PICICA: "É muito curioso, por exemplo, quando Benjamin se fixa em tipos humanos que povoam o que hoje chamaríamos de shopping, mas que
naquela época eram as passagens parisienses. Então, o filósofo fala da
relação que os sujeitos têm quando estão na massa, quando estão nessas
concentrações humanas. E ele se dá conta de que os passeantes se exibem
diante dos outros, se vendem diante dos outros, adquirem eles mesmos o
caráter de mercadoria que se oferece ao outros. O que Marx havia
analisado, que o homem vende a sua força de trabalho e se converte em
mercadoria no mercado de trabalho, pela venda de sua força de trabalho, é
insuficiente para entender o capitalismo na época posterior e atual. E
Benjamin rastreia uma forma de conversão dos sujeitos em mercadoria que
tem a ver com o fetichismo da mercadoria, com a aura alucinatória, com a
experiência estética, cultural com a mercadoria, não material. Pensemos
que ele está escrevendo nos anos 1920-1930 do século passado, então se
supõe um adiantamento, uma lucidez."
Walter Benjamin e o império do instante
Progresso como ideologia institui o império do instante, destruindo a experiência em função da fugacidade e da velocidade sempre mais acelerada na modernidade capitalista. Nesse cenário, não há espaço para a memória, critica o filósofo José Antonio Zamora
Por: Márcia Junges | Tradução: Moisés Sbardelotto
As
estruturas temporais da modernidade capitalista estão marcadas pela
velocidade, por uma aceleração permanente. Ao mesmo tempo, parece que
nada de novo, em seu sentido radical e autêntico, é produzido.
“Novidades” proliferam em ritmo frenético, e essa avalanche de bens de
consumo nos conduz ao império do instante, do fugaz, do descartável. Ao
nos inscrevermos nessa lógica, acontece “uma anulação e uma destruição
da experiência, porque a relação que o sujeito estabelece com a
realidade por meio do consumo está marcada por essa fugacidade, por essa
transitoriedade”. A análise é do filósofo espanhol José Antonio Zamora na entrevista exclusiva que concedeu, pessoalmente, à IHU On-Line.
Há uma “empatização com a mercadoria”, assegura Zamora, referindo-se ao
pensamento de Walter Benjamin. Não se trata mais de um consumo material
em si, e o valor de uso do produto fica de lado. Entra em cena a aura
alucinatória das mercadorias, que são convertidas em objeto de desejo
pelas qualidades subjetivas que conferem ao seu possuidor. Daí à
conversão dos sujeitos em mercadoria é um passo. “Benjamin rastreia uma
forma de conversão dos sujeitos em mercadoria que tem a ver com o
fetichismo da mercadoria, com a aura alucinatória, com a experiência
estética, cultural com a mercadoria, não material”. Zamora critica esse
devir cronológico, que tem na elaboração ideológica do progresso sua
mais rematada concretização. A figura do redemoinho seria mais adequada
para compreendermos a realidade social, quando tudo é movido, mas nada
muda.
Zamora foi conferencista do evento O tempo messiânico contra o furacão destrutivo do capitalismo,
de 28 de setembro a 1º de outubro de 2009, promovido pelo Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos. Docente no Instituto de
Filosofia do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da
Espanha, é autor de, entre outros,Th. W. Adorno: pensar contra la barbarie (Madrid: Trotta, 2004) e Ciudadania, multiculturalidad e inmigración(Navarra:
Verbo Divino, 2003). Estudou Filosofia, Psicologia e Teologia na
Universidade Pontifícia de Comillas, em Madri. Doutorou-se na
Universidade de Münster, na Alemanha, com uma tese sobre Theodor Adorno,
orientada por Johann Baptitst Metz.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a relação que o senhor estabelece entre Walter Benjamin e o tempo e consumo no capitalismo?
José Antonio Zamora -
Walter Benjamin é um pensador que pretende desentranhar as chaves da
modernidade capitalista. Uma dessas chaves fundamentais é a questão do
tempo. Normalmente, consideramos o tempo como uma realidade imutável,
como se o tempo houvesse sido sempre igual em todas as épocas
históricas, mas, na realidade, o tempo também é uma construção social.
Nesse sentido, a modernidade capitalista estabelece estruturas
temporais. Estas estão marcadas por uma aceleração permanente, a
velocidade. E, ao mesmo tempo, há uma sensação de que nada novo, em um
sentido radical, se produz. A modernidade está relacionada com o novo.
Este é o tempo novo frente ao antigo, frente à Idade Média, frente ao
antigo regime. Entretanto, a proliferação de novidades e a aceleração na
proliferação destas produz um certo “instantaneísmo”, o domínio do
instante, do fugaz. E isso, ao mesmo tempo, faz com que se produza uma
desqualificação do instante pela falta de duração. Ao não ter duração,
não se inscreve experiencialmente no sujeito, e então isso produz uma
sensação de vazio nisso que, hoje em dia, recebeu o nome de
pós-modernidade. Há uma sensação de que as utopias, o sujeito, a razão,
morrem. Vivemos em um mundo "pós": pós-humano, pós-político,
pós-histórico, pós-moderno. É uma consequência última desse processo de
aceleração. Então, digamos, isso que faz parte das estruturas, para mim,
é uma chave para desentranhar o que a modernidade capitalista produz na
sociedade e na experiência que os sujeitos têm nessas sociedades. Isso
por um lado.
O tempo devorado
O
problema é a mediação entre o que poderíamos chamar de tempo concreto, o
tempo em seu caráter experiencial, e depois um marco, que, no
capitalismo, é o marco do valor abstrato, que é o tempo enquanto
critério de quantificação do valor do capital, do dinheiro. Trata-se de
buscar e de entender essa mediação, porque a modernidade produz uma
grande quantidade de inovação tecnológica, de mudança social, de mudança
de mentalidades. É uma revolução permanente de costumes, de ideias, de
afetos, de técnicas, de todo tipo. E, ao mesmo tempo, apesar de tudo
estar em revolução, no entanto, o marco abstrato do valor e o tempo
abstrato do valor de troca, ou do dinheiro, do capital, é um marco fixo,
estático. Parece como se esse marco estático devorasse o tempo
concreto, engolisse, se apoderasse do tempo concreto e anulasse sua
capacidade de produzir verdadeira novidade, algo verdadeiramente novo.
Evidentemente, isso tem a ver com o consumo, na medida em que o
capitalismo também produziu uma infinidade enorme de mercadorias, de
produtos, uma multiplicação. Mas essa multiplicação de produtos está a
serviço da multiplicação do benefício, então os sujeitos são
impulsionados a consumir vorazmente. Porém, nesse consumo, produz-se
realmente uma anulação e uma destruição da experiência, porque a relação
que o sujeito estabelece com a realidade por meio do consumo está
marcada por essa fugacidade, por essa transitoriedade.
IHU On-Line - A que se atribui essa aceleração do tempo? Ela está, então, submetida ao imperativo do consumo?
José Antonio Zamora -
Sim, porque, de um lado, o capitalismo, por meio da inovação
tecnológica, organizativa e logística, tem uma capacidade enorme de
produzir cada vez mais com menos. É a lógica de racionalização, de
efetividade, de eficácia, a competitividade. Os saltos de produtividade
têm sido enormes. Então, isso faz com que possamos produzir muito mais
com menos, mas a criação de riqueza material não é o mesmo que a criação
de benefício. A criação de benefício não depende da criação de riqueza,
mas sim do valor de troca associado às mercadorias. Então, para seguir
mantendo a acumulação, é necessário produzir mais, isto é, a
produtividade não tem como consequência um ganho de tempo, de tempo não
produtivo, de tempo de descanso, de tempo fora do âmbito da produção e
do consumo. O crescimento da produtividade tem que ser compensado com um
crescimento tremendo do consumo. Estamos continuamente compelidos a
consumir, senão seria impossível que a maquinaria seguisse funcionando.
Aura alucinatória das mercadorias
O
capitalismo também é uma forma de cultura, não só uma forma de
produzir. Então, tem que estar continuamente alimentado o desejo,
gerando, portanto, uma apetência permanente de mercadorias. E Benjamin
consegue rastrear um fenômeno específico – e eu acredito que foi a
pessoa que melhor o entendeu –, que ele chamou de "empatização com a
mercadoria". É uma aproximação e uma identificação empática com a
mercadoria, que não é seu consumo material, não tem a ver com o valor de
uso, mas sim com a aura alucinatória que as mercadorias adquirem no
capitalismo para se converter em objeto de desejo. Aí há um processo de
assimilação, de “empatização”, diz ele, com o anorgânico. Isso
transforma os sujeitos em sujeitos auráticos mercantilizados.
É
muito curioso, por exemplo, quando Benjamin se fixa em tipos humanos
que povoam o que hoje chamaríamos de shopping, mas que naquela época
eram as passagens parisienses. Então, o filósofo fala da relação que os
sujeitos têm quando estão na massa, quando estão nessas concentrações
humanas. E ele se dá conta de que os passeantes se exibem diante dos
outros, se vendem diante dos outros, adquirem eles mesmos o caráter de
mercadoria que se oferece ao outros. O que Marx havia analisado, que o
homem vende a sua força de trabalho e se converte em mercadoria no
mercado de trabalho, pela venda de sua força de trabalho, é insuficiente
para entender o capitalismo na época posterior e atual. E Benjamin
rastreia uma forma de conversão dos sujeitos em mercadoria que tem a ver
com o fetichismo da mercadoria, com a aura alucinatória, com a
experiência estética, cultural com a mercadoria, não material. Pensemos
que ele está escrevendo nos anos 1920-1930 do século passado, então se
supõe um adiantamento, uma lucidez.
Hoje,
basta entrar em um shopping para entender Benjamin. É uma coisa que
Theodor Adorno também analisa. Porque o valor de troca em Marx era
simplesmente o preço, tinha a ver com o sistema de dinheiro para trocar
mercadorias que são qualitativamente diferentes. Mas aqui estamos
falando de outra coisa, estamos falando dessa aura alucinatória, o
brilho, o esplendor que as mercadorias adquirem, que lhe permitem ter
vivências, experiências subjetivas da relação que não tem a ver com o
substrato material da mercadoria. Por que um carro de luxo faz com que o
possuidor tenha “sex appeal”? É a relação da materialidade da
mercadoria e os atributos que se projetam alucinatoriamente sobre ele.
Então, isso permite rastrear uma coisa que, por exemplo, Adorno chamava
de “o consumo do valor de troca”, que, na forma habitual de pensar as
teorias marxistas, tradicionais, não teria sentido, só se pode consumir o
valor de uso de uma mercadoria.
IHU
On-Line - Voltando à questão da aceleração do tempo, que conexões há
entre ela e o fim da história, da razão, do sujeito, da política e das
ideologias? Não se cria aí uma apatia do sujeito contemporâneo em função
desse cenário?
José Antonio Zamora -
A questão da aceleração e do fim da história aparece como duas
interpretações opostas. A categoria da aceleração parece ser um impulso
para frente, à velocidade, ao rápido, a uma meta. Parece que, no
conceito de aceleração, há como que um esquema tecnológico de fundo. No
entanto, o fim da história parece propor que o que se produz é uma
“estática”, uma parada, uma detenção, algo que não se move, que está
detido. Benjamin, claro, não se refere a esse teorema do fim da
história, que é um teorema hegeliano, que depois foi percorrido por
Francis Fukuyama. Mas Benjamin tinha diante de si o teorema nietzschiano
do eterno retorno. Então, diz ele, tanto a ideia burguesa, marxista ou
social-democrata de progresso, de avanço a uma meta, concepção
teleológica da história, e esta outra, do eterno retorno, são duas
formas de falsa consciência daquilo que realmente ocorre. Porque só se
entende o que realmente ocorre a partir da mediação desses dois esquemas
interpretativos. Teríamos que recorrer, talvez, a uma imagem do
redemoinho. Quando você vê um fluxo de água, forma-se um redemoinho, que
começa a mover tudo, mas fica fixo, está fixo, não muda, não se move.
Essa imagem pode nos ajudar a entender o que Walter Benjamin persegue em
sua análise. Porque essa aceleração tremenda, esse processo de inovação
tecnológica, de transformação permanente faz com que, na realidade do
sistema social, tudo mude para que nada mude: está imóvel.
O novo qualitativo e o novo cronológico
A
análise de Benjamin persegue essa questão tão própria do sistema
produtor de mercadorias de, por um lado, criar uma pluralidade, uma
diversidade, um ato de inovação permanente, de multiplicação, de
diversificação. Pensemos, por exemplo, como era a vida dos sujeitos
antes da revolução econômica que é o sistema capitalista. Seu mundo de
objetos, de vivência, era relativamente pobre comparado ao que nós hoje
vivemos em todas as ordens. No entanto, nessa produção contínua da
novidade, realmente está se escamoteando o novo, o radicalmente novo.
Benjamin analisa o fenômeno da moda e diz que as mercadorias precisam utilizar a propaganda da novidade. Mas a novidade, pela pura novidade, é um critério abstrato, é simplesmente aquilo que no tempo acontece em último lugar, não tem outra qualificação a não ser aquilo que ocorreu por último. Então é isso que se busca: quando se oferece as mercadorias, prometem-nos que teremos o último, pois aquilo que já temos está atrasado. Contudo, não se analisa o que há realmente de novo no novo. Porque o novo, em sentido enfático, profundo, tem que ser qualitativamente novo, é uma determinação qualitativa, e não meramente cronológica. Então, no império da cronologia, do devir cronológico, em um continuum de instantes que se sucedem no tempo, o que se produz realmente é uma sabotagem da produção do radical e do verdadeiramente novo. Acrescenta-se a isso que essa concepção que chamamos teleológica do tempo, que é expressada de um modo muito preciso na ideia moderna de progresso, é a forma como nós, modernos, entendemos o tempo.
Entendemos
o tempo como progresso. Então, diz Benjamin, essa forma de interpretar o
processo histórico é uma forma de interpretar que reflete essa
aceleração constante do tempo, esse processo inovador constante, que, no
entanto, como mero reflexo, é uma elaboração ideológica, porque não
permite ver o que, nesse processo, há de regressão, destruição,
aniquilamento, vítimas.
Lógica sacrificial
Nesse
processo histórico, interpretado como progresso, tudo é submetido à
consecução da meta. O resultado aparece como capaz de justificar todos
os preços pagos para a sua consecução. Na realidade, essa ideia de
progresso responde a uma lógica sacrificial. E, de fato, um dos autores
em que essa ideia tem, na filosofia da história, uma interpretação mais
acabada, Hegel, fala precisamente do altar da história, onde são
sacrificadas gerações, homens, para a consecução de uma meta futura, que
é a plenitude da história. Nesse sentido, o fim da história é também o
juízo final. Não é preciso esperar nenhum juízo ulterior que revogue o
acontecer fático da história, mas a própria história é seu juízo. A
história vai realizando seu juízo no próprio devir. Então, tudo é
justificado como preço do resultado. Então, se pensarmos que Walter
Benjamin encontra diante de seus olhos, no momento histórico em que
vive, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a emergência dos
fascismos na Europa, o triunfo do nacional-socialismo na Alemanha, a
perseguição dos judeus, ele não pode entender que esse presente possa
ser, digamos, o epílogo de um processo histórico anterior. Algo falhou
nessa interpretação da história, que nos cegou para compreender
realmente os custos desse processo. E, quando não somos capazes de ver
os custos desse processo em termos de vítimas, de destruição, de ruínas
acumuladas, estamos alimentando a própria lógica sacrificial que se
sustenta como esquema de dominação histórico que não foi rebaixado.
Então, a novidade viria só do fato de sermos capazes de interromper esse
processo. Benjamin tem um conceito messiânico do tempo.
IHU On-Line – A partir disso, como podemos compreender a junção messianismo e política nesse pensador?
José Antonio Zamora -
Não é simples a interpretação que Benjamin faz do messiânico. Ele tem
um fragmento, que é o Fragmento Teológico-Político, em que ele fala da
relação entre a ordem do profano e a ordem do messiânico. Normalmente, o
messiânico está relacionado à teologia, à religião. Então, ele fala
dessas duas ordens como duas ordens diferentes, separadas e com uma
certa tensão: enquanto que a ordem do profano é voltada à busca da
felicidade dos sujeitos, a ordem do messiânico é interpretada por
Benjamin como interrupção. Ele não pensa o Reino de Deus, podemos dizer,
como o fruto maduro de um processo histórico, que é como muitas vezes o
interpretamos: pensamos que a história vai caminhando rumo a uma
plenitude, e essa plenitude é o Reino do Deus, o epílogo da história.
Isso converteria o Reino de Deus no prêmio dos vencedores. Então,
pensando o esquema apocalíptico, ele diz: o Reino de Deus não é a meta
da história, mas sim seu final, seu final como interrupção. Na visão
apocalíptica, o Messias chega como aquele que derrota o AntiCristo, é
aquele que enfrenta uma situação de dominação destrutiva dos seres
humanos. O Messias não é o herdeiro do trono histórico. Então, isso é
importante no sentido de que o messiânico é entendido como a irrupção do
radicalmente novo, que tem como condição de possibilidade a interrupção
da prolongação da catástrofe que foi a história.
IHU On-Line – Então, a partir dessa ideia, poderíamos repensar o conceito de política?
José Antonio Zamora -
Isso é o que pretende Walter Benjamin. Aquilo que conhecemos como o
teorema da secularização vinha dizer que a modernidade europeia é uma
tradução, translação das contribuições do cristianismo levados a
conceitos seculares. Benjamin tem um conceito diferente da relação entre
a ordem política e a ordem religiosa. Ele não busca uma tradução, uma
translação. Ele fala de uma relação como um papel secante com a tinta,
mesmo que a tinta nunca possa ser absorvida totalmente. Ele tenta
introduzir a teologia dentro da política, de uma maneira que tanto a
teologia quanto a política fiquem “translocadas”, “transtocadas” em sua
dinâmica. Então, para que isso possa ficar entendível, ele diz: Karl
Marx secularizou a ideia de Reino messiânico e a ideia de sociedade sem
classes. Imediatamente, diz: é imprescindível devolver à revolução seu
rosto messiânico, se não queremos que a classe trabalhadora seja
arrasada pelo processo que ele via nesse momento de dissolução. Então, o
que quer dizer devolver um rosto messiânico? Até agora, Marx pensou as
revoluções como locomotoras da história, como aquilo que faz avançar
para frente, que impulsiona a história para sua meta. Mas, diz Benjamin,
é preciso entender as revoluções como um “agarrar” o freio de
emergência do trem da história. Então, devolver um rosto messiânico quer
dizer interromper uma marcha. Benjamin pensa a revolução não como um
salto à meta, mas sim como interrupção de um processo que, até agora,
tem sido um processo catastrófico. Poderíamos dizer a Walter Benjamin:
“Você exagera um pouco o negativo desse processo. Realmente houve
progressos”. Suponho que ele não negasse esse progresso.
O
que acontece é que, evidentemente, seu horizonte e sua perspectiva não é
a perspectiva dos vencedores, mas sim a perspectiva dos vencidos. Por
isso, na tese 8 da Filosofia da história, ele diz: para os oprimidos, o
estado de exceção é a regra. Isto é, essa história, vista a partir dos
que foram esmagados, dos que foram anulados, é uma história
catastrófica. E, desde muito cedo, ele quis pensar messianicamente a
história, que é pensar a partir dos deserdados, dos últimos, dos
esmagados, dos oprimidos. Pensar a história messianicamente é pensá-la a
partir desse horizonte. E isso já está no escrito sobre Goethe e as
afinidades eletivas, em que ele diz: não nos foi dada outra esperança
mais do que pelos que carecem de esperança. Então, não é a esperança
daqueles que têm perspectiva de êxito, que querem dar o último salto
para o paraíso, porque essa é a perspectiva dos vencedores da história.
Por isso, a sua crítica tão forte à social-democracia e, em parte
também, mesmo que nunca o nomeie, ao comunismo. As classes trabalhadoras
fizeram com que as vítimas se vejam com a ideologia daqueles que os
oprimem, com a ideologia burguesa. Segundo Benjamin, acreditar que
cavalgamos na crista da onda e que somos o motor da história – assim
eram interpretadas, dentro da tradição marxista, as organizações dos
trabalhadores no começo do século – é uma espécie de obnubilação, de
autoengano. Porque a história aparecia aos seus olhos como dotada de uma
espécie de automatismo de emancipação, que, de um modo ou outro,
bastava esperar, porque a história caminhava inexoravelmente para o
paraíso comunista. O filósofo completa que nada pior poderia ter
ocorrido com aqueles que são chamados a transformar a história do que
pensar que a história, por sua própria dinâmica, conduz à emancipação, à
superação da dominação.
IHU
On-Line - Em que sentido se pode falar de uma destruição da experiência
a partir do pensamento desse filósofo? O que isso significa?
José Antonio Zamora -
O que Benjamin descreve como destruição da experiência tem a ver com
esses processos que analisamos no começo, de aceleração do tempo. Já a
própria industrialização supõe uma mudança estrutural de grandes
dimensões na relação dos sujeitos, dos indivíduos com o mundo, com as
coisas, com os acontecimentos. Ele tem um artigo em que fala sobre a
pobreza da experiência, referindo-se, precisamente, às pessoas que
voltavam do front da Primeira Guerra Mundial. E ele diz que,
diferentemente de outras guerras, em que as pessoas voltavam contando o
que havia acontecido, as pessoas que voltavam do front da Primeira
Guerra Mundial vinham atônitas, sem palavras. Como se sabe, a Primeira
Guerra Mundial foi uma guerra tremendamente cruel, em que se enviavam as
tropas às trincheiras, que eram bombardeadas com os canhões e tanques.
Era uma guerra de seres humanos convertidos em carne de canhão. Esse
choque, essa comoção, é intragável ao sujeito, que não é capaz de
inscrever o que lhe acontece em uma sequência biográfica. Se
transladarmos esse exemplo à experiência cotidiana, da aceleração,
Benjamin diz que essa multiplicação de sensações é inassimilável. Então,
não podem ser traduzidas em experiências.
Máquina de esquecimento
Nós
vemos televisão e estamos sendo continuamente impactados por imagens a
uma grande velocidade. Por assim dizer, os videoclipes são a vanguarda
do meio televisivo. E se o impacto televisivo não é suficientemente
acelerado, ajudamos com o controle remoto e ficamos trocando de canal
continuamente. É uma metáfora do que está ocorrendo conosco. Esse
desassossego é a experiência do choque, do impacto. E, sem duração, os
acontecimentos, os fenômenos, as coisas não podem se inscrever, não
podem ser apropriados pelo sujeito. O sujeito está como que “resvalando”
sobre as coisas. Na realidade, a experiência do consumo é algo assim.
Essa é a diferença que havia entre uma viagem no século XIX e uma viagem
no século XX. Podemos ir de um lugar para o outro, porque a velocidade é
imensa. A palavra experiência, em alemão, vem da palavra viajar.
“Erfahrung”,
experiência em alemão, e “fahren”, viajar. E ter experiência era isso,
era aventurar-se pelo novo, por aquilo que não era conhecido, pelo
estranho, era descobrir o mundo. Experimentar é descobrir o mundo. É
abandonar-se, entregar-se ao que não é próprio, entregar-se ao outro. E
essa capacidade para entregar-se, para abandonar-se ao outro é anulada
pela vertiginosidade do impacto, da sensação. Nessa forma transformada
de relação com o mundo, não tem cabimento a recordação, a memória.
Então, esse cúmulo de impactos, de sensações, na realidade, é uma
máquina poderosíssima de esquecimento.
Quando
falamos das gerações jovens, dizemos que elas vivem num instante
eterno, que é o último que viveram. Produz-se uma destruição da memória.
A memória precisa inscrever o acontecer na sequência biográfica e, para
isso, precisa da duração. Romper a capacidade rememorativa incapacita
os sujeitos para isso que Benjamin realmente busca, que está muito
associado à crítica do progresso. Isto é, nós não podemos romper o curso
e a sequência linear do tempo, se não estabelecermos uma relação
diferente com o passado. E essa nova forma de relação, que são as
sensações, é uma destruição da memória. Poderíamos dizer que, em
Benjamin, destruição da experiência, destruição da memória e, portanto, a
anulação da capacidade de subtrair-se a esse processo destrutivo do
progresso vão de mãos dadas, estão unidas.
Fonte: IHU