PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
PICICA: "O diálogo que o artista propõe com o espectador questiona a própria identidade humana, inclusive a sua.
O belo depende do grotesco para existir. Ninguém iria saber o que
seria bom se não existisse o ruim. Olhando para a história de uma
religião em particular, Budha nunca sairia de sua zona de conforto e
atingiria a iluminação para ajudar milhões de pessoas se não percebesse a
existência da decadência humana, da doença, da depravação, do grotesco."
O diálogo que o artista propõe com o espectador questiona a própria identidade humana, inclusive a sua.
O belo depende do grotesco para existir. Ninguém iria saber o que
seria bom se não existisse o ruim. Olhando para a história de uma
religião em particular, Budha nunca sairia de sua zona de conforto e
atingiria a iluminação para ajudar milhões de pessoas se não percebesse a
existência da decadência humana, da doença, da depravação, do grotesco.
Por outro lado, as luzes não se misturam com as trevas e o trabalho de Erik Thor Sandberg reflete justamente essa observação profunda e infinita no abissal do grotesco da existência comportamental humana.
O diálogo que o artista propõe com o espectador questiona a própria
identidade humana, inclusive a sua. Suas obras são inundadas de
narrativas individuais tiradas de um filme de terror, hora
sadomasoquista, hora canibalista, hora surrealista, hora animalesco.
Sempre que olharmos para alguns de seus trabalhos, os leremos de forma
diferente, tamanha é sua riqueza plástica.
Erik Thor Sandberg
reside em Washington, DC e já expos seus trabalhos por toda parte. A
singularidade de sua técnica é única e ele a conseguiu através de anos
de prática e pesquisa e também através do próprio questionamento do que
consiste a natureza humana.
Nas suas narrativas que muitas vezes são começos, outras vezes são
fins, ele se apropria de momentos que são cruciais para a mensagem
deseja passar. Assim, faz com que o tempo fique suspenso e a narrativa
fique pausada por alguns breves momentos de reflexão, o artista consegue
abster o julgamento e proporcionar somente a observação enfatizando
seus personagens contidos em contextos de puro desastre caótico
desumano.
Normalmente seu olhar está na falha da natureza humana, nos vícios, no
lado grotesco de seus personagens e suas características e atitudes,
suas expressões faciais, as relações entre humanos com cadáveres. Estes
aspectos da natureza falha, do outro lado do que o olho está acostumado a
ver tem sido a parte principal de seu trabalho ao longo dos anos. Ao
revelar essas imperfeições, ele também mostra como a vida tem sua parte
interessante e curiosa que desperta o interesse de saber o que leva a
pessoa a se colocar nestas situações, ou até mesmo a pintar estas cenas,
estes personagens.
Ainda há beleza, eternamente apreciada, querida e almejada, em seu
trabalho porque contrasta com o grotesco e forma a relação que o artista
deseja. Sem a beleza o grotesco não seria apreciado tão intensamente.
PICICA: "“O ódio nunca pode ser bom, dizia Spinoza. Ele não tem nenhuma serventia. A ética de Spinoza é construída para a experiência da liberdade: combater a servidão, o ódio, as paixões tristes e os ressentimentos. A ética de Spinoza é uma ética da resistência. A própria alegria é uma forma de resistência”, sustenta Francisco de Guimaraens.
“Há toda uma estrutura da economia e da sociedade que nos leva à depressão, à tristeza”, destaca o conferencista de Fundações ontológicas e éticas da política e do direito: um olhar a partir de Spinoza."
Spinoza e a superação da construção de uma sociedade baseada nas paixões tristes
“O ódio nunca pode ser bom, dizia Spinoza. Ele não tem nenhuma serventia. A ética de Spinoza é construída para a experiência da liberdade: combater a servidão, o ódio, as paixões tristes e os ressentimentos. A ética de Spinoza é uma ética da resistência. A própria alegria é uma forma de resistência”, sustenta Francisco de Guimaraens.
Francisco durante sua palestra à noite. Foto por Susana Rocca
Quem foi Spinoza
Diante de um público de aproximadamente
60 pessoas, formado por alunos de diversos cursos de graduação, o
professor contextualizou quem foi Spinoza. “Spinoza
nasceu em 1632, em Amsterdã, em uma das províncias unidas dos países
baixos. De família judia e pais portugueses, sua família foi fustigada
pela França por razões políticas e religiosas. Já em Amsterdã, no estado
que chamamos atualmente de Holanda, Spinoza foi excomungado de sua comunidade judaica, ainda que a cidade fosse um reduto de liberdade religiosa”, explica.
Mas por que discutir o século XVII no século XXI?
Spinoza, que viveu no século XVII, foi lembrado no seguinte por Marx, que escreveu três textos e uma carta dizendo ao seu pai que gostaria de fazer na economia o que Spinoza fez na teologia. Nietzsche, no século XIX, disse que Spinoza
o havia tirado do estado de solidão e o colocado em um estado de
“dualidão”, uma solidão a dois. A razão, porém, a que nos remetemos a Spinoza no século XX e, mais recentemente, no XXI, é que suas teses tiveram impactos na física, na política e no direito.
“O que vou debater diz respeito à forma como o pensamento de Spinoza impacta em três aspectos: 1) como sua teologia produz efeitos políticos; 2) como sua ética é fundada em uma ideia de alegria e não em uma relação hierárquica; e 3) como isso produz efeitos no direito”, esclarece.
Teologia e Política
Segundo Francisco, para Spinoza as palavras “substância-deus-natureza” são sinônimos. “Para Spinoza
essas três coisas são uma potência infinita que é causa da própria
existência, é autopoiético. Isso se compõe de uma multiplicidade de
atributos”, pontua o conferencista.
“A rigor, Spinoza monta
uma ideia de Deus para refutar a imagem do monarca absoluto. Deus é
causa eficiente imanente de todas as coisas, significa que tudo que
produz é no seu interior e causa de seus efeitos”, explica. “O Monarca
absoluto estava acima da lei e transformava todas as suas vontades em
lei. Ele estava fora da comunidade política. Ainda que exista monarquia,
o monarca não é externo a ela e por isso deve governar no interesse do
povo e dos cidadãos, dizia Spinoza”, complementa.
Fotos Susana Rocca
Ética
Para o conferencista, a ética spinoziana
é eminentemente prática. “Não se trata de mera contemplação sobre os
valores morais. A ética de Spinoza deve nos auxiliar a
modificar nossa própria vida. Trata-se sobretudo de uma ética organizada
e estruturada para auxiliar aquilo que é tão difícil quanto raro: a
alegria e a liberdade”, pondera Francisco. “Há uma relação necessária entre alegria e liberdade. A finalidade da obra Ética
(Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009) é se liberar dos
ressentimentos e das paixões tristes, tudo aquilo que ele considera
servidão. Por isso também a ética de Spinoza é tão atual”, avalia.
Alegria e Liberdade
“Em primeiro lugar é preciso entender a própria noção de Alegria em Spinoza.
Cada coisa que existe exime uma potência singular, que são próprias de
cada um de nós. Essa potência varia de acordo com os encontros que nós
formamos. Se formo encontro com algo que dá vazão à minha potência isso é
positivo, causa alegria. Se encontro algo que destrói meus afetos, me
entristeço”, exemplifica o professor. “Toda alegria é uma composição de
potências. Não existe alegria egoica, como, por exemplo, a obsessão pelo
consumo, porque ela não se sustenta, não é estável”, frisa.
É importante destacar que na perspectiva
spinoziana as alegrias são passivas quando não dependem exclusivamente
de nós, como, por exemplo, a torcida de futebol que fica feliz quando o
seu time vence, embora não seja capaz de interferir diretamente no
resultado da partida. Entretanto, o que interessa ao pensamento do
filósofo é a alegria ativa. “O que Spinoza
fez foi escrever uma obra que o leitor pudesse formar bons encontros
que não dependessem das circunstâncias, mas aquela que nós próprios
engendramos, cuja causa adequada somos nós. Ele chama isso de alegria
ativa”, pondera.
Um laboratório chamado Brasil
Após estabelecer todo arcabouço teórico e conceitual, Francisco aproximou a filosofia de Spinoza à realidade brasileira.
“Pensamos no Brasil nas cidades em que há uma cisão brutal entre
classes sociais, cujo o único convívio se reduz ao caixa do
supermercado”, provoca. “No Rio de Janeiro há escolas ocupadas e geridas
por alunos. Eles encontraram lá pilhas de livros que não eram
distribuídos para as crianças, havia depósito com merendas estocadas”,
critica. “Que tipos de afeto são socializados por essa divisão que afeta
todo o sistema educacional?”, questiona.
Direito e Política
“Nós temos tanto direito quanto temos
potência. Tudo que a gente pode fazer é tudo o que a gente tem de
direitos. Quando as políticas estão mal organizadas elas não propiciam o
direito e, portanto, produzem tristeza. As instituições políticas e
sociais se fundamentam na produção das tristezas”, descreve.
Para sair desse círculo vicioso, Francisco
propõe um novo paradigma de abordagem. “O que constitui a sociedade
brasileira não é o ressentimento dos oprimidos, mas o ódio dos
opressores. Essa causa é a desigualdade
brutal em termos sociais, regionais, raciais, de gênero. É fundamental
pensar em instituições que propiciem não o ódio, mas o auxílio mútuo.
Não há outra estratégia, não há outra alternativa”, argumenta.
Contra a tirania
“O contrário da liberdade é a solidão. Politicamente a solidão é o contrário da Multidão.
A solidão é a tirania, é tudo aquilo que impede a produção das
diferenças que compõem determinada sociedade. O medo e o ódio geram
solidão. A tirania não é só o ditador. Há outras formas mais silenciosas
de tirania”, analisa.
Na contramão dos bolhas ideológicas que se formam nas sociedades atuais, Francisco
sustenta que o Estado deve garantir canais de relação entre os
diferentes, tal qual foi Amsterdã no século XVII. “O homem é mais livre
no Estado que se organiza pela democracia que no estado tirânico. Se a
ética é uma reflexão da liberdade do indivíduo e a política uma reflexão
sobre as instituições necessárias à autonomia da multidão, não dá para
pensar a ética sem a política e sem o direito. Os nossos direitos”, considera.
Quem é Francisco Guimaraens
Nascido e criado na Gávea, Francisco Guimaraens
começou sua experiência docente no final da década de 1990 quando, aos
finais de semana, foi professor de português em um pré-vestibular criado
para a comunidade negra e empobrecida da capital fluminense, que
funcionava em um Centro Integrado de Educação Pública – CIEP. Atualmente
é graduado, mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ, instituição onde atualmente é
professor assistente. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em
Direito Constitucional, Teoria do Estado e Filosofia Política.
PICICA: "O desespero e o maniqueísmo
que temperam algumas análises ao redor dos últimos acontecimentos
focalizam toda a nossa atenção no impeachment, deixando-nos numa
situação de dependência e expectativa do que os políticos e instituições
podem fazer por nós. Na história da esquerda, há toda uma tradição de
lutas reivindicativas que tiveram os partidos institucionalizados e o
Estado como principais mediadores para a transformação social. Contudo,
no vazio de representação em que giram as instituições, esse tipo de
ação se tornou limitado demais. É preciso aprofundar o pensamento e a
estratégia para uma ação política mais autônoma e produtiva
institucionalmente, que encontre na sociedade os protagonistas das
mudanças. Uma construção política de baixo para cima, a partir do social
em seus pontos de atrito e antagonismo. É o que tem acontecido, por
exemplo, na luta dos estudantes que ocuparam suas escolas em São Paulo,
Goiás e Rio de Janeiro, reinventado a rotina escolar e revitalizando os
espaços da educação."
Contra o desespero, construir a autonomia
Por Renan Porto, UniNômade
—
—
Com a aprovação do
impeachment na Câmara de Deputados, as redes sociais foram tomadas por
uma onda de desespero e maniqueísmo. Porém, um maniqueísmo débil, sem
um lado realmente “bom”. Nesta disputa pelo laço suicida, a sociedade é
mobilizada numa luta que não vai produzir nada de alternativo para o
terreno institucional ou, quiçá, social. Os discursos que se propõem
como desvios ao furacão em que fomos engolidos acabam abafados pela
própria força de seu sopro.
Já é bastante repetido que
foi o próprio PT quem cavou a sua cova durante os mandatos à frente do
governo federal, fazendo diversas alianças e concessões com o PMDB, que
agora o apunhala pelas costas. Que Eduardo Cunha e a sua trupe sejam um
bando de vigaristas e que todo esse processo de impeachment uma grande
tramoia, disso todos já sabemos. Só não enxerga quem não quer. Mas
precisamos de um debate que vá além desta constatação e apresente outros
horizontes para a transformação, que encare de uma vez que o governo do
PT já acabou de qualquer jeito, antes da efetivação do impeachment. O
que importa, agora, é lidar com o cenário pós-PT.
É preciso resistir ao
desespero que reduz a percepção da conjuntura a uma grande cena de
devastação. Cair nessa percepção pode imobilizar possibilidades de
pensamento e agenciamento social a partir dos acontecimentos. É claro
que a situação não é boa e que as forças conservadoras se esforçam para
hegemonizar o espaço público. Não devemos realmente permitir esse
avanço, mas essa constatação não pode significar uma perda de
perspectiva produtiva: precisamos investir nossa potência de ação num
caminho que não seja vazio. Lutar pela conservação de um governo já
derrotado só vai permitir que a indignação e o desejo social sejam
canalizados pelos movimentos contrários ao projeto que esse governo
busca simbolizar e representar politicamente. Uma canalização que tem
feito, por exemplo, o Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por Kim
Katiguiri.
Além disso, a conservação do
governo do PT não seria garantia sequer para a manutenção do estado
atual das coisas, já que ao longo dele têm avançado políticas tão
retrógradas como, por exemplo, a lei antiterrorismo, proposta em regime
de urgência pela própria Dilma e por ela sancionada (uma de suas últimas
medidas). Enquanto isso, mesmo depois de 13 anos da estrela vermelha no
poder, as chacinas nas favelas continuam, a reforma agrária não
aconteceu, o desastre em Mariana (o “Chernobyl brasileiro”) foi
praticamente ignorado, a construção da usina de Belo Monte continua
avançando, os direitos trabalhistas e sociais vêm sendo erodidos em nome
do ajuste fiscal, as tarifas de energia elétrica e combustíveis seguem
elevadas, a taxa de desemprego sobe e a inflação se mantém alta, os
grandes cortes na educação comprometem bolsas, projetos, pesquisas. Não
podemos esquecer que, em pouco mais de um ano do segundo mandato de
Dilma, vimos todo esse retrocesso ocorrer. Apesar da possibilidade de
uma aceleração desse programa já em curso por um governo encabeçado pelo
ex-aliado PMDB, a continuação do governo Dilma não seria sinônimo de
barrar tal avanço conservador.
Muitas pessoas temem a
possibilidade de volta aos anos de chumbo da ditadura, com o retorno de
um Estado autoritário. Ora, em muitas favelas e periferias do Brasil, a
presença do Estado se dá através da intervenção militar do exército e da
polícia militar, fazendo desses territórios zonas de produção de morte
(tanatopolítica). Também já é uma realidade a repressão violenta aos
protestos de rua que reivindiquem direitos e não obedeçam à ordem
autorizada de identidades polarizadas que, uma contra a outra, têm
permissão para protestar porque participam do jogo da cena política
esvaziada. Com isso, vivemos uma situação em que não parece mais
possível o dissenso e a intervenção por aqueles fora do jogo da
polarização, desautorizados a protestar porque não assumem “um lado”,
segundo o policiamento de si e dos outros imposto pelo consenso em
vigor. O fato é que o golpe à democracia já acontece nas ruas faz tempo.
Também é interessante observar que a
forma como o capitalismo contemporâneo opera requer um mínimo de
liberdades individuais. No livro “O governo das desigualdades: crítica
da insegurança neoliberal”, Maurizio Lazzarato reflete a partir do
pensamento de Foucault:
“O
neoliberalismo é, segundo Foucault, um modo de governo que consome a
liberdade, e que, para se fazer, deve primeiro produzi-la e organizá-la.
A liberdade não é para os neoliberais um valor natural que preexiste à
ação governamental e a qual se trataria de garantir o exercício (como no
liberalismo clássico), mas é algo que o mercado tem necessidade para
poder funcionar. A liberdade que o liberalismo incita, solicita, produz é
simplesmente o correlato dos dispositivos de segurança” (p. 29).
Na atual forma do
capitalismo, cada indivíduo é transformado numa “empresa individual”,
empreendedor de si mesmo, e para tanto requer um mínimo de liberdade
para investir em sua subjetividade, numa subjetividade ajustada para as
demandas do mercado por eficiência e competividade. O poder de sujeição
do indivíduo se reinventa, sendo que agora “o homem não é mais o homem
confinado, mas o homem endividado”, diz Deleuze, em seu “Post-scriptum
sobre as sociedades de controle”. Nesse denso ensaio, Deleuze fala da
passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle.
Para além do par repressão e ideologia, o capitalismo atual trabalha
investindo e organizando os desejos através de modulações das liberdades
permitidas, de regulações desde dentro da formação dos próprios
sujeitos, mais penetrante do que somente reprimindo e disciplinando.
O mercado é hoje o principal
financiador da política e usurpa o Estado para se fortalecer, criando
uma indiferenciação entre o que é Público e Privado. O que acontece, por
exemplo, através do financiamento privado das campanhas eleitorais,
como também em qualquer outra instituição em que o sujeito que ocupe uma
função pública e dela faça uso de acordo com interesses privados.
Então, sendo as empresas (o mercado, a sociedade-empresa) as principais
representadas na política, as quais necessitam deste contingente de
liberdade para seu funcionamento, seria difícil uma redução total das
liberdades individuais protegidas pelo Estado, sob pena de paralisar o
funcionamento do capital. Claro que a liberdade requerida pelo mercado é
limitada, sobretudo é a liberdade para consumir. Mas, o paradoxo é que
este mínimo de autonomia individual, esta brecha do sistema, possibilita
um ponto de partida para a reinvenção de formas de resistência e o
agenciamento de novas lutas.
Digo isso não para garantir
alguma segurança, mas, a título de contra-argumento aos discursos
desesperados e maniqueístas que estão aparecendo por aí. Tento afirmar a
possibilidade de esperança, um afeto que potencializa a capacidade de
ação. Apesar da história não seguir um roteiro progressivo e linear,
sendo possível, sim, um grande retrocesso na direção de uma sociedade
menos livre, tal retrocesso não vem sem resistência, inclusive, em
alguns casos, por parte de organizações do mercado.
O desespero e o maniqueísmo
que temperam algumas análises ao redor dos últimos acontecimentos
focalizam toda a nossa atenção no impeachment, deixando-nos numa
situação de dependência e expectativa do que os políticos e instituições
podem fazer por nós. Na história da esquerda, há toda uma tradição de
lutas reivindicativas que tiveram os partidos institucionalizados e o
Estado como principais mediadores para a transformação social. Contudo,
no vazio de representação em que giram as instituições, esse tipo de
ação se tornou limitado demais. É preciso aprofundar o pensamento e a
estratégia para uma ação política mais autônoma e produtiva
institucionalmente, que encontre na sociedade os protagonistas das
mudanças. Uma construção política de baixo para cima, a partir do social
em seus pontos de atrito e antagonismo. É o que tem acontecido, por
exemplo, na luta dos estudantes que ocuparam suas escolas em São Paulo,
Goiás e Rio de Janeiro, reinventado a rotina escolar e revitalizando os
espaços da educação.
Não seria possível fazer isso
com outras instituições, no grande horizonte de ocupar as nossas
cidades? Por exemplo, pensar numa reapropriação de um hospital por parte
dos seus usuários, amigos e familiares, e debater seus gastos, as
políticas voltadas para ele, inclusive agir diretamente sobre a
instituição de saúde para melhorar as condições de acesso, de cuidado,
de gestão democrática. Não seria também possível a construção de
plataformas eleitorais municipalistas que possibilitem mandatos com mais
participação social, como aliás se vem tentando em algumas cidades,
como em Belo Horizonte ou Nova Iguaçu?
Por fim, realmente
não podemos deixar de lado as tensões da macropolítica, como se nada
tivéssemos a ver com elas. Porque também estamos sujeitos a ela.
Contudo, este texto objetiva justamente descentralizar a atenção deste
plano que parece ocupar espaço demais nos últimos tempos, e chamar a
atenção para outros caminhos, em que possamos voltar a ser agentes das
lutas e não apenas espectadores. Enquanto não formos capazes de
reconquistar espaços de mais autonomia, a esfera macropolítica da
disputa do Estado continuará sendo um grande centro de poder que nos
sequestra a agência, um poder capaz de mandos e desmandos sobre as
nossas vidas. Enquanto isso, os mesmos dramas poderão estar sempre se
repetindo.
PICICA: "Num debate entre mim e António Negri, que
ocorreu há cerca de um ano no Berliner
Schaubühne, confrontaram-se duas críticas bem distintas do Capitalismo. Negri
estava confiante com a ideia de uma resistência global ao “Império”, ao sistema
neoliberal de dominação, apresentando-se a si mesmo como um comunista
revolucionário e referindo-se a mim como um académico céptico. Acreditava,
enfaticamente, que a “multitude”, as massas interconectadas do protesto e da
revolução, iriam ser capazes de fazer cair o “Império”. A posição do comunista
revolucionário pareceu-me muito ingénua e afastada da realidade. Por isso,
procurei explicar a Negri porque é que hoje a revolução já não é possível."
Num debate entre mim e António Negri, que
ocorreu há cerca de um ano no Berliner
Schaubühne, confrontaram-se duas críticas bem distintas do Capitalismo. Negri
estava confiante com a ideia de uma resistência global ao “Império”, ao sistema
neoliberal de dominação, apresentando-se a si mesmo como um comunista
revolucionário e referindo-se a mim como um académico céptico. Acreditava,
enfaticamente, que a “multitude”, as massas interconectadas do protesto e da
revolução, iriam ser capazes de fazer cair o “Império”. A posição do comunista
revolucionário pareceu-me muito ingénua e afastada da realidade. Por isso,
procurei explicar a Negri porque é que hoje a revolução já não é possível.
§
Porque é que o sistema de dominação
neoliberal é tão estável? Porque é que há tão pouca resistência? Porque é que toda
a resistência, quando ocorre, se desvanece tão rapidamente? Porque é que já não
é possível a revolução, apesar do crescente fosso entre ricos e pobres? Para
explicar este estado de coisas é necessária uma compreensão adequada de como funcionam
hoje o poder e a dominação.
Quem pretender instalar um sistema de
dominação deve eliminar toda a resistência e o mesmo se aplica ao actual
sistema de dominação neoliberal. Estabelecer um novo sistema de dominação requer
um poder que se impõe frequentemente através da violência. Contudo, esse poder
não é idêntico àquele que estabiliza o sistema internamente. Como é bem sabido,
Margaret Thatcher, pioneira do neoliberalismo, tratava os sindicatos como
“inimigos internos” e combateu-os violentamente. Contudo, não devemos confundir
a intervenção violenta que impõe a agenda neoliberal com um poder de
estabilização ou manutenção do sistema.
O poder de
estabilização do sistema não é repressivo mas sedutor
O poder de estabilização da sociedade
industrial e disciplinar era repressivo. Os operários eram brutalmente
explorados pelos proprietários, o que originava actos de protesto e de
resistência. Nesse momento, foi possível que uma revolução derrubasse as
relações de produção existentes. Nesse sistema de repressão tanto os opressores
como os oprimidos eram visíveis. Havia um adversário concreto – um inimigo
visível – ao qual se oferecia resistência.
O sistema de dominação neoliberal tem uma
estrutura completamente distinta. Hoje, o poder que estabiliza o sistema já não
funciona através da repressão, mas através da sedução – isto é, cativando. Já
não é visível, como no caso do regime disciplinar. Hoje, não há um adversário concreto,
um inimigo, que nos retire a liberdade e ao qual se possa resistir.
O neoliberalismo transforma o trabalhador
oprimido num empresário livre, um empreendedor de si mesmo. Hoje, cada um de
nós é um trabalhador que se explora a si próprio na sua própria empresa. Cada
um de nós é mestre e escravo na sua mesma pessoa. E também a luta de classes se
transforma em luta interna de cada um consigo próprio. Hoje, aqueles que não
conseguem atingir o sucesso culpam-se a si próprios e sentem-se envergonhados.
As pessoas vêem-se a si próprias como o problema e não a sociedade.
O sujeito submetido nem sequer tem
consciência da sua submissão
Um poder disciplinar que procura colocar o
ser humano debaixo de um colete-de-forças de ordens e proibições é totalmente
ineficiente. Pelo contrário, é significativamente mais eficiente assegurar que
as pessoas se submetam de espontânea vontade à dominação. A eficácia que define
o actual sistema advém do facto de operar não tanto através da proibição e da
privação, mas procurando agradar e satisfazer. Em vez de gerar homens
obedientes, esforça-se por torná-los dependentes. Esta lógica da eficiência
neoliberal aplica-se igualmente à vigilância. Nos anos 80, para citar um
exemplo, houve protestos veementes contra o censo demográfico alemão. Até os
estudantes saíram à rua.
Do ponto de vista actual, a informação
solicitada no censo – profissão, níveis de educação, distância de casa ao
trabalho – parece quase ridícula. Mas naquela altura o Estado era visto como
uma instância de dominação que retirava informação aos cidadãos contra a sua vontade.
Essa época há muito que ficou para trás. Hoje expomo-nos de livre vontade. É
precisamente este sentido de liberdade que torna qualquer protesto impossível.
Ao contrário daquilo que acontecia nos dias do censo, hoje dificilmente alguém
protesta contra a vigilância. O livre desnudamento e a auto-exposição seguem a
mesma lógica da eficiência como livre auto-exploração. Protesta-se contra quê?
Contra si próprio? A artista conceptual Jenny Holzer formulou o paradoxo da
actual situação: “Protect me from what I
want" [“Protege-me daquilo que
quero”].
É importante distinguir entre um poder que impõe
e um poder que estabiliza. Hoje, o poder que estabiliza o sistema assume um
disfarce amigável e smart, tornando-se
invisível e inatacável. O sujeito submetido nem sequer tem consciência da sua
submissão. O sujeito pensa-se livre. Esta técnica de dominação neutraliza a
resistência de modo eficaz. A dominação que reprime e ataca a liberdade não é
estável. Por isso o regime neoliberal é tão estável, ele imuniza-se contra toda
a resistência porque faz uso da liberdade em vez de a reprimir. Suprimir a
liberdade provoca imediatamente resistências, explorar a liberdade não.
Depois da crise financeira asiática, a Coreia
do Sul estava paralisada e em choque. O FMI interveio e disponibilizou crédito.
Em troca, o governo teve que impor uma agenda neoliberal. Isto foi iminentemente
repressivo, poder impositivo – o tipo de poder que frequentemente é acompanhado
de violência e que se distingue do poder de estabilização do sistema que
procura sempre passar como liberdade.
De acordo com Naomi Klein, o estado de choque
social que se segue a catástrofes como a crise financeira na Coreia do Sul – ou
a actual crise na Grécia – oferece a oportunidade de reprogramar radicalmente a
sociedade pela força. Hoje, quase não há qualquer resistência na Coreia do Sul.
Bem pelo contrário: um consenso generalizado prevalece – assim como a depressão
e o esgotamento. A Coreia do Sul tem hoje a mais alta taxa de suicídio do
mundo. As pessoas agem violentamente sobre si próprias em vez de procurarem
mudar a sociedade. A agressão dirigida para fora, que implicaria a revolução,
foi substituída pela auto-agressão dirigida contra si próprio.
Hoje, não há uma multitude cooperante e
conectada capaz de se levantar numa massa global de protesto e revolução. Pelo
contrário, o modo dominante de produção baseia-se em empreendedores isolados e
solitários, alheados de si próprios. Antes as empresas costumavam competir entre
si. Contudo, dentro de cada empresa, era possível encontrar solidariedade.
Hoje, todos competem contra todos, inclusive, dentro da mesma empresa. Apesar da
competitividade aumentar a produtividade, esta destrói a solidariedade e o sentido
comum. Nenhuma massa revolucionária pode surgir de indivíduos exaustos,
depressivos e isolados.
O neoliberalismo não pode ser explicado em
termos marxistas. No neoliberalismo não tem sequer lugar a “alienação” do
trabalho. Hoje, mergulhamos euforicamente no trabalho – até ao esgotamento. O
primeiro nível da síndrome de Burnout
[esgotamento] é a euforia. Esgotamento e revolução excluem-se mutuamente.
Assim, é um erro pensar que a Multitude poderá derrubar o “Império parasitário”
e construir uma ordem social comunista.
A economia de partilha leva à total mercantilização
da vida
Qual é o estado actual do comunismo? Há hoje uma
invocação constante da noção de “partilha” [sharing]
e de “comunidade”. A economia de partilha parece substituir a economia da
propriedade e da posse. Sharing is Caring
[partilhar é cuidar] é a máxima da
empresa “Circler”, no mais recente romance de Dave Egger: partilhar é curar, por assim dizer. Os passeios que levam até à
sede da empresa estão cheios de máximas como “Comunidade Primeiro” e “Humanos
trabalham aqui”. Mas o verdadeiro mote deveria ser: “cuidar é matar”
Centros de boleias digitais, que nos transformam
a todos em taxistas, são igualmente divulgados com apelos à comunidade. Mas é
um erro afirmar – como faz Jeremy Rifkin no seu mais recente livro, The Zero Marginal Cost Society – que a
economia de partilha anuncia o fim do capitalismo inaugurando uma ordem social
orientada para o comum, onde partilhar tem mais valor que possuir. O que
acontece é precisamente o oposto: a economia de partilha leva, em último caso,
à total mercantilização da vida.
A mudança que Rifkin celebra – da posse para
o acesso – não nos liberta do capitalismo. As pessoas sem dinheiro continuam a
não ter acesso à partilha, ao sharing. Mesmo
na idade do acesso, continuamos a viver dentro daquilo que Didier Bingo chamou
o “Ban-opticon”, onde aqueles sem meios económicos permanecem excluídos.
“Airbnb” – o mercado comunitário que faz de cada casa um hotel – fez da
hospitalidade uma mercadoria, um bem de consumo.
A ideologia da “community” [comunidade] e dos “collaborative
commons” [bens comuns colaborativos] levam à total mercantilização da comunidade.
Tornou-se impossível uma amabilidade desinteressada. Numa sociedade de
valorização recíproca e permanente, também a amizade se tornou comercializável.
Tornamo-nos amáveis para obteremos melhores avaliações.
A dura lógica do capitalismo prevalece mesmo
no coração dessa economia de partilha. Paradoxalmente, neste tão simpático
“partilhar” ninguém dá nada a ninguém voluntariamente e de graça. O capitalismo
realiza-se plenamente no momento em que vende o comunismo como mercadoria. O comunismo
como mercadoria é o fim da revolução.
____
Nota da edição
Texto traduzido a partir da versão alemã (com auxílio da versão
inglesa e espanhola) publicado originariamente no Süddeutsche
Zeitung, a 3 de Setembro de 2014.
____
Imagem
1. Jenny Holzer, The Survival series, Protect Me From What I want, 1983-1985.
2. Imagem
que acompanha o artigo original no Süddeutsche
Zeitung (Foto: dpa)
3. Manifestação anti-airbnb em Nova Iorque a 20 de
Janeiro de 2015 (Foto: Shannon Stapleton/Reuters/Newscom, Via Daily
Signal).
____
Byung-Chul Han,
Filósofo Sul-Coreano e professor na Universität der Künste Berlin (UdK).
PICICA: "Agora
que o governo praticamente acabou, e que o afastamento de Dilma
Rousseff se tornou inevitável, tem ganhado força por aí uma certa tese que coloca nos movimentos de junho de 2013 a "culpa" pelo golpe.
Não deixa de ser curioso e sintomático que esta tese esteja ganhando
força nas hostes de uma certa esquerda mais próxima da defesa do
governo. Este texto, contudo, é um esforço na tese contrária. Em
negrito, para que não falte clareza: não, Junho de 2013 não foi o estopim do golpe.
Os motivos para isso são vários e não são difíceis de entender.
Permitam-me refrescar a memória do pessoal. Senta que lá vem a história."
Junho e o Golpe
Agora
que o governo praticamente acabou, e que o afastamento de Dilma
Rousseff se tornou inevitável, tem ganhado força por aí uma certa tese que coloca nos movimentos de junho de 2013 a "culpa" pelo golpe.
Não deixa de ser curioso e sintomático que esta tese esteja ganhando
força nas hostes de uma certa esquerda mais próxima da defesa do
governo. Este texto, contudo, é um esforço na tese contrária. Em
negrito, para que não falte clareza: não, Junho de 2013 não foi o estopim do golpe.
Os motivos para isso são vários e não são difíceis de entender.
Permitam-me refrescar a memória do pessoal. Senta que lá vem a história.
De
início, os movimentos de rua em São Paulo eram apenas contra a tarifa e
contra o aumento. Na semana do dia 12 de junho, tudo parecia apenas
mais uma da continuidade de uma série de confrontos entre população,
majoritariamente estudantes, e as autoridades da prefeitura e do governo
do estado, em busca de um novo modelo de transporte público no país.
Neste dia, a Folha de São Paulo retratou da seguinte maneira o embate
entre policiais e estudantes.
Todas as imagens a seguir podem ser encontradas no acervo da Folha.
12 de junho
Uma
notícia que não está na capa, mas encontra-se em destaque do caderno
Cotidiano do jornal é, possivelmente, a mais importante do dia. Nesta
terceira noite de confrontos, um policial foi cercado e agredido por
manifestantes. O jornal retrata a cena como um ato de covardia.
Recapitulando:
até aqui, nada de novo. Como em outras cidades como Salvador e
Florianópolis, as revoltas populares contra o aumento das passagens de
ônibus são retratadas com certa má-vontade da mídia que, na tentativa de
garantir um posição de suposta isenção, equipara a violência policial à
dos manifestantes, sem abordar efetivamente o problema da mobilidade
urbana. Enfim, vocês sabem muito bem como é a imprensa com movimentos
sociais.
13 de junho
Acontece
que esse policial é mais importante do que parece. Na quinta-feira, dia
13 de junho, a capa da Folha de São Paulo, dessa vez com a imagem do
policial acossado, dizia o seguinte, em tom de ameaça:
No hoje clássico e famoso editorial "Retomar a Paulista",
o jornal enumera prejuízos à cidade pela paralização da principal
Avenida da cidade de São Paulo, e não só condena a violência dos
manifestantes (apenas dos manifestantes), como posiciona-se a favor do
aumento das passagens. Eu abro aspas para a Folha falar:
"Sua
reivindicação de reverter o aumento da tarifa de ônibus e metrô de R$ 3
para R$ 3,20 — abaixo da inflação, é útil assinalar — não passa de
pretexto, e dos mais vis. São jovens predispostos à violência por uma
ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da
compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e
trens superlotados."
Como
se não fosse o bastante, a Folha endossa as autoridades públicas a
agir, incita o governador e a prefeitura a tomar medidas enérgicas e
garante a legitimidade à corporação policial a agir como sempre quis, do
único jeito que sabe atuar. A Folha sabia o que estava fazendo — ou ao
menos acreditava que sabia. O objetivo era interromper as manifestações
na marra.
"É
hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam
fazer valer as restrições já existentes para protestos na avenida
Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais. (…) No que
toca ao vandalismo, só há um meio de combatê-lo: a força da lei. Cumpre
investigar, identificar e processar os responsáveis. Como em toda forma
de criminalidade, aqui também a impunidade é o maior incentivo à
reincidência."
O
recado foi recebido. Naquela noite, porém, a emenda saiu pior do que o
soneto. De minha parte, se junho tem um marco inicial, esse início é o
dia 13. Os confrontos daquela noite foram dos mais brutais já
registrados. No dia seguinte, os jornais e as redes sociais seriam
inundadas por imagens e vídeos chocantes. A mudança de tom da Folha é
evidente. No dia seguinte, a capa do Jornal dá foco exclusivo à
violência policial. O destaque fica para a imagem de um policial com
cara de vilão de história em quadrinhos atacando um casal indefeso. Ao
fundo, trabalhadores horrorizados e preocupados com a situação.
Mais
do que isso, o dia 13 de junho marca a mudança da postura da imprensa,
porque finalmente a própria foi obrigada a reconhecer que a instituição
da Polícia Militar no Brasil é uma ameaça à democracia, em especial no
que importa aos jornais: uma ameaça aos princípios da liberdade de
expressão. Mas uma coisa é você escutar uma palestra de algum professor
de alguma universidade em defesa desse argumento. Outra completamente
diferente é quando essa ideia ganha corpo, ou melhor, encontra um corpo.
Só posso falar, aqui, da jornalista da Folha Giuliana Valone. Bonita,
branca, jovem e inofensiva, ela apareceu da seguinte maneira na parte de
baixo da capa do jornal. O bumerangue que a imprensa jogou contra os
manifestantes voltou e atingiu o olho dessa jornalista — e muitas outras
pessoas.
14, 15 e 16 de junho
A
sensação no Brasil era de perplexidade. Aos poucos, foram surgindo mais
e mais vídeos, fotos, imagens e relatos. As redes sociais foram
inundadas por um sentimento de impotência e indignação com a violência policial.
Eu gostaria de usar negrito aqui, mas um itálico cumpre a função. Não
vou me cansar em repetir: todo o final de semana foi de intensa
mobilização dentro das redes sociais. A minha TL, em específico, parecia
um episódio de Master Chef no Twitter. O assunto era único. O país
estava em polvorosa. Hoje falamos em golpe, mas naqueles dias o
sentimento também era de democracia ameaçada. Todo o histórico de
violência policial nas periferias, a campanha de figuras como Marcelo
Freixo e Luiz Eduardo Soares pela reestruturação completa das polícias, o
fim da instituição da Polícia Militar, um legado obsceno da Ditadura…
tudo isso estava em pauta. Pela primeira vez, escutamos a palavra de
ordem "não é só por 0,20 centavos". O que estava em questão era a
própria democracia, o próprio direito de se manifestar.
Nos
jornais, o assunto foi deixado um pouco de lado. Neste momento a
internet começou a mostrar seu poder de mobilização, para a surpresa de
alguns. Aos poucos, pipocavam eventos de chamada para manifestações. Pra
piorar a situação, a Copa das Confederações havia começado e as
primeiras manifestações aconteciam no Rio de Janeiro, o que se tornaria
um padrão ao longo das cidades sede da competição. Ninguém, porém,
poderia imaginar ou prever o que aconteceria no dia 17 de junho.
17 de junho
Esqueça
os números. Nesse dia, 12 capitais foram às ruas. Não havia movimento
centralizado organizado, não havia pauta coesa, havia uma simples e
unânime indignação. Essa indignação, contudo, teve um estopim, teve uma
causa primordial: a revolta contra a brutalidade policial.
Qualquer um que pretenda interpretar junho sem este dado fundamental só
pode desconhecer as manifestações (nesse caso é muito provável que
tenha assistido às manifestações do sofá de sua casa, sintonizado na
Globo News). Para muitos, "não há explicação" para o que ocorreu no dia
17 de junho. No entanto, mesmo que o acontecimento permaneça um mistério
(por quê agora? Como pode tanta gente ficar tanto tempo sem fazer nada,
de repente reivindicar as ruas dessa maneira? enfim, perguntas que não
podem ser respondidas definitivamente), há muito que pode ser dito sobre
o que aconteceu: é inegável que o clima criado na cidade de São Paulo
trouxe à tona o desejo de respeitar o direito de reivindicar as ruas.
Mais do que isso, lembraram a elas que havia muito pelo quê se
manifestar. Guardarei este dia como um dos dias mais genuínos e
surpreendentes da minha vida. Eu sabia que as coisas mudariam
profundamente a partir dali.
18 de junho
A
partir daqui as coisas começam a ficar ainda mais complicadas. Não foi
só a esquerda que encontrou nas manifestações de junho um meio para
externalizar suas demandas. Parcelas mais à direita também o fizeram,
bem como uma série de pessoas que jamais havia participado de qualquer
tipo de mobilização social. Num gesto inicial de repulsa, em resposta
aos primeiros conflitos internos às manifestações (principalmente à
demanda, muitas vezes mediante violência física, sintetizada pela
palavra de ordem dos "sem partido"). É curioso notar que mesmo bandeiras
não relacionadas a partidos, como a UNE e a própria CUT foram
rechaçadas. Há aí, claro, no "sem partido" uma recusa a muitos símbolos
da esquerda e do governo, não só uma crítica à ideia de
representatividade em crise dos modelos liberais democráticos. É
importante, contudo, tomar o cuidado de não jogar fora o bebê junto com a
água suja. Movimentos como o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe e
mesmo na Espanha têm em comum maiores demandas por democracia direta em
busca de outras formas de representação. A recusa de partidos de
bandeiras nas manifestações não é, nem pode ser encarada como
inerentemente reacionária.
Esse
dia também é importante porque a "Revolta do Vinagre" passou a se
transformar na "Revolta dos Coxinhas". Evidentemente, a parcela da
população que jamais havia ido às ruas é superior aos que se mobilizam
cotidianamente. Ao meu ver, num erro tático, a esquerda optou por
colocá-los no colo da direita ao chamar todo esse conjunto complexo da
população de "coxinhas". É aqui, neste momento em específico, que a
memória de Junho começou a ser mascarada e desconstruída. Por um lado, a
imprensa tenta transformá-lo num gesto "contra tudo e contra todos", de
outro o governismo tenta desqualificar a luta das ruas como "pessoas
que querem desestabilizar o governo".
Vou
dar um exemplo e, para isso, nada melhor do que duas figuras muito
conhecidas na internet, a dupla do Jovem Nerd, Alexandre Ottoni e Deive
Pazos. Ambos são criadores do maior podcast do Brasil, o Nerdcast, com
aproximadamente 2 milhões de acessos semanais. Não é pouca coisa. São
figuras que muito facilmente poderiam ser chamadas de "coxinhas": evitam
ao máximo polêmicas políticas, se recusam a defender um ou outro
partido e defendem ideais de empreendedorismo. Enfim, a prioridade dos
caras sempre foi criar conteúdo humorístico e de discussão sobre
assuntos de relevância para os nerds. Estou usando este exemplo
aparentemente esdrúxulo porque, por incrível que pareça, no dia 18 de
junho a dupla optou por publicar um vídeo em seu canal do YouTube para se posicionar em defesa das manifestações. É digno de nota, contudo, os comentários feitos por eles:
"A
gente pode resumir bastante o que tá acontecendo agora como
insatisfação. Insatisfação de.. como assim vocês vão agredir meia dúzia
de pessoas? Como assim vocês vão atacar jornalistas? Como assim eu não
posso sair na rua para falar?"
É
impressionante que essa fala, feita por duas pessoas que jamais
poderiam ser consideradas de esquerda, em defesa do direito de
manifestação, hoje pareça não ter mais nenhuma relação com a origem de
Junho. Algum tipo de obra política muito forte teve que entrar em cena
para barrar esta narrativa. Junho tomou muitos caminhos nos últimos
anos, mas é de entristecer que muitas das frestas abertas tenham sido
suturadas. Considero estarrecedor a mera necessidade de ter de escrever
este texto, de lembrar às pessoas que a origem das manifestações não foi
uma revolta repentina, mas o combate à brutalidade policial.
Depois de tudo isso
Junho
não foi simplesmente um movimento contra a corrupção, contra os gastos
da copa do mundo, contra os políticos que não nos representam, foi tudo
isso, mas foi muito mais. Seu início está na luta pela consolidação das
instituições democráticas neste País. Seu início está relacionado à
violência sentida nas periferias, na violência policial, uma das que
mais mata no mundo.
Junho
foi (e ainda é) uma grande oportunidade, um momento que permite
repensar a relação de todos com a política a partir de um consenso
democrático. O que hoje chamamos de golpe, na verdade, não é a
continuidade do que teve início em 2013, mas a destruição de seu legado.
Se observarmos os comentários do vídeo acima, veremos que a maior parte
deles são da ordem do: "e nada mudou", e é bem verdade. Junho foi uma
oportunidade, também, para o governo. Uma oportunidade para o país
começar a falar grosso com a FIFA, se recusar à chantagem barata de uma
das organizações mais corruptas do esporte internacional. Uma
oportunidade para o PT retomar suas bases de Direitos Humanos e propor
uma ofensiva contra os excessos das polícias militares — nunca houve,
como naquele momento, uma revolta tão grande com a atuação desmesurada
dos policiais militares. Foi a oportunidade única de construir um
projeto de Reforma Urbana, em conjunto com uma sociedade mobilizada,
investir mais em Saúde e Educação. Junho é, hoje, infelizmente, o nome
de uma série de chances jogadas fora justo no momento em que o Brasil
aprendeu a voltar às ruas.
Do
contrário, o que vimos foi mais do mesmo: o Brasil havia sido tomado de
assalto pelo maior movimento de ruas desde a queda da ditadura, e sua
classe política, em especial o partido no governo (sempre em nome da
"governabilidade") foi incapaz de dar respostas satisfatórias. Estou
exagerando: o governo Dilma deu respostas inexistentes. Muitos dos que
pedem impeachment, hoje, o fazem porque vêem a paralisação deste governo
em todas as áreas.
Enfim,
antes de acusar Junho e "sua origem fascista", membros do PT e do
governo deveriam antes reconhecer os próprios erros e responsabilidades
no desastre que nos espera. A disputa por Junho ainda está em aberto.
Oxalá a esquerda consiga retomá-la.
PICICA: "“A ascensão progressista apoiou-se
em duas impotências: a das direitas que não podiam assegurar a
governabilidade, colapsadas em alguns casos (Argentina em 2001/2002,
Bolívia em 2005, Equador em 2006 e Venezuela em 1998) ou sumamente
deterioradas em outros (Brasil, Uruguai e Paraguai) e a impotência das
bases populares que derrotaram governos, desgastaram regimes, mas,
inclusive nos processos mais radicalizados, não puderam impor
revoluções, transformações que fossem mais além da reprodução das
estruturas de dominação existentes”, escreve Jorge Beinstein, economista argentino e docente na Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Correio da Cidadania, 20-04-2016. A tradução é de Raphael Sanz."
América Latina em tempos de lumpencapitalismo: ilusões progressistas devoradas pela crise
“A ascensão progressista apoiou-se
em duas impotências: a das direitas que não podiam assegurar a
governabilidade, colapsadas em alguns casos (Argentina em 2001/2002,
Bolívia em 2005, Equador em 2006 e Venezuela em 1998) ou sumamente
deterioradas em outros (Brasil, Uruguai e Paraguai) e a impotência das
bases populares que derrotaram governos, desgastaram regimes, mas,
inclusive nos processos mais radicalizados, não puderam impor
revoluções, transformações que fossem mais além da reprodução das
estruturas de dominação existentes”, escreve Jorge Beinstein, economista argentino e docente na Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Correio da Cidadania, 20-04-2016. A tradução é de Raphael Sanz.
Segundo ele, “a ilusão progressista de
humanização do sistema, de realização de reformas “sensatas” dentro dos
marcos institucionais existentes, pode passar da decepção inicial a uma
reflexão social profunda, crítica da institucionalidade mafiosa, da
opressão midiática e dos grupos de negócios parasitários. Isto inclui a
farsa democrática que os legitima. Nesse caso a moléstia progressista
podia se converter, cedo ou tarde, em um furacão revolucionário. Não
porque o progressismo como tal evolua para a radicalidade antissistema,
mas porque emergiria uma cultura popular superadora, desenvolvida na
luta contra regimes condenados a se autodegradarem cada vez mais”.
Eis o artigo.
A conjuntura global está marcada por uma crise deflacionária motorizada pelas grandes potências. A queda dos preços das commodities, cujo aspecto mais chamativo foi, desde meados de 2014, a das cotizações do petróleo,
traz à tona a queda na demanda internacional enquanto se estanca a onda
financeira, muleta estratégica do sistema durante as últimas quatro
décadas. A crise da financeirização da economia
mundial vai ingressando de maneira ziguezagueante em uma zona de
depressão, onde as principais economias capitalistas tradicionais
crescem pouco ou nada (1) e a China se desacelera rapidamente. Frente a isso, o Ocidente desenvolve seu último recurso: o aparato de intervenção militar
a integrar componentes armados profissionais e mercenários, midiáticos e
mafiosos, articulados como “guerra de quarta geração” destinada a
destruir sociedades periféricas para transformá-las em zonas de saque. É
a radicalização de um fenômeno de larga duração de decadência sistêmica
onde o parasitismo financeiro e militar foi transformado no centro
hegemônico do ocidente. Não presenciamos a “recomposição” político-econômico-militar do sistema como foi a reconversão keynesiana (militarizada) dos anos 40 e 50, senão seu grau de degradação geral. A mutação parasitária do capitalismo
o converte em um sistema de destruição de forças produtivas, do meio
ambiente e de estruturas institucionais, onde as velhas burguesias vão
transformando-se em círculos de bandidos, uma nova dinâmica planetária
de lumpenburguesias centrais e periféricas. O declínio do progressismo Imersa neste mundo, desenvolve-se a conjuntura latino-americana, onde convergem dois feitos notáveis: o declínio das experiências progressistas e a prolongada degradação do neoliberalismo
que as precedeu e as acompanhou em países que entraram nessa corrente
da qual agora o neoliberalismo degradado aparece como sucessor. Os progressismos latino-americanos se instalaram sobre a base dos desgastes e em certos casos das crises dos regimes neoliberais
e quando chegaram ao governo os bons preços internacionais das matérias
primas, somados a políticas de expansão dos mercados internos,
permitiram-lhes recompor a governabilidade. A ascensão
progressista apoiou-se em duas impotências: a das direitas que não
podiam assegurar a governabilidade, colapsadas em alguns casos (Argentina em 2001/2002, Bolívia em 2005, Equador em 2006 e Venezuela em 1998) ou sumamente deterioradas em outros (Brasil, Uruguai e Paraguai)
e a impotência das bases populares que derrotaram governos, desgastaram
regimes, mas, inclusive nos processos mais radicalizados, não puderam
impor revoluções, transformações que fossem mais além da reprodução das
estruturas de dominação existentes. Nos casos da Bolívia e da Venezuela
os discursos revolucionários acompanharam práticas reformistas
carregadas de contradições. Anunciavam grandes transformações mas as
iniciativas se embrulhavam em infinitas idas e vindas, âmagos,
desacelerações “realistas” e outras astúcias que expressavam o temor
profundo a saltar as cercas do capitalismo. A Venezuela
aparece como o caso mais evidente de mistura de discursos
revolucionários, desordem operativa, transformações pela metade e
autobloqueios ideológicos conservadores. Não se conseguiu caminhar para a
transição revolucionária (pelo contrário) proclamada, ainda que se
tenha conseguido caotizar o funcionamento de um capitalismo
estigmatizado, mas de pé. Obviamente, os Estados Unidos promovem e se aproveitam dessa situação para avançar sua estratégia de reconquista do país. O resultado é uma recessão
cada vez mais grave, uma inflação descontrolada, importações
fraudulentas massivas que agravam a escassez de produtos e a evasão de
divisas que marcam uma economia em crise aguda (2). No Brasil, o ziguezague entre um neoliberalismo “social” e um keynesianismo
light quase irreconhecível foi reduzindo o espaço de poder de um
progressismo que transbordava fanfarronice “realista” (incluída sua
astuta aceitação da hegemonia dos grupos econômicos dominantes). A dependência das exportações de commodities e a submissão a um sistema financeiro local transnacionalizado terminaram por bloquear a expansão econômica. Finalmente, a combinação da queda dos preços internacionais
e das matérias primas e a exacerbação da pilhagem financeira
precipitaram uma recessão que acabou gerando uma crise política sobre a
qual começaram a cavalgar os promotores de um “golpe brando”, executado
pela direita local e monitorado pelos EUA. Na Argentina o “golpe brando” foi protegido por uma máscara eleitoral forjada por uma manipulação midiática desmedida. O progressismo kirchnerista
em sua última etapa havia conseguido evitar a recessão, ainda que com
um crescimento econômico sustentado pelo fomento ao mercado interno.
Também foi respeitada a máfia judicial que junto com a máfia midiática o
acossaram até desempossá-lo politicamente no meio de uma onda de
histeria reacionária das altas classes e do grosso das classes médias. Na Bolívia, Evo Morales
sofreu sua primeira derrota política significativa no referendo sobre
reeleição presidencial – sua chegada ao governo marcou a ascensão das
bases sociais submersas pelo velho sistema racista colonial. Mas a
mistura híbrida de fala anti-imperialista, pós-capitalista e indigenista
com a persistência de um modelo extrativista minerador de deterioração
ambiental e de comunidades rurais, ao lado da burocracia estatal
geradora de corrupção e autoritarismo, terminaram por diluir o discurso
do “socialismo comunitário”. Ficou assim aberto o espaço para a
recomposição das elites econômicas e a mobilização revanchista das
classes altas e seu séquito de classes médias penetrando em um vasto
terreno social desconcertado. Agora as direitas latino-americanas
vão ocupando as posições perdidas e consolidam as preservadas, mas já
não são aquelas velhas camarilhas neoliberais otimistas dos anos 90;
foram sofrendo mutações através de um complexo processo econômico,
social e cultural que as converteu em componentes de lumpenburguesias
niilistas embarcadas na onda global do capitalismo parasitário. Grupos
industriais ou de agrobusiness foram combinando seus investimentos
tradicionais com outros mais rentáveis, só que também mais voláteis:
aventuras especulativas, negócios ilegais de todo tipo (desde o
narcotráfico até operações imobiliárias opacas passando por fraudes
comerciais e fiscais e outros empreendimentos turvos), convergindo com
“investimentos” saqueadores provenientes do exterior, como a
megamineração ou rapinas financeiras. Tal mutação tem distantes
antecedentes locais e globais, variantes nacionais e dinâmicas
específicas, mas todas tendem a uma configuração baseada no predomínio
de elites econômicas enraizadas pela “cultura
financeiro-depredadora” (“curtoprazismo”, desarraigo territorial,
eliminação de fronteiras entre legalidade e ilegalidade, manipulação de
redes de negócios com uma visão mais próxima do videogame do que de
gestão produtiva e outras características próprias do globalismo
mafioso) que dispõe do controle midiático como instrumento essencial de
dominação, rodeando-se de satélites políticos, judiciais, sindicais,
policiais-militares etc. Restaurações conservadoras ou instaurações de neofascismos coloniais? No geral, o progressismo
qualifica suas derrotas ou ameaças como vitórias ou perigos de regresso
do passado neoliberal e também se utiliza do termo “restauração
conservadora”. Ocorre que esses dois fenômenos são sumamente inovadores e
têm muito pouco de “conservadores”. Quando avaliamos personagens como Aécio Neves, Maurício Macri ou Henrique Capriles
não encontramos chefes autoritários de elites oligárquicas estáveis,
mas personagens completamente inescrupulosos, ignorantes das tradições
burguesas de seus países (inclusive em olhares depreciativos dos
mesmos). Aparecem como uma sorte de mafiosos entre primitivos e
pós-modernos, a encabeçar politicamente grupos de negócios cuja norma
principal é a de não respeitar nenhuma norma (na medida do possível). Outro aspecto importante da conjuntura é o da irrupção de mobilizações ultrarreacionárias de grande dimensão onde as classes médias ocupam um lugar central. Os governos progressistas
supunham que a bonança econômica facilitaria a captura política destes
setores sociais, mas ocorreu o contrário: as camadas médias se
“direitizavam” enquanto ascendiam economicamente. Olhavam com desprezo
para os de baixo e assumiam seus próprios delírios neofascistas mirando
os de cima. O fenômeno sincroniza-se com tendências neofascistas
ascendentes no ocidente, da Ucrânia aos Estados Unidos, passando por Alemanha, França, Hungria etc. Expressão cultural do neoliberalismo decadente, pessimista, de um capitalismo niilista ingressando em sua etapa de reprodução ampliada e negativa, onde o apartheid aparece como uma tábua de salvação. Mas este neofascismo latino-americano
inclui também a reaparição de velhas raízes racistas e segregacionistas
que haviam estado tapadas pela crise de governabilidade dos governos
neoliberais, a irrupção de protestos populares e as primaveras
progressistas.
Nesse sentido poderíamos entender um dos significados da revolução cubana, que logo se estendeu como onda anticapitalista na América Latina, como superação crítica dos reformismos nacionalistas democratizantes fracassados (como o varguismo no Brasil ou o governo de Jacob Arbenz na Guatemala).
A memória popular não pode ser extirpada, pode chegar a fundir-se em
uma espécie de clandestinidade cultural, em uma latência subterrânea
digerida misteriosamente, pensada pelos de baixo, subestimada pelos de
cima, para reaparecer como presente, quando as circunstâncias a
requisitarem, renovada, implacável.
Notas do autor:
1) Se
considerarmos o período entre 2010e 2014, o crescimento médio real da
economia do Japão foi na ordem de 1,5%, a dos EUA 2,2% e a da Alemanha
2% (Fonte: Banco Mundial). 2)
Um bom exemplo é o da “importação” de fármacos onde empresas
multinacionais como Pfizer, Merck e P&G fazem fabulosos negócios
ilegais diante de um governo “socialista” que os abastece com dólares a
preços preferenciais. Com um jogo de superfaturamentos, altos preços e
importações inexistentes as empresas farmacêuticas haviam importado em
2003 cerca de 222 mil toneladas de produtos pelos quais pagaram 434
milhões de dólares (uns 2 mil dólares por tonelada); em 2010 as
importações baixaram a 56 mil toneladas e foram pagos 3,4 bilhões de
dólares (60 mil dólares a tonelada); em 2014 as importações descenderam
ainda mais a 28 mil toneladas e foram pagos 2,4 bilhões de dólares (um
pouco menos de 87 mil dólares por tonelada). Como
assinala Manuel Sutherland, de cujo estudo extraio essa informação,
“longe de colocar-se na criação de uma grande empresa estatal de
produção de fármacos, o governo prefere dar-lhes divisas preferenciais a
importadores fraudulentos, ou confiar em burocratas que realizam
importações sob a maior opacidade”. Manuel Sutherland, “2016: a pior das
crises econômicas, causas, medidas e crônica de uma ruína anunciada”,
CIFO, Caracas 2016. 3) Ignazio Silone, “L´École des dictateurs”, Collection Du monde entier, Gallimard, Paris, 1964.