maio 31, 2012

"Walter Benjamin e o império do instante": Márcia Junges entrevista Moisés Sbardelotto

PICICA: "É muito curioso, por exemplo, quando Benjamin se fixa em tipos humanos que povoam o que hoje chamaríamos de shopping, mas que naquela época eram as passagens parisienses. Então, o filósofo fala da relação que os sujeitos têm quando estão na massa, quando estão nessas concentrações humanas. E ele se dá conta de que os passeantes se exibem diante dos outros, se vendem diante dos outros, adquirem eles mesmos o caráter de mercadoria que se oferece ao outros. O que Marx havia analisado, que o homem vende a sua força de trabalho e se converte em mercadoria no mercado de trabalho, pela venda de sua força de trabalho, é insuficiente para entender o capitalismo na época posterior e atual. E Benjamin rastreia uma forma de conversão dos sujeitos em mercadoria que tem a ver com o fetichismo da mercadoria, com a aura alucinatória, com a experiência estética, cultural com a mercadoria, não material. Pensemos que ele está escrevendo nos anos 1920-1930 do século passado, então se supõe um adiantamento, uma lucidez." 

 

Walter Benjamin e o império do instante

Progresso como ideologia institui o império do instante, destruindo a experiência em função da fugacidade e da velocidade sempre mais acelerada na modernidade capitalista. Nesse cenário, não há espaço para a memória, critica o filósofo José Antonio Zamora

Por: Márcia Junges | Tradução: Moisés Sbardelotto

As estruturas temporais da modernidade capitalista estão marcadas pela velocidade, por uma aceleração permanente. Ao mesmo tempo, parece que nada de novo, em seu sentido radical e autêntico, é produzido. “Novidades” proliferam em ritmo frenético, e essa avalanche de bens de consumo nos conduz ao império do instante, do fugaz, do descartável. Ao nos inscrevermos nessa lógica, acontece “uma anulação e uma destruição da experiência, porque a relação que o sujeito estabelece com a realidade por meio do consumo está marcada por essa fugacidade, por essa transitoriedade”. A análise é do filósofo espanhol José Antonio Zamora na entrevista exclusiva que concedeu, pessoalmente, à IHU On-Line. Há uma “empatização com a mercadoria”, assegura Zamora, referindo-se ao pensamento de Walter Benjamin. Não se trata mais de um consumo material em si, e o valor de uso do produto fica de lado. Entra em cena a aura alucinatória das mercadorias, que são convertidas em objeto de desejo pelas qualidades subjetivas que conferem ao seu possuidor. Daí à conversão dos sujeitos em mercadoria é um passo. “Benjamin rastreia uma forma de conversão dos sujeitos em mercadoria que tem a ver com o fetichismo da mercadoria, com a aura alucinatória, com a experiência estética, cultural com a mercadoria, não material”. Zamora critica esse devir cronológico, que tem na elaboração ideológica do progresso sua mais rematada concretização. A figura do redemoinho seria mais adequada para compreendermos a realidade social, quando tudo é movido, mas nada muda.

Zamora foi conferencista do evento O tempo messiânico contra o furacão destrutivo do capitalismo, de 28 de setembro a 1º de outubro de 2009, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos. Docente no Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, é autor de, entre outros,Th. W. Adorno: pensar contra la barbarie (Madrid: Trotta, 2004) e Ciudadania, multiculturalidad e inmigración(Navarra: Verbo Divino, 2003). Estudou Filosofia, Psicologia e Teologia na Universidade Pontifícia de Comillas, em Madri. Doutorou-se na Universidade de Münster, na Alemanha, com uma tese sobre Theodor Adorno, orientada por Johann Baptitst Metz.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a relação que o senhor estabelece entre Walter Benjamin  e o tempo e consumo no capitalismo?

José Antonio Zamora - Walter Benjamin é um pensador que pretende desentranhar as chaves da modernidade capitalista. Uma dessas chaves fundamentais é a questão do tempo. Normalmente, consideramos o tempo como uma realidade imutável, como se o tempo houvesse sido sempre igual em todas as épocas históricas, mas, na realidade, o tempo também é uma construção social. Nesse sentido, a modernidade capitalista estabelece estruturas temporais. Estas estão marcadas por uma aceleração permanente, a velocidade. E, ao mesmo tempo, há uma sensação de que nada novo, em um sentido radical, se produz. A modernidade está relacionada com o novo. Este é o tempo novo frente ao antigo, frente à Idade Média, frente ao antigo regime. Entretanto, a proliferação de novidades e a aceleração na proliferação destas produz um certo “instantaneísmo”, o domínio do instante, do fugaz. E isso, ao mesmo tempo, faz com que se produza uma desqualificação do instante pela falta de duração. Ao não ter duração, não se inscreve experiencialmente no sujeito, e então isso produz uma sensação de vazio nisso que, hoje em dia, recebeu o nome de pós-modernidade. Há uma sensação de que as utopias, o sujeito, a razão, morrem. Vivemos em um mundo "pós": pós-humano, pós-político, pós-histórico, pós-moderno. É uma consequência última desse processo de aceleração. Então, digamos, isso que faz parte das estruturas, para mim, é uma chave para desentranhar o que a modernidade capitalista produz na sociedade e na experiência que os sujeitos têm nessas sociedades. Isso por um lado.

O tempo devorado

O problema é a mediação entre o que poderíamos chamar de tempo concreto, o tempo em seu caráter experiencial, e depois um marco, que, no capitalismo, é o marco do valor abstrato, que é o tempo enquanto critério de quantificação do valor do capital, do dinheiro. Trata-se de buscar e de entender essa mediação, porque a modernidade produz uma grande quantidade de inovação tecnológica, de mudança social, de mudança de mentalidades. É uma revolução permanente de costumes, de ideias, de afetos, de técnicas, de todo tipo. E, ao mesmo tempo, apesar de tudo estar em revolução, no entanto, o marco abstrato do valor e o tempo abstrato do valor de troca, ou do dinheiro, do capital, é um marco fixo, estático. Parece como se esse marco estático devorasse o tempo concreto, engolisse, se apoderasse do tempo concreto e anulasse sua capacidade de produzir verdadeira novidade, algo verdadeiramente novo. Evidentemente, isso tem a ver com o consumo, na medida em que o capitalismo também produziu uma infinidade enorme de mercadorias, de produtos, uma multiplicação. Mas essa multiplicação de produtos está a serviço da multiplicação do benefício, então os sujeitos são impulsionados a consumir vorazmente. Porém, nesse consumo, produz-se realmente uma anulação e uma destruição da experiência, porque a relação que o sujeito estabelece com a realidade por meio do consumo está marcada por essa fugacidade, por essa transitoriedade.

IHU On-Line - A que se atribui essa aceleração do tempo? Ela está, então, submetida ao imperativo do consumo?

José Antonio Zamora - Sim, porque, de um lado, o capitalismo, por meio da inovação tecnológica, organizativa e logística, tem uma capacidade enorme de produzir cada vez mais com menos. É a lógica de racionalização, de efetividade, de eficácia, a competitividade. Os saltos de produtividade têm sido enormes. Então, isso faz com que possamos produzir muito mais com menos, mas a criação de riqueza material não é o mesmo que a criação de benefício. A criação de benefício não depende da criação de riqueza, mas sim do valor de troca associado às mercadorias. Então, para seguir mantendo a acumulação, é necessário produzir mais, isto é, a produtividade não tem como consequência um ganho de tempo, de tempo não produtivo, de tempo de descanso, de tempo fora do âmbito da produção e do consumo. O crescimento da produtividade tem que ser compensado com um crescimento tremendo do consumo. Estamos continuamente compelidos a consumir, senão seria impossível que a maquinaria seguisse funcionando.

Aura alucinatória das mercadorias

O capitalismo também é uma forma de cultura, não só uma forma de produzir. Então, tem que estar continuamente alimentado o desejo, gerando, portanto, uma apetência permanente de mercadorias. E Benjamin consegue rastrear um fenômeno específico – e eu acredito que foi a pessoa que melhor o entendeu –, que ele chamou de "empatização com a mercadoria". É uma aproximação e uma identificação empática com a mercadoria, que não é seu consumo material, não tem a ver com o valor de uso, mas sim com a aura alucinatória que as mercadorias adquirem no capitalismo para se converter em objeto de desejo. Aí há um processo de assimilação, de “empatização”, diz ele, com o anorgânico. Isso transforma os sujeitos em sujeitos auráticos mercantilizados.

É muito curioso, por exemplo, quando Benjamin se fixa em tipos humanos que povoam o que hoje chamaríamos de shopping, mas que naquela época eram as passagens parisienses. Então, o filósofo fala da relação que os sujeitos têm quando estão na massa, quando estão nessas concentrações humanas. E ele se dá conta de que os passeantes se exibem diante dos outros, se vendem diante dos outros, adquirem eles mesmos o caráter de mercadoria que se oferece ao outros. O que Marx havia analisado, que o homem vende a sua força de trabalho e se converte em mercadoria no mercado de trabalho, pela venda de sua força de trabalho, é insuficiente para entender o capitalismo na época posterior e atual. E Benjamin rastreia uma forma de conversão dos sujeitos em mercadoria que tem a ver com o fetichismo da mercadoria, com a aura alucinatória, com a experiência estética, cultural com a mercadoria, não material. Pensemos que ele está escrevendo nos anos 1920-1930 do século passado, então se supõe um adiantamento, uma lucidez. 

Hoje, basta entrar em um shopping para entender Benjamin. É uma coisa que Theodor Adorno  também analisa. Porque o valor de troca em Marx era simplesmente o preço, tinha a ver com o sistema de dinheiro para trocar mercadorias que são qualitativamente diferentes. Mas aqui estamos falando de outra coisa, estamos falando dessa aura alucinatória, o brilho, o esplendor que as mercadorias adquirem, que lhe permitem ter vivências, experiências subjetivas da relação que não tem a ver com o substrato material da mercadoria. Por que um carro de luxo faz com que o possuidor tenha “sex appeal”? É a relação da materialidade da mercadoria e os atributos que se projetam alucinatoriamente sobre ele. Então, isso permite rastrear uma coisa que, por exemplo, Adorno chamava de “o consumo do valor de troca”, que, na forma habitual de pensar as teorias marxistas, tradicionais, não teria sentido, só se pode consumir o valor de uso de uma mercadoria.

IHU On-Line - Voltando à questão da aceleração do tempo, que conexões há entre ela e o fim da história, da razão, do sujeito, da política e das ideologias? Não se cria aí uma apatia do sujeito contemporâneo em função desse cenário?

José Antonio Zamora - A questão da aceleração e do fim da história aparece como duas interpretações opostas. A categoria da aceleração parece ser um impulso para frente, à velocidade, ao rápido, a uma meta. Parece que, no conceito de aceleração, há como que um esquema tecnológico de fundo. No entanto, o fim da história parece propor que o que se produz é uma “estática”, uma parada, uma detenção, algo que não se move, que está detido. Benjamin, claro, não se refere a esse teorema do fim da história, que é um teorema hegeliano, que depois foi percorrido por Francis Fukuyama. Mas Benjamin tinha diante de si o teorema nietzschiano do eterno retorno. Então, diz ele, tanto a ideia burguesa, marxista ou social-democrata de progresso, de avanço a uma meta, concepção teleológica da história, e esta outra, do eterno retorno, são duas formas de falsa consciência daquilo que realmente ocorre. Porque só se entende o que realmente ocorre a partir da mediação desses dois esquemas interpretativos. Teríamos que recorrer, talvez, a uma imagem do redemoinho. Quando você vê um fluxo de água, forma-se um redemoinho, que começa a mover tudo, mas fica fixo, está fixo, não muda, não se move. Essa imagem pode nos ajudar a entender o que Walter Benjamin persegue em sua análise. Porque essa aceleração tremenda, esse processo de inovação tecnológica, de transformação permanente faz com que, na realidade do sistema social, tudo mude para que nada mude: está imóvel.

O novo qualitativo e o novo cronológico

A análise de Benjamin persegue essa questão tão própria do sistema produtor de mercadorias de, por um lado, criar uma pluralidade, uma diversidade, um ato de inovação permanente, de multiplicação, de diversificação. Pensemos, por exemplo, como era a vida dos sujeitos antes da revolução econômica que é o sistema capitalista. Seu mundo de objetos, de vivência, era relativamente pobre comparado ao que nós hoje vivemos em todas as ordens. No entanto, nessa produção contínua da novidade, realmente está se escamoteando o novo, o radicalmente novo. 


Benjamin analisa o fenômeno da moda e diz que as mercadorias precisam utilizar a propaganda da novidade. Mas a novidade, pela pura novidade, é um critério abstrato, é simplesmente aquilo que no tempo acontece em último lugar, não tem outra qualificação a não ser aquilo que ocorreu por último. Então é isso que se busca: quando se oferece as mercadorias, prometem-nos que teremos o último, pois aquilo que já temos está atrasado. Contudo, não se analisa o que há realmente de novo no novo. Porque o novo, em sentido enfático, profundo, tem que ser qualitativamente novo, é uma determinação qualitativa, e não meramente cronológica. Então, no império da cronologia, do devir cronológico, em um continuum de instantes que se sucedem no tempo, o que se produz realmente é uma sabotagem da produção do radical e do verdadeiramente novo. Acrescenta-se a isso que essa concepção que chamamos teleológica do tempo, que é expressada de um modo muito preciso na ideia moderna de progresso, é a forma como nós, modernos, entendemos o tempo. 

Entendemos o tempo como progresso. Então, diz Benjamin, essa forma de interpretar o processo histórico é uma forma de interpretar que reflete essa aceleração constante do tempo, esse processo inovador constante, que, no entanto, como mero reflexo, é uma elaboração ideológica, porque não permite ver o que, nesse processo, há de regressão, destruição, aniquilamento, vítimas.

Lógica sacrificial

Nesse processo histórico, interpretado como progresso, tudo é submetido à consecução da meta. O resultado aparece como capaz de justificar todos os preços pagos para a sua consecução. Na realidade, essa ideia de progresso responde a uma lógica sacrificial. E, de fato, um dos autores em que essa ideia tem, na filosofia da história, uma interpretação mais acabada, Hegel, fala precisamente do altar da história, onde são sacrificadas gerações, homens, para a consecução de uma meta futura, que é a plenitude da história. Nesse sentido, o fim da história é também o juízo final. Não é preciso esperar nenhum juízo ulterior que revogue o acontecer fático da história, mas a própria história é seu juízo. A história vai realizando seu juízo no próprio devir. Então, tudo é justificado como preço do resultado. Então, se pensarmos que Walter Benjamin encontra diante de seus olhos, no momento histórico em que vive, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a emergência dos fascismos na Europa, o triunfo do nacional-socialismo na Alemanha, a perseguição dos judeus, ele não pode entender que esse presente possa ser, digamos, o epílogo de um processo histórico anterior. Algo falhou nessa interpretação da história, que nos cegou para compreender realmente os custos desse processo. E, quando não somos capazes de ver os custos desse processo em termos de vítimas, de destruição, de ruínas acumuladas, estamos alimentando a própria lógica sacrificial que se sustenta como esquema de dominação histórico que não foi rebaixado. Então, a novidade viria só do fato de sermos capazes de interromper esse processo. Benjamin tem um conceito messiânico do tempo.

IHU On-Line – A partir disso, como podemos compreender a junção messianismo e política nesse pensador?

José Antonio Zamora - Não é simples a interpretação que Benjamin faz do messiânico. Ele tem um fragmento, que é o Fragmento Teológico-Político, em que ele fala da relação entre a ordem do profano e a ordem do messiânico. Normalmente, o messiânico está relacionado à teologia, à religião. Então, ele fala dessas duas ordens como duas ordens diferentes, separadas e com uma certa tensão: enquanto que a ordem do profano é voltada à busca da felicidade dos sujeitos, a ordem do messiânico é interpretada por Benjamin como interrupção. Ele não pensa o Reino de Deus, podemos dizer, como o fruto maduro de um processo histórico, que é como muitas vezes o interpretamos: pensamos que a história vai caminhando rumo a uma plenitude, e essa plenitude é o Reino do Deus, o epílogo da história. Isso converteria o Reino de Deus no prêmio dos vencedores. Então, pensando o esquema apocalíptico, ele diz: o Reino de Deus não é a meta da história, mas sim seu final, seu final como interrupção. Na visão apocalíptica, o Messias chega como aquele que derrota o AntiCristo, é aquele que enfrenta uma situação de dominação destrutiva dos seres humanos. O Messias não é o herdeiro do trono histórico. Então, isso é importante no sentido de que o messiânico é entendido como a irrupção do radicalmente novo, que tem como condição de possibilidade a interrupção da prolongação da catástrofe que foi a história.

IHU On-Line – Então, a partir dessa ideia, poderíamos repensar o conceito de política?

José Antonio Zamora - Isso é o que pretende Walter Benjamin. Aquilo que conhecemos como o teorema da secularização vinha dizer que a modernidade europeia é uma tradução, translação das contribuições do cristianismo levados a conceitos seculares. Benjamin tem um conceito diferente da relação entre a ordem política e a ordem religiosa. Ele não busca uma tradução, uma translação. Ele fala de uma relação como um papel secante com a tinta, mesmo que a tinta nunca possa ser absorvida totalmente. Ele tenta introduzir a teologia dentro da política, de uma maneira que tanto a teologia quanto a política fiquem “translocadas”, “transtocadas” em sua dinâmica. Então, para que isso possa ficar entendível, ele diz: Karl Marx secularizou a ideia de Reino messiânico e a ideia de sociedade sem classes. Imediatamente, diz: é imprescindível devolver à revolução seu rosto messiânico, se não queremos que a classe trabalhadora seja arrasada pelo processo que ele via nesse momento de dissolução. Então, o que quer dizer devolver um rosto messiânico? Até agora, Marx pensou as revoluções como locomotoras da história, como aquilo que faz avançar para frente, que impulsiona a história para sua meta. Mas, diz Benjamin, é preciso entender as revoluções como um “agarrar” o freio de emergência do trem da história. Então, devolver um rosto messiânico quer dizer interromper uma marcha. Benjamin pensa a revolução não como um salto à meta, mas sim como interrupção de um processo que, até agora, tem sido um processo catastrófico. Poderíamos dizer a Walter Benjamin: “Você exagera um pouco o negativo desse processo. Realmente houve progressos”. Suponho que ele não negasse esse progresso.
O que acontece é que, evidentemente, seu horizonte e sua perspectiva não é a perspectiva dos vencedores, mas sim a perspectiva dos vencidos. Por isso, na tese 8 da Filosofia da história, ele diz: para os oprimidos, o estado de exceção é a regra. Isto é, essa história, vista a partir dos que foram esmagados, dos que foram anulados, é uma história catastrófica. E, desde muito cedo, ele quis pensar messianicamente a história, que é pensar a partir dos deserdados, dos últimos, dos esmagados, dos oprimidos. Pensar a história messianicamente é pensá-la a partir desse horizonte. E isso já está no escrito sobre Goethe  e as afinidades eletivas, em que ele diz: não nos foi dada outra esperança mais do que pelos que carecem de esperança. Então, não é a esperança daqueles que têm perspectiva de êxito, que querem dar o último salto para o paraíso, porque essa é a perspectiva dos vencedores da história. Por isso, a sua crítica tão forte à social-democracia e, em parte também, mesmo que nunca o nomeie, ao comunismo. As classes trabalhadoras fizeram com que as vítimas se vejam com a ideologia daqueles que os oprimem, com a ideologia burguesa. Segundo Benjamin, acreditar que cavalgamos na crista da onda e que somos o motor da história – assim eram interpretadas, dentro da tradição marxista, as organizações dos trabalhadores no começo do século – é uma espécie de obnubilação, de autoengano. Porque a história aparecia aos seus olhos como dotada de uma espécie de automatismo de emancipação, que, de um modo ou outro, bastava esperar, porque a história caminhava inexoravelmente para o paraíso comunista. O filósofo completa que nada pior poderia ter ocorrido com aqueles que são chamados a transformar a história do que pensar que a história, por sua própria dinâmica, conduz à emancipação, à superação da dominação.

IHU On-Line - Em que sentido se pode falar de uma destruição da experiência a partir do pensamento desse filósofo? O que isso significa?

José Antonio Zamora - O que Benjamin descreve como destruição da experiência tem a ver com esses processos que analisamos no começo, de aceleração do tempo. Já a própria industrialização supõe uma mudança estrutural de grandes dimensões na relação dos sujeitos, dos indivíduos com o mundo, com as coisas, com os acontecimentos. Ele tem um artigo em que fala sobre a pobreza da experiência, referindo-se, precisamente, às pessoas que voltavam do front da Primeira Guerra Mundial. E ele diz que, diferentemente de outras guerras, em que as pessoas voltavam contando o que havia acontecido, as pessoas que voltavam do front da Primeira Guerra Mundial vinham atônitas, sem palavras. Como se sabe, a Primeira Guerra Mundial foi uma guerra tremendamente cruel, em que se enviavam as tropas às trincheiras, que eram bombardeadas com os canhões e tanques. Era uma guerra de seres humanos convertidos em carne de canhão. Esse choque, essa comoção, é intragável ao sujeito, que não é capaz de inscrever o que lhe acontece em uma sequência biográfica. Se transladarmos esse exemplo à experiência cotidiana, da aceleração, Benjamin diz que essa multiplicação de sensações é inassimilável. Então, não podem ser traduzidas em experiências.

Máquina de esquecimento

Nós vemos televisão e estamos sendo continuamente impactados por imagens a uma grande velocidade. Por assim dizer, os videoclipes são a vanguarda do meio televisivo. E se o impacto televisivo não é suficientemente acelerado, ajudamos com o controle remoto e ficamos trocando de canal continuamente. É uma metáfora do que está ocorrendo conosco. Esse desassossego é a experiência do choque, do impacto. E, sem duração, os acontecimentos, os fenômenos, as coisas não podem se inscrever, não podem ser apropriados pelo sujeito. O sujeito está como que “resvalando” sobre as coisas. Na realidade, a experiência do consumo é algo assim. Essa é a diferença que havia entre uma viagem no século XIX e uma viagem no século XX. Podemos ir de um lugar para o outro, porque a velocidade é imensa. A palavra experiência, em alemão, vem da palavra viajar. 
“Erfahrung”, experiência em alemão, e “fahren”, viajar. E ter experiência era isso, era aventurar-se pelo novo, por aquilo que não era conhecido, pelo estranho, era descobrir o mundo. Experimentar é descobrir o mundo. É abandonar-se, entregar-se ao que não é próprio, entregar-se ao outro. E essa capacidade para entregar-se, para abandonar-se ao outro é anulada pela vertiginosidade do impacto, da sensação. Nessa forma transformada de relação com o mundo, não tem cabimento a recordação, a memória. Então, esse cúmulo de impactos, de sensações, na realidade, é uma máquina poderosíssima de esquecimento.

Quando falamos das gerações jovens, dizemos que elas vivem num instante eterno, que é o último que viveram. Produz-se uma destruição da memória. A memória precisa inscrever o acontecer na sequência biográfica e, para isso, precisa da duração. Romper a capacidade rememorativa incapacita os sujeitos para isso que Benjamin realmente busca, que está muito associado à crítica do progresso. Isto é, nós não podemos romper o curso e a sequência linear do tempo, se não estabelecermos uma relação diferente com o passado. E essa nova forma de relação, que são as sensações, é uma destruição da memória. Poderíamos dizer que, em Benjamin, destruição da experiência, destruição da memória e, portanto, a anulação da capacidade de subtrair-se a esse processo destrutivo do progresso vão de mãos dadas, estão unidas.

Fonte: IHU

"Corrupção é sempre da democracia.", por Bruno Cava

PICICA: "Quando alguns grupos arvoram-se opinião pública, isto significa que seus donos e editores opinam em nome do público. Esses grupos invocam uma liberdade de expressão que inexiste neles mesmos, à medida que seus jornalistas não podem opinar em contrariedade ao veículo. Recalcam a história da grande imprensa brasileira, construída por um amálgama de interesses: estado autoritário, oligarquia familiar e recursos públicos. Nisso, a TV aberta é corrupta até o osso."
Corrupção é sempre da democracia.

De generatione et corruptione, Aristóteles, ilustração na edição de 1535 

Desde Catão e Savonarola, passando por Carlos Lacerda e Fernando Collor, o combate à corrupção permeia o debate político. Matéria fácil de encaixar no noticiário, nela a imprensa se esbalda diariamente. Acusações, denúncias, investigações, o discurso anticorrupção toma conta dos debates, e não somente nas eleições.
Vários políticos e jornalistas se credenciam como especialistas em moral, e fazem disso a sua carreira justiceira. Invocam uma superioridade de princípios, usufruem de espaço na mídia comparsa e vociferam às cuspidelas contra seus opositores. Discurso manjado, mas recorrente. Enquanto isso, acadêmicos advertem da crise dos valores, da era do relativismo, da degradação moral da geração, do século, da humanidade. Eis os novos Platões do bairro.
Na história do Brasil, existe até um ismo. Udenismo, derivado da antiga União Democrática Nacional (UDN). Partido de extração da classe-média branca, diplomada e urbana, atuou entre 1945 e 1965, com a mais histérica campanha de moralização que já se viu. Sua força amplificou-se na virtuose retórica de Carlos Lacerda e o jornal por ele editado, a Tribuna da Imprensa.
Trocando por miúdos essa retórica: todos os políticos eram corruptos, menos os udenistas, que modernizariam o estado com valores sacrossantos. O “nós” se distingue do “eles” como a pureza da corrupção, o bem do mal. Como todo moralismo, não assume propostas claras e se limita a auscultar ideais vagos, num tom religioso. 
Lacerda foi o governador da Guanabara de 1960 a 65. Uma vez no poder, como de hábito, a imaculada concepção exibe as suas origens pudendas. A UDN ajudou a desestabilizar o regime democrático e respaldou o golpe cívico-militar de 1964. Só que a primeira pedra voltou mais pesada e Lacerda logo foi cassado, censurado e isolado da política pelos novos dirigentes pretorianos.
Desde então, chama-se udenismo toda campanha midiática que promova contextos de caça-às-bruxas. Udenista é a gralha, ave de mau agouro, que prenuncia o golpe.
*** 
No romance 1984, de Orwell, os personagens Julia e Winston enfim conseguem se encontrar a sós, longe dos olhos do Big Brother. A escapada romântica do casal de traidores do Partido se dá num bosque longínquo. Winston trabalhava no Ministério da Verdade e Julia era militante da Liga Anti-Sexo. Numa sociedade distópica onde o desejo era criminalizado e tido por repulsivo (mesmo no casamento), o sexo fazia deles parceiros no crime e no amor.  Nessa passagem do livro, logo após se despirem, os amantes trocam juras de amor:
“(…) Winston se ajoelhou diante dela, tomando suas mãos.
— Você já fez antes?
— Claro. Centenas de vezes.
— Com membros do Partido?
— Sim, sempre com membros do Partido.
— Com membros da cúpula do Partido?
— Com esses porcos, não. Mas lá muitos fariam, se tivessem chance. Eles não são tão santos quanto parecem. — O coração de Winston veio à boca. Montes de vezes ela provocou isso. E ele desejava que tivessem sido centenas, milhares de vezes. Qualquer coisa que lembrasse corrupção sempre o enchia de uma esperança louca. Quem sabe o Partido esteja podre debaixo da superfície, talvez o culto à autoprivação simplesmente camufle sua iniquidade. Se ele pudesse ter infectado vários deles com lepra ou sífilis, quão feliz teria se sentido por isso! Qualquer coisa que faça apodrecer, enfraquecer, desmantelar! Winston puxou Júlia para baixo, os dois estavam agora ajoelhados, frente a frente.
— Ouça. Quanto mais homens você teve, mais eu amo você. Você entende isso?
— Sim, perfeitamente.
— Eu odeio a pureza, odeio a bondade! não quero que a virtude exista em lugar algum! eu quero que todos sejam corruptos até o osso.
— Muito bem, então eu devo servir a seu gosto, meu querido. Sou corrupta até o osso.
— Você gosta de fazer? Não falo simplesmente de mim: quero dizer, da coisa em si?
— Adoro. — Era isso que ele queria ouvir acima de tudo. Não meramente o amor por uma pessoa, mas o instinto animal, o desejo simples e bruto. Essa era a força que rasgaria o Partido em pedaços.”
***  
Na imprensa, o discurso da corrupção se apresenta como um problema individual. Isto é, um indivíduo corrupto exerce o cargo ou autoridade em benefício próprio. Corrompe-se ao desviar recursos para si, ao advogar em causa própria. Iníquo, frustra a finalidade impessoal do estado e macula a cândida moral de servidor.
O discurso da corrupção vende-se casado com o da impunidade. O país é corrupto porque os corruptos não são punidos. Ao contrário, aqui são incentivados, pois quase tudo acaba em pizza. Falta fiscalização, há leniência de superiores, a justiça é morosa, prevalece uma cultura endêmica de propina e jeitinho. E então a conclusão: se faz necessária uma imprensa atuante, livre e independente, para fiscalizar o poder público como último guardião da moralidade.
Esta é uma concepção simplória de corrupção, que serve somente ao udenismo, aos privilégios do jornalismo conservador, às vivandeiras da decência e dos bons costumes. Status quo.
Fantasmagórica democracia, embute a premissa que o sistema político-econômico, como um todo, não seja corrupto. Que a corrupção tem qualidade acidental: simples mau-funcionamento de uma máquina impessoal e essencialmente neutra. Que ao se punirem e exonerarem alguns agentes e suas corruptelas, o sistema passaria a funcionar segundo a vontade abstrata da lei. Que a corrupção combate-se eliminando frutos podres (mas mantendo a árvore que os produz). Que a crise dos valores nasça da cobiça no mundo, da decadência do ser humano, de um pecado irreprimível.
O moralismo petulante e autoritário, udenista e golpista, contorna a questão central: menos a corrupção de certos valores, do que o valor desses valores. Na materialidade, esses valores constituem eles mesmos a crise. Antonio Negri e Michael Hardt, em Império, tecem uma das mais originais reflexões sobre a geração e a corrupção, do ponto de vista político. Para eles, a corrupção está em toda parte. A corrupção reside na matéria em que incide o poder. Não há crise de valores a solucionar no capitalismo, a crise se chama capitalismo.
Corrupção na exploração do trabalho. Uma equação onde os ganhos se concentram e as perdas se disseminam. O sistema se corrompe quando os lucros são privatizados e a crise socializada. Isso não passa por fora do estado. Nem se explica por alguma invasão do interesse privado no público, mas sim como o liame interno que os cimenta. Ante as recessões, os governos são os primeiros a baixar pacotes de austeridade, ao mesmo tempo que subsidiam bancos e grandes negócios. As especulações financeiras comandam a política monetária/econômica dos governos, e por ela são comandadas.
Mais do que funcionamento excepcional, desvela-se aí como o estado funciona no dia a dia, como unha-e-carne do mercado (a gerência da escassez) — quer no capitalismo liberal, quer no de estado (socialismo real). Não há mercado sem estado, nem estado sem mercado.
Corrupção no controle dos meios de comunicação. Quando alguns grupos arvoram-se opinião pública, isto significa que seus donos e editores opinam em nome do público. Esses grupos invocam uma liberdade de expressão que inexiste neles mesmos, à medida que seus jornalistas não podem opinar em contrariedade ao veículo. Recalcam a história da grande imprensa brasileira, construída por um amálgama de interesses: estado autoritário, oligarquia familiar e recursos públicos. Nisso, a TV aberta é corrupta até o osso. 
Por outro lado, o combate à corrupção não passa pela constituição de uma mídia “estatal” à altura da “privada”, portentosa e unificada, o que conduziria ao vício simétrico. Seria chegar no mesmo lugar caminhando pelo outro lado. Passa, sim, pela constituição de todos os cidadãos como mídia. Contudo, enquanto as lutas não realizam a democracia, se é obrigado a engolir os mais corrompidos clamarem pelo fim da corrupção.
Corrupção na lógica da representação. Governar não prescinde de acordos e ajustes dos mais “flexíveis”. O mecanismo eleitoral depende do caixa dois. Há profundas conexões entre meios de comunicação e parlamentares. Partidos se enraizam fisiologicamente e operam como aparelhos vazios de expropriação da voz dos muitos. Todo o sistema representativo apodrece desde a raiz, menos pela ganância de indivíduos, do que pelo seu funcionamento íntimo, como conchavo, segredo e negociata. Novamente, não se trata de contaminação do público pelo privado, mas duas faces da mesma moeda furada, chamada capitalismo.
Portanto, a corrupção não é doença a curar-se no capitalismo, mas a sua condição primeira. Corrupção é sempre da democracia — enquanto trabalho livre dos muitos, enquanto encarnação da liberdade e do desejo no corpo político dos cidadãos. Democracia e capitalismo relacionam-se como geração e corrupção da vida, como potência imanente e sua expropriação pelo poder, respectivamente.
Combater a corrupção só pode acontecer contra o capitalismo e além dele, para desmontar suas engrenagens e partilhar um novo mundo. E não ao melhorar o seu funcionamento, retificando os “comportamentos desviantes”, como de Winston e Julia. 
O capitalismo é a corrupção sistematizada.

"Manaus é diferente mesmo, Aníbal", por Ismael Benigno

PICICA: "O que me choca até hoje é a covardia coletiva, o descrédito nas instituições e a falta de confiança da sociedade numa máquina que existe para proteger os cidadãos de bem, não persegui-los. Todos sabem que Bianca foi vítima de um crime. Donos, editores, repórteres e até porteiros dos jornais sabem. Promotores, advogados, médicos, pacientes, todos sabem. Mas uma realidade sempre pintada sobre as cercanias das bocas de fumo de periferia, que enfeitam os jornais populares, a famosa Lei do Silêncio, chegou ao mundo civilizado das redações, dos escritórios." EM TEMPO: Para entender o caso de assédio moral sofrido pela médica Bianca Abinader, leia A promiscuidade política-justiça no Amazonas



Os três macacos "sábios"

 

MANAUS É DIFERENTE MESMO, ANÍBAL


Mais do que mostrar, à luz do dia e em praça pública, o que a mistura de bandidos endinheirados e instituições apodrecidas pode fazer à sociedade, o espetáculo grotesco da demissão da Bianca Abinader é importante por outro feito marcante: ter mostrado mais sobre a plateia do que sobre o que ocorria no palco.
Nunca vimos, com tanta riqueza de detalhes, o que o grupo político que domina o Amazonas já fez tantas vezes antes, sempre e sempre com o uso da máquina pública. O escandaloso do caso da Bianca é que o martírio se deu no horário nobre e sem cortes. Todos viram o rosto do agressor, o assistiram golpeando a vítima, jurando-a de morte, ameaçando sua família.
Mas bandidos comuns fazem crimes comuns. Falar da agressão é celebrizar o crime, e o problema não é o crime. Esse nasceu no Éden e vai perdurar até o fim dos dias. Ou, como diria Juca Chaves, neste país todo dia morre um ladrão e nascem dois. O agressor da médica um dia morre, e o mundo terá de se preocupar com outros dois. O problema, prezados amazonenses, é quando o poder público se alia ao crime ou, para ser bem ingênuo, se deixa usar por bandidos.
Tentei convencer a Bianca a pensar bem, não pedir sua demissão. Viramos amigos por causa do mesmo inferno. Eu de um lado, respondendo a uma dezena de processos, ela do outro, como vítima do maior crime jornalístico e político da recente história de Manaus. Hoje nossos filhos brincam juntos, e não há nada que ilustre melhor uma amizade do que isso.
Não adiantou. Quando percebi que não era mais um impulso, não insisti. A Bianca desistiu, depois de três anos de martírio solitário, sem que ninguém, na Rede Globo, nos ministérios públicos, estadual e federal, se dignasse a defendê-la. Poucas pessoas viram tão de perto esse inferno como eu. Vi essa moça em pele e osso, nos primeiros meses de agressão, falar que sua família estava destroçada. Vi seus pais chorando, ora de medo, ora de desânimo, ao ver a filha e as netas naquela situação. Vi seu marido atônito, tentando segurar a barra e, ao mesmo tempo, suportando pressões no próprio emprego, por causa da esposa.
Mas é como eu disse: essas são coisas corriqueiras de uma cena de crime. Sempre há parentes chorando, gritos de desespero etc. O que me choca até hoje é a covardia coletiva, o descrédito nas instituições e a falta de confiança da sociedade numa máquina que existe para proteger os cidadãos de bem, não persegui-los. Todos sabem que Bianca foi vítima de um crime. Donos, editores, repórteres e até porteiros dos jornais sabem. Promotores, advogados, médicos, pacientes, todos sabem. Mas uma realidade sempre pintada sobre as cercanias das bocas de fumo de periferia, que enfeitam os jornais populares, a famosa Lei do Silêncio, chegou ao mundo civilizado das redações, dos escritórios.
Ninguém podia mostrar a verdade, os documentos, denunciar a Prefeitura. Todos, e é bom repetir, todos têm o que esconder, e o criminoso sabe disso. É só mexer com ele, que o inferno chega a galope. Aliado a isso, todos, e é bom repetir, todos pagam seus funcionários com dinheiro público, repassado às enxurradas pela Prefeitura. O fim do processo não pode ser outro: jornais mantidos com dinheiro público não têm interesse em brigar com criminosos tão ferozes quanto ricos. Jornalistas têm medo de, no mínimo, perder o emprego.
É, portanto, outro dos aspectos claros do caso Bianca Abinader. Mas há um ainda pior, que é a criminalização da vítima. Nos três anos em que foi agredida pela própria Prefeitura, a médica não precisou apenas segurar as lágrimas e a família. Era preciso se defender de quem, além de saber a verdade e não conta-la, optou por aceitar o crime, por comodismo ou pior, conveniência pessoal. Eu poderia citar ao menos oito casos de pessoas que viram o crime, tinham ferramentas legais para impedi-lo, mas preferiram, além de não evita-lo, colaboraram para que ele continuasse. Gente muito boa, que conseguiu dar férias até para a inteligência, e disse que psicopata e louca era a vítima.
A gente não se decepciona com aqueles de quem a gente não espera nada de bom. Também vítima do mesmo banditismo paraestatal, eu sei do que bandidos ricos, ajudados por instituições públicas apodrecidas, são capazes. Minha decepção é com o indivíduo, com pessoas específicas que conheço e com a elite intelectual amazonense. Esta, feita de excelentes professores, filósofos, sociólogos, advogados, médicos, empresários e formadores de opinião, preferiu fingir que nada via.
E viu tudo.
Com seu pedido de demissão, Bianca não desiste de brigar com o bandido, desiste de esperar pelo mocinho. Perseguida implacavelmente pela própria Prefeitura, como poderia se defender de um processo absurdo, baseado em provas inexistentes e patrocinado pela cúpula de sua própria ‘empresa’, a Prefeitura de Manaus?
Tentei convencê-la a não desistir, mas ela já havia decidido. No fim, foi ela quem me convenceu de que era a coisa certa a fazer. Jovem, estudiosa, extremamente inteligente, já planeja como será sua nova vida, pós-Prefeitura, muito provavelmente pós-Manaus. Gosto demais da Bianca, por isso quero vê-la bem longe daqui. Se uma frase dessas não denuncia a situação da cidade, não sei mais o que denuncia. Bianca não é a primeira vítima de Manaus, e se tanta gente hoje quer ir embora, é porque não acreditam mais que será a última.
Tenho amigos, como todos têm, que desistiram de Manaus. Não abandonaram a cidade pela falta de perspectiva e de colhões de sua elite, um grupelho de punheteiros culturais ou científicos, intelectuais pagos para não pensar, não enxergar e não comentar o estupro de sua própria cultura, de sua própria gente e do seu próprio futuro. Não foi pela falta de educação pública, esgoto ou transporte público. Não foi pelo provincianismo nem pela feiúra da cidade – e ela é feia e provinciana. Foi porque não acreditavam mais em suas instituições, fossem elas o governo, a polícia ou a justiça. Manaus não iria pra frente com seus velhos preguiçosos e babões. Sua única chance vinha dos jovens, cérebros novos, com uma nova ética e uma vontade de repovoar a cidade, faze-la se dar ao respeito e crescer, finalmente. Hoje, diante da completa falência moral de suas instituições, esses jovens fogem, vão criar seus filhos onde dá gosto olhar pela janela.
Há alguns anos, quando comecei a escrever, gastei boas horas na internet, em fóruns de discussão, defendendo o Amazonas daqueles que xingavam nossas moças, nossa educação, nossa jequice e nosso atraso cultural. Hoje olho para a cidade que meu querido Aníbal Beça tanto amou e me pergunto como puderam e podem, tantos escritores, intelectuais e poetas, gostar dela. Beça chegou a dizer que “Manaus é uma cidade diferente, porque ao invés de a gente morar nela, é ela que mora na gente”.
Não, Aníbal. Manaus é diferente porque, enquanto acolhe bandidos que ninguém mais quis, expulsa engenheiros de TI, como meu amigo Paulo, ou engenheiros químicos, como meu amigo William, ou médicos, como minha amiga Bianca, ou advogados, como meu compadre Sérgio. Gente jovem e pronta para crescer em estados ou países que acolham sua paixão pela correção, por seu senso de coletividade, pela ética profissional e pela crença no poder público. Essa gente, que não tem um passado sombrio, que não tem contratos suspeitos, que nunca fraudou nada na vida, que nunca falsificou, traficou, abusou, roubou, chantageou nem ameaçou ninguém, essa gente precisa se unir, se sentir acompanhada. É natural, quase biológico, que os semelhantes se aproximem. Cansei de ter que explicar como me tornei amigo de pessoas de bem como a Bianca, e há algum tempo passei a responder com um ríspido “Ué, é só bandido que pode fazer amizade em Manaus?”.
Sim, nós gostamos de gente que não tem um passado sombrio, que não tem contratos suspeitos, que nunca fraudou nada na vida, que nunca falsificou, traficou, abusou, roubou, chantageou nem ameaçou ninguém. Diante do quadro atual da cidade, precisamos perguntar se ainda temos esse direito?
Infelizmente, o mercado de amizades para os bandidos anda mais generoso do que para essa gente, que aqui é apelidada de ‘metida a mártir’ ou ‘dona da verdade’, e em outros lugares é chamada apenas de ‘normal’. O resultado é certeiro: essa gente normal vai embora.
Manaus é diferente por isso, Aníbal. Porque não oferece um futuro às pessoas normais. Só aos bandidos.
Leia mais sobre toda história  nos links abaixo:
Fonte: O Malfazejo

"O segredo sem paredes", por Muniz Sodré

PICICA: Mais um primoroso texto do professor Muniz Sodré, de quem recomendo este pequeno clássico: "A Comunicação do Grotesco".

PRIVACIDADE

O segredo sem paredes

Por Muniz Sodré em 29/05/2012 na edição 696


Numa pequena nota, o colunista Ancelmo Gois, de O Globo, pedia “calma” à cantora que, em depoimento sobre a carreira artística, discorreu sobre, digamos, a sua “umidade íntima”: ao interpretar “Free Again” no Golden Room do Copacabana Palace, arremataria a canção com orgasmos apoteóticos. Já no “Fantástico Show da Vida”, uma famosa apresentadora, também depondo sobre sua intimidade, revelou, às lágrimas, ter sofrido abusos sexuais na infância, o que até hoje a impediria psicologicamente de se casar. Semanas antes, uma conhecida atriz de tevê havia ocupado muito espaço de jornal e muito tempo de televisão com o drama da expropriação cibernética de suas imagens íntimas.


Um ângulo interessante para a observação do jornalismo nesses episódios é a evidência de que eles são tratados como acontecimentos isolados, quando na verdade pertencem a um mesmo fato social. Há uma distinção teórica entre fato e acontecimento. Embora os dois termos possam referir-se a uma experiência sensível, a tradição de pensamento entende fatos como “objetos para conceitos cuja realidade objetiva pode ser provada”.


Estamos aqui tentando resumir uma explanação longa e complicada, mas vale a pena a simplificação para enfatizar que, nas ciências sociais, o mundo dos fatos é um “estado de coisas” – portanto, conexão de coisas – que serve para objetivar conceitualmente a realidade dos fenômenos. O acontecimento, por sua vez, entendido como ocorrência, transformação ou passagem, decorre da realidade factual. O acontecimento, seja grande ou pequeno, se constrói como uma irradiação do fato, e o jornalismo tem a sua maneira particular de construí-lo.


Curso próprio


Os três acontecimentos acima citados pertencem ao fato social da abolição da diferença entre espaço público e privado. Em todo lugar, mas particularmente entre nós, faz muito tempo que o espaço público tem no broadcast televisivo com suas derivações de formas de entretenimento (música, shows etc.) seu ícone principal. Por sua grande capacidade de transpor as velhas barreiras sociais (classe, credo, sexo e idade) e assim constituir audiências diversificadas, a tevê impôs-se como a mídia prototípica do alcance massivo. No passado recente, foram muitas as hipóteses críticas sobre o seu potencial de concorrência, em termos educacionais, com a família e a escola.


Entretanto, menos de três décadas depois do início do império televisivo, a centralidade do broadcast começa a ser alterada pela televisão segmentada, comercialmente programada em função da heterogeneidade das audiências. E ainda na década final do século, a tecnologia digital impulsiona e consolida a fragmentação dos públicos sob a forma de individualidades comunicantes ou interativas. A interação dá lugar à interatividade, que implica um processo gradativo de apropriação da tecnologia da comunicação pelos usuários. A internet sintetiza todas as possibilidades expressivas da mídia anterior (imprensa escrita, rádio e televisão).


O broadcast é, assim, progressivamente substituído pelo pointcast, que é a multiplicação dos pontos de mira individualizados, capazes de provocar a fragmentação do espaço público que tinha sido tecnicamente ampliado pela mídia tradicional. Ao olhar analítico, configura-se uma nova realidade, em que pontificam basicamente desde amplas frações de faixas etárias das classes médias até a juventude das periferias urbanas, aglutinadas por meio de redes alternativas de comunicação baseadas na internet e socialmente extensivas por meio de organizações lúdicas de natureza variada (desde showsmusicais a jogos coletivos).


Não têm mais a mesma configuração os efeitos da grande mídia (jornais, revistas, televisão) sobre esse novo tipo de público. Do ponto de vista técnico e mercadológico, a digitalização e as redes eletrônicas simplesmente acumulam os seus efeitos sobre todas as indústrias de conteúdos (cada uma com a sua história e suas características de mercado), típicas do que se designava como “indústria cultural”.


Do ponto de vista psicossocial, há uma nova forma de vida, em que o menor deslize técnico com os gadgets da moda pode ganhar curso próprio na rede eletrônica. Ou então se intensifica, como estranho atrator, a publicização do eu mais íntimo que, antes reservado às alcovas, ao confessionário ou ao gabinete psicanalítico, agora desabrocha, despudoradamente, em público. Não se pode mais cantar, como a saudosa Dalva de Oliveira, “o peixe é pro fundo das redes/ segredo é pra quatro paredes”.Os “peixões” estão agora na superfície das redes, e os segredos perderam as paredes.


Novo e repetido


O fenômeno é generalizado na rede eletrônica, mas ultrapassa essa esfera e ganha a mídia como um todo quando os personagens dispõem de um grau maior ou menor de celebridade. Há quem seja levado a pensar, inclusive alguns parlamentares e jornalistas, que essa transfusão pública de intimidades e sentimentos contribua para o fortalecimento comunitário. A franqueza e as lágrimas dos que se expõem seriam índices de uma verdade. A esses, conviria ler urgentemente Martin Buber que, já na segunda década do século passado, advertia que “a verdadeira comunidade não nasce do fato de que as pessoas tenham sentimentos para com os outros (embora ela não possa nascer sem isso), mas nasce de duas coisas: de que elas estejam todas em relação viva e recíproca com um centro vivo e de que estejam ligadas umas às outras pelos laços de uma viva reciprocidade” (Eu e Tu, 1923).


O que há mesmo é um novo “estado de coisas”, um novo tipo de fato social em que a vida midiática em toda a sua extensão (da imprensa até a internet) sobredetermina ou preside à eclosão de pequenos acontecimentos “emocionais”, que oscilam entre o insólito e o burlesco. A publicização do íntimo aumenta na razão direta da expansão das redes sociais.


Há cerca de cinco anos, a declaração de uma doméstica na televisão sobre, digamos, sua “umidade íntima” ao escutar uma canção romântica causou verdadeiro espanto público, incentivado pela mídia, no Rio e São Paulo. Agora, ao mesmo tempo em que progride o tabu do “politicamente incorreto”, a revelação do íntimo ganha, sem paradoxo aparente, um curso novo e repetido. Navegando-se nessas águas, é de se esperar uma cascata (ou uma cachoeira?) de similares. Ninguém parece estar a salvo – ou free again – do grotesco.


***


[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]

Fonte: Observatório da Imprensa

maio 30, 2012

PAREM DE ATERRAR NOSSOS IGARAPÉS (2): "A revanche dos igarapés", por Antonio Risério

PICICA: "Sobre Manaus, Tocantins escreveu que se poderia ter transformado a cidade "numa Veneza Tropical", onde não faltaria o tráfego intenso de embarcações, varando os quintais das casas, abordando as fachadas e os jardins dos palacetes. Mas o governador Eduardo Ribeiro [no final do século XIX] preferiu aterrar os os caudais em benefício de um urbanismo funcional (grifo do PICICA), que lutou contra a natureza até fazer secar os pequenos cursos d'água, transformados agora em amplas vias públicas [ruas e avenidas, claro, já que o leito de um rieo também pode ser uma via pública". EM TEMPO: Dando sequência ao debate que propus a um cineasta amazonense, depois de ter sido acusado de estar disseminando "confusão conceitual", trago aos meus leitores o artigo do antropólogo, poeta e ensaísta Antonio Risério, publicado no Jornal A Tarde - Bahia, a propósito de aterramentos de igarapés. Recomendo deste o autor o livro A Cidade no Brasil, publicado este ano pela Editora 34. Como se vê, cada vez mais radicalizo o lema: só andar em boa companhia. O texto é um primor, e ainda se dá ao luxo de citar um trecho do livro  A Ilusão do Fausto: Manaus - 1890-1920, da pesquisadora Edinea Mascarenhas Dias, professora aposentada da Universidade do Estado do Amazonas. Aproveito o ensejo para corrigir uma impropriedade que cometi na primeira postagem da série PAREM DE ATERRAR NOSSOS IGARAPÉS, ao afirmar que foi na gestão do governador maranhense que os igarapés passaram a ser aterrados. O aterramento de igarapés começou 20 anos antes de Eduardo Ribeiro concluir sua obra do centro histórico de Manaus, que lhe valeria prêmios por ter erguido abaixo da linha do Equador a "Paris dos Trópicos". A informacão é da professora doutora Patricia Sampaio, da Universidade Federal do Amazonas. Segundo ela, o fato não se deu sem o clamor de muitas vozes.

Fonte: Conteúdo Livre