agosto 15, 2012

"O apelo de uma mãe e os resquícios vivos de uma ditadura" (Revista Fórum)

PICICA: "A razão de minha carta deve-se às ameaças que novamente pairam sobre a minha família já tão dilacerada, por uma vida de perseguição e dor. Não falo por mim que venho recebendo também, ameaças por telefone. Mas, tenho 80 anos. Peço pela segurança de meus filhos e netos, principalmente por minha filha Neusah Cerveira, a única que pode acompanhar o pai ao exílio. A senhora certamente não ignora que meu marido, Joaquim foi sequestrado em dezembro de 1973 pela Operação Condor na Argentina, onde depois de brutal suplício foi assassinado na madrugada do dia 14 de janeiro de 1974. Nossa vida, como de tantos outros familiares passou a ser de buscas pelos restos mortais de meu marido e por justiça. Neusah, por ter acompanhado o pai ao exílio, permanecendo com ele, no Chile, até uns dias antes do golpe. Por ter sido testemunha de muitos fatos, permaneceu algum tempo na ilegalidade. Posteriormente, foi incansável, sempre ao meu lado nas buscas pelo esclarecimento dos fatos e autores dos crimes de lesa humanidade cometidos contra seu pai e, por extensão, contra a nossa família."
O apelo de uma mãe e os resquícios vivos de uma ditadura





A carta que reproduzimos abaixo tem circulado na internet e nos meios sociais e Fórum conseguiu atestar sua veracidade com a autora, Maria de Lourdes Romanzini Pires Cerveira, ex-presa política da época da ditadura militar. No documento, endereçado à presidenta da República Dilma Rousseff, ela fala sobre a grave situação de sua filha, Neusah Cerveira, que tem sofrido perseguições em função de sua participação na Comissão da Verdade e de sua atuação em busca da justiça em relação ao período do regime militar.

Resquícios da ditadura ainda muito vivos.
CARTA ABERTA
À PRESIDENTE DA REPÚBLICA DO BRASIL DILMA ROUSSEFF
Exmª Srª Presidente,
Sou Maria de Lourdes Romanzini Pires Cerveira, R.G 05 128 7750-7 MINISTÉRIO DA DEFESA, ex-presa política em 1970 no DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita- RJ, juntamente com meu marido, Joaquim Pires Cerveira e meus dois filhos (17 e 11 anos) onde permanecemos até o sequestro do Embaixador alemão, que libertou meu marido e mais 39 companheiros, banidos para Argélia. Fui colocada em liberdade uns dias após, porém não pude me encontrar com meu marido no exílio porque estava indiciada num processo da VPR e minha liberdade era relativa. Tinha que me apresentar com meus filhos (um deles fez 18 anos naquele cárcere dos horrores) à 2ª Secção do Exército, no Antigo Ministério da Guerra no RJ, duas vezes por semana, para provar que não tinha fugido.
A razão de minha carta deve-se às ameaças que novamente pairam sobre a minha família já tão dilacerada, por uma vida de perseguição e dor. Não falo por mim que venho recebendo também, ameaças por telefone. Mas, tenho 80 anos. Peço pela segurança de meus filhos e netos, principalmente por minha filha Neusah Cerveira, a única que pode acompanhar o pai ao exílio. A senhora certamente não ignora que meu marido, Joaquim foi sequestrado em dezembro de 1973 pela Operação Condor na Argentina, onde depois de brutal suplício foi assassinado na madrugada do dia 14 de janeiro de 1974. Nossa vida, como de tantos outros familiares passou a ser de buscas pelos restos mortais de meu marido e por justiça. Neusah, por ter acompanhado o pai ao exílio, permanecendo com ele, no Chile, até uns dias antes do golpe. Por ter sido testemunha de muitos fatos, permaneceu algum tempo na ilegalidade. Posteriormente, foi incansável, sempre ao meu lado nas buscas pelo esclarecimento dos fatos e autores dos crimes de lesa humanidade cometidos contra seu pai e, por extensão, contra a nossa família.
Com o passar dos anos, como as perseguições à nossa família não terminassem, Neusah decidiu se retirar por uns tempos para uma cidade do Nordeste, para se dedicar exclusivamente ao seu aprimoramento acadêmico, tornar-se pesquisadora, e prosseguir sua busca pela verdade e pela justiça, amparada pelo ambiente acadêmico.
Efetivamente concluiu uma pesquisa defendida e aprovada (com indicação para publicação) na Universidade de São Paulo com o título: MEMÓRIA DA DOR – A Operação Condor no Brasil – 1973/1984, que se encontra no prelo, pronta para ser publicada desde 2008 (LCTE-Editora).
Minha filha não publicou seu livro, porque sofreu dois atentados (o primeiro no RJ, onde a delegacia do Leblon investiga até hoje, quando foi torturada (ainda tem as marcas). O segundo, no RN com minha neta, então com sete anos. Sequestro em que houve envolvimento da polícia civil do estado. Por essa época, Neusah, já fora aprovada em concurso público para professora do ensino médio no RN. Além disso, uma casa de minha propriedade no RN, na qual Neusah escreveu e guardou seu material e computadores de Pesquisa, foi vandalizada e o material levado, as paredes pichadas com ofensas contra meu marido morto. Além de terem levado também minhas lembranças com meu marido, entre outros ultrajes cometidos contra a memória de nossa família. Isso nunca foi esclarecido pela polícia do RN. Neusah se encontrava no RJ comigo, pois eu estava adoentada. Viajamos para lá, onde decidi vender a casa pela metade da metade do seu valor, quando vi aquilo.
Neusah tinha sua própria casa, pois possuía mais dois empregos e sempre foi muito independente.

Minha filha nunca desistiu de suas pesquisas para encontrar o pai e demais companheiros e fazer-lhes justiça. Também se tornou uma incansável batalhadora pelos Direitos Humanos em qualquer lugar do mundo onde fossem violados. Festejou a Comissão da Verdade e se colocou a disposição para colaborar com documentos e das formas que sentissem necessárias.
Minha filha faz muitos anos é porta voz oficial de nossa pequena família.
Depois das últimas eleições no RN, houve uma mudança das forças no comando do estado (o Partido Democratas, assumiu o executivo), o que quase coincidiu com a Instauração da Comissão da Verdade, à qual Neusah compareceu como convidada, representando nossa família, vimos sua segurança ser, mais uma vez, violentamente ameaçada, especificamente, depois do encontro como Ministro da Justiça em maio desse ano. A partir de então, começou a receber telefonemas ameaçadores, a ponto de ter retirado o aparelho, para que sua filha não tivesse que escutar aquilo tudo (minha neta é bastante traumatizada, pelo sequestro que viveu com a mãe). As ameaças se estenderam pela internet e com apedrejamento da casa. Acredito que, se a polícia tivesse cumprido seu papel e feito uma perícia, ainda encontraria pedras e outros objetos, que quebraram telhas e mais telhas. Neusah consertou a cerca elétrica 10 vezes, desde 1º de março de 2012. Seu carro era seguido por motos. O muro de sua casa foi esburacado, o lixo remexido, recebendo ameaças pelo celular. Fotografada em Shoppings e restaurantes, sempre com a filha. Começou a se isolar dos amigos e recusar convites para congressos. Chamava a PM, que só lhe aconselhava a deixar o RN, porque era uma mulher sozinha com uma filha. Minha filha é bastante parecida com o pai, durante a fundação do GTNM (original) do qual fomos membros e fundadoras, ela era chamada, pelo Coronel Morais, que perdeu uma filha para a ditadura, de “Cerveirinha” (ele conheceu meu marido no Exército), por ter herdado do pai, extremo otimismo, determinação e bondade – além de uma infinita fé no ser humano.
Como dizia, as coisas pioraram, pedíamos para Neusah deixar o RN, mas por conta da sua imensa independência, não aceitava abandonar os empregos e nem simular uma doença para obter uma licença.

Sempre viveu modestamente, por escolha própria, organizada com suas contas. Adotou crianças que ninguém queria, embora já fosse mãe biológica e pudesse continuar a ser.
Amigos que reconheciam e reconhecem sua competência, tentaram ajudá-la a entrar numa Universidade Pública no sul ou sudeste. Era sempre recusada porque teimava em não abrir mão de suas convicções e objetivos humanistas.
Até que, no dia 18 de julho sofreu um grave atentado em Natal. Prestou queixa na 1ª Delegacia de Polícia de Parnamirim-RN, fazendo um BO. Resultou inútil. No dia 23, chegou em casa e encontrou tudo aberto, a cachorrinha desmaiada. Nada de valor foi levado. Apenas documentos pessoais, álbuns dela com seu pai no exílio, sua filmadora e alguns que ela pretendia encaminhar para a Comissão da Verdade. A casa estava um caos. Fez outro BO na 1ª DP de Parnamirim, onde o delegado prometeu uma perícia que nunca aconteceu. No dia 30/07, novo atentado e invasão da casa – dessa vez com minha filha e neta dentro de casa e tiros. Neusah chamou a PM, que compareceu 3 horas depois, ficando 5 minutos, aconselhando-a, como sempre, a ir embora. Minha filha fez outro BO na 1ª DP, onde foi muito mal recebida. Devo relatar também que uns dias antes, se intensificaram as ameaças, e chegou a ocorrer nova invasão da casa e destruição da cerca elétrica que tinha acabado de ser consertada. Neusah não deu queixa policial, porque era período de provas bimestrais de seus alunos.
Começaram a se intensificar as denúncias de seus companheiros e minhas também, temendo por sua vida. No dia 31/07 Neusah recebeu um telefonema de uma senhora chamada Vanezza, dizendo que era da parte da Presidência da República, que ela e sua filha arrumassem uma pequena mochila, não levassem computadores, nem celulares, que seriam retiradas do RN e levadas a Brasília. Disseram que seriam retiradas pela Polícia Rodoviária Federal, discretamente, e inclusive forneceram os nomes dos agentes. Forneceram-lhe por mensagem dois telefones para que ligasse assim que chegasse a seu destino. Minha filha já tinha tomado a decisão de pedir asilo político (para o que já se realizavam os trâmites), mas ela pediu minha opinião e eu pedi a ela que fosse, que desse uma chance… Ela foi. Foi montado um verdadeiro aparato de guerra, com metralhadoras, quando ela e minha neta foram retiradas de casa. Foram numa viatura seguida por outras. Para surpresa de minha filha, não foi levada ao aeroporto e sim a uma pousada no Bairro de Ponta Negra, cuja localização é mais perigosa que sua casa.
Chegando lá, com a polícia, foram instaladas num apartamento que dava para um descampado. De manhã foram abrir a janelas e foram fotografadas. Resumindo, Srª Presidente, minha filha ligou para os “telefones secretos” que lhe foram dados. Atendeu uma pessoa que não correspondia aos nomes que lhe deixaram. O Hotel lhe comunicou que deveria sair até o meio dia. Ficou aguardando, quando ligaram “as pessoas que se diziam secretas” argumentando que ficaria até sexta e que poderia sair à vontade para almoçar ir ao banco. Neusah, contou que já estava localizada. Nada demoveu aquelas pessoas. Neusah e sua filha pediram um lanche no quarto. Após a ingestão ambas ficaram bem doentes. Estavam sem dinheiro porque minha filha tinha medo de sair e sua filha ser morta ou sequestrada.
No terceiro dia de cativeiro, sem comer, doente e tomando água da torneira, minha filha conseguiu me ligar pelo celular, alegando, para isso, estar doente. Pediu que a gerente do Hotel fosse a seu quarto com o resumo da fatura e esclarecimento de quem fez as reservas. Estarrecida ficou sabendo que a Pousada era da sobrinha da Governadora do Estado do RN que, inclusive, conhecia e lhe forneceu a reserva que, segundo a documentação, havia sido feita por ela mesma, Neusah Cerveira, por apenas uma diária. Posteriormente paga, por uma sigla desconhecida com pedido de nota fiscal eletrônica, por e- mail da Srª Josy Campos. A proprietária, inclusive, perguntou por que ela tinha sido trazida pela polícia e, chamando-a de Drª Neusah Cerveira, disse-lhe: “já falei para minha tia da sua presença aqui na nossa Pousada” (a tia, no caso, é a governadora do DEM, Rosalba Ciarline, inimiga política de minha filha e de todos os defensores dos direitos humanos). Começamos então, ligar com insistência para autoridades possíveis de Brasília para que a resgatassem dali. Já sabíamos – e isso Neusah tinha informado – que seus perseguidores eram pistoleiros de aluguel de uma cidade do RN, famosa por esses tão pouco ilustres moradores, que tem até uma tabela de preços para assassinatos por encomenda!
Srª Presidente, só conseguimos que alguém aparecesse lá no dia 03/08.
Disseram a minha filha que seria ouvida pelo Procurador da República, o que efetivamente aconteceu. Posteriormente, disseram que agentes da Força Nacional, iriam com Neusah e sua filha (ainda fracas e com infecção gastrointestinal). Só que indicaram que fossem num camburão da Polícia Rodoviária Federal, pois os outros iriam fazer uma vistoria e a perícia do local e do carro.
Elas foram, e chegaram novamente ao escurecer, como criminosas em sua casa, que estava com a porta da frente aberta. Logo depois, chegaram três senhoras de táxi e mais três senhores com a camiseta da Força Nacional. Tiraram algumas fotos e disseram que elas ficariam ali. Não adiantaram os protestos de minha filha, para que levasse ao menos minha neta. Quando Neusah percebeu que nada poderia ser feito, pediu um telefone, já que jamais ninguém lhe mostrou uma credencial. Ao contrário, enquanto minha filha prestava o depoimento para o Procurador, a Srª Vanessa ficou na sala, e por duas vezes pegou o celular da minha filha e ficou lendo suas mensagens e telefonemas, fotos, coisas pessoais. Neusah pediu para conversar a sós com o Procurador, que mesmo contrariando as referidas senhoras, aceitou. Toda hora a Vanezza abria a porta, tentando interromper essa conversa, cujo teor não levarei a público. Não agora.
Neusah, já tinha procurado inclusive a OAB/RN onde prestou depoimento e lhe foi recusada uma cópia – o que podemos comprovar. Disseram que o Presidente da Comissão da Anistia da OAB, não podia perder tempo, morava em outra cidade, tinha que cuidar de sua sobrevivência e era um voluntário.

Minha filha ficou sozinha na casa com sua filha. Fazia tempo que dormia por sua conta e dinheiro em pousadas o que voltou a fazer agora. Ontem tiveram que dormir em casa porque quando seus “protetores” foram embora, era muito escuro e perigoso para sair.
Antes de sair, a Srª Vanezza deu a minha filha R$192,00 e lhe pediu que assinasse uma diária de 300. Minha filha assinou. Estava tão debilitada que nem se preocupou mais com isso. Na verdade esses 192 reais pagos com cartão de crédito da minha filha foram motivados pelos muitos telefonemas a cobrar dados aos “telefones secretos” e recebidos dos mesmos telefones. Eu fiz questão e recomendei a minha filha guardar esses 192 reais em espécie, que foram trocados num pequeno comércio vizinho. Ao abandonarem minha filha em sua casa, à mercê da própria sorte, a Srª Vanezza, a pedido dela, deixou rabiscado no caderno de minha neta, um número de telefone que é o da Delegacia Geral de Natal que só atende de dia e de um governo inimigo: (84) 32327673 – disse que se tentassem outra coisa ligasse para esse número Mas, porque Neusah assinou um recibo de diária de 300 reais?
Hoje minha filha e minha neta foram ao mesmo comércio e ouviram dos vizinhos que esperam que tudo corra bem, que “qualquer um pode ser preso!”, “quem sabe confundiram sua mãe com uma traficante?”. Disseram a minha neta que tudo vai dar certo. Consolaram-na pela prisão!
Então eu pergunto Presidente Dilma Rousseff: isso vai ficar assim? A quem responsabilizo, por tanta incompetência ou maldade? Minha filha vai perder o emprego porque estava “protegida/presa” por defender os direitos humanos e a memória de seu pai?
Faço-lhe um pedido, Presidente: tire minha filha e minha neta do RN e resgate pelo menos a memória recente! Minha filha vai passar por suspeita de ter sido presa como traficante, ou outra coisa? Vai ser morta? Deve pedir asilo? Não querem mais minha filha no Brasil? Não precisam matá-la. Em cinco dias fiquei com os cabelos totalmente brancos! Esse país não devolve os restos mortais do meu marido e agora quer matar minha filha por perseguir essa demanda com obstinação.
Sem mais,
Saudações
Maria de Lourdes Romanzini Pires Cerveira
(Historiadora)
Rio de Janeiro, 04/08/2012
Peço que divulguem amplamente!
Um outro mundo é possível. Um outro Brasil é necessário.

Fonte: Revista Fórum

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