[Amálgama]
A contradição de Israel
Posted: 28 Dec 2008 11:49 PM CST
[a entrevista que segue é de 2004. foi concedida em Madri a Marco Lacerda, hoje colaborador do Amálgama, e publicada no diário espanhol El País. aqui, ela aparece editada]
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Amira Hass foi a primeira e única jornalista judia israelense a se instalar no território palestino ocupado pelas forças israelenses. Seu trabalho como correspondente do Haaretz, o principal jornal liberal do país, começou em 1993 na Faixa de Gaza. De lá foi para Ramalá. “Me chamam de correspondente para assuntos palestinos; na verdade, deviam dizer que sou especialista em ocupação israelense”, diz ela.
Uma série de reportagens e colunas escritas por Amira entre 1997 e 2002 para o Haaretz foram recolhidas no livro Crónicas de Ramala, inédito em português e publicado em espanhol pela editora Gutenberg Galaxy Madrid (2004). Os textos são um grito contra o sofrimento da guerra; expressam a opinião de uma jornalista independente e muitas vezes indignada com a dominação imposta aos palestinos por seu país. “A existência de Gaza explica toda a saga do conflito palestino-israelense”, afirma. “É a contradição do Estado de Israel: democracia para uns e exclusão para outros“.
Impedidos por lei de circular livremente, os palestinos são forçados a um regime de confinamento e toque de recolher. Tornaram-se habituados a viver em perigo constante, porque, onde quer que estejam, estão na mira de armas israelenses. Em certa ocasião, um menino, intrigado com o onipresença militar, perguntou à jornalista: “Os judeus já foram bebês como nós, ou já nascem crescidos, de uniforme e metralhadora?”
Amira nasceu em Jerusalém no ano de 1956. Estudou história na Universidade Hebraica e em Tel Aviv, recebeu prêmios do Instituto Internacional de Imprensa e da UNESCO por seu jornalismo independente e de denúncia.
[Marco Lacerda]
Com a morte de Yasser Arafat (1929-2004), houve algum progresso nas negociações de paz entre israelenses e palestinos?
A questão central do conflito nunca teve a ver com a personalidade ou talento de Arafat como líder e negociador. A questão a abordar, se você realmente quer chegar a relações pacíficas, é a ação colonizadora de Israel nos territórios palestinos ocupados. Arafat não foi responsável pela política israelense de expansão territorial ou a exclusão dos palestinos de suas terras e violação dos seus direitos. A morte de Arafat não impediu Israel de prosseguir a sua política expansionista.
O povo israelense tem consciência da violência contra os palestinos ou ignora as alegações feitas em seu livro?
O povo israelense em geral prefere ignorar os fatos. Os Acordos de Oslo deram a impressão de que a ocupação chegara ao fim. Havia a ilusão de que a AP finalmente assumiria as rédeas do destino de seu povo. No entanto, a realidade é muito diferente. A AP nunca teve controle sobre a economia, fronteiras, população, infra-estrutura, recursos hídricos, nada. Tudo continua sob controle israelense.
Infelizmente, a AP foi cúmplice, em troca de privilégios concedidos aos seus superiores hierárquicos, do mito de que Oslo traria a tão esperada libertação. Apesar das doces palavras de paz que vieram de Oslo, o que você vê é a expansão dos assentamentos israelenses e as crescentes restrições à liberdade de circulação dos palestinos. A deliberada ignorância israelense em relação à verdade é típica dos privilegiados. Rouba-se os direitos dos palestinos para manter os privilégios de Israel.
Qual é a reação à violência israelense contra crianças palestinas?
Em geral as mortes dessas criaturas passam despercebidas, mesmo quando obras de atiradores de elite. A desculpa é que eles são utilizados como escudos para proteger palestinos pistoleiros. Mais de uma dezena de crianças foram mortas durante os recentes protestos [2004], crianças que não representavam nenhum perigo para os soldados israelenses. Tampouco se sabe muito sobre o tempo de detenção por delitos irrelevantes, como atirar pedras.
Como você explica o surgimento de homens-bomba no conflito?
Atentados suicidas são, acima de tudo, uma clara demonstração da falta de estratégias de resistência e de luta. Eles são a melhor prova da ausência de uma liderança palestina confiável. Estes são sinais de franca admissão do fracasso. Por outro lado, o desespero palestino é plenamente justificável. No último confronto, enquanto as mortes de palestinos chamaram pouca atenção do mundo, as poucas vítimas israelenses ocuparam grande espaço na mídia. O clima de vingança foi criado.
Embora os ataques suicidas sejam utilizados para todos os tipos de fins políticos, não têm nada a ver com a libertação da Palestina, porque está provado que a tática apenas consegue unir o povo israelense em torno do governo e coloca o mundo contra os palestinos. A estratégia é uma advertência para a desorganizada hierarquia palestina.
Como entender o crescimento do número de mulheres que cometem suicídio, em uma sociedade muçulmana onde as mulheres são discriminadas por milhares de códigos?
A discriminação das mulheres palestinas é muito mais social do que religiosa. Embora existam disposições antifeministas no Islã, na prática, as mulheres gozam de um estatuto semelhante ao dos homens. Elas fazem o que podem para defender seu direito a participar na luta armada. Muitas atacam soldados israelenses com a clara intenção de serem detidas. É a única maneira que têm de deixar suas casas e fugir de abuso tais como incesto e casamentos forçados.
Em que medida os recursos hídricos do rio Jordão são o motivo da ocupação israelense?
Não são o principal motivo, mas são uma importante motivação. Toda a região é desprovida de água. Apenas o consumo de Israel tem um padrão europeu, onde a água é abundante. O uso per capita israelense pode ser até sete vezes maior do que entre os palestinos. Israel precisaria reduzir drasticamente seu consumo por meio de quotas, para melhor dividir o recurso com os palestinos.
Em termos religiosos, existe alguma esperança de harmonia entre o Judaísmo e o Islamismo?
Isso representa um grande perigo, especialmente num tempo em que temos muitos chauvinistas e limitadas interpretações das religiões. Passaram a ter voz fanáticos que pintam a religião com traços obscuros. As interpretações feitas pouco têm a ver com religião “pura”. Tudo é orientado pelos interesses de poderosos grupos. Inicialmente, a Organização para a Libertação da Palestina evocava as raízes políticas do conflito. Hoje ele é pintado como uma guerra de fundo religioso.
Os Estados Unidos têm trabalhado para pôr fim ao conflito?
Quais são os interesses americanos envolvidos no Oriente Médio?Eu não falo de “fim do conflito”, mas numa solução que garanta a ambos os lados um futuro melhor e mais seguro. Aos Estados Unidos interessa que Israel permaneça como um poder militar na região, para garantir os seus interesses econômicos e estratégicos. Além disso, após os Acordos de Oslo, a questão palestina deixou de ser um problema internacional para se tornar uma questão puramente regional. Nem os aliados dos EUA no Oriente Médio (Egito e Jordânia, por exemplo) ou os seus adversários (incluindo a Síria) estão interessados em fazer justiça à causa palestina. Os Estados Unidos estão interessados no apaziguamento, não na paz.
Você não teme represálias, devido sua maneira de pensar e de agir?
Não. Para os judeus, Israel é uma democracia. Minha liberdade de circulação é garantida por lei. Tem também a proteção do jornal para o qual trabalho.
A criação do Estado de Israel foi um erro?
A criação do Estado de Israel deve ser entendida com base nos eventos históricos que a precederam, especialmente o genocídio perpetrado na Europa por sociedades avançadas. O sionismo, cujo objetivo foi estabelecer uma casa para os judeus, era uma das alternativas fornecidas pela diáspora para enfrentar o anti-semitismo, a perseguição e discriminação. Considerar a criação de Israel um erro seria ignorar uma das maiores barbaridades concebidas pela civilização ocidental-cristã: a indústria da morte criada pela Alemanha nazista.
Como pode uma filha de sobreviventes do Holocausto defender opiniões tão pouco simpáticas ao povo judeu?
As minhas críticas à política israelense são proporcionais ao meu amor pelo meu povo e seu futuro. Faço parte do povo judeu e, como tal, estou convencida de que não teremos um futuro seguro enquanto dependermos da superioridade militar. Nossa condição étnica particular não pode levar-nos a um comportamento grupal que inflija dor e sofrimento aos outros. A auto-crítica e a crítica dos regimes opressivos são valores judaicos antigos dos quais me orgulho.
Como jornalista e cidadã, o que você sonha para o futuro do seu povo e do seu país?
A experiência me ensinou a ser modesta até nos sonhos. Minha esperança é que meu povo perceba, antes que seja tarde demais, que a superioridade militar não garante a segurança e a vida normal na região. Paz e justiça não são incompatíveis. Será fácil estabelecer a paz na região a partir do momento em que rompamos com a política de exclusão imposta aos palestinos desde a criação do Estado de Israel em 1948.
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