janeiro 07, 2013

"O Mundo Jurídico, a Mulher e o Suicídio", por Hugo Albuquerque

PICICA: "No fundo, a questão não é, por suposto, moral. Não é um disputa sobre de quem é a culpa -- em sentido amplo, psicológico ou jurídico --, quem é a vítima, quem merece ser punido, quem mereceu o quê. É uma problemática que envolve a produção, o modo de produção contemporâneo, quais sujeitos e quais objetos são produzidos, tanto para trabalhar nisso quanto para consumir o produzido. Não é só qual o motivo de nosso sistema empurrar tanta gente para fazer um curso de Direito, onde e como alocar essa gente durante o curso e depois dele, mas sobre o, digamos, tecido conjuntivo simbólico e cultural que é construído para sustentar isso."

O Mundo Jurídico, a Mulher e o Suicídio

Hera, a Deusa das Mulheres, e Prometeus (daqui)
No final de Dezembro, uma notícia chocante surgiu no noticiário: uma estudante de Direito de 21 anos se suicidou de forma dramática, algumas semanas antes. Ela se jogou do sétimo andar do prédio onde vivia, em um ato desesperado causado pelo trauma de um possível estupro sofrido por ela, vejam vocês, em uma festa de confraternização do escritório onde estagiava, o prestigioso Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, no final de Novembro. Para mim, tudo isso foi particularmente chocante: Viviane (sim, ela tinha um nome, era um pessoal real) partiu no dia do meu aniversário e eu a conhecia -- estudava na mesma faculdade que eu, cursava o ano anterior e se formaria este ano, além de ter sido minha monitoranda em Direito Constitucional à noite.

A notícia foi chocante, não apenas pelo fato em si como também pela demora em registra-la: os jornais deram a notícia quase um mês depois, às vésperas da virada de ano, quando as pessoas estavam pouquíssimo preocupadas com o noticiário. Antes disso, aliás, o silêncio era sepulcral, ninguém sabia explicar a situação ao certo e tudo corria à boca pequena -- boatos volta e meia circulavam e depois sumiam. Esse silêncio, aliás, não é sinônimo algum de respeito à memória de Viviane, como constou em nota do referido escritório, mas exatamente o contrário como bem pontuou Ana Rusche em excelente artigo sobre o caso.

Este post, evidentemente, não se volta aos desdobramentos policiais e judiciais do caso, embora espere e se empenha para que as investigações corram bem e se apure, enfim, o ato terrível que levou Vivane ao suicídio. O ponto que me interessa, no entanto, é que uma menina morreu, da forma mais bárbara que se pode conceber: ela foi morta em vida por um ato absurdo que a obrigou, em um desfecho trágico, a precisar pôr fim à própria vida para extirpar uma dor insuportável; mas nada disso brotou do nada, ou deixa de estar inserido num contexto histórico pouco alentador. 

Esclarecer isso e acabar com práticas sociais que, no limite, levam a tragédias como essa é o que exige o nosso (escritórios, estagiários, as faculdades de Direito, a sociedade etc) empenho agora. A nossa missão certamente não é  preservar a nossa própria imagem -- como talvez prefira fazer, erradamente, o escritório onde ela estagiava ou mesmo as pessoas ligadas ao meio jurídico em relação à imagem geral do próprio meio. Vidas importam, imagens não. O choque aqui é o choque não da surpresa, mas do previsível trágico acontecendo como em um pesadelo ou uma profecia.


No entanto, sublinhe-se que o imaginário do mundo jurídico na era do capitalismo cognitivo é um tanto diferente. O cenário hipercompetitivo, machista e explorador das grandes corporações do ramo aponta para um sentido diferente. Os estagiários, que quase sempre arcam com a pior parte do trabalho -- nem sempre tendo em troca os devidos ganhos -- são como as criancinhas que trabalhavam na tecelagens no início da era industrial: corpos suficientemente aptos a serem convertidos em meros objetos daquela atividade (no lugar de dedinhos suficientemente pequenos para fiar, cérebros privilegiados ou corpos suficientemente bonitos para serem desfrutados).

Há um nexo de relações sociais perversas. Muito trabalho, poucos ganhos -- exceto a promessa eterna de efetivação, o sonho com o paraíso profissional -- e uma exploração que se impõe ao quadrado sobre as mulheres -- além do cérebro que trabalha, há o corpo desfrutável. Nada disso é propriamente fruto de uma deliberação política, mas decorrência de um fenômeno social derivado da estrutura de produção -- de soluções jurídicas no caso -- que corre sob vistas grossas de todos. São omissões que ocorrem aqui, ali e em toda parte. Uma responsabilidade pessoal mítica -- entre partes inteiramente assimétricas -- volta e meia é invocada para expiar a culpa de todos.

No fundo, a questão não é, por suposto, moral. Não é um disputa sobre de quem é a culpa -- em sentido amplo, psicológico ou jurídico --, quem é a vítima, quem merece ser punido, quem mereceu o quê. É uma problemática que envolve a produção, o modo de produção contemporâneo, quais sujeitos e quais objetos são produzidos, tanto para trabalhar nisso quanto para consumir o produzido. Não é só qual o motivo de nosso sistema empurrar tanta gente para fazer um curso de Direito, onde e como alocar essa gente durante o curso e depois dele, mas sobre o, digamos, tecido conjuntivo simbólico e cultural que é construído para sustentar isso. 

Isso tem a ver com a precarização da condição do advogado e do estudante de Direito. A atividade advocatícia, que remete ao mundo antigo e sobrevive desde então, encontrou uma nova configuração no capitalismo cognitivo como uma espécie de fábrica necessária para dar solução aos atritos -- privados ou públicos -- inerentes ao sistema. Em uma atividade intelectual, na qual estaríamos livres da exploração do corpo, aparentemente restrita ao trabalho manual, encontramos a forma mais sofisticada e definitiva de exploração -- social, difusa, invisível, anestésica, anônima: ela está impregnada nas práticas cotidianas e é capaz de penetrar nas nossas cabeças; tanta ansiedade, medo, ressentimento para conseguirmos nossos lugares.

Se o caso particular implica na responsabilidade de alguém -- por ação ou omissão, inclusive jurídica --, o problema mesmo é menos sobre culpa ou implicações morais e mais sobre o que é esse mundo contemporâneo, qual a forma que a máquina capitalista contemporânea tomou e como não estamos, nem podemos, estar alheios a tudo isso.  Nós temos tanto fetiche na denúncia da exploração do corpo feminino, e dos corpos em geral, no mundo muçulmano ou mesmo oriental -- como no caso do estupro que consternou a Índia, recentemente --, mas não conseguimos enxergar nossos próprios problemas -- ou talvez só consigamos vê-los, ou admiti-los, quando surgem na forma de arcaísmo, portanto, como raridades. 

Numa época de imagens -- como em uma casa de espelhos -- e de imaginários, é hora de recuperar uma paixão pelo real: e a realidade é aquela que remete ao fato de que muito mudou, mas apenas de maneira formal no que toca à contínua exploração do corpo. Essa realidade não pertece, apenas, ao interior do Brasil ou às periferias metropolitanas, mas à vida daqueles que estão inseridos em cursos de ponta em boas universidades. Esse é o nosso cotidiano, esse precisa ser o motor da nossa luta.

Fonte: O Descurvo

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