dezembro 15, 2008

Walydo e relido

Waly Salomão
6/12/2008 11:28:00

Walydo e relido

Por Ricardo Silvestrin

“- O que é que você quer ser quando crescer?
- Poeta polifônico.”


Esse é o poema chamado “Desejo & Ecolalia”, publicado no livro “Algaravias” em 1996 por Waly Salomão. A polifonia poética nos foi apresentada, creio que pela primeira vez, pelo Mário de Andrade lá no seu “Prefácio Interessantíssimo” em 1921.

Para Mário de Andrade, o verso polifônico seria o oposto do verso melódico: “A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível. Ora, si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais (...) fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando não mais melodias, mas harmonias. (...) Mas, si em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia poética.”

Era essa a busca estética revelada por Waly. Sair do verso melódico, aquele poema composto por uma idéia que se sucede linha a linha do início ao fim, para chegar ao verso polifônico, uma sucessão de idéias que se sobrepõem, às vezes se opõem, sem a necessidade de chegar à conclusão alguma. Dois títulos dos seus livros mais recentes apontam para esse caminho: “Algaravias” e “Lábia”. Falar. Falar muito e tudo e ao mesmo tempo.

Como Waly mesmo coloca no início do “Algaravias”, citando o “Diccionario Etimologico de la Lengua Castellana”: “ALGARABÍA ...lengua de los alárabes... Y como esa lengua de los alárabes era um á. corrompido, poco inteligibel para los castellanos, de ahí que traslaticiamente pasase algarabía a sígnificar cosa dicha o escrita de modo que no se entiende, y gritería de varias personas que por hablar todas a un tiempo, no se pude comprender lo que dicen. (...) Algarabía es también nombre de planta, y parece que se le dió por la confusión de sus ramas, aludiendo al significado com que está comunmente recebida la voz algarabia.”

Trama algarábica que vem também de berço. No item “Sobre o autor”, aquela seção final muito comum nos livros, Waly colocou “Nasceu em Jequié, Bahia. Filho de sírio e sertaneja bahiana.”

Em “Lábia”, 1988, temos o seguinte: “Procura do ponto de liga alquímica: amálgama de oral (reino da mente veloz em presença, do imediato, das súbitas vozes intervenientes, do espírito em chamas, do “estalo de Vieira”, das línguas de fogo em reprise do Pentecostes ao vivo?) e de escrito (reino do aditamento, do recalque, do mediato, do procrastinado, da letra morta in vitro?)”

Um poema do “Algaravias”:

“HOJE

O que eu menos quero pro meu dia
polidez, boas-maneiras.
Por certo,
um Professor de Etiquetas
não presenciou o ato em que fui concebido.
Quando nasci, nasci nu,
ignaro da colocação correta dos dois pontos,
do ponte e vírgula,
e, principalmente, das reticências.
(Como toda gente, aliás...)

Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.

Não está prevista a emissão
de nenhuma “Ordem do dia”.
Está prescrito o protocolo da diplomacia.
AGITPROP – Agitação e propaganda:
Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia.
Ápice do ápice.

Alguém acha que o ritmo jorra fácil,
Pronto rebento do espontaneísmo?
Meu ritmo só é ritmo
quando temperado com ironia.
Respingos de modernidade tardia?
E os pingos d´água
dão saltos bruscos do cano da torneira
e
passam de um ritmo regular
para uma turbulência
aleatória.

Hoje...”

Agora, um do “Lábia”:

“POST-MORTEM

Um cavalo-marinho mergulha em seus círculos de corais
mas em sua mente só revela a atualidade do belo.
O passado pode estar abarrotado de chateações
mas daqui pra frente ótimas fotos e melhores filmes
e amor e gravidez no bojo do macho
e horas infindas deitado nas areias
especulando nuvens
que se esgarçam ao sabor e ao deslize das figuras.
Um gosto permanecer aqui extasiado
e sem querer comparecer a nenhum vernissage
cansado dos artistas
que dão a seus quadros a última demão de verniz
e permanecer lasso das exposições e dos museus a visitar
e do dernier cri
esquecer os pacotes de encomendas à Amazon Books
e fugir dos seminários sem sêmen nem humor trocadilhescos.
Quase morrer é assim:
uma cada vez mias crescente ojeriza com a “vidinha literária”
de par com a imorredoura memória de certas linhas,
por exemplo,
que durante o resto de tempo que me é concedido viver
e na hora H da morte,
estampada na minha face esteja a legenda:
O que amas de verdade permanece, o resto é escória.
Sonhar com Provenças e Venezas e Florenças.
Rever Piero della Francesca
e a Essaouira de meu amigo Garbil, o boxeador.
E a vista de Delft de Vermeer.
A Barcelona do poeta-clochard-palhaço Joan Brossa.
A cena de New York, minha e de todos e de Ashbery
e de Frank O´Hara e de ninguém.

Sobem fiapos da infância de um tabaréu:
ora eu era
uma piaba nadando por entre bancos de areia do Rio das Contas
ora eu era
um acari das locas do Gongogi – rio cheio de baronesas.
Idade de ouro fluvial, plástica, flamante.
Fogueira gigante das noites de São João. Fogos-de-bengala.
Eu sozinho menino e o Amadis de Gaula
e os outros todos principais cavaleiros
e as outras todas principais damais
que povoavam as varandas, os pastos, o curral, a balsa, a chácara,
as pedras, os capins e as matas da Coroa Azul do raro Balito.
Convive-se com uma criatura sem imaginar sequer de que reino porvém.

Zelar pelo deus Treme-Terra que meu coração devolveu.
Não cortejar a morte.
Não perambular pelos cemitérios
nem brindar o luar patético
com caveiras repletas de vinho tinto seco
como um Byron-Castro Alves gótico e obsoleto.
Sereno e cabeça dura – testa ruda –
mirar de frente a caveira
e as tropas de vermes em prontidão
(como observo vermes dentro de um pêssego)
mas por enquanto gargalhar da irrealidade da morte.
Gozar, gozar e gozar
a exuberância órfica das coisas
em riba da terra
debaixo
do
céu.”

E a irrealidade da morte se tornou real em maio de 2003. Aos 58 anos, Waly se foi, vítima de câncer. E morreu num dos momentos de maior refinamento estético da sua poesia. Na verdade, seu texto sempre foi acentuadamente polifônico. Desde o primeiro livro “Me segura qu´eu vou dar um troço”. Lá, tanto na longa narrativa que dá título ao livro, como nos poemas seguintes, as frases/versos/idéias não seguem uma linearidade. Entrecortam-se, surgem imagens, parênteses, colagens. Sempre um texto vivo, que questiona a si mesmo, pensa alto.

Na letra de música, também usou de recursos nada usuais ao gênero. Imagens fortíssimas irrompem de dentro da melodia:
“com minhas calças vermelhas/meu casaco de general/cheio de anéis/ vou descendo por todas a ruas” (“Vapor Barato”).
“quando nela ponho o pensamento/fogueira abraça lenha e lenha com brasa se casa/o sol em combustão dispara raio relâmpago trovão/arco-íris fontes matas rios montes cascatas/chuva sêmen seiva sangue saliva/o mar oceano todo ele se ativa” (“A Cabeleira de Berenice”).

Essa genial polifonia espera por você em alto e bom som nos livros do Waly Salomão: “Me segura qu´eu vou dar um troço” (José Álvaro Editor, 1972), “Gigolô de Bibelôs” (Brasiliense, 1983), “Armarinho de Miudezas” (Fundação Casa Jorge Amado, 1993), “Algaravias” (Editora 34, 1996), “Lábia” (Rocco, 1998), “Tarifa do Embarque” (Rocco, 2000) e “Mel do Melhor” – antologia poética (Rocco, 2001). Se vire, vá atrás, encomende. Porque um poema que escrevi quando da morte do Leminski também se aplica aqui:


não quero mais de um poeta
que a sua letra
palavra presa na página
borboleta
nem quero saber da sua vida
da verdade que nunca foi dita
mesmo por ele
que tudo que viveu duvida
não revirem a sua cova
o seu arquivo
é no seu livro que o poeta está enterrado
vivo




Ricardo Silvestrin é autor de O menos vendido, ex-Peri,mental, Palavra mágica, Quase eu, Bashô um santo em mim e Viagem dos olhos, além dos infantis O baú do Gogó, Pequenas observações sobre a vida em outros planetas, É tudo invenção e Mmmmonstro!. Integra o grupo musical os poETs. É editor da ameopoema. Assina uma coluna no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Site: http://www.ricardosilvestrin.com.br/ E-mail: silvestrin@uol.com.br

Fonte: Literatura e Arte - Cronópios
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