abril 28, 2016

Grotescamente humano. POR João Ricardo (OBVIOUS)

PICICA: "O diálogo que o artista propõe com o espectador questiona a própria identidade humana, inclusive a sua.

O belo depende do grotesco para existir. Ninguém iria saber o que seria bom se não existisse o ruim. Olhando para a história de uma religião em particular, Budha nunca sairia de sua zona de conforto e atingiria a iluminação para ajudar milhões de pessoas se não percebesse a existência da decadência humana, da doença, da depravação, do grotesco."


Grotescamente humano


O diálogo que o artista propõe com o espectador questiona a própria identidade humana, inclusive a sua.

O belo depende do grotesco para existir. Ninguém iria saber o que seria bom se não existisse o ruim. Olhando para a história de uma religião em particular, Budha nunca sairia de sua zona de conforto e atingiria a iluminação para ajudar milhões de pessoas se não percebesse a existência da decadência humana, da doença, da depravação, do grotesco.

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Por outro lado, as luzes não se misturam com as trevas e o trabalho de Erik Thor Sandberg reflete justamente essa observação profunda e infinita no abissal do grotesco da existência comportamental humana. 

O diálogo que o artista propõe com o espectador questiona a própria identidade humana, inclusive a sua. Suas obras são inundadas de narrativas individuais tiradas de um filme de terror, hora sadomasoquista, hora canibalista, hora surrealista, hora animalesco. Sempre que olharmos para alguns de seus trabalhos, os leremos de forma diferente, tamanha é sua riqueza plástica.

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Erik Thor Sandberg reside em Washington, DC e já expos seus trabalhos por toda parte. A singularidade de sua técnica é única e ele a conseguiu através de anos de prática e pesquisa e também através do próprio questionamento do que consiste a natureza humana. 

Nas suas narrativas que muitas vezes são começos, outras vezes são fins, ele se apropria de momentos que são cruciais para a mensagem deseja passar. Assim, faz com que o tempo fique suspenso e a narrativa fique pausada por alguns breves momentos de reflexão, o artista consegue abster o julgamento e proporcionar somente a observação enfatizando seus personagens contidos em contextos de puro desastre caótico desumano.

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Normalmente seu olhar está na falha da natureza humana, nos vícios, no lado grotesco de seus personagens e suas características e atitudes, suas expressões faciais, as relações entre humanos com cadáveres. Estes aspectos da natureza falha, do outro lado do que o olho está acostumado a ver tem sido a parte principal de seu trabalho ao longo dos anos. Ao revelar essas imperfeições, ele também mostra como a vida tem sua parte interessante e curiosa que desperta o interesse de saber o que leva a pessoa a se colocar nestas situações, ou até mesmo a pintar estas cenas, estes personagens. Ainda há beleza, eternamente apreciada, querida e almejada, em seu trabalho porque contrasta com o grotesco e forma a relação que o artista deseja. Sem a beleza o grotesco não seria apreciado tão intensamente.

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João Ricardo

Criador criativo de criações aleatórias.

Fonte: OBVIOUS

Spinoza e a superação da construção de uma sociedade baseada nas paixões tristes. POR Francisco Guimaraens (IHU)

PICICA: "“O ódio nunca pode ser bom, dizia Spinoza. Ele não tem nenhuma serventia. A ética de Spinoza é construída para a experiência da liberdade: combater a servidão, o ódio, as paixões tristes e os ressentimentos. A ética de Spinoza é uma ética da resistência. A própria alegria é uma forma de resistência”, sustenta Francisco de Guimaraens.

“Há toda uma estrutura da economia e da sociedade que nos leva à depressão, à tristeza”, destaca o conferencista de Fundações ontológicas e éticas da política e do direito: um olhar a partir de Spinoza."

Spinoza e a superação da construção de uma sociedade baseada nas paixões tristes

“O ódio nunca pode ser bom, dizia Spinoza. Ele não tem nenhuma serventia. A ética de Spinoza é construída para a experiência da liberdade: combater a servidão, o ódio, as paixões tristes e os ressentimentos. A ética de Spinoza é uma ética da resistência. A própria alegria é uma forma de resistência”, sustenta Francisco de Guimaraens.

“Há toda uma estrutura da economia e da sociedade que nos leva à depressão, à tristeza”, destaca o conferencista de Fundações ontológicas e éticas da política e do direito: um olhar a partir de Spinoza, evento realizado na terça-feira, 19-04-2016, às 19h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. O evento integra a programação do 3º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum.

Francisco durante sua palestra à noite. Foto por Susana Rocca

Quem foi Spinoza

Diante de um público de aproximadamente 60 pessoas, formado por alunos de diversos cursos de graduação, o professor contextualizou quem foi Spinoza. “Spinoza nasceu em 1632, em Amsterdã, em uma das províncias unidas dos países baixos. De família judia e pais portugueses, sua família foi fustigada pela França por razões políticas e religiosas. Já em Amsterdã, no estado que chamamos atualmente de Holanda, Spinoza foi excomungado de sua comunidade judaica, ainda que a cidade fosse um reduto de liberdade religiosa”, explica.

Mas por que discutir o século XVII no século XXI?

Spinoza, que viveu no século XVII, foi lembrado no seguinte por Marx, que escreveu três textos e uma carta dizendo ao seu pai que gostaria de fazer na economia o que Spinoza fez na teologia. Nietzsche, no século XIX, disse que Spinoza o havia tirado do estado de solidão e o colocado em um estado de “dualidão”, uma solidão a dois. A razão, porém, a que nos remetemos a Spinoza no século XX e, mais recentemente, no XXI, é que suas teses tiveram impactos na física, na política e no direito.

“O que vou debater diz respeito à forma como o pensamento de Spinoza impacta em três aspectos: 1) como sua teologia produz efeitos políticos; 2) como sua ética é fundada em uma ideia de alegria e não em uma relação hierárquica; e 3) como isso produz efeitos no direito”, esclarece.

Teologia e Política

Segundo Francisco, para Spinoza as palavras “substância-deus-natureza” são sinônimos. “Para Spinoza essas três coisas são uma potência infinita que é causa da própria existência, é autopoiético. Isso se compõe de uma multiplicidade de atributos”, pontua o conferencista.

“A rigor, Spinoza monta uma ideia de Deus para refutar a imagem do monarca absoluto. Deus é causa eficiente imanente de todas as coisas, significa que tudo que produz é no seu interior e causa de seus efeitos”, explica. “O Monarca absoluto estava acima da lei e transformava todas as suas vontades em lei. Ele estava fora da comunidade política. Ainda que exista monarquia, o monarca não é externo a ela e por isso deve governar no interesse do povo e dos cidadãos, dizia Spinoza”, complementa.

Fotos Susana Rocca

Ética

Para o conferencista, a ética spinoziana é eminentemente prática. “Não se trata de mera contemplação sobre os valores morais. A ética de Spinoza deve nos auxiliar a modificar nossa própria vida. Trata-se sobretudo de uma ética organizada e estruturada para auxiliar aquilo que é tão difícil quanto raro: a alegria e a liberdade”, pondera Francisco. “Há uma relação necessária entre alegria e liberdade. A finalidade da obra Ética (Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009) é se liberar dos ressentimentos e das paixões tristes, tudo aquilo que ele considera servidão. Por isso também a ética de Spinoza é tão atual”, avalia.

Alegria e Liberdade

“Em primeiro lugar é preciso entender a própria noção de Alegria em Spinoza. Cada coisa que existe exime uma potência singular, que são próprias de cada um de nós. Essa potência varia de acordo com os encontros que nós formamos. Se formo encontro com algo que dá vazão à minha potência isso é positivo, causa alegria. Se encontro algo que destrói meus afetos, me entristeço”, exemplifica o professor. “Toda alegria é uma composição de potências. Não existe alegria egoica, como, por exemplo, a obsessão pelo consumo, porque ela não se sustenta, não é estável”, frisa.

É importante destacar que na perspectiva spinoziana as alegrias são passivas quando não dependem exclusivamente de nós, como, por exemplo, a torcida de futebol que fica feliz quando o seu time vence, embora não seja capaz de interferir diretamente no resultado da partida. Entretanto, o que interessa ao pensamento do filósofo é a alegria ativa. “O que Spinoza fez foi escrever uma obra que o leitor pudesse formar bons encontros que não dependessem das circunstâncias, mas aquela que nós próprios engendramos, cuja causa adequada somos nós. Ele chama isso de alegria ativa”, pondera.

Um laboratório chamado Brasil

Após estabelecer todo arcabouço teórico e conceitual, Francisco aproximou a filosofia de Spinoza à realidade brasileira. “Pensamos no Brasil nas cidades em que há uma cisão brutal entre classes sociais, cujo o único convívio se reduz ao caixa do supermercado”, provoca. “No Rio de Janeiro há escolas ocupadas e geridas por alunos. Eles encontraram lá pilhas de livros que não eram distribuídos para as crianças, havia depósito com merendas estocadas”, critica. “Que tipos de afeto são socializados por essa divisão que afeta todo o sistema educacional?”, questiona.

Direito e Política

“Nós temos tanto direito quanto temos potência. Tudo que a gente pode fazer é tudo o que a gente tem de direitos. Quando as políticas estão mal organizadas elas não propiciam o direito e, portanto, produzem tristeza. As instituições políticas e sociais se fundamentam na produção das tristezas”, descreve.

Para sair desse círculo vicioso, Francisco propõe um novo paradigma de abordagem. “O que constitui a sociedade brasileira não é o ressentimento dos oprimidos, mas o ódio dos opressores. Essa causa é a desigualdade brutal em termos sociais, regionais, raciais, de gênero. É fundamental pensar em instituições que propiciem não o ódio, mas o auxílio mútuo. Não há outra estratégia, não há outra alternativa”, argumenta.

Contra a tirania

“O contrário da liberdade é a solidão. Politicamente a solidão é o contrário da Multidão. A solidão é a tirania, é tudo aquilo que impede a produção das diferenças que compõem determinada sociedade. O medo e o ódio geram solidão. A tirania não é só o ditador. Há outras formas mais silenciosas de tirania”, analisa.

Na contramão dos bolhas ideológicas que se formam nas sociedades atuais, Francisco sustenta que o Estado deve garantir canais de relação entre os diferentes, tal qual foi Amsterdã no século XVII. “O homem é mais livre no Estado que se organiza pela democracia que no estado tirânico. Se a ética é uma reflexão da liberdade do indivíduo e a política uma reflexão sobre as instituições necessárias à autonomia da multidão, não dá para pensar a ética sem a política e sem o direito. Os nossos direitos”, considera.

Quem é Francisco Guimaraens

Nascido e criado na Gávea, Francisco Guimaraens começou sua experiência docente no final da década de 1990 quando, aos finais de semana, foi professor de português em um pré-vestibular criado para a comunidade negra e empobrecida da capital fluminense, que funcionava em um Centro Integrado de Educação Pública – CIEP. Atualmente é graduado, mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ, instituição onde atualmente é professor assistente. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Teoria do Estado e Filosofia Política.

Por Ricardo Machado

Fonte: IHU

Contra o desespero, construir a autonomia. Por Renan Porto (UNINÔMADE)

PICICA: "O desespero e o maniqueísmo que temperam algumas análises ao redor dos últimos acontecimentos focalizam toda a nossa atenção no impeachment, deixando-nos numa situação de dependência e expectativa do que os políticos e instituições podem fazer por nós. Na história da esquerda, há toda uma tradição de lutas reivindicativas que tiveram os partidos institucionalizados e o Estado como principais mediadores para a transformação social. Contudo, no vazio de representação em que giram as instituições, esse tipo de ação se tornou limitado demais. É preciso aprofundar o pensamento e a estratégia para uma ação política mais autônoma e produtiva institucionalmente, que encontre na sociedade os protagonistas das mudanças. Uma construção política de baixo para cima, a partir do social em seus pontos de atrito e antagonismo. É o que tem acontecido, por exemplo, na luta dos estudantes que ocuparam suas escolas em São Paulo, Goiás e Rio de Janeiro, reinventado a rotina escolar e revitalizando os espaços da educação."

Contra o desespero, construir a autonomia

Por Renan Porto, UniNômade



Luchas2



Com a aprovação do impeachment na Câmara de Deputados, as redes sociais foram tomadas por uma onda de desespero e maniqueísmo. Porém, um maniqueísmo débil,  sem um lado realmente “bom”. Nesta disputa pelo laço suicida, a sociedade é mobilizada numa luta que não vai produzir nada de alternativo para o terreno institucional ou, quiçá, social. Os discursos que se propõem como desvios ao furacão em que fomos engolidos acabam abafados pela própria força de seu sopro.


Já é bastante repetido que foi o próprio PT quem cavou a sua cova durante os mandatos à frente do governo federal, fazendo diversas alianças e concessões com o PMDB, que agora o apunhala pelas costas. Que Eduardo Cunha e a sua trupe sejam um bando de vigaristas e que todo esse processo de impeachment uma grande tramoia, disso todos já sabemos. Só não enxerga quem não quer. Mas precisamos de um debate que vá além desta constatação e apresente outros horizontes para a transformação, que encare de uma vez que o governo do PT já acabou de qualquer jeito, antes da efetivação do impeachment. O que importa, agora, é lidar com o cenário pós-PT.


É preciso resistir ao desespero que reduz a percepção da conjuntura a uma grande cena de devastação. Cair nessa percepção pode imobilizar possibilidades de pensamento e agenciamento social a partir dos acontecimentos. É claro que a situação não é boa e que as forças conservadoras se esforçam para hegemonizar o espaço público. Não devemos realmente permitir esse avanço, mas essa constatação não pode significar uma perda de perspectiva produtiva: precisamos investir nossa potência de ação num caminho que não seja vazio. Lutar pela conservação de um governo já derrotado só vai permitir que a indignação e o desejo social sejam canalizados pelos movimentos contrários ao projeto que esse governo busca simbolizar e representar politicamente. Uma canalização que tem feito, por exemplo, o Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por Kim Katiguiri.


Além disso, a conservação do governo do PT não seria garantia sequer para a manutenção do estado atual das coisas, já que ao longo dele têm avançado políticas tão retrógradas como, por exemplo, a lei antiterrorismo, proposta em regime de urgência pela própria Dilma e por ela sancionada (uma de suas últimas medidas). Enquanto isso, mesmo depois de 13 anos da estrela vermelha no poder, as chacinas nas favelas continuam, a reforma agrária não aconteceu, o desastre em Mariana (o “Chernobyl brasileiro”) foi praticamente ignorado, a construção da usina de Belo Monte continua avançando, os direitos trabalhistas e sociais vêm sendo erodidos em nome do ajuste fiscal, as tarifas de energia elétrica e combustíveis seguem elevadas, a taxa de desemprego sobe e a inflação se mantém alta, os grandes cortes na educação comprometem bolsas, projetos, pesquisas. Não podemos esquecer que, em pouco mais de um ano do segundo mandato de Dilma, vimos todo esse retrocesso ocorrer. Apesar da possibilidade de uma aceleração desse programa já em curso por um governo encabeçado pelo ex-aliado PMDB, a continuação do governo Dilma não seria sinônimo de barrar tal avanço conservador.


Muitas pessoas temem a possibilidade de volta aos anos de chumbo da ditadura, com o retorno de um Estado autoritário. Ora, em muitas favelas e periferias do Brasil, a presença do Estado se dá através da intervenção militar do exército e da polícia militar, fazendo desses territórios zonas de produção de morte (tanatopolítica). Também já é uma realidade a repressão violenta aos protestos de rua que reivindiquem direitos e não obedeçam à ordem autorizada de identidades polarizadas que, uma contra a outra, têm permissão para protestar porque participam do jogo da cena política esvaziada. Com isso, vivemos uma situação em que não parece mais possível o dissenso e a intervenção por aqueles fora do jogo da polarização, desautorizados a protestar porque não assumem “um lado”, segundo o policiamento de si e dos outros imposto pelo consenso em vigor. O fato é que o golpe à democracia já acontece nas ruas faz tempo.


Também é interessante observar que a forma como o capitalismo contemporâneo opera requer um mínimo de liberdades individuais. No livro “O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal”, Maurizio Lazzarato reflete a partir do pensamento de Foucault:


“O neoliberalismo é, segundo Foucault, um modo de governo que consome a liberdade, e que, para se fazer, deve primeiro produzi-la e organizá-la. A liberdade não é para os neoliberais um valor natural que preexiste à ação governamental e a qual se trataria de garantir o exercício (como no liberalismo clássico), mas é algo que o mercado tem necessidade para poder funcionar. A liberdade que o liberalismo incita, solicita, produz é simplesmente o correlato dos dispositivos de segurança” (p. 29).


Na atual forma do capitalismo, cada indivíduo é transformado numa “empresa individual”, empreendedor de si mesmo, e para tanto requer um mínimo de liberdade para investir em sua subjetividade, numa subjetividade ajustada para as demandas do mercado por eficiência e competividade. O poder de sujeição do indivíduo se reinventa, sendo que agora “o homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado”, diz Deleuze, em seu “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. Nesse denso ensaio, Deleuze fala da passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle. Para além do par repressão e ideologia, o capitalismo atual trabalha investindo e organizando os desejos através de modulações das liberdades permitidas, de regulações desde dentro da formação dos próprios sujeitos, mais penetrante do que somente reprimindo e disciplinando.


O mercado é hoje o principal financiador da política e usurpa o Estado para se fortalecer, criando uma indiferenciação entre o que é Público e Privado. O que acontece, por exemplo, através do financiamento privado das campanhas eleitorais, como também em qualquer outra instituição em que o sujeito que ocupe uma função pública e dela faça uso de acordo com interesses privados. Então, sendo as empresas (o mercado, a sociedade-empresa) as principais representadas na política, as quais necessitam deste contingente de liberdade para seu funcionamento, seria difícil uma redução total das liberdades individuais protegidas pelo Estado, sob pena de paralisar o funcionamento do capital. Claro que a liberdade requerida pelo mercado é limitada, sobretudo é a liberdade para consumir. Mas, o paradoxo é que este mínimo de autonomia individual, esta brecha do sistema, possibilita um ponto de partida para a reinvenção de formas de resistência e o agenciamento de novas lutas.


Digo isso não para garantir alguma segurança, mas, a título de contra-argumento aos discursos desesperados e maniqueístas que estão aparecendo por aí. Tento afirmar a possibilidade de esperança, um afeto que potencializa a capacidade de ação. Apesar da história não seguir um roteiro progressivo e linear, sendo possível, sim, um grande retrocesso na direção de uma sociedade menos livre, tal retrocesso não vem sem resistência, inclusive, em alguns casos, por parte de organizações do mercado.


O desespero e o maniqueísmo que temperam algumas análises ao redor dos últimos acontecimentos focalizam toda a nossa atenção no impeachment, deixando-nos numa situação de dependência e expectativa do que os políticos e instituições podem fazer por nós. Na história da esquerda, há toda uma tradição de lutas reivindicativas que tiveram os partidos institucionalizados e o Estado como principais mediadores para a transformação social. Contudo, no vazio de representação em que giram as instituições, esse tipo de ação se tornou limitado demais. É preciso aprofundar o pensamento e a estratégia para uma ação política mais autônoma e produtiva institucionalmente, que encontre na sociedade os protagonistas das mudanças. Uma construção política de baixo para cima, a partir do social em seus pontos de atrito e antagonismo. É o que tem acontecido, por exemplo, na luta dos estudantes que ocuparam suas escolas em São Paulo, Goiás e Rio de Janeiro, reinventado a rotina escolar e revitalizando os espaços da educação.


Não seria possível fazer isso com outras instituições, no grande horizonte de ocupar as nossas cidades? Por exemplo, pensar numa reapropriação de um hospital por parte dos seus usuários, amigos e familiares, e debater seus gastos, as políticas voltadas para ele, inclusive agir diretamente sobre a instituição de saúde para melhorar as condições de acesso, de cuidado, de gestão democrática. Não seria também possível a construção de plataformas eleitorais municipalistas que possibilitem mandatos com mais participação social, como aliás se vem tentando em algumas cidades, como em Belo Horizonte ou Nova Iguaçu?


Por fim, realmente não podemos deixar de lado as tensões da macropolítica, como se nada tivéssemos a ver com elas. Porque também estamos sujeitos a ela. Contudo, este texto objetiva justamente descentralizar a atenção deste plano que parece ocupar espaço demais nos últimos tempos, e chamar a atenção para outros caminhos, em que possamos voltar a ser agentes das lutas e não apenas espectadores. Enquanto não formos capazes de reconquistar espaços de mais autonomia, a esfera macropolítica da disputa do Estado continuará sendo um grande centro de poder que nos sequestra a agência, um poder capaz de mandos e desmandos sobre as nossas vidas. Enquanto isso, os mesmos dramas poderão estar sempre se repetindo.

Fonte: UNINÔMADE

Porque é que hoje nenhuma revolução é possível? \ Byung-Chul Han (PUNKTO)

PICICA: "Num debate entre mim e António Negri, que ocorreu há cerca de um ano no Berliner Schaubühne, confrontaram-se duas críticas bem distintas do Capitalismo. Negri estava confiante com a ideia de uma resistência global ao “Império”, ao sistema neoliberal de dominação, apresentando-se a si mesmo como um comunista revolucionário e referindo-se a mim como um académico céptico. Acreditava, enfaticamente, que a “multitude”, as massas interconectadas do protesto e da revolução, iriam ser capazes de fazer cair o “Império”. A posição do comunista revolucionário pareceu-me muito ingénua e afastada da realidade. Por isso, procurei explicar a Negri porque é que hoje a revolução já não é possível."

Porque é que hoje nenhuma revolução é possível? \ Byung-Chul Han

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Porque é que hoje nenhuma revolução é possível?
Byung-Chul Han

Num debate entre mim e António Negri, que ocorreu há cerca de um ano no Berliner Schaubühne, confrontaram-se duas críticas bem distintas do Capitalismo. Negri estava confiante com a ideia de uma resistência global ao “Império”, ao sistema neoliberal de dominação, apresentando-se a si mesmo como um comunista revolucionário e referindo-se a mim como um académico céptico. Acreditava, enfaticamente, que a “multitude”, as massas interconectadas do protesto e da revolução, iriam ser capazes de fazer cair o “Império”. A posição do comunista revolucionário pareceu-me muito ingénua e afastada da realidade. Por isso, procurei explicar a Negri porque é que hoje a revolução já não é possível.
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Porque é que o sistema de dominação neoliberal é tão estável? Porque é que há tão pouca resistência? Porque é que toda a resistência, quando ocorre, se desvanece tão rapidamente? Porque é que já não é possível a revolução, apesar do crescente fosso entre ricos e pobres? Para explicar este estado de coisas é necessária uma compreensão adequada de como funcionam hoje o poder e a dominação.
Quem pretender instalar um sistema de dominação deve eliminar toda a resistência e o mesmo se aplica ao actual sistema de dominação neoliberal. Estabelecer um novo sistema de dominação requer um poder que se impõe frequentemente através da violência. Contudo, esse poder não é idêntico àquele que estabiliza o sistema internamente. Como é bem sabido, Margaret Thatcher, pioneira do neoliberalismo, tratava os sindicatos como “inimigos internos” e combateu-os violentamente. Contudo, não devemos confundir a intervenção violenta que impõe a agenda neoliberal com um poder de estabilização ou manutenção do sistema.

O poder de estabilização do sistema não é repressivo mas sedutor
O poder de estabilização da sociedade industrial e disciplinar era repressivo. Os operários eram brutalmente explorados pelos proprietários, o que originava actos de protesto e de resistência. Nesse momento, foi possível que uma revolução derrubasse as relações de produção existentes. Nesse sistema de repressão tanto os opressores como os oprimidos eram visíveis. Havia um adversário concreto – um inimigo visível – ao qual se oferecia resistência.
O sistema de dominação neoliberal tem uma estrutura completamente distinta. Hoje, o poder que estabiliza o sistema já não funciona através da repressão, mas através da sedução – isto é, cativando. Já não é visível, como no caso do regime disciplinar. Hoje, não há um adversário concreto, um inimigo, que nos retire a liberdade e ao qual se possa resistir.
O neoliberalismo transforma o trabalhador oprimido num empresário livre, um empreendedor de si mesmo. Hoje, cada um de nós é um trabalhador que se explora a si próprio na sua própria empresa. Cada um de nós é mestre e escravo na sua mesma pessoa. E também a luta de classes se transforma em luta interna de cada um consigo próprio. Hoje, aqueles que não conseguem atingir o sucesso culpam-se a si próprios e sentem-se envergonhados. As pessoas vêem-se a si próprias como o problema e não a sociedade.




O sujeito submetido nem sequer tem consciência da sua submissão
Um poder disciplinar que procura colocar o ser humano debaixo de um colete-de-forças de ordens e proibições é totalmente ineficiente. Pelo contrário, é significativamente mais eficiente assegurar que as pessoas se submetam de espontânea vontade à dominação. A eficácia que define o actual sistema advém do facto de operar não tanto através da proibição e da privação, mas procurando agradar e satisfazer. Em vez de gerar homens obedientes, esforça-se por torná-los dependentes. Esta lógica da eficiência neoliberal aplica-se igualmente à vigilância. Nos anos 80, para citar um exemplo, houve protestos veementes contra o censo demográfico alemão. Até os estudantes saíram à rua.
Do ponto de vista actual, a informação solicitada no censo – profissão, níveis de educação, distância de casa ao trabalho – parece quase ridícula. Mas naquela altura o Estado era visto como uma instância de dominação que retirava informação aos cidadãos contra a sua vontade. Essa época há muito que ficou para trás. Hoje expomo-nos de livre vontade. É precisamente este sentido de liberdade que torna qualquer protesto impossível. Ao contrário daquilo que acontecia nos dias do censo, hoje dificilmente alguém protesta contra a vigilância. O livre desnudamento e a auto-exposição seguem a mesma lógica da eficiência como livre auto-exploração. Protesta-se contra quê? Contra si próprio? A artista conceptual Jenny Holzer formulou o paradoxo da actual situação: “Protect me from what I want" [“Protege-me daquilo que quero”].
É importante distinguir entre um poder que impõe e um poder que estabiliza. Hoje, o poder que estabiliza o sistema assume um disfarce amigável e smart, tornando-se invisível e inatacável. O sujeito submetido nem sequer tem consciência da sua submissão. O sujeito pensa-se livre. Esta técnica de dominação neutraliza a resistência de modo eficaz. A dominação que reprime e ataca a liberdade não é estável. Por isso o regime neoliberal é tão estável, ele imuniza-se contra toda a resistência porque faz uso da liberdade em vez de a reprimir. Suprimir a liberdade provoca imediatamente resistências, explorar a liberdade não.
Depois da crise financeira asiática, a Coreia do Sul estava paralisada e em choque. O FMI interveio e disponibilizou crédito. Em troca, o governo teve que impor uma agenda neoliberal. Isto foi iminentemente repressivo, poder impositivo – o tipo de poder que frequentemente é acompanhado de violência e que se distingue do poder de estabilização do sistema que procura sempre passar como liberdade.
De acordo com Naomi Klein, o estado de choque social que se segue a catástrofes como a crise financeira na Coreia do Sul – ou a actual crise na Grécia – oferece a oportunidade de reprogramar radicalmente a sociedade pela força. Hoje, quase não há qualquer resistência na Coreia do Sul. Bem pelo contrário: um consenso generalizado prevalece – assim como a depressão e o esgotamento. A Coreia do Sul tem hoje a mais alta taxa de suicídio do mundo. As pessoas agem violentamente sobre si próprias em vez de procurarem mudar a sociedade. A agressão dirigida para fora, que implicaria a revolução, foi substituída pela auto-agressão dirigida contra si próprio.
Hoje, não há uma multitude cooperante e conectada capaz de se levantar numa massa global de protesto e revolução. Pelo contrário, o modo dominante de produção baseia-se em empreendedores isolados e solitários, alheados de si próprios. Antes as empresas costumavam competir entre si. Contudo, dentro de cada empresa, era possível encontrar solidariedade. Hoje, todos competem contra todos, inclusive, dentro da mesma empresa. Apesar da competitividade aumentar a produtividade, esta destrói a solidariedade e o sentido comum. Nenhuma massa revolucionária pode surgir de indivíduos exaustos, depressivos e isolados.
O neoliberalismo não pode ser explicado em termos marxistas. No neoliberalismo não tem sequer lugar a “alienação” do trabalho. Hoje, mergulhamos euforicamente no trabalho – até ao esgotamento. O primeiro nível da síndrome de Burnout [esgotamento] é a euforia. Esgotamento e revolução excluem-se mutuamente. Assim, é um erro pensar que a Multitude poderá derrubar o “Império parasitário” e construir uma ordem social comunista.


A economia de partilha leva à total mercantilização da vida
Qual é o estado actual do comunismo? Há hoje uma invocação constante da noção de “partilha” [sharing] e de “comunidade”. A economia de partilha parece substituir a economia da propriedade e da posse. Sharing is Caring [partilhar é cuidar] é a máxima da empresa “Circler”, no mais recente romance de Dave Egger: partilhar é curar, por assim dizer. Os passeios que levam até à sede da empresa estão cheios de máximas como “Comunidade Primeiro” e “Humanos trabalham aqui”. Mas o verdadeiro mote deveria ser: “cuidar é matar”
Centros de boleias digitais, que nos transformam a todos em taxistas, são igualmente divulgados com apelos à comunidade. Mas é um erro afirmar – como faz Jeremy Rifkin no seu mais recente livro, The Zero Marginal Cost Society – que a economia de partilha anuncia o fim do capitalismo inaugurando uma ordem social orientada para o comum, onde partilhar tem mais valor que possuir. O que acontece é precisamente o oposto: a economia de partilha leva, em último caso, à total mercantilização da vida.
A mudança que Rifkin celebra – da posse para o acesso – não nos liberta do capitalismo. As pessoas sem dinheiro continuam a não ter acesso à partilha, ao sharing. Mesmo na idade do acesso, continuamos a viver dentro daquilo que Didier Bingo chamou o “Ban-opticon”, onde aqueles sem meios económicos permanecem excluídos. “Airbnb” – o mercado comunitário que faz de cada casa um hotel – fez da hospitalidade uma mercadoria, um bem de consumo.
A ideologia da “community” [comunidade] e dos “collaborative commons” [bens comuns colaborativos] levam à total mercantilização da comunidade. Tornou-se impossível uma amabilidade desinteressada. Numa sociedade de valorização recíproca e permanente, também a amizade se tornou comercializável. Tornamo-nos amáveis para obteremos melhores avaliações.
A dura lógica do capitalismo prevalece mesmo no coração dessa economia de partilha. Paradoxalmente, neste tão simpático “partilhar” ninguém dá nada a ninguém voluntariamente e de graça. O capitalismo realiza-se plenamente no momento em que vende o comunismo como mercadoria. O comunismo como mercadoria é o fim da revolução.
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Nota da edição
Texto traduzido a partir da versão alemã (com auxílio da versão inglesa e espanhola) publicado originariamente no Süddeutsche Zeitung, a 3 de Setembro de 2014.
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Imagem
1. Jenny Holzer, The Survival series, Protect Me From What I want, 1983-1985.
2. Imagem que acompanha o artigo original no Süddeutsche Zeitung (Foto: dpa)
3. Manifestação anti-airbnb em Nova Iorque a 20 de Janeiro de 2015 (Foto: Shannon Stapleton/Reuters/Newscom, Via Daily Signal).
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Byung-Chul Han,
Filósofo Sul-Coreano e professor na Universität der Künste Berlin (UdK).
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Ficha técnica                                   
Data de publicação: 2 de Dezembro de 2015
Etiqueta: Política (Pensamento crítico)

 Fonte: PUNKTO

Junho e o Golpe. POR Fernando Bastos Neto (MEDIUM)

PICICA: "Agora que o governo praticamente acabou, e que o afastamento de Dilma Rousseff se tornou inevitável, tem ganhado força por aí uma certa tese que coloca nos movimentos de junho de 2013 a "culpa" pelo golpe. Não deixa de ser curioso e sintomático que esta tese esteja ganhando força nas hostes de uma certa esquerda mais próxima da defesa do governo. Este texto, contudo, é um esforço na tese contrária. Em negrito, para que não falte clareza: não, Junho de 2013 não foi o estopim do golpe. Os motivos para isso são vários e não são difíceis de entender. Permitam-me refrescar a memória do pessoal. Senta que lá vem a história."

Junho e o Golpe

Agora que o governo praticamente acabou, e que o afastamento de Dilma Rousseff se tornou inevitável, tem ganhado força por aí uma certa tese que coloca nos movimentos de junho de 2013 a "culpa" pelo golpe. Não deixa de ser curioso e sintomático que esta tese esteja ganhando força nas hostes de uma certa esquerda mais próxima da defesa do governo. Este texto, contudo, é um esforço na tese contrária. Em negrito, para que não falte clareza: não, Junho de 2013 não foi o estopim do golpe. Os motivos para isso são vários e não são difíceis de entender. Permitam-me refrescar a memória do pessoal. Senta que lá vem a história.

De início, os movimentos de rua em São Paulo eram apenas contra a tarifa e contra o aumento. Na semana do dia 12 de junho, tudo parecia apenas mais uma da continuidade de uma série de confrontos entre população, majoritariamente estudantes, e as autoridades da prefeitura e do governo do estado, em busca de um novo modelo de transporte público no país. Neste dia, a Folha de São Paulo retratou da seguinte maneira o embate entre policiais e estudantes.

Todas as imagens a seguir podem ser encontradas no acervo da Folha.

12 de junho


Mascarados, barricadas e vandalismo — era assim que a imprensa retratava a manifestação

Uma notícia que não está na capa, mas encontra-se em destaque do caderno Cotidiano do jornal é, possivelmente, a mais importante do dia. Nesta terceira noite de confrontos, um policial foi cercado e agredido por manifestantes. O jornal retrata a cena como um ato de covardia.


Recapitulando: até aqui, nada de novo. Como em outras cidades como Salvador e Florianópolis, as revoltas populares contra o aumento das passagens de ônibus são retratadas com certa má-vontade da mídia que, na tentativa de garantir um posição de suposta isenção, equipara a violência policial à dos manifestantes, sem abordar efetivamente o problema da mobilidade urbana. Enfim, vocês sabem muito bem como é a imprensa com movimentos sociais.

13 de junho

Acontece que esse policial é mais importante do que parece. Na quinta-feira, dia 13 de junho, a capa da Folha de São Paulo, dessa vez com a imagem do policial acossado, dizia o seguinte, em tom de ameaça:


No hoje clássico e famoso editorial "Retomar a Paulista", o jornal enumera prejuízos à cidade pela paralização da principal Avenida da cidade de São Paulo, e não só condena a violência dos manifestantes (apenas dos manifestantes), como posiciona-se a favor do aumento das passagens. Eu abro aspas para a Folha falar:
"Sua reivindicação de reverter o aumento da tarifa de ônibus e metrô de R$ 3 para R$ 3,20 — abaixo da inflação, é útil assinalar — não passa de pretexto, e dos mais vis. São jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados."
Como se não fosse o bastante, a Folha endossa as autoridades públicas a agir, incita o governador e a prefeitura a tomar medidas enérgicas e garante a legitimidade à corporação policial a agir como sempre quis, do único jeito que sabe atuar. A Folha sabia o que estava fazendo — ou ao menos acreditava que sabia. O objetivo era interromper as manifestações na marra.
"É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais. (…) No que toca ao vandalismo, só há um meio de combatê-lo: a força da lei. Cumpre investigar, identificar e processar os responsáveis. Como em toda forma de criminalidade, aqui também a impunidade é o maior incentivo à reincidência."
O recado foi recebido. Naquela noite, porém, a emenda saiu pior do que o soneto. De minha parte, se junho tem um marco inicial, esse início é o dia 13. Os confrontos daquela noite foram dos mais brutais já registrados. No dia seguinte, os jornais e as redes sociais seriam inundadas por imagens e vídeos chocantes. A mudança de tom da Folha é evidente. No dia seguinte, a capa do Jornal dá foco exclusivo à violência policial. O destaque fica para a imagem de um policial com cara de vilão de história em quadrinhos atacando um casal indefeso. Ao fundo, trabalhadores horrorizados e preocupados com a situação.

Destaque para a legenda da própria Folha "policial agride casal que tomava cerveja em bar", os baderneiros do dia anterior desapareceram como num passe de mágica.

Mais do que isso, o dia 13 de junho marca a mudança da postura da imprensa, porque finalmente a própria foi obrigada a reconhecer que a instituição da Polícia Militar no Brasil é uma ameaça à democracia, em especial no que importa aos jornais: uma ameaça aos princípios da liberdade de expressão. Mas uma coisa é você escutar uma palestra de algum professor de alguma universidade em defesa desse argumento. Outra completamente diferente é quando essa ideia ganha corpo, ou melhor, encontra um corpo. Só posso falar, aqui, da jornalista da Folha Giuliana Valone. Bonita, branca, jovem e inofensiva, ela apareceu da seguinte maneira na parte de baixo da capa do jornal. O bumerangue que a imprensa jogou contra os manifestantes voltou e atingiu o olho dessa jornalista — e muitas outras pessoas.


14, 15 e 16 de junho

A sensação no Brasil era de perplexidade. Aos poucos, foram surgindo mais e mais vídeos, fotos, imagens e relatos. As redes sociais foram inundadas por um sentimento de impotência e indignação com a violência policial. Eu gostaria de usar negrito aqui, mas um itálico cumpre a função. Não vou me cansar em repetir: todo o final de semana foi de intensa mobilização dentro das redes sociais. A minha TL, em específico, parecia um episódio de Master Chef no Twitter. O assunto era único. O país estava em polvorosa. Hoje falamos em golpe, mas naqueles dias o sentimento também era de democracia ameaçada. Todo o histórico de violência policial nas periferias, a campanha de figuras como Marcelo Freixo e Luiz Eduardo Soares pela reestruturação completa das polícias, o fim da instituição da Polícia Militar, um legado obsceno da Ditadura… tudo isso estava em pauta. Pela primeira vez, escutamos a palavra de ordem "não é só por 0,20 centavos". O que estava em questão era a própria democracia, o próprio direito de se manifestar.

Nos jornais, o assunto foi deixado um pouco de lado. Neste momento a internet começou a mostrar seu poder de mobilização, para a surpresa de alguns. Aos poucos, pipocavam eventos de chamada para manifestações. Pra piorar a situação, a Copa das Confederações havia começado e as primeiras manifestações aconteciam no Rio de Janeiro, o que se tornaria um padrão ao longo das cidades sede da competição. Ninguém, porém, poderia imaginar ou prever o que aconteceria no dia 17 de junho.

17 de junho



Esqueça os números. Nesse dia, 12 capitais foram às ruas. Não havia movimento centralizado organizado, não havia pauta coesa, havia uma simples e unânime indignação. Essa indignação, contudo, teve um estopim, teve uma causa primordial: a revolta contra a brutalidade policial. Qualquer um que pretenda interpretar junho sem este dado fundamental só pode desconhecer as manifestações (nesse caso é muito provável que tenha assistido às manifestações do sofá de sua casa, sintonizado na Globo News). Para muitos, "não há explicação" para o que ocorreu no dia 17 de junho. No entanto, mesmo que o acontecimento permaneça um mistério (por quê agora? Como pode tanta gente ficar tanto tempo sem fazer nada, de repente reivindicar as ruas dessa maneira? enfim, perguntas que não podem ser respondidas definitivamente), há muito que pode ser dito sobre o que aconteceu: é inegável que o clima criado na cidade de São Paulo trouxe à tona o desejo de respeitar o direito de reivindicar as ruas. Mais do que isso, lembraram a elas que havia muito pelo quê se manifestar. Guardarei este dia como um dos dias mais genuínos e surpreendentes da minha vida. Eu sabia que as coisas mudariam profundamente a partir dali.

18 de junho

A partir daqui as coisas começam a ficar ainda mais complicadas. Não foi só a esquerda que encontrou nas manifestações de junho um meio para externalizar suas demandas. Parcelas mais à direita também o fizeram, bem como uma série de pessoas que jamais havia participado de qualquer tipo de mobilização social. Num gesto inicial de repulsa, em resposta aos primeiros conflitos internos às manifestações (principalmente à demanda, muitas vezes mediante violência física, sintetizada pela palavra de ordem dos "sem partido"). É curioso notar que mesmo bandeiras não relacionadas a partidos, como a UNE e a própria CUT foram rechaçadas. Há aí, claro, no "sem partido" uma recusa a muitos símbolos da esquerda e do governo, não só uma crítica à ideia de representatividade em crise dos modelos liberais democráticos. É importante, contudo, tomar o cuidado de não jogar fora o bebê junto com a água suja. Movimentos como o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe e mesmo na Espanha têm em comum maiores demandas por democracia direta em busca de outras formas de representação. A recusa de partidos de bandeiras nas manifestações não é, nem pode ser encarada como inerentemente reacionária.

Esse dia também é importante porque a "Revolta do Vinagre" passou a se transformar na "Revolta dos Coxinhas". Evidentemente, a parcela da população que jamais havia ido às ruas é superior aos que se mobilizam cotidianamente. Ao meu ver, num erro tático, a esquerda optou por colocá-los no colo da direita ao chamar todo esse conjunto complexo da população de "coxinhas". É aqui, neste momento em específico, que a memória de Junho começou a ser mascarada e desconstruída. Por um lado, a imprensa tenta transformá-lo num gesto "contra tudo e contra todos", de outro o governismo tenta desqualificar a luta das ruas como "pessoas que querem desestabilizar o governo".

Vou dar um exemplo e, para isso, nada melhor do que duas figuras muito conhecidas na internet, a dupla do Jovem Nerd, Alexandre Ottoni e Deive Pazos. Ambos são criadores do maior podcast do Brasil, o Nerdcast, com aproximadamente 2 milhões de acessos semanais. Não é pouca coisa. São figuras que muito facilmente poderiam ser chamadas de "coxinhas": evitam ao máximo polêmicas políticas, se recusam a defender um ou outro partido e defendem ideais de empreendedorismo. Enfim, a prioridade dos caras sempre foi criar conteúdo humorístico e de discussão sobre assuntos de relevância para os nerds. Estou usando este exemplo aparentemente esdrúxulo porque, por incrível que pareça, no dia 18 de junho a dupla optou por publicar um vídeo em seu canal do YouTube para se posicionar em defesa das manifestações. É digno de nota, contudo, os comentários feitos por eles:
"A gente pode resumir bastante o que tá acontecendo agora como insatisfação. Insatisfação de.. como assim vocês vão agredir meia dúzia de pessoas? Como assim vocês vão atacar jornalistas? Como assim eu não posso sair na rua para falar?"
É impressionante que essa fala, feita por duas pessoas que jamais poderiam ser consideradas de esquerda, em defesa do direito de manifestação, hoje pareça não ter mais nenhuma relação com a origem de Junho. Algum tipo de obra política muito forte teve que entrar em cena para barrar esta narrativa. Junho tomou muitos caminhos nos últimos anos, mas é de entristecer que muitas das frestas abertas tenham sido suturadas. Considero estarrecedor a mera necessidade de ter de escrever este texto, de lembrar às pessoas que a origem das manifestações não foi uma revolta repentina, mas o combate à brutalidade policial.

Depois de tudo isso

Junho não foi simplesmente um movimento contra a corrupção, contra os gastos da copa do mundo, contra os políticos que não nos representam, foi tudo isso, mas foi muito mais. Seu início está na luta pela consolidação das instituições democráticas neste País. Seu início está relacionado à violência sentida nas periferias, na violência policial, uma das que mais mata no mundo.

Junho foi (e ainda é) uma grande oportunidade, um momento que permite repensar a relação de todos com a política a partir de um consenso democrático. O que hoje chamamos de golpe, na verdade, não é a continuidade do que teve início em 2013, mas a destruição de seu legado. Se observarmos os comentários do vídeo acima, veremos que a maior parte deles são da ordem do: "e nada mudou", e é bem verdade. Junho foi uma oportunidade, também, para o governo. Uma oportunidade para o país começar a falar grosso com a FIFA, se recusar à chantagem barata de uma das organizações mais corruptas do esporte internacional. Uma oportunidade para o PT retomar suas bases de Direitos Humanos e propor uma ofensiva contra os excessos das polícias militares — nunca houve, como naquele momento, uma revolta tão grande com a atuação desmesurada dos policiais militares. Foi a oportunidade única de construir um projeto de Reforma Urbana, em conjunto com uma sociedade mobilizada, investir mais em Saúde e Educação. Junho é, hoje, infelizmente, o nome de uma série de chances jogadas fora justo no momento em que o Brasil aprendeu a voltar às ruas.

Do contrário, o que vimos foi mais do mesmo: o Brasil havia sido tomado de assalto pelo maior movimento de ruas desde a queda da ditadura, e sua classe política, em especial o partido no governo (sempre em nome da "governabilidade") foi incapaz de dar respostas satisfatórias. Estou exagerando: o governo Dilma deu respostas inexistentes. Muitos dos que pedem impeachment, hoje, o fazem porque vêem a paralisação deste governo em todas as áreas.

Por isso, senhores, sinto muito, mas Dilma cairá pelo impeachgolpe articulado por uma conspiração organizada por Temer e Cunha, é verdade. Mas essa conspiração só pôde funcionar porque houve erros cruciais e primários na administração de Dilma Rousseff. A começar com a empáfia de Mercadante ao propor Arlindo Chinaglia na presidência da Câmara (o que permitiu a Eduardo Cunha alcançar o poder que tem hoje). Sem contar as apostas totalmente equivocadas dos Bancos Públicos em campeões nacionais, ou a desoneração de impostos para a indústria, que hoje enche a boca para falar que "não vai pagar o pato".

Enfim, antes de acusar Junho e "sua origem fascista", membros do PT e do governo deveriam antes reconhecer os próprios erros e responsabilidades no desastre que nos espera. A disputa por Junho ainda está em aberto. Oxalá a esquerda consiga retomá-la.

Fonte: MEDIUM

abril 27, 2016

América Latina em tempos de lumpencapitalismo: ilusões progressistas devoradas pela crise (IHU)

PICICA: "“A ascensão progressista apoiou-se em duas impotências: a das direitas que não podiam assegurar a governabilidade, colapsadas em alguns casos (Argentina em 2001/2002, Bolívia em 2005, Equador em 2006 e Venezuela em 1998) ou sumamente deterioradas em outros (Brasil, Uruguai e Paraguai) e a impotência das bases populares que derrotaram governos, desgastaram regimes, mas, inclusive nos processos mais radicalizados, não puderam impor revoluções, transformações que fossem mais além da reprodução das estruturas de dominação existentes”, escreve Jorge Beinstein, economista argentino e docente na Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Correio da Cidadania, 20-04-2016. A tradução é de Raphael Sanz."

América Latina em tempos de lumpencapitalismo: ilusões progressistas devoradas pela crise

“A ascensão progressista apoiou-se em duas impotências: a das direitas que não podiam assegurar a governabilidade, colapsadas em alguns casos (Argentina em 2001/2002, Bolívia em 2005, Equador em 2006 e Venezuela em 1998) ou sumamente deterioradas em outros (Brasil, Uruguai e Paraguai) e a impotência das bases populares que derrotaram governos, desgastaram regimes, mas, inclusive nos processos mais radicalizados, não puderam impor revoluções, transformações que fossem mais além da reprodução das estruturas de dominação existentes”, escreve Jorge Beinstein, economista argentino e docente na Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Correio da Cidadania, 20-04-2016. A tradução é de Raphael Sanz.

Segundo ele, “a ilusão progressista de humanização do sistema, de realização de reformas “sensatas” dentro dos marcos institucionais existentes, pode passar da decepção inicial a uma reflexão social profunda, crítica da institucionalidade mafiosa, da opressão midiática e dos grupos de negócios parasitários. Isto inclui a farsa democrática que os legitima. Nesse caso a moléstia progressista podia se converter, cedo ou tarde, em um furacão revolucionário. Não porque o progressismo como tal evolua para a radicalidade antissistema, mas porque emergiria uma cultura popular superadora, desenvolvida na luta contra regimes condenados a se autodegradarem cada vez mais”.

Eis o artigo.

A conjuntura global está marcada por uma crise deflacionária motorizada pelas grandes potências. A queda dos preços das commodities, cujo aspecto mais chamativo foi, desde meados de 2014, a das cotizações do petróleo, traz à tona a queda na demanda internacional enquanto se estanca a onda financeira, muleta estratégica do sistema durante as últimas quatro décadas. A crise da financeirização da economia mundial vai ingressando de maneira ziguezagueante em uma zona de depressão, onde as principais economias capitalistas tradicionais crescem pouco ou nada (1) e a China se desacelera rapidamente.

Frente a isso, o Ocidente desenvolve seu último recurso: o aparato de intervenção militar a integrar componentes armados profissionais e mercenários, midiáticos e mafiosos, articulados como “guerra de quarta geração” destinada a destruir sociedades periféricas para transformá-las em zonas de saque. É a radicalização de um fenômeno de larga duração de decadência sistêmica onde o parasitismo financeiro e militar foi transformado no centro hegemônico do ocidente.


Não presenciamos a “recomposição” político-econômico-militar do sistema como foi a reconversão keynesiana (militarizada) dos anos 40 e 50, senão seu grau de degradação geral. A mutação parasitária do capitalismo o converte em um sistema de destruição de forças produtivas, do meio ambiente e de estruturas institucionais, onde as velhas burguesias vão transformando-se em círculos de bandidos, uma nova dinâmica planetária de lumpenburguesias centrais e periféricas.


O declínio do progressismo


Imersa neste mundo, desenvolve-se a conjuntura latino-americana, onde convergem dois feitos notáveis: o declínio das experiências progressistas e a prolongada degradação do neoliberalismo que as precedeu e as acompanhou em países que entraram nessa corrente da qual agora o neoliberalismo degradado aparece como sucessor.

Os progressismos latino-americanos se instalaram sobre a base dos desgastes e em certos casos das crises dos regimes neoliberais e quando chegaram ao governo os bons preços internacionais das matérias primas, somados a políticas de expansão dos mercados internos, permitiram-lhes recompor a governabilidade.


A ascensão progressista apoiou-se em duas impotências: a das direitas que não podiam assegurar a governabilidade, colapsadas em alguns casos (Argentina em 2001/2002, Bolívia em 2005, Equador em 2006 e Venezuela em 1998) ou sumamente deterioradas em outros (Brasil, Uruguai e Paraguai) e a impotência das bases populares que derrotaram governos, desgastaram regimes, mas, inclusive nos processos mais radicalizados, não puderam impor revoluções, transformações que fossem mais além da reprodução das estruturas de dominação existentes.


Nos casos da Bolívia e da Venezuela os discursos revolucionários acompanharam práticas reformistas carregadas de contradições. Anunciavam grandes transformações mas as iniciativas se embrulhavam em infinitas idas e vindas, âmagos, desacelerações “realistas” e outras astúcias que expressavam o temor profundo a saltar as cercas do capitalismo.


A Venezuela aparece como o caso mais evidente de mistura de discursos revolucionários, desordem operativa, transformações pela metade e autobloqueios ideológicos conservadores. Não se conseguiu caminhar para a transição revolucionária (pelo contrário) proclamada, ainda que se tenha conseguido caotizar o funcionamento de um capitalismo estigmatizado, mas de pé. Obviamente, os Estados Unidos promovem e se aproveitam dessa situação para avançar sua estratégia de reconquista do país. O resultado é uma recessão cada vez mais grave, uma inflação descontrolada, importações fraudulentas massivas que agravam a escassez de produtos e a evasão de divisas que marcam uma economia em crise aguda (2).


No Brasil, o ziguezague entre um neoliberalismo “social” e um keynesianismo light quase irreconhecível foi reduzindo o espaço de poder de um progressismo que transbordava fanfarronice “realista” (incluída sua astuta aceitação da hegemonia dos grupos econômicos dominantes). A dependência das exportações de commodities e a submissão a um sistema financeiro local transnacionalizado terminaram por bloquear a expansão econômica. Finalmente, a combinação da queda dos preços internacionais e das matérias primas e a exacerbação da pilhagem financeira precipitaram uma recessão que acabou gerando uma crise política sobre a qual começaram a cavalgar os promotores de um “golpe brando”, executado pela direita local e monitorado pelos EUA.


Na Argentina o “golpe brando” foi protegido por uma máscara eleitoral forjada por uma manipulação midiática desmedida. O progressismo kirchnerista em sua última etapa havia conseguido evitar a recessão, ainda que com um crescimento econômico sustentado pelo fomento ao mercado interno. Também foi respeitada a máfia judicial que junto com a máfia midiática o acossaram até desempossá-lo politicamente no meio de uma onda de histeria reacionária das altas classes e do grosso das classes médias.


Na Bolívia, Evo Morales sofreu sua primeira derrota política significativa no referendo sobre reeleição presidencial – sua chegada ao governo marcou a ascensão das bases sociais submersas pelo velho sistema racista colonial. Mas a mistura híbrida de fala anti-imperialista, pós-capitalista e indigenista com a persistência de um modelo extrativista minerador de deterioração ambiental e de comunidades rurais, ao lado da burocracia estatal geradora de corrupção e autoritarismo, terminaram por diluir o discurso do “socialismo comunitário”. Ficou assim aberto o espaço para a recomposição das elites econômicas e a mobilização revanchista das classes altas e seu séquito de classes médias penetrando em um vasto terreno social desconcertado.


Agora as direitas latino-americanas vão ocupando as posições perdidas e consolidam as preservadas, mas já não são aquelas velhas camarilhas neoliberais otimistas dos anos 90; foram sofrendo mutações através de um complexo processo econômico, social e cultural que as converteu em componentes de lumpenburguesias niilistas embarcadas na onda global do capitalismo parasitário.


Grupos industriais ou de agrobusiness foram combinando seus investimentos tradicionais com outros mais rentáveis, só que também mais voláteis: aventuras especulativas, negócios ilegais de todo tipo (desde o narcotráfico até operações imobiliárias opacas passando por fraudes comerciais e fiscais e outros empreendimentos turvos), convergindo com “investimentos” saqueadores provenientes do exterior, como a megamineração ou rapinas financeiras.


Tal mutação tem distantes antecedentes locais e globais, variantes nacionais e dinâmicas específicas, mas todas tendem a uma configuração baseada no predomínio de elites econômicas enraizadas pela “cultura financeiro-depredadora” (“curtoprazismo”, desarraigo territorial, eliminação de fronteiras entre legalidade e ilegalidade, manipulação de redes de negócios com uma visão mais próxima do videogame do que de gestão produtiva e outras características próprias do globalismo mafioso) que dispõe do controle midiático como instrumento essencial de dominação, rodeando-se de satélites políticos, judiciais, sindicais, policiais-militares etc.


Restaurações conservadoras ou instaurações de neofascismos coloniais?


No geral, o progressismo qualifica suas derrotas ou ameaças como vitórias ou perigos de regresso do passado neoliberal e também se utiliza do termo “restauração conservadora”. Ocorre que esses dois fenômenos são sumamente inovadores e têm muito pouco de “conservadores”. Quando avaliamos personagens como Aécio Neves, Maurício Macri ou Henrique Capriles não encontramos chefes autoritários de elites oligárquicas estáveis, mas personagens completamente inescrupulosos, ignorantes das tradições burguesas de seus países (inclusive em olhares depreciativos dos mesmos). Aparecem como uma sorte de mafiosos entre primitivos e pós-modernos, a encabeçar politicamente grupos de negócios cuja norma principal é a de não respeitar nenhuma norma (na medida do possível).


Outro aspecto importante da conjuntura é o da irrupção de mobilizações ultrarreacionárias de grande dimensão onde as classes médias ocupam um lugar central. Os governos progressistas supunham que a bonança econômica facilitaria a captura política destes setores sociais, mas ocorreu o contrário: as camadas médias se “direitizavam” enquanto ascendiam economicamente. Olhavam com desprezo para os de baixo e assumiam seus próprios delírios neofascistas mirando os de cima. O fenômeno sincroniza-se com tendências neofascistas ascendentes no ocidente, da Ucrânia aos Estados Unidos, passando por Alemanha, França, Hungria etc. Expressão cultural do neoliberalismo decadente, pessimista, de um capitalismo niilista ingressando em sua etapa de reprodução ampliada e negativa, onde o apartheid aparece como uma tábua de salvação.


Mas este neofascismo latino-americano inclui também a reaparição de velhas raízes racistas e segregacionistas que haviam estado tapadas pela crise de governabilidade dos governos neoliberais, a irrupção de protestos populares e as primaveras progressistas.

Nesse sentido poderíamos entender um dos significados da revolução cubana, que logo se estendeu como onda anticapitalista na América Latina, como superação crítica dos reformismos nacionalistas democratizantes fracassados (como o varguismo no Brasil ou o governo de Jacob Arbenz na Guatemala). A memória popular não pode ser extirpada, pode chegar a fundir-se em uma espécie de clandestinidade cultural, em uma latência subterrânea digerida misteriosamente, pensada pelos de baixo, subestimada pelos de cima, para reaparecer como presente, quando as circunstâncias a requisitarem, renovada, implacável.

Notas do autor:

1) Se considerarmos o período entre 2010e 2014, o crescimento médio real da economia do Japão foi na ordem de 1,5%, a dos EUA 2,2% e a da Alemanha 2% (Fonte: Banco Mundial).

2) Um bom exemplo é o da “importação” de fármacos onde empresas multinacionais como Pfizer, Merck e P&G fazem fabulosos negócios ilegais diante de um governo “socialista” que os abastece com dólares a preços preferenciais. Com um jogo de superfaturamentos, altos preços e importações inexistentes as empresas farmacêuticas haviam importado em 2003 cerca de 222 mil toneladas de produtos pelos quais pagaram 434 milhões de dólares (uns 2 mil dólares por tonelada); em 2010 as importações baixaram a 56 mil toneladas e foram pagos 3,4 bilhões de dólares (60 mil dólares a tonelada); em 2014 as importações descenderam ainda mais a 28 mil toneladas e foram pagos 2,4 bilhões de dólares (um pouco menos de 87 mil dólares por tonelada).

Como assinala Manuel Sutherland, de cujo estudo extraio essa informação, “longe de colocar-se na criação de uma grande empresa estatal de produção de fármacos, o governo prefere dar-lhes divisas preferenciais a importadores fraudulentos, ou confiar em burocratas que realizam importações sob a maior opacidade”. Manuel Sutherland, “2016: a pior das crises econômicas, causas, medidas e crônica de uma ruína anunciada”, CIFO, Caracas 2016.

3) Ignazio Silone, “L´École des dictateurs”, Collection Du monde entier, Gallimard, Paris, 1964.

Fonte: IHU