carmen Lúcia Soares, Denise B. Sant’Anna, Silvana Goellner, Cláudia Maia e Christine Détrez. Enquanto a antropóloga Rita L. Segato problematiza de maneira inovadora o tema da violência de gênero, Constância Lima Duarte focaliza “O discurso autobiográfico de Nísia Floresta”.

Vários dossiês foram organizados desde o início da revista, tendo em vista divulgar os feminismos em sua dimensão teórica e prática e seus aportes em todo o mundo. Assim, o nº. 6 da revista traz o dossiê “Paroles du Québec”, produzido por Francine Descarries e Tania N. Swain; no nº. 8, María Luisa Femenías apresenta os “Feminismos en la Argentina”, reunindo diversas escritoras argentinas contemporâneas; o nº. 9 nos brinda com o “Dossiê India”, organizado por Susan Dewey; no nº. 10, aparece o “Dossiê Espanha”, em que Ana de Miguel Álvarez discute as perspectivas feministas na Espanha, no século XXI, entre outros valiosos textos; já o nº. 11 traz o dossiê “Feminismos no Peru”, enquanto o nº. 14 entra com o tema “Nous, féministes du Québec”; os nos. 15/16 introduzem o “Feminismo na China” e apresentam o dossiê “Memórias insubmissas: mulheres nas ditaduras latino-americanas”, organizado por Margareth Rago, enquanto o nº. 19 discute o “Feminismo no México” e assim como os números 20/21, acolhe as viajantes e aventureiras do passado, dando a conhecer as motivações de suas buscas, os percursos que realizaram, os obstáculos que tiveram de vencer, assim como seus escritos, entre trabalhos científicos e registros de viagem. Figuras que aparecem, ainda, nos números posteriores, trazendo uma ampla gama de ousadas mulheres com trajetórias criativas e radicais.

Vale explicar que não se trata apenas de uma temática a ser abordada em cada número da revista, já que, sendo digital, abre inúmeros arquivos e espaços preenchidos por dicas de leituras, resenhas, obras de arte e comentários livres.

Reconhecida hoje não apenas nos meios acadêmicos feministas, essa revista tem trazido uma valiosa contribuição tanto para a divulgação das idéias e dos debates travados nos meios feministas em todo o mundo, como ainda para a própria construção do pensamento feminista transnacional, pois permite a conexão virtual de autoras de diferentes partes do mundo. Nesse sentido, é uma das primeiras e uma das poucas revistas feministas digitais no país, trazendo a marca da excelente qualidade das reflexões teóricas, das pesquisas históricas e das entrevistas divulgadas.
– potencializando os feminismos com Foucault 

As pertinentes apropriações do instrumental teórico foucaultiano que Tania opera permitem-lhe, de um lado, criticar e denunciar a dominação patriarcal, em suas diversificadas formas de manifestação, do poder disciplinar à biopolítica e à governamentalidade neoliberal; de outro, favorecem uma leitura potencializadora das práticas feministas que poderiam passar despercebidas sem as noções adequadas para a sua visibilização. Possibilitam, portanto, discutir tantos as tecnologias do poder que capturam corpos e subjetividades femininos, quanto pensar as práticas da liberdade, as resistências e transgressões criadas pelos feminismos contemporâneos.

Assim seus temas abrangem um amplo leque de problematizações: das análises sobre a violência patriarcal contra as mulheres, a produção dos “corpos dóceis” femininos, a denúncia da normatização da vida feminina na modernidade e as dimensões de captura dos três dispositivos, como ela destaca, o amoroso, o da sexualidade e o da violência que impõem a “heterossexualidade compulsória”, às criações feministas, a partir do trabalho sobre si, de um cuidado de si na produção de subjetividades éticas, e do cuidado com o outro, no sentido de fortalecimento da solidariedade e das relações de amizade entre as mulheres.

Daí, seu incansável esforço para dar a conhecer a história das mulheres e sua produção literária, artística, política, no passado e no presente, que revelam o desejo de dotar as mulheres de um passado com que possam se identificar e fortalecer tanto quanto a aposta nos benefícios que a cultura feminina reinventada pelos feminismos pode trazer para nosso mundo bastante dilacerado por conflitos, interesses e ambições. Encerro com suas palavras de esperança e incentivo:

“Inventar-se, construir-se como a outra de si mesma, cuja imagem no espelho reflete movimento, energia, ultrapassando toda coerção patriarcal, isto é o apelo da liberdade. Construção não só como reação às imposições da diferença sexual, mas caminhando para além do sexo, da sexualidade, como subtração aos dispositivos de seus poderes de domesticação e de opressão. Feministas em ação são aquelas cuja diferença só se verifica do translado de si para si, na reinvenção contínua da subjetividade e na ação transformadora desta realidade estabelecida sobre o conflito, o poder, a dor e a morte. Feministas, sujeitos de transformação, arautos de liberdade. Vocês são o futuro” (Swain, 2014: 50).
Referências Bibliográficas
FOUCAULT, M. (2014) O corpo utópico. As heterotopias. São Paulo, N-1 Edições.
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ONFRAY, Michel. (2009) Cinismos. Retrato de los filósofos llamados perros. Trad. Alcira Bixio. Buenos Aires: Paidos.
PASSETTI, Edson. (2002) “Heterotopias anarquistas”, VERVE, Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da PUC-SP, n.2, pp. 141-173.
RAGO, Margareth. (2013) A Aventura de Contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.
_____; MURGEL, Ana Carolina A. de T. Paisagens e Tramas. (orgs) (2013) O gênero entre a  história e a arte. São Paulo: Intermeios.
SHOWALTER, Elaine (1986). “Toward a Feminist Poetics”. In: SHOWALTER, E. (Org.) The New Feminist Criticism: essays on women, literature and theory. London: Virago Press, 1986.
SWAIN, Tânia Navarro. (2000) O que é lesbianismo? São Paulo: Brasiliense.
______(2002a) “Identidade nômade: heterotopias de mim”, in RAGO, M.; VEIGA NETO, A. Imagens de Foucault e Deleuze, ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DPA, pp.325-342.
______(2002b)(org.) Feminismos: teorias e perspectivas. Textos de História – Revista da Pós-graduação de História da UnB, vol. 8, nos.1-2.
______(2008a) “Entre a vida e a morte, o sexo”. In: SWAIN, T.N.; STEVENS, C. (orgs.) A construção dos corpos: perspectivas feministas. Ilha de Sta Catarina: Mulheres, pp.285- 302.
______(2008b) “História: construção e limites da memória social”, In: RAGO, M.; FUNARI, P.P. de Abreu. Subjetividades antigas e modernas. São Paulo: Annablume, pp.29-46.
______ (2009) “Todo homem é mortal. Ora, as mulheres não são homens; logo, são imortais”. In: RAGO, M.;VEIGA NETO, A. Para uma vida não-fascista. Belo Horizonte: Autêntica, pp.389-414.
______“A história é sexuada”. (2013) In: RAGO, M.; MURGEL, A.C.A.T. Paisagens e Tramas: o gênero entre a história e a arte. São Paulo: Intermeios, pp. 51-60.
______ “Por falar em liberdade…”. (2014) In: STEVENS, C.; OLIVEIRA, S. R. de; ZANELLO, V. Estudos Feministas e de Gênero: articulações e perspectivas. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, pp.36-51.
TAYLOR, Dianna; VINTGES, Karen (Eds.) (2004) Feminism and the Final Foucault. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.
TELLES, Norma (2009) “A escrita como prática de si”. In: RAGO, M.; VEIGA NETO, A. Para uma vida não-fascista. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, pp. 291-304.
Notas.

*Esse artigo retoma idéias publicadas recentemente no livro de M. Rago – A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade (Unicamp, 2013).

**A narrativa partilhada foi publicada em: RAGO, Margareth. O feminismo acolhe Foucault. São Paulo: Labrys. Revista Eletrônica Estudo Feministas – Julho/Dezembro, 2014.

Fonte:  TERRITÓRIOS DE FILOSOFIA

outubro 30, 2015

O sentido do humano. POR José Geraldo Couto (BLOG DO IMS)

PICICA: "Na reta final da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, há alguns filmes que não podem deixar de ser vistos. A seguir algumas notas apressadas sobre eles."

O sentido do humano

POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 30.10.2015


Na reta final da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, há alguns filmes que não podem deixar de ser vistos. A seguir algumas notas apressadas sobre eles.

O botão de pérola, de Patricio Guzmán

         Segunda parte de uma trilogia que o diretor pretende dedicar à geografia (física, humana, política) do Chile. Falou do deserto em Nostalgia da luz, agora fala da água, isto é, da extensa costa chilena do Pacífico. O próximo será centrado na cordilheira.


Mais uma vez repete-se o milagre de Nostalgia: em imagens límpidas, amarradas pela locução serena e cadenciada do próprio cineasta e por depoimentos contundentes, entrelaçam-se a ciência, a história, a política e a poesia. Um botão de madrepérola conecta a história de desaparecidos políticos lançados ao mar pela ditadura de Pinochet e a fantástica jornada de um nativo da Patagônia, levado à Inglaterra e tornado gentleman por um tempo, no período colonial. Do mais minúsculo objeto ao cosmo incomensurável, do minuto aos milênios, uma arrebatadora experiência audiovisual da qual talvez saiamos um pouco menos embotados e obtusos.

Son of Saul, de László Nemes

Ganhador do prêmio do júri em Cannes, este longa de estreia do húngaro Nemes não é “o enésimo filme sobre o Holocausto”, mas algo totalmente diverso, ao mesmo tempo fascinante e quase insuportável.


O “enredo”, por si só, é terrível: em Auschwitz, Saul Ausländer, membro do Sonderkommando – grupo de prisioneiros judeus encarregados de conduzir outros presos à câmara de gás e remover seus corpos para cremação – encontra entre os mortos um garoto ainda com vida e julga que ele possa ser seu filho. Obstina-se então na tentativa insana de sequestrar o corpo da criança e encontrar um rabino para propiciar-lhe um enterro de acordo com os rituais judaicos.

O que torna Son of Saul uma aventura única é o fato de tudo ser mostrado com uma câmera em permanente movimento, sempre muito próxima do corpo do protagonista, com escassa profundidade de campo, de tal modo que tudo ao seu redor fica caótico e indistinto. Imagens de um turbulento inferno por onde erra um indivíduo empenhado numa última tentativa de sentir-se humano.

Desde Allá, de Lorenzo Vigas

Outro vigoroso longa de estreia, vencedor do Leão de Ouro em Veneza. Curiosamente, Lorenzo Vigas recorre aqui a um procedimento semelhante ao de Son of Saul, “colando” a câmera a um personagem (nem sempre o protagonista) que se desloca pela cidade de Caracas. O foco “raso” faz com que tudo o mais fique nebuloso, impreciso.

Esse recurso formal, que é diferente da “câmera subjetiva”, pois incorpora em quadro o rosto (ou a cabeça) e parte do corpo do ator, foi radicalizado pelos irmãos Dardenne em O filho. Aqui, ele serve para concentrar o drama na relação ambígua e cambiante entre dois personagens, seus corpos, seus olhares: um homem abastado de meia-idade (Alfredo Castro) e um pequeno delinquente juvenil (Luis Silva). Uma relação de poder mediada pelo sexo e pelo dinheiro, na qual nunca se desvelam totalmente as motivações dos personagens – e com um desfecho imprevisto, daqueles que iluminam retrospectivamente tudo o que nos foi mostrado até então.

Os campos voltarão, de Ermanno Olmi

Homenageado pela Mostra este ano com o Prêmio Humanidades, o veterano diretor italiano de O posto e A árvore dos tamancos está de volta com um filme não menos que sublime. Ambientado na Primeira Guerra, numa trincheira coberta de neve, que a dessaturação cromática reduz quase ao preto e branco, o filme se inspira em relatos do pai do diretor e conta o drama de um punhado de soldados cercados pela morte e pela incerteza.

Dada a encenação precisa, a força poética das imagens, ainda que terríveis, o filme transcende o tema da guerra para questionar a fragilidade humana, ou, mais precisamente, a fragilidade do humano em cada indivíduo e na espécie como um todo. “O homem é um animal feio que rola pelo mundo sem poder parar”, diz um letreiro final, citando um autor cujo nome não registrei. A neve que cai indiferente sobre os vivos e os mortos de Os campos voltarão remete ao mesmo tempo ao consolo do tempo cíclico do conto "Os mortos", de Joyce, e à pungente pergunta de Primo Levi no título de um de seus livros mais famosos: “É isto um homem?”

Outros destaques

Além dos “obrigatórios” destacados acima e no texto anterior da coluna, há na Mostra de São Paulo inúmeros outros filmes que merecem ser vistos, entre eles: o romeno Aferim!, de Radu Jude, sobre a caçada a um cigano foragido, na rude e violenta Romênia do século XIX; o denso e essencial drama rural colombiano A terra e a sombra, de César Augusto Acevedo, ganhador da Caméra d’Or em Cannes; o também romeno Boxe, de Florin Serban, estranha história de amor entre uma atriz e um jovem aspirante a pugilista.

Tudo isso sem falar de apostas sem erro, como os clássicos restaurados pela Film Foundation comandada por Martin Scorsese, os filmes de José Mojica e de Rogério Sganzerla e brasileiros inéditos de Julio Bressane (Garoto), Bruno Safadi (O prefeito), Ruy Guerra (Quase memória), Gabriel Mascaro (Boi neon), Maria Augusta Ramos (Futuro junho e Seca), Aly Muritiba (Para minha amada morta), Marina Person (Califórnia), Allan Ribeiro (Mais do que eu possa me reconhecer), Petra Costa (Olmo e a gaivota),Vinicius Coimbra (A floresta que se move) e Chico Faganello (Oração do amor selvagem), entre muitos outros.



José Geraldo Couto

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.

Fonte: Blog do IMS

A criminalização do pensamento crítico. Por Luis Felipe Miguel (BLOG DA BOITEMPO)

PICICA: "Entre as múltiplas ameaças de retrocesso que surgem do Congresso Nacional hoje, uma das mais graves é a voltada à educação. O espantalho da “doutrinação” dos alunos por professores esquerdistas é um pretexto para a criminalização do pensamento crítico em sala de aula, frustrando o objetivo pedagógico de produzir cidadãos e cidadãs capazes de reflexão autônoma, respeitosos das diferenças, acostumados ao debate e à dissensão, conscientes de seu papel, individual e coletivo, na reprodução e na transformação do mundo social. Em seu lugar, voltamos à ultrapassada compreensão de uma educação limitada à transmissão de “conteúdos” factuais, dos quais o professor é um mero repetidor e o aluno, receptáculo passivo. O slogan vazio da “escola sem partido” busca passar a ideia de que o ensino acrítico é “neutro”, quando, na verdade, ao naturalizar o mundo existente e inibir a discussão sobre suas contradições internas, é um mecanismo poderoso de reprodução do status quo."

A criminalização do pensamento crítico

Luis Felipe Miguel escola sem partido 

Entre as múltiplas ameaças de retrocesso que surgem do Congresso Nacional hoje, uma das mais graves é a voltada à educação. O espantalho da “doutrinação” dos alunos por professores esquerdistas é um pretexto para a criminalização do pensamento crítico em sala de aula, frustrando o objetivo pedagógico de produzir cidadãos e cidadãs capazes de reflexão autônoma, respeitosos das diferenças, acostumados ao debate e à dissensão, conscientes de seu papel, individual e coletivo, na reprodução e na transformação do mundo social. Em seu lugar, voltamos à ultrapassada compreensão de uma educação limitada à transmissão de “conteúdos” factuais, dos quais o professor é um mero repetidor e o aluno, receptáculo passivo. O slogan vazio da “escola sem partido” busca passar a ideia de que o ensino acrítico é “neutro”, quando, na verdade, ao naturalizar o mundo existente e inibir a discussão sobre suas contradições internas, é um mecanismo poderoso de reprodução do status quo.

São diversos projetos em tramitação no Congresso, que partem do veredito comum de que haveria um esforço de doutrinamento em curso, seja pelo PT, seja pela esquerda de modo geral, que faria com que as escolas tivessem se tornado centros de difusão do socialismo e/ou do feminismo. É uma reação ao arejamento – na verdade, ainda muito insuficiente – das práticas pedagógicas; uma reação que não vem de hoje, mas que se intensificou com a ofensiva diretista dos últimos anos. Alguns talvez se lembrem que, nos anos finais da ditadura militar, pré-escolas alternativas eram acusadas de adotar cartilhas marxistas. É o mesmo tipo de paranoia, mas agora vendo o pretenso doutrinamento como política de Estado, que está por trás das fantasias do movimento Escola Sem Partido, do repúdio a Paulo Freire nas manifestações públicas da direita ou da reação histérica à recente prova do ENEM.

Cada vez que a escola se desloca, por pouco que seja, de seu papel tradicional de aparelho ideológico reprodutor da ordem social, erguem-se as bandeiras de “doutrinamento”. A manobra argumentativa é evidente. A reprodução transita como “não ideológica” porque a ordem social vigente é naturalizada. É como se ela não fosse o fruto de processos históricos, de conflitos sociais com ganhadores e perdedores, mas um dado da realidade que existe por si só. A “neutralidade” do discurso que não questiona o porquê do mundo social ser como é, nem indica que essa ordenação não é uma necessidade, é falsa: ele é um elemento ativo de perpetuação, uma maneira de bloquear as potencialidades de mudança presentes do mundo em que vivemos.

Na atual ofensiva da direita brasileira, há dois alvos simultâneos. Permanece o ódio ao marxismo e, de modo mais geral, a qualquer forma de questionamento à desigualdade de classe. É sustentado por uma leitura delirante da teoria de Gramsci, difundida pelo astrólogo Olavo de Carvalho, em que a ideia de uma luta pela produção de sentido no mundo social é transformada num plano diabólico de lavagem cerebral em massa.

Mas há uma grande ênfase também na denúncia contra qualquer tentativa de desnaturalizar os papéis estereotipados atribuídos a mulheres e homens. É a “ideologia de gênero”, termo que foi cunhado pelos setores conservadores da Igreja Católica, mas adotado também por denominações protestantes, e colocada em curso em vários países do mundo, entre eles o Brasil, como forma de organizar a oposição aos avanços – mais lentos do que gostaríamos, mas inquestionáveis – na direção de maior igualdade entre os sexos e maior respeito a gays e lésbicas. Ao afirmar que “ideológica” é a luta contra a discriminação de gênero, fica implícito que a desigualdade e a intolerância seriam naturais.
O rótulo “ideologia de gênero” foi rapidamente incorporado à linguagem destes grupos. Sintético, ele permite que se descarte, sem discussão, tudo aquilo que já se sabe sobre a produção social do feminino e do masculino. Quando militantes conservadores reagem à frase de Simone de Beauvoir incluída na prova do ENEM escrevendo coisas como “eu nasci mulher sim, nasci com vagina”, como se viu nas redes sociais, revelam, mais do que apenas uma ignorância brutal e constrangedora, uma impermeabilidade deliberada a qualquer discussão sobre o tema.

Ao lado da ameaça que a emancipação feminina e a conquista dos direitos de gays e lésbicas de fato representa aos privilégios de homens e de heterossexuais, e ao lado também do fundamentalismo religioso de alguns, há no destaque dado à “ideologia de gênero” uma demonstração de oportunismo político. Como afirmei em outro lugar, hoje a homofobia é o ópio do povo. Deslocando o eixo do conflito para as questões “morais” (que, na verdade, são questões de direitos individuais), a direita se põe em sintonia com uma parcela do eleitorado que, sobretudo a partir das políticas compensatórias do governo Lula, se movimentava na direção de seus adversários. Também por isso, para as forças da esquerda a luta pela igualdade de gênero e contra a homofobia não pode ser considerada uma pauta secundária.

Entre os projetos em tramitação no Congresso, vários têm o fantasma da “ideologia de gênero” como alvo. O PL 7180/2014 e o PL 7181/2014, ambos de autoria de Erivelton Santana (PSC/BA), determinam a mesma coisa: que “os valores de ordem familiar [têm] precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. O primeiro projeto visa instituir esta regra na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o outro, redundantemente, quer torná-la obrigatória nos parâmetros curriculares (que já devem obedecer à LDBE).

A intocabilidade da família, como sujeito coletivo com direitos próprios, irredutíveis aos de seus integrantes, é o que fundamenta tal proposta. Muitas vezes, mesmo os grupos mais progressistas têm receio de discutir o status atribuído à unidade familiar, preferindo deslocar a luta para a necessidade de pluralizar o entendimento do que é família. Claro que que é importante dar a todos que o queiram a possibilidade de buscar formar famílias, no formato que desejem, mas ainda precisamos dessacralizar a “família”. A família é também um lugar de opressão e de violência. A defesa de uma concepção plural de família não pode colocar em segundo plano a ideia de que, em primeiro lugar, estão os direitos individuais dos seus integrantes. E entre estes direitos está o de ter acesso a uma pluralidade de visões de mundo, a fim de ampliar a possibilidade de produção autônoma de suas próprias ideias.

As propostas do deputado baiano impedem a educação sexual e o combate ao preconceito e à intolerância nas escolas, sob o argumento de preservar a soberania da família na formação “moral” dos mais novos. Com isso, retiram da escola a possibilidade de contribuir para disseminar os valores de igualdade e de respeito à diferença, que são cruciais para uma sociedade democrática. E retiram dos jovens o direito de ter acesso a informações que são necessárias para que eles possam refletir sobre sua própria posição nesse mundo e avançar de maneira segura para a vida adulta.

Ainda mais bisonho, o PL 1859/2015, de autoria de Izalci Lucas (PSDB/DF), Givaldo Carimbão (PROS/AL) e outros, propõe que a LDBE inclua dispositivo que proíba as escolas de apresentar conteúdo “que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”. A política linguística destes deputados incorpora ao vocabulário legislativo o termo “ideologia de gênero”, inventado recentemente pela direita fundamentalista, e veta do vocabulário escolar os termos “gênero” e “orientação sexual”, impedindo assim que vastos setores do conhecimento produzido na sociologia e na psicologia cheguem ao ensino. O objetivo é evitar qualquer questionamento da percepção naturalizada dos papéis sexuais. É por isso que, quase 70 anos depois, Simone de Beauvoir ainda causa arrepios.

Na mesma linha, o PL 2731/2015, de Eros Biondini (PTB/MG), quer incluir, no Plano Nacional de Educação, uma proibição à “utilização de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto”. Para além do absurdo do texto (uma “ideologia” é “utilizada” na “educação nacional”?), o PL é significativo pelas punições previstas. O profissional de educação que descumprir a norma, isto é, que tematizar a desigualdade de gênero ou a homofobia, ou mesmo que apresente qualquer raciocínio crítico que seja rotulado como “ideológico”, perderá o cargo e estará sujeito às punições previstas, no Estatuto da Criança e do Adolescente, àqueles que submetem “criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento ilegal”: seis meses a dois anos de prisão.

O projeto mais ambicioso, porém, é o PL 867/2015, novamente de Izalci Lucas, que é representante da ala do PSDB mais despreparada intelectualmente e retrógrada politicamente. Seu objetivo é incluir, nas diretrizes e bases da educação nacional, um programa intitulado “Escola sem Partido”. De fato, o deputado simplesmente apõe seu nome à iniciativa do “movimento” de mesmo nome. Assim, a educação deve ser baseada na “neutralidade política” e a escola não pode desenvolver nenhuma atividade que possa “estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Embora escolas confessionais privadas possam exercer seu proselitismo, desde que contem com a anuência dos pais. O artigo 5º prevê que serão afixados cartazes nas escolas para que os estudantes saibam que podem denunciar seus professores. O programa se aplica ao material didático e a todos os níveis de ensino, incluindo o superior.

Os dois pilares são, portanto, a soberania da família, que se sobrepõe ao direito do estudante de obter elementos para produzir de forma autônoma sua visão de mundo, e uma ideia de “neutralidade” que se baseia na ficção de um conhecimento que não é situado socialmente. Um relato da história do Brasil ou do mundo que se limite a nomes ou datas, como no ensino do regime militar, pode parecer “neutro”, por não assumir expressamente juízos de valor. Mas, ao negar ao aluno as condições de situar os processos históricos e de compreender os interesses em conflito, cumpre um inegável papel conservador.

Se a “neutralidade” não existe, uma vez que toda produção de conhecimento parte de um lugar social específico, qual é o contrário da doutrinação? É o pensamento crítico, aquele que permite que os estudantes sejam não objetos, mas sujeitos da aprendizagem, refletindo sobre os conteúdos e construindo suas próprias percepções, no diálogo com professores e colegas. É esse pensamento crítico que assusta os promotores da “Escola sem Partido”. Seu discurso ensaiado não disfarça o fato de que são eles que desejam uma escola doutrinária, que imponha aos estudantes um pensamento fechado – o conformismo – e os impeça de pensar com as próprias cabeças e, pensando, quem sabe inventar um mundo novo.

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Luis Felipe Miguel



Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.