novembro 13, 2014

"Reeleição de Dilma não é um cheque em branco. Entrevista especial com Adriano Pilatti" (IHU)

PICICA: "“O jogo do ‘ou nós ou eles’ acabou funcionando para fins eleitorais, e é próprio de eleições em dois turnos. Para o PT, penso que a estreiteza da vantagem indica mesmo que ‘acabou o amor’. Se suas bases e seus dirigentes tiverem juízo, devem aprender com o susto”, pontua o sociólogo."

Reeleição de Dilma não é um cheque em branco. Entrevista especial com Adriano Pilatti

“O jogo do ‘ou nós ou eles’ acabou funcionando para fins eleitorais, e é próprio de eleições em dois turnos. Para o PT, penso que a estreiteza da vantagem indica mesmo que ‘acabou o amor’. Se suas bases e seus dirigentes tiverem juízo, devem aprender com o susto”, pontua o sociólogo.
Foto: www.megaradio.fm

As eleições presidenciais revelam que “as forças que se traduziram nessas candidaturas se aproximaram nas suas práticas e nos seus compromissos com o status quo”. PT e PSDB, apesar das diferenças, representam “hoje duas facções de um mesmo ‘partido da ordem’, uma mais conservadora, outra mais ‘progressista’”, avalia Adriano Pilatti na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail.

Para ele, o resultado das eleições não demonstra um país dividido, mas uma “tripartição no âmbito da competição eleitoral, não certamente no âmbito do país real, muito mais complexo e diversificado”. O que o processo eleitoral “efetivamente demonstrou foi o tamanho da crise da representação entre nós. ‘Vermelhos e azuis’ envelheceram, não expressam a multiplicidade do Brasil real, padecem ambos de uma espécie de ‘fadiga dos materiais’”, pontua.

Pilatti também chama a atenção para outra divisão que costuma indicar o resultado das eleições: os votos de pobres e ricos. “Traduzir o resultado eleitoral exclusivamente por esse prisma é um certo exagero: se apenas os ricos tivessem votado em Aécio, a vitória de Dilma não teria sido tão apertada, essa é uma das verdades incômodas desse processo”. E alfineta: “Por outro lado, parece que foi assim que uma larga porção dos pobres a compreendeu, a partir dos ‘estímulos grosseiros, porém eficazes’ da propaganda governista, e do ‘prontuário’ antipovo da oposição de direita e de boa parte, não a totalidade, de seu eleitorado”.

Pilatti enfatiza que a presidente reeleita “deveria saber muito bem que não recebeu agora um ‘cheque em branco’, que foi eleita justamente pelo voto da esquerda não petista ou ex-petista, que tem contas a pagar”. Segundo ele, ainda é cedo para avaliar se o “voto crítico” que elegeu Dilma terá algum impacto nas políticas a serem adotadas pelo governo. “São respostas que cabe ao PT, mais especificamente à esquerda do PT, dar. Pessoalmente, sou cético: até quando pretende ‘promover’ a participação popular, a presidente o faz por decreto, ou seja, por ato monocrático, unilateral e vertical. A estratégia que parece estar em curso soa mais a tentativa de cooptação, de amestramento, de captura”, lamenta. E dispara: “A esquerda do PT precisa salvar seu partido da degradação que o governismo lhe está impondo: ou a esquerda do PT acaba com a hegemonia do governismo ou a hegemonia do governismo acaba com o PT, pois tende a transformá-lo numa espécie de PRI mexicano, numa espécie de PCI/PDS/PD italiano, num novo ‘PMDB’”.

Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com Pós-Doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte — Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 — Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).

Foto: puc-riodigital.com.puc-rio.br
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como interpreta o resultado das eleições presidenciais, com a reeleição de Dilma por uma diferença de pouco mais de 3% em relação a Aécio?

Adriano Pilatti - Talvez a exiguidade da margem revele o quanto as forças que se traduziram nessas candidaturas se aproximaram nas suas práticas e nos seus compromissos com o status quo. Penso que não seria exagero supor que “vermelhos” e “azuis”, inobstante suas inegáveis diferenças, representem hoje duas facções de um mesmo “partido da ordem”, uma mais conservadora, outra mais “progressista”. Ambas interessadas em restringir as opções, na competição representativa, às duas alternativas que expressam, como se tentassem represar o poder constituinte na estreita arena do poder constituído. Foi o que passaram a campanha toda a dizer: “só existimos nós e eles, tertius non datur”...

Mas felizmente o espectro “cromático” é infinitamente mais rico, e isto nenhuma dessas correntes soube interpretar adequadamente. De outra parte, a exiguidade da margem reflete também uma polarização que foi levada ao paroxismo, e não exatamente por meio do uso dos métodos mais aceitáveis. Mas o jogo do “ou nós ou eles” acabou funcionando para fins eleitorais, e é próprio de eleições em dois turnos. Para o PT, penso que a estreiteza da vantagem indica mesmo que “acabou o amor”. Se suas bases e seus dirigentes tiverem juízo, devem aprender com o susto.

IHU On-Line - Compartilha da análise de que o país está dividido? Em que aspectos o país estaria dividido? É possível falar de uma divisão clara entre pobres e ricos?

Adriano Pilatti - Se considerarmos o montante de votos nulos, em branco e abstenções, na realidade o que se tem não é uma divisão, mas uma tripartição. Uma tripartição no âmbito da competição eleitoral, não certamente no âmbito do país real, muito mais complexo e diversificado. De resto, a lógica do segundo turno é mesmo essa, como disse, mas não se pode tomá-la como expressão da realidade total. Aliás, penso que o que esse processo eleitoral efetivamente demonstrou foi o tamanho da crise da representação entre nós.

“Depois de junho de 2013, ‘nada será como antes’, sobretudo as eleições”

“Vermelhos e azuis” envelheceram, não expressam a multiplicidade do Brasil real, padecem ambos de uma espécie de “fadiga dos materiais”. Penso que, depois de junho de 2013, “nada será como antes”, sobretudo as eleições. Cresce o número dos que não aguentam mais essa eterna redução do conflito a esses termos envelhecidos.

Já a divisão entre pobres e ricos existe, claro, e não só aqui nem apenas agora: patriciado e plebe na Roma antiga, grandes e pequenos na Renascença interpretada por Maquiavel, proprietários e não proprietários na América dos Federalistas, burguesia e proletariado na velha tradição marxista. Mas daí a traduzir o resultado eleitoral exclusivamente por esse prisma é um certo exagero: se apenas os ricos tivessem votado em Aécio, a vitória de Dilma não teria sido tão apertada, essa é uma das verdades incômodas desse processo. Por outro lado, parece que foi assim que uma larga porção dos pobres a compreendeu, a partir dos “estímulos grosseiros, porém eficazes” da propaganda governista, e do “prontuário” antipovo da oposição de direita e de boa parte, não a totalidade, de seu eleitorado.

IHU On-Line - Qual é o significado político dessa eleição para o PT e para o PSDB? Como esses partidos saem da eleição?
 
Adriano Pilatti - Como protagonistas aparentes de um conflito em que o eixo efetivo é esse “grande PMDB”, esse vasto “Centrão” que secularmente domina a política representativa. Saem ambos chamuscados e ainda mais dependentes de um circuito que os atravessa, ultrapassa e cada vez mais os homologa. Penso que estamos no limiar de uma “virada de página” que os ultrapassará a ambos. E ambos parecem ter percebido essa ameaça, por isso acabam jogando um jogo em que são ao mesmo tempo oponentes e parceiros: prolongar essa polarização ao infinito, não permitir que outras forças se constituam, se expressem e possam assim invadir a “praia” eleitoral que ambos pretendem oligopolizar.

IHU On-Line - As abstenções somaram mais de 25%. Como interpreta esse dado entre os que votaram nulo e em branco? O que esse fenômeno indica acerca da política brasileira e dos projetos apresentados pelos políticos?

Adriano Pilatti - Há um país que não mais aceita se deixar representar pela pobreza desse modelo binário. Há um país cansado das superstições representativas, cansado de assinar cheques em branco para “Arena” ou “MDB”, um país ávido de novas formas de expressão, participação e representação. Essa é a verdade profunda que se vem afirmando pelo menos desde junho de 2013.

IHU On-Line - Pós-eleições tem sido feitas interpretações de como as manifestações do ano passado repercutiram nas urnas. Qual sua posição sobre esse ponto?

Adriano Pilatti - Muitos passaram todo esse tempo a se perguntar onde estavam as ruas, como se o joguinho eleitoral pudesse conter e traduzir tudo o que de novo vem se constituindo exatamente a partir da recusa em se deixar aprisionar por — e se reduzir a — esses processos. Penso que as ruas estavam em todo o lugar, como o sertão de Rosa: nas abstenções, nos votos brancos e nulos, em outras candidaturas que não as hegemônicas, na candidatura que conserva a mística da identidade popular, no voto útil do segundo turno.

Sobretudo na demanda crescente e irreprimível por participação direta, por novas formas de organização, por novas instituições democráticas, enfim. Essa é exatamente a riqueza, a multiplicidade e o conjunto de contradições que têm se expressado nas manifestações. Essa é a essência do poder constituinte, que sempre excede, atravessa e ultrapassa os poderes constituídos e suas competições intramuros.

IHU On-Line - O senhor está entre os intelectuais que criticam a criminalização dos movimentos sociais, dos indígenas e quilombolas pelo Estado. No ano passado, o Brasil assistiu tal criminalização com os movimentos, com os índios e com protestos da copa. À luz desses fatos, como interpreta a reeleição de Dilma e o apoio que ela recebeu, inclusive, de movimentos e críticos de sua postura?

Adriano Pilatti - Realmente muitos optaram pelo “mal menor”, por escolher o adversário menos letal do ponto de vista dos movimentos, e me incluo entre estes. Mas a vencedora deveria saber muito bem que não recebeu agora um “cheque em branco”, que foi eleita justamente pelo voto da esquerda não petista ou ex-petista, que tem contas a pagar. Só que duvido que ela tenha a clareza, a humildade e a grandeza de compreender isso por si mesma. Setores da esquerda do PT e o próprio ministro Gilberto Carvalho parecem estar se esforçando em ajudá-la a alcançar tal descortino, mas não sei se conseguirão: o salto é muito alto, a mentalidade é muito tecnocrática, a postura é muito autossuficiente, e a alma parece longe de não ser pequena... A ver.

IHU On-Line - A chamada "crítica à esquerda" será suficiente para que o PT assuma outra postura com os movimentos sociais e as manifestações de rua? Ou tal crítica só terá como efeito a reeleição de Dilma? Ainda nesse sentido, depois da cooptação dos movimentos e da criminalização, que diálogo vislumbra entre a presidente e manifestantes?

Adriano Pilatti - São respostas que cabe ao PT, mais especificamente à esquerda do PT, dar. Pessoalmente, como disse há pouco, sou cético: até quando pretende “promover” a participação popular, a presidente o faz por decreto, ou seja, por ato monocrático, unilateral e vertical. A estratégia que parece estar em curso soa mais a tentativa de cooptação, de amestramento, de captura. Quando se escolhe como interlocutores certos atores que tentaram “vender” a rua, que não se vende nem se compra, quando se encena diálogos que são monólogos com organizações e movimentos subsidiados pelo governo servindo de plateia e claque, o sinal que se dá é esse. Quando se silencia diante da absurda repressão a manifestantes, quando se colabora com essa repressão, quando se ameaça estender a todo o país um modelo de militarização da segurança e da justiça, os prognósticos não podem ser otimistas. Até aqui o recado parece ser: “aos maleáveis, mesada; aos renitentes, cacete”, vamos ver.

IHU On-Line - Por quais razões o PT não conseguiu romper com a lógica da militarização nas ruas?

Adriano Pilatti - Essa é outra pergunta que cabe ao próprio PT responder. Como tantos e tantas, estou curioso e ávido pela resposta.

“Há um país que não mais aceita se deixar representar pela pobreza desse modelo binário”

IHU On-Line - Como vê o fato de o discurso do "menos pior" ser decisivo nas eleições? O que isso revela sobre os partidos e a política brasileira? Quais os desafios postos à esquerda ou à social democracia diante do atual quadro político brasileiro?

Adriano Pilatti - Que esse modelo de tradução dos conflitos reais em competição eleitoral e partidária está se esgotando, como disse antes, mesmo se considerarmos que o voto útil ou a opção pelo que se considera menos negativo faz parte do jogo de qualquer eleição em dois turnos. As esquerdas insurgentes precisam avançar em novas formas de organização, partidária ou não.

a esquerda do PT precisa salvar seu partido da degradação que o governismo lhe está impondo: ou a esquerda do PT acaba com a hegemonia do governismo ou a hegemonia do governismo acaba com o PT, pois tende a transformá-lo numa espécie de PRI mexicano, numa espécie de PCI/PDS/PD italiano, num novo “PMDB”, enfim. Já o campo conservador continua carente de uma alternativa liberal-democrática civilizada, como a que no passado recente se expressou em lideranças como Covas, Ulysses, Montoro, etc. A direita brasileira se acanalhou.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Adriano Pilatti - Precisamos avançar nas formas de organização horizontal, de participação direta e autônoma. E os brucutus de ambas as cores deveriam saber que isso tem menos a ver com “bolivarianismo” e outras fantasias, sejam elas fantasias desejantes ou paranoicas, do que com os processos decisórios que há muito caracterizam sistemas como até mesmo o norte-americano. Vemos isso a cada dois anos por lá: a variedade de decisões sobre políticas públicas e legislação que, em seus estados, os cidadãos da federação americana, que é real e não nominal como a nossa, decidem diretamente. Naquelas cédulas em que o menor (e menos importante) espaço está reservado às escolhas de candidatos. São processos decisórios diretos que fazem soar ridícula a decantada “democracia participativa” introduzida pela Constituição de 1988, mas jamais efetivada pelos poderes constituídos. Avançar nisto já seria um bom começo.

Fonte: IHU

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