julho 10, 2009

Armando de Paula, do Fórum Amazônia de Cultura, escreve uma Carta Aberta ao Governador do Amazonas

Teatro Amazonas
Manaus - Amazonas - Brasil

Nota do blog: Armandinho de Paula, cantor e compositor, autor da Carta Aberta ao Governador do Amazonas, pode ser ouvido neste blog interpretando Vento Norte, clássico do Festival Folclórico de Parintins.

Carta aberta ao Governador do Amazonas

“Os artistas podem ter orgulho de serem Amazonenses?”

Senhor Governador do Amazonas, Eduardo Braga:

Apelo à força política aglutinada democraticamente em suas mãos, como última instância na busca de ver estabelecer-se definitivamente em nosso Amazonas, pelo menos o nascimento oficial de sua própria cultura, uma vez que ela ainda não foi sequer reconhecida como existente, de modo a ser tratada como tal. Faço isso na esperança de não precisar “queixar-me ao bispo” como tenho sido ironicamente aconselhado a fazer, como se o Amazonas fosse terra de ninguém, ou ainda estivéssemos no começo do século e a borracha, a ópera, os coronéis de barranco e as prostitutas parisienses ainda estivessem na moda.

Não é de hoje que observo o vai e vem das ambições mais diversas correndo célere em seu fazer daninho e, como vampiros, ano a ano sugar a vitalidade singular de nossa cultura legitimamente amazonense, nascida dos anseios culturais da população, através de seus artistas, sensíveis antenas e arautos que, captando o momento psicológico das multidões e se expressando livremente, contribuem grandemente para sua evolução e progresso, isso desde que a civilização existe.

Muito se tem esperado do Amazonas em termos culturais, no Brasil e no mundo. Quem somos nós pelo que expressamos? Qual é nossa verdadeira identidade? Quem poderá dizer?

Alguns anos atrás, certo governador, por ignorância ou indiferença, afirmou que no Amazonas não havia arte e cultura, que a única coisa que reconhecia era o Festival de Parintins como expressão cultural. Menos mal, considerando-se que os tambores desse movimento já encontravam eco no coração de nossa gente. Assim, ele, em sua “macro visão”, iria promover a grande revolução cultural. Desse modo resolveu sem nenhuma consulta, nenhuma pesquisa, nenhuma investigação aos legítimos valores culturais da nossa terra, importar o que havia de mais imponente e pomposo na cultura européia, e implantá-lo verticalmente no juízo da população, como quem pretende a golpes de machado abrir caminho para novas idéias. É o velho método “goela abaixo”, bastante popular no Amazonas entre os que chegam ao poder. Será que ninguém ainda pensou no cabimento de um festival de samba na Chechênia?

Quero deixar claro que não sou contra nenhum tipo de manifestação cultural, pois, como artista, busco constantemente evoluir a uma compreensão mais elevada, que me conduza a uma superior apreciação da vida, o que inevitavelmente me leva a um profundo respeito ao papel que cada um desempenha em cada canto de nossa imensa aldeia global. Serão sempre bem vindas, para nosso deleite e crescimento espiritual, toda e qualquer expressão cultural de qualquer parte do Mundo, que, como aves viajeiras visitem sempre nosso quintal, em alegre algazarra por nossos pomares. O que não deve acontecer por uma simples questão de coerência é permitir que tais aves numa forçosa migração predatória façam seus ninhos em todos os galhos de todas as árvores comendo todos os frutos de nosso viveiro, impedindo até que possam cantar nossos passarinhos. Questiono, com isso, inclusive a falta de equilíbrio da balança do direito social, constitucionalmente estabelecido, sabedor que de que o Amazonas possui não apenas uma vasta biodiversidade, mas também uma enorme sócio-diversidade .

Menciono o acontecimento, simplesmente porque desde então, a Expressão Amazonense sofreu um golpe ainda maior que a indiferença já praticada, que foi o prejuízo de uma comparação desleal aos olhos de nossa gente. De um lado a “pomposidade” dos elementos alienígenas importados, ancorados na aparência de grandes e cintilantes eventos, que não traduzem sentimentos de empatia e senso de identificação necessárias, própria da arte produzida e nascida dos anseios do próprio povo, sendo que tais manifestações ganharam o direito de ter milhões de reais à disposição para sua inteira realização.

Do outro a aparência tímida e acanhada de nossos melhores esforços em nossas manifestações culturais, que não parecem atingir sequer o status de diversão casual, devido à falta do glamour que só o dinheiro pode patrocinar, o que justamente a Expressão Amazonense não tem, desde tempos que já se perdem. O que é oferecido como forma de apaziguar os ânimos (uma espécie de “cala boca”), enquanto vai se empurrando a cultura com a barriga, se compara a migalhas atiradas de uma lauta mesa, que além de não saciar a fome e sede do pedinte, ainda o aprisiona na humilhante situação de mendigo.

Ora, que elemento vigoroso é esse que brota do seio povo e explode numa canção popular, levando todos a cantar pelas ruas da cidade sua alegria e orgulho de pertencer a uma determinada cultura, como faz por exemplo o povo baiano? Trata-se neste caso da “expressão baiana”! Com cara e jeito de baiano! Como não poderia deixar de ser, é o artista baiano celebrando sua liberdade de expressão, plenamente identificado com os anseios culturais sua gente, num transbordamento cultural tão intenso que subjuga fronteiras, a ponto da mesma ser exportada, estudada e até imitada em diversos lugares do mundo! E qual a diferença desta para a expressão amazonense? P R I O R D A D E !!!

Senão por algumas iniciativas demagógicas ao longo desta insólita trajetória, o artista amazonense sempre encontrou grandes obstáculos ao seu fazer artístico. Além do desprezo do qual falamos, ele tem que remar muito para atravessar o rio volumoso da burocracia, colocado ali como uma ameaça perene a testar as últimas fibras de sua resistência. Ele compete duramente para conseguir uma mísera pauta para exercitar seu labor artístico, mostrando seu trabalho em algum canto desprestigiado e sem a publicidade adequada, ou até em lugar mais sofisticado, porém sem poder realizar com um mínimo de condições a apresentação de sua arte por falta de recursos.

Essa situação produz uma constante e angustiosa frustração geral, tanto nele que produz, como em quem assiste, dando largas à visão de que o artista amazonense é preguiçoso e incompetente, e a expressão amazonense é uma quimera; o que significa ainda dizer que no Amazonas realmente não tem arte e cultura: “Necessário importar!” Bom! ...Depois de realizar seu show, ele é obrigado a transitar em diversos departamentos para por em dia a papelada, para receber a ninharia imposta por uma tabela aviltante, que ele é obrigado a aceitar se quiser continuar vivo como gente e como artista, tendo ainda que esperar ansiosamente por meses até receber. Louvo o profundo heroísmo desses corações intrépidos, pura inspiração para mim!

Todo esse comportamento surpreendentemente rude dos setores no comando do Estado à nossa prata da casa, se choca escandalosamente com o tratamento dispensado à quem vem de fora patrocinado pelo governo, quando a coisa lhe interessa. O artista já chega com um bom cachê garantido, imediatamente pago, sem burocracia ou qualquer embaraço, numa demonstração clara quanto ao senso de prioridades de quem hoje conduz o leme desse barco sem quilha, há muito navegando ao sabor das conveniências pessoais de uns e outros.

E para provar vou narrar aqui o mais recente episódio onde as máscaras caíram e não é possível mais ignorar a declarada posição do governo em relação à nossa cultura: Há dois na SBPC de Belém, o Senhor como autoridade máxima em nosso Estado, convidou a SBPC para se reunir no Amazonas que aceitou e escolheu para esta reunião, o tema “Amazônia – Ciência e Cultura”, realçando a importância da atividade cultural como parte inalienável do evento deste ano.

Assim, desde janeiro a direção do Projeto Cultural Uakti, que há mais de 20 anos mantém um movimento em favor da expressão amazonense em parceria com a ASPI e a Assinpa e os artistas em geral, percebendo a excelente oportunidade de finalmente dinamizar e divulgar nossa cultura onde ela teria atenção nacional, previamente apoiada pela direção da SBPC e UFAM, com colaboração de muitas cabeças e mãos de artistas, produtores e profissionais ligados à cultura, como contribuição ao enriquecimento do evento, elaborou uma programação com mais de 500 artistas de todas as classes, digna de receber os visitantes e a própria população. Alguns dirigentes da SBPC se apaixonaram pela programação e inclusive ofereceram passagens aéreas para trazer artistas representantes de outros Estados da Região Amazônica.

Mas aí entrou a politicagem, a vaidade, as intrigas, a sabotagem e o desprezo pelos artistas locais e tudo foi “por água abaixo”, carregado pela enchente do descaso governamental.

Nem vale a pena relatar quem deixou de fazer o que, pois muitas autoridades envolvidas nem merecem ser citadas. A verdade é que o Governo mais uma vez não só se omitiu, como sabotou a proposta até a sua inviabilização, permitindo que a oportunidade fosse perdida, deixando a cultura local – mais uma vez – do lado de fora, e, desta vez de uma das mais importantes reuniões da América Latina, bem aqui na nossa casa. O Governo do Amazonas tem o dever moral de pelo menos dar uma explicação aos artistas e à sociedade Amazonense do porque dessa discriminação absurda contra os nossos valores culturais legítimos colocando em xeque até o bom-senso, senão à própria sanidade de quem nos governa. “Incrível!!”, tudo isso acontece justamente quando o governo se prepara no maior descaramento para gastar à rodo num descabido festival importado de Jazz, dizendo que não tem dinheiro para apoiar nossa cultura.

Aqui expresso meu desabafo, impelido pela mais pura necessidade, na esperança de um dia poder livre e consubstancialmente oferecer meu trabalho a apreciação geral e dele viver com dignidade, distante do perigo de descambar pelo caminho do alcoolismo e da auto-destruição como tenho visto nos meus 30 anos de fazer artístico na vida de muitos hoje à margem do caminho. Ou até quem sabe ser passível de coisa pior: transformar-me em funcionário público e esquecer de vez meu sagrado compromisso com a arte, ilhado geográfica e culturalmente nesse imenso rincão.

Assim, se para mais nada servir este manifesto, expressão legítima de uma dor, seja ele um marco histórico no desenvolvimento cultural de nossa tribo. Que todos saibam que um dia alguém disse não a esse estado de coisas, especialmente às futuras gerações que ávidas de desenvolvimento haverão de questionar o atraso. Possa ele por outro lado sinalizar a luz da aurora de um novo tempo. Tempo de resgate e sedimentação de nossa legítima expressão amazonense, que nada mais é do que nossa voz alegre e consciente, potente e vibrante, partindo a plena confiança de nossos saudáveis corações, anunciando ao mundo que no Amazonas existe vida inteligente, criativa, responsável e competente, apta a administrar o imenso patrimônio natural do qual é dona, em benefício de suas gentes, as gentes de todo mundo, e assim poder dizer sem os artifícios da propaganda demagógica, sim, eu tenho orgulho de ser amazonense!

Armando de Paula
Compositor, cantor, músico, produtor fonográfico e agitador cultural
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