PICICA: "Nós precisamos revogar a licença
social que os estupradores tem pra atuar. Precisamos parar de perguntar
“Porque a gente acha que ele não sabia que ela não deu permissão?” que,
sinceramente, é a primeira pergunta que fazemos nessa situação.
Acima de tudo, como questão cultural – deixando de lado a questão
jurídica – precisamos adotar a perspectiva de que interações sexuais
devem sempre acontecer em um estado de consentimento expresso de todos
os participantes; que qualquer outra coisa é anormal. Se alguém
diz “Eu sofri uma violência sexual”, a primeira pergunta deveria ser
“Porque a outra pessoa continuou a atividade sexual quando a/o
parceira/o não queria?”"
Este
é um post sobre como não encorajar estupradores. Sobre como, através
das suas atitudes, você pode diminuir as chances de que um estupro
aconteça. Ele é baseado em estudos americanos a respeito do modus
operandi de estupradores, além de estudos ingleses e australianos sobre
estupro. No entanto, ao contrário da maioria dos conselhos circulando
por ai a respeito disso, esse não tem nada a ver com o tamanho da sua
saia. Ou com quem você sai, a que horas ou para onde. Ou com quanto
interesse você demonstra em sexo. Na verdade, nem tem nada a ver com
você ser mulher. Homens, prestem atenção: vocês podem contribuir tanto
quanto as mulheres para desencorajar estupradores. Provavelmente, podem
até contribuir mais.
É importante lembrar que o fato dos
estudos aqui citados terem sido realizados em outros paises, não
invalida sua aplicação à realidade brasileira. Embora não haja estudos
do tipo no Brasil, nossa cultura é suficientemente parecida com a
cultura destes países no que se refere aos principais fatores que
influenciam o modus operandi de estupradores. Temos os mesmos mitos
sobre estupro, a mesma idéia de “estupro verdadeiro” como apenas o
estupro violento praticado por estranhos, temos a mesma cultura de
culpabilização da vítima pelo estupro, e a mesma tendência a julgar e
rotular mulheres por demonstrar interesse em sexo. Temos também a mesma
cultura no que diz respeito a condicionar as mulheres a não dizer “não”
de forma direta, principalmente no que se refere a um pedido sexual e/ou
romântico por parte de um homem.
Nossa narrativa clássica sobre estupro tem pouco a ver com a realidade
Responda rápido: o que vem á sua cabeça
quando se fala em estupro? Provavelmente, é a imagem de um homem armado
atacando uma desconhecida, em algum lugar escuro e deserto. Afinal, essa
é a narrativa clássica de estupro, aquela que nos acostumamos a ver
como “estupro de verdade”. No entanto, esse não é o tipo mais comum de
ataque, inclusive por uma razão muito simples: nós mulheres somos
ensinadas desde muito cedo a vigiar nosso comportamento a fim de “evitar
um estupro”. Quantas mulheres vc conhece que andam por aí de madrugada
sozinhas, de salto alto e minissaia? Na verdade, nos EUA, 70% dos estupros são cometidos por alguém que a vítima conhece. No Brasil, embora haja menos dados a respeito, dados recentes revelam que, por exemplo, dos 16 estupros por dia registrados no Estado do Rio de Janeiro em 2012, a maioria foi cometido por amigos ou conhecidos e pesquisa
de vitimização do instituto Ilanud revelou que 35% dos estupros ocorrem
dentro de casa, e que armas são usadas apenas em 18% dos casos, o que
revela uma facilidade do agressor em abordar a vítima. Não deveria
ser surpresa pra ninguém. Afinal, amigos e conhecidos tem mais acesso á
vítima, contam com a confiança dela e tem mais chances de intimidá-la
para que ela não os denuncie.
Por que, então, o tipo mais comum de
estupro não é visto como a regra? Por que as “dicas para evitar estupro”
parecem sempre presumir um agressor desconhecido, que vai atacar
violentamente a mulher em um beco, ou que vai drogar sua bebida? A
maioria das dicas que correm por aí não são apenas em grande parte
ineficientes contra o estupro por desconhecidos (muitas mulheres, p.ex:
não podem se dar ao luxo de evitar esperar pela condução em pontos de
ônibus desertos, ou percorrer o caminho do trabalho até em casa a pé, em
ruas mal iluminadas), elas partem de dois pressupostos errados: o de
que muitos estupros são “mal-entendidos” e o de que certas atitudes da
mulher são “tentadoras” demais para que o homem possa se controlar.
Esses dois falsos pressupostos permeiam
praticamente todo o debate sobre estupro porque, a princípio, eles
parecem verdadeiros, quase intuitivos. Afinal, se uma mulher está se
comportando de uma forma que parece indicar interesse em sexo, é
possível que o homem interprete tais sinais de forma errada, certo?
Aceitar ir para a casa de um homem após um encontro, aceitar ir para o
motel com um desconhecido após uma noite de beijos e carícias, aceitar
uma carona de um colega de trabalho após meses de flerte…todos estes são
comportamentos que aprendemos a interpretar como indicadores de
disposição para uma relação sexual. Não é difícil de acreditar que falta
de comunicação leve um homem a iniciar o contato sexual, presumindo que
a mulher assim o deseja, e que ela em nenhum momento diga “não”,
levando a um trágico mal-entendido no qual uma mulher se sente estuprada
sem que o parceiro tenha tido a intenção de estuprá-la, certo? Na
verdade, se torna cada vez mais difícil de acreditar quanto mais a gente
se lembra de como a comunicação humana funciona. A maioria de nós já
passou por ao menos uma situação na qual expressamos, ou vimos alguém
expressar, a falta de interesse em algo sem empregar em nenhum momento a
frase “Não quero fazer isso”.
Estudos
de “análise de conversação” conduzidos por Ktizinger e Frith no Reino
Unido e O’Bryne, Hansen e Rapley na Austrália demonstraram dois fatos
muito importantes a ser levados em consideração quando se discute
alegações de “mal-entendido” e “falta de comunicação” culminando em
estupro. Uma é a de que mulheres são ensinadas a não recusar
diretamente propostas sexuais ou românticas. As mulheres entrevistadas
relatam que dizer “Não estou interessada em você” seria percebido como
“rude” e “arrogante”, que elas se sentiriam “mimadas/frescas” se
fizessem isso, e que em geral suas recusas eram apresentadas de forma a
demonstrar uma “inabilidade” de atender á vontade do rapaz (“não posso”,
em lugar de “não quero”). A segunda é a de que os homens participantes
do estudo eram perfeitamente capazes de entender tais respostas,
juntamente com os sinais não-verbais que as acompanham (hesitação,
silêncio, etc.) como recusas. O estudo de O’Bryne, Hansen e Rapley é
particularmente interessante por demonstrar que, quando perguntados
sobre como eles percebem a falta de interesse de uma mulher em fazer
sexo ao final de um encontro, nenhum dos exemplos fornecidos pelos
participantes icnluiu uma recusa explícita. É também digno de nota o
fato de que estes homens declararam que, quando eles recusam sexo,
também recorrem a frases que, embora mais diretas do que as femininas,
também não contém a palavra “não” ou a expressão “não quero fazer sexo
com você”, revelando que recusas diretas não são consideradas
necessárias por eles para expressar/compreender a falta de interesse
sexual.
Parece claro, então, que
“mal-entendidos” resultando em estupro não são tão comuns assim, mesmo
quando a mulher demonstrou em algum momento, ou parece ter demonstrado,
interesse em sexo. Mesmo assim, tais fatores influenciam o estupro,
certo? Afinal, roupas e comportamentos “provocantes” despertam o desejo
sexual do estuprador, aumentando as chances dele decidir estuprar.
Muitas pessoas acreditam, inclusive, que o estupro parte de um desejo
sexual descontrolado do agressor, que não consegue se controlar ante a
visão da “sensualidade” feminina e é dominado por seus instintos (embora
sejam raras as ocorrências de estupros em circunstâncias nas quais o
agressor corre o risco de ser flagrado no ato, embora mulheres usem
roupas “sensuais” diariamente nos mais variados locais. O tal “instinto
incontrolável” parece convenientemente só se manifestar quando não há
muito risco de consequências negativas).
Tais mitos sobre estupros são muito
úteis para estupradores. Eles fornecem um roteiro de como agir para não
ser condenados pela agressão. Basta examimar um estudo recente conduzido
na Universidade de Leicester, na Inglaterra, que demonstrou que homens tem mais facilidade de admitir que estuprariam quando a vítima hipotética usa saia curta, bebe álcool e é extrovertida.
Os resultados do estudo foram reproduzidos internet afora, mas pouca
gente parece ter compreendido o que realmente estava sendo pesquisado
(basta observar o titulo do artigo em português na Hype Science, que
declara “Mulher que usa minissaia tem mais chance de ser estuprada”). O
estudo não mediu incidências reais de estupro entre a população (se
medisse, veria que
existem indícios de uma correlação negativa entre roupas “sensuais” e
estupro, pois muitos agressores dão preferência a mulheres com baixa
autoestima, e sensualidade costuma ser interpretada como sinal de
autoconfiança). O que ele mediu foi a facilidade com que os homens
estudados admitiam a disposição de recorrer á coerção sexual (medida em
vários níveis, sendo 1 ser convidado para a casa da mulher e 27 o que é
entendido como estupro propriamente dito). Não há que se falar aqui em
nenhum instinto sexual despertado pela visão da mulher, já que a suposta
“vítima provocante” sequer existia. Tampouco em “mal-entendidos”
provocados por um comportamento que, supostamente, indicou que a mulher
queria sexo. Estes homens estavam em um ambiente controlado, respondendo
a um questionário, e sendo explicitamente questionados a respeito das
circunstãncias nas quais forçariam o sexo. Antes de acreditar na pouco
plausível teoria de que tais homens sabem de antemão em qual situação se
veriam “dominados pelos instintos” a ponto de “não conseguir evitar”
estuprar, é necessário examinar a hipótese de que eles se sentiram mais á
vontade para admitir um estupro hipotético quando a vítima se encaixava
no estereótipo de “mulher que provocou”. Estes homens passaram a vida
inteira ouvindo que certas mulheres são ao menos parcialmente
responsáveis por seus estupros. E aprenderam a lição: certos estupros
são mais aceitáveis.
Estratégias de estupradores: se aproveitando da cultura de culpabilização da vítima
Em uma sociedade que repetidamente
apresenta a idéia de que certos tipos de estupro são mais aceitáveis e
certas vítimas mais culpadas pela violência que sofrem, não é difícil
entender como certos agressores desenvolvem estratégias para estuprar
com maior chance de impunidade. É o que demonstram dois estudos
americanos, um deles conduzido em 2002, com estudantes universitários, e
outro em 2009, com integrantes da Marinha. Tais
estudos demonstram que apenas 7% dos estupradores atacavam somente
desconhecidas; mais da metade atacava somente mulheres que conhecia;
mais da metade embriagava suas vitimas propositadamente. Outra
revelação assustadora do estudo foi a de que um número pequeno de homens
estuprava repetidamente. 4% dos homens entrevistados para o estudo de
2002 haviam cometido, quando somados, 400 estupros (tentados ou
consumados), quase 30% de todos os estupros autoreportados pelos
participantes. Dentre os entrevistados em 2009, 8.4% eram responsáveis
por 95% de todos os estupros autoreportados. Um dos autores do estudo de
2002, David Lisak, é autor de um estudo de 2008 baseado em pesquisas
anteriores, tanto de sua autoria, como de outros autores, que traz dados
muito importantes para o entendimento do problema, entre eles o de que
estupradores, tanto os encarcerados como os não detectados, “tem mais
raiva de mulheres, são mais motivados pela necessidade de dominar e
controlar mulheres, são mais impulsivos e desinibidos em seu
comportamento, mais hipermasculinos em suas crenças e atitudes, tem
menos empatia e são mais antisociais”.
Nas palavras de Thomas Macaulay, autor de uma brilhante análise desse estudo no blog Yes Means Yes:
“Homens com uma visão rígida a respeito de papéis de gênero e com
raiva de mulheres são superrepresentados entre estupradores. [...] Caras
que parecem odiar mulheres…odeiam. Se eles parecem não gostar de
mulheres ou não as respeitar e enxergar mulheres como obstáculos a ser
superados…eles estão dizendo a verdade. É isso que eles pensam, e eles
vão cometer abuso se acharem que podem sair impunes.
Lisak não diz isso com todas
as letras, mas tendo estudado com profundidade seu trabalho, eu
realmente acredito que a maior diferença entre os estupradores que estão
na cadeia e os que estão soltos é que os primeiros não conseguiram ou
não quiseram utilizar apenas táticas que representassem baixo risco. Os
estupradores não detectados em sua grande maioria usam pouca ou nenhuma
força, em geral usam bebidas alcóolicas e estupram mulheres que eles
conhecem. Eles criam situações nas quais nossa cultura vai protegê-los,
arrumando desculpas para o comportamento deles e questionando ou negando
o relato de suas vítimas. Eu acredito que os estupradores que estão
presos são aqueles que usam as táticas que a sociedade está mais
disposta a reconhecer como estupro e menos disposta a justificar.
É o modus operandi que
mantém tais estupradores não detectados: eles identificaram corretamente
uma metodologia que os coloca sob a proteção da cultura de estupro. É
improvável que eles sejam condenados porque a história não se encaixa no
script [do que convencionamos como estupro "de verdade"]. É improvável
que eles sejam presos porque a história não leva a uma condenação fácil.
Aliás, é improvável que eles sejam denunciados porque as sobreviventes
do estupro sabem que as táticas que estes homens usam as deixam com
poucas chances de fazer justiça. Na verdade, tais estupradores podem
colocar a vítima em uma situação na qual ela está tão embriagada ou
apavorada ou simplesmente isolada e se sentindo derrotada que ela nunca
sequer diz “não” e, porque nossa cultura se recusa a reconhecer tais
táticas pelo que elas são, até as próprias vítimas podem só chamar de
estupro o que aconteceu muito tempo depois do fato, ou talvez nunca.”
Não é difícil entender como isso
funciona. Uma mulher pode se culpar pelo acontecido, acreditando que
“provocou” o estupro por suas roupas, seu comportamento, por ter bebido
demais. Ela pode refutar os avanços sexuais de alguém de várias formas,
inclusive fisicamente, porém sem jamais dizer a palavra “não” ou usar de
força (como, por exemplo, empurrar o agressor), e sentir que a culpa
foi sua por não ter deixado “claro o suficiente” que não desejava sexo.
Ela pode enxergar o ocorrido como estupro, porém jamais denunciar, seja
por vergonha de ter “contribuído” para ele, seja por saber que tem pouca
ou nenhuma prova da violência, que a chance de condenação é baixa, que
sua vida pessoal e seu comportamento antes, durante e após o crime serão
julgados, que ela pode ser vítima de represálias tanto por parte do
estuprador como dos amigos em comum que tem com ele, que vão culpá-la
por estar “arruinando a vida” de um pobre rapaz por causa de um simples
“mal-entendido” ou por um estupro que ela mesma “provocou”. Ela pode não
se lembrar do que aconteceu, e não ter certeza se sofreu ou não uma
violência, e não procurar saber o que aconteceu por vergonha das
circunstâncias, medo de cometer uma acusação falsa ou simplesmente por
saber que, ainda que um estupro tenha ocorrido, ela não dispõe de
provas. Ela pode sequer saber que certas violências configuram estupro,
imaginando, por exemplo, que “sexo” com uma pessoa desacordada não é
estupro (é sim), ou que sexo forçado durante um encontro ou por parte de
um namorado não é estupro (é sim), ou que não é estupro caso ela tenha,
a princípio, consentido com a relação sexual (a partir do momento em
que uma pessoa declara não desejar a relação, ou está incapaz de
consentir, é estupro). Ela pode ter a intenção de denunciar, mas
desistir após ouvir dos amigos e da família que ela teve culpa, que ela
provocou, que tudo não passou de um “mal-entendido”.
E é aí que você entra, leitor/a.
É aí que é possível o seu trabalho para não criar um ambiente no qual
estupradores se sentem seguros e sobreviventes se sentem sozinhas.
Não perpetue mitos sobre estupro. Quando você culpa uma vítima de
estupro porque a saia dela era muito curta ou o decote muito grande, ou
porque ela bebeu demais; quando você diz que uma mulher não pode
reclamar de um estupro quando demonstrou interesse sexual no agressor, o
estupro ocorreu após uma “ficada” ou um encontro, ou ela já havia feito
sexo com ele antes; quando você reage a uma notíicia de estupro com um
comentário sobre a “irresponsabilidade” ou “ingenuidade” de uma mulher
estuprada; quando você naturaliza o sexo forçado dentro de um
namoro…você está dizendo pras mulheres á sua volta que, caso elas sejam
estupradas nessas circunstãncias, você não vai ajudá-las. Que você vai
dizer que a culpa foi delas. Que, se você, que é amigo/a, irmã/o, mãe ou
pai, vai acusá-las de ser “vadias” ou “irresonsáveis” ou “burras”,
então as pessoas que não a conhecem, a polícia, a promotoria, o juiz ou
juíza, vão julgá-la de forma pior ainda. E, mais importante, você está
dizendo a todos os estupradores á sua volta que, caso eles estuprem uma
mulher nestas circunstâncias, você provavelmente vai defendê-los, e
acreditar neles quando eles disserem que foi apenas um mal-entendido ou
que eles não tiveram como se controlar, porque a mulher provocou.
Quando você diz que mulheres tem “que se
dar ao respeito” você está dizendo pras mulheres á sua volta que
respeito é um privilégio que elas tem que fazer por merecer, e não um
direito irrevogável de todo ser humano. Quando você conta ou compartilha
uma piada sobre estupro, principalmente uma piada cujo mote seja “A
mulher estuprada na verdade curtiu o estupro” você está dizendo pras
mulheres á sua volta que você não leva estupro a sério e que, dadas as
circunstâncias, você inclusive o acha hilário.
Quando você naturaliza e justifica uma
violência vista como menos grave, como o assédio verbal na rua, o
assédio sexual no ambiente de trabalho, o assédio sexual que parte do
professor, o assédio online, o assédio repetido do vizinho/colega de
trabalho/colega de faculdadeque não aceita “não” como resposta, quando
você diz que, lá no fundo, toda mulher gosta desse tipo de assédio,
quando você diz que a assediada, quando ficar “velha e feia”, terá
saudades dos dias em que desconhecidos mexiam com ela na rua…quando você
naturaliza e justifica a violência física que muitas vezes acontece em
ambientes de festa, nos quais homens passam a mão em desconhecidas,
arrancam beijos á força, cercam uma mulher em grupo e não a deixam ir
embora antes de coagi-la a um beijo….você está dizendo pras mulheres à
sua volta que existem certas violações do corpo e do espaço dela que não
são “nada demais”, que a recusa dela não precisa ser respeitada, que o
que ela tem a dizer sobre como aquela experiência a faz sentir não vale
nada (afinal, “todo mundo sabe” que, no fundo, no fundo, ela adorou a
atenção masculina).
Ah, e sabe aquele cara que tem problemas
com mulheres? Aquele que vive repetindo o quanto toda mulher é
interesseira, e só quer saber de homens com dinheiro/carro/posição
social? O que tira sarro de homens que tratam bem suas parceiras? O que
tira sarro de homens que se mostram apaixonados, ou que não traem a
companheira? O que acha que toda mulher bonita usa a aparência pra se
dar bem na vida ou que, no mínimo, é convencida e arrogante por conta da
beleza, e provavelmente usa as roupas/acessórios/maquiagem que usa só
pra alimentar o ego? O que vive rotulando mulheres como “vadias” por
conta do que vestem, de como agem, de com quem fazem sexo, e que vive
repetindo que mulher “tem que se dar ao respeito pra ser respeitada”? O
que chama toda mulher da qual não gosta de mal-comida? O que reage com
raiva a qualquer tentativa de falar sobre machismo ou privilégios
masculinos? O que encara a paquera ou o sexo como um jogo no qual o
homem “convence” a mulher a ficar com ele, por meio de elaboradas
táticas que mais parecem uma lavagem cerebral, e que partem sempre do
pressuposto de que ela quer ser dominada? (jogue no Google “sedutólogos”
se quiser ver links simultaneamente hilários e deprimentes…pra quem
fala inglês tb vale “PUA ou Pick Up Artists”) O que diz que a melhor
forma de seduzir é “pisar” nas mulheres? O que tem certeza de que mulher
gosta mesmo é de ser maltratada?
Sabe aquele cara que, em suma, “tem
raiva de mulheres, é motivado pela necessidade de dominar e controlar
mulheres” e “é hipermasculino em suas crenças e atitudes”? Pois é. Você
tem certeza de que quer manter esse cara perto de você e das mulheres da
sua vida?
“Eis o que a gente precisa fazer.
Precisamos identificar os estupradores, e precisamos acabar com as
estruturas sociais que dão a eles uma licença para atuar. Eles estão na
população, entre nós. Eles tem uma média de seis vítimas, mulheres que
eles conhecem, e portanto provavelmente algumas mulheres que você
conhece. Eles usam de força ás vezes, mas na maior parte do tempo
embriagam as vítimas. Eles não se viram por acidente num quarto com uma
mulher bêbada ou chapada demais pra consentir ou resistir; eles
planejaram estar lá e foi lá que eles acabaram.
Escute. As mulheres na sua vida vão
te contar quando os homens nos quais elas acharam que podiam confiar as
estupraram; se e quando elas souberem que você não vai negar o que elas
estão dizendo, que não vai culpá-las ou julgá-las. Deixa elas te
contarem que ficaram bêbadas, e acordaram com teu amigo em cima delas.
Escute. Não defenda o cara. Provavelmente não é a primeira vez que ele
fez isso. Provavelmente não vai ser a última.
Mude a cultura. Pra que possam
estuprar várias e várias vezes, esses caras precisam de silêncio. Eles
precisam saber que a combinação certa de fatores – a maior parte
consistente em álcool e em nossa tendência de envergonhar as pessoas por
desejarem/fazerem sexo – vai manter suas vítimas caladas. Se não fosse
assim, eles seriam identificados mais cedo e seria mais difícil
continuarem encontrando vítimas. As mulheres na sua vida precisam saber
que podem falar francamente com você sobre violência sexual. Elas
precisam ser capazes de te contar, e elas precisam saber que podem te
contar, sem ser julgadas, consideradas culpadas ou acusadas de estar
mentindo.
Escute. Os homens na sua vida vão te
contar o que eles fazem. Desde que a palavra com “E” não seja dita, os
estupradores se autodenunciam. O cara que enxerga como uma
“oportunidade” uma mulher bêbada demais pra saber onde está não tá
brincando. Ele tá te dizendo o que realmente pensa. O cara que diz “os
manos antes das minas”, o que diz que “os amigos tem que vir antes das
mulheres”, tá te pedindo pra fazer um pacto.
O Pacto. A estrutura social que
permite a predadores se esconderem á vista de todo mundo, sentarem no
bar na mesma mesa que todo mundo, levar uma vítima pra casa, estuprá-la,
e continuar no mesmo círculo social porque ela não pode ou não quer
contar pra ninguém o que aconteceu, ou porque ninguém faz nada se ela
contar. O pacto de arrumar desculpas, de procurar atenuantes, de botar
panos quentes na coisa – de acreditar que o que acontece com nossas
amigas – o que os nossos amigos fazem com as nossas amigas – não é
“estupro de verdade”.
Mude a cultura. Nós não vamos tirar
seis ou dez ou doze milhões de homens de circulação em pouco tempo, mas
se queremos diminuir a incidência de estupro, precisamos mudar o
ambiente no qual o estuprador atua. Escolha não ser parte de um ambiente
que apoia estupro. Piadas de estupro não são piadas. Piadas de ódio ás
mulheres não são piadas. Esses caras tão te dizendo o que eles realmente
pensam. Quando você ri junto pra ter a aprovação deles, você tá dando a
eles a sua aprovação. Você diz a eles que a licença social que eles tem
pra operar tá funcionando a toda força; que você vai manter o pacto de
virar a cara pro outro lado pra não ver as provas; de arrumar desculpas
pra eles; de presumir que foi um engano, que ele nunca fez isso antes,
que foi uma situação confusa. Você tá dizendo pra eles que eles não
estão correndo riscos.
Há pouco tempo atrás eu vi uma
palestra do James Galbraith – um economista muito admirado pelos
progressistas. Ele disse, entre outras coisas, “Primeira regra da
Economia: incentivos funcionam.” Ele estava se referindo a outro
contexto, mas isso se aplica ao estupro. A enorme prevalência de
estupros de conhecidas, e não de desconhecidas, e de estupros auxiliados
por embriaguez e não por força, e a relativa raridade de uso de armas e
danos físicos, é facilmente explicável. Os estupradores sabem o que
funciona. Eles gostam de estuprar, eles querem continuar estuprando,
eles não querem ser descobertos. Atende aos interesses deles estar
atentos a quais narrativas de estupro são consideradas verdadeiras e
quais são atacadas e saber quais vítimas e métodos oferecem o menor
risco.
O que eles fazem é o que funciona.
Eles estupram suas conhecidas embriagadas porque funciona. Eles estupram
suas conhecidas embriagadas porque nós deixamos.
Nós precisamos revogar a licença
social que os estupradores tem pra atuar. Precisamos parar de perguntar
“Porque a gente acha que ele não sabia que ela não deu permissão?” que,
sinceramente, é a primeira pergunta que fazemos nessa situação.
Acima de tudo, como questão cultural – deixando de lado a questão
jurídica – precisamos adotar a perspectiva de que interações sexuais
devem sempre acontecer em um estado de consentimento expresso de todos
os participantes; que qualquer outra coisa é anormal. Se alguém
diz “Eu sofri uma violência sexual”, a primeira pergunta deveria ser
“Porque a outra pessoa continuou a atividade sexual quando a/o
parceira/o não queria?”
É assim que são as coisas: acontecem
estupros de verdade quando o agressor está bêbado e a vítima está ainda
mais bêbada e sozinha e isolada. Isso é “estupro de verdade”. Se ele
sair impune, vai ser, na média,
estupro-estupro-estupro-estupro-estupro-estupro de verdade. Se nós nos
recusarmos a escutar, ele pode continuar fingindo que o estuprador é um
cara no estacionamento tarde da noite, quando na verdade é ele, no
quarto da nossa amiga meia hora depois que o bar fechou. Se a gente
deixar isso acontecer, somos parte do problema.
Os estupradores não podem ser seus
amigos, e se você é leal a eles, mesmo encarando as provas do que eles
fazem, você é cúmplice.
“Em outras palavras, procure as
táticas e interrompa o procedimento. Identifique o estuprador que está
deliberadamente embebedando a mulher ou tentado levar a mulher pra um
lugar que ela não conhece e no qual eles vão ficar sozinhos, e
intervenha. Um cara oferecendo uma carona pra uma mulher bêbada pode tar
só oferecendo uma carona, mas se ele continua insistindo mesmo depois
que outra pessoa já se voluntariou, isso deveria ser um sinal de alerta
pra todo mundo.
No meu último post sobre o trabalho
do Lisak eu disse que os homens precisavam escutar, e mudar a cultura
pra tirar dos estupradores a licença social que eles tem pra atuar. Eu
escrevi sobre a linguagem de atitudes de apoio que diz ao estuprador que
ele vão protegê-lo e confiar nele, e vão rejeitar, interrogar ou não
acreditar em sua vítima. Mas existe mais trabalho a ser feito, trabalho
mais concreto. Quem está por perto pode procuar o padrão e interferir no
padrao. Se um cara é hostil em relação ás mulheres e coloca muita
ênfase no sexo como conquista ou vitória, e ele está violando os limites
de uma mulher e tentando ficar sozinho com uma mulher embriagada, nós
não precisamos ter certeza do que ele está fazendo pra ficarmos
preocupados, e começarmos a dar a essa mulher meios de fuga desse
comportamento predatório.
[Por "meios de fuga" entenda-se meios de evitar que os dois fiquem
sozinhos, ou de manter/levar a mulher para um lugar seguro longe da
presença do possível agressor]
Se enfie no meio, se coloque no
caminho, e bloqueie o movimento dele. É concreto e é factível. Não é
necessário ser um herói pra fazer isso. Basta ser humano.”
Fonte: Bule Voador