Nota do blog: Texto em discussão, por e-mail, no grupo em-defesa-da-reforma, sobre medidas sócio-educativas. As referências bibliográficas não foram disponíveis.
Unidade Experimental de Saúde – mais um triste capítulo da história paulista no tratamento de jovens infratores.
1.DESCRIÇÃO DOS FATOS
Há mais de uma década, invocando a necessidade de melhora na qualidade do atendimento em saúde mental a adolescentes e jovens/adultos1 privados de liberdade no sistema sócio-educativo de São Paulo, promotores (procedimento administrativo 019/99) e juízes (sindicância 01/02) vinham pressionando a Fundação Casa (antiga FEBEM) e o Sistema de Saúde a tomar providências2. Por conta de tais pressões, a Secretaria Estadual da Saúde decidiu construir unidade destinada a oferecer, durante o cumprimento de medida sócio-educativa de internação, atendimento diferenciado na área de saúde mental, unidade que foi integrada no organograma institucional da Fundação Casa.
Em 19.07.06, a FEBEM/SP, hoje Fundação Casa, divulgou, por sua assessoria de imprensa a construção, já então em curso, da Unidade Experimental de Saúde (UES). A unidade, que seria destinada a jovens sob medida sócio-educativa de internação que apresentassem "distúrbio psicológico" funcionaria por meio de uma parceria entre a UNIFESP, Associação Beneficente Santa Fé e Fundação Casa3.
Em 18.12.2006 o prédio da unidade é inaugurado, agora com a notícia4 de que a "a Secretaria da Saúde do Estado investiu R$ 2, 5 milhões em uma nova unidade da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) que abrigará adolescentes considerados 'problemáticos' . A superintendente de saúde da Febem, Maria Eli Bruno, disse, porém, que a unidade não abrigará doentes mentais, mas adolescentes de 'conduta anti-social', que ela mesma define como 'internos com tendência a depredar unidades, que não cuidam de suas coisas, são questiona dores e não seguem normas, os agitados'".
Posteriormente, em 6.05.2006, a Justiça Paulista, ordenou que para lá fosse transferido um jovem então recolhido em uma das unidades da Fundação Casa. Tal interno já havia completado o período máximo de privação de liberdade (três anos5), mas ainda vinha mantido privado de liberdade em unidade do sistema sócio-educativo, posto que submetido por determinação judicial, a medida de proteção consistente no encaminhamento a equipamento de saúde que garantisse a contenção. A secretaria de Saúde informou, na oportunidade, ser impossível operar tal encaminhamento em razão de o caso não ser elegível para hospital psiquiátrico. Ameaçado de responder processo criminal por desobediência, o Sr. Secretário de Saúde foi favorecido por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que proibiu seu indiciamento. Tal jovem permaneceu na Fundação Casa até que, tempos depois, o próprio Poder Judiciário determinou sua remoção para a Unidade Experimental de Saúde que até então, embora inaugurada, não se encontrava em funcionamento.
Passados cerca de seis meses do envio do jovem a esse equipamento, incluído então no organograma de unidades da Fundação Casa, o governador do Estado, por meio do Decreto n. 52.419/2007, de 28.11.2007 transfere a unidade experimental da alçada da Fundação Casa, para a Secretaria de Estado da Saúde6.
Já no dia seguinte à edição do decreto, em 29.11.2007, as Secretarias de Estado da Saúde, da Administração Penitenciária e da Justiça, essa última por intermédio da Fundação Casa, firmaram um "Termo de Cooperação Técnica7", cujo objetivo era a "conjugação de esforços entre os partícipes visando propiciar aos adolescentes/jovens adultos, internados na unidade cujo uso foi permitido à Saúde, tratamento adequado à patologia diagnosticada, sob regime de contenção conforme determinação do Poder Judiciário" .
No documento vem mencionado que a Fundação Casa será a responsável pela administração da Unidade durante o período de transição desta para a Saúde. A Secretaria da Saúde fica responsável por "indicar o gestor da unidade e a equipe médica responsável pelo tratamento dos internos" e, finalmente, à Administração Penitencia cabe a indicação do responsável pela coordenação de segurança da unidade, determinando as medidas de segurança apropriadas de modo a garantir a contenção dos internos". O termo de cooperação tem vigência de cinco anos, não havendo definição de prazo para o período de transição, nele mencionado, em que a Fundação Casa persistirá compondo a equipe que gerencia o equipamento.
O termo de cooperação técnica aponta que a UES será utilizada para abrigar adolescentes/jovens adultos autores de atos infracionais, que cumpriram medida sócio- educativa na Fundação e tiveram esta medida convertida pelo Poder Judiciário em medida protetiva, por força do disposto no §3º do art. 121, do Estatuto da Criança e do Adolescente, por serem estes portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade e/ou possuírem alta periculosidade em virtude de seu quadro clínico. Nessas situações, o Poder Judiciário, ainda segundo o mesmo documento, "determina que a medida protetiva seja cumprida em local onde o adolescente/jovem adulto deverá permanecer sob contenção, dispondo de tratamento psiquiátrico compatível com sua patologia". Tais jovens não teriam como ser encaminhados para hospitais psiquiátricos, já que esses últimos "obedecem às diretrizes da política de saúde mental do SUS, caracterizada por serviços que não dispõem de espaços físicos de contenção".
Em pouco mais de dois meses de existência, a Unidade Experimental de Saúde, além do jovem que lá se encontrava quando da edição do decreto 52.419/2007, já recebeu mais cinco internos.
A maior parte deles lá não se encontra por "conversão da medida sócio-educativa de internação em medida de proteção", como dito no termo de cooperação. Eles lá estão recolhidos, sob contenção, por ordem proferida em procedimento estranho à apuração da infração cometida e à execução da medida aplicada. Tratam-se de decisões proferidas por juízos cíveis (vara cível/família e sucessões) em processos de interdição nos quais o Ministério Público requer a internação compulsória dos jovens. De uma forma geral, quando a liberação do jovem que cumpre medida sócio-educativa já se mostra iminente pelo advento de alguma das causas de liberação compulsória previstas no art. 121 do ECA (três anos de internação ou vinte e um anos de idade) o promotor de justiça da vara responsável pelo acompanhamento da execução da medida sócio-educativa promove gestões para que outro promotor, que atua na vara cível/família da região de moradia do jovem, promova a ação de interdição com pedido de internação psiquiátrica.
Em outras palavras, nessas ações, argumentando que tais pessoas são incapazes de se autogovernarem para os atos da vida civil além de – e principalmente – perigosos para a sociedade, o Ministério Público – fora da jurisdição penal ou infracional – demanda da Justiça ordem para manter o jovem sob contenção. Esta ordem de recolhimento, assim, não está diretamente ligada à prática da infração pretérita, que em geral resultou no cumprimento do tempo máximo de reprimenda imposta pela Justiça sob forma de medida sócio-educativa. Ela se funda em um suposto risco de infração futura previsto por algum psiquiatra.
Há pelo menos dois casos, dentre os quais se teve acesso, em que, contrariando a opinião de outro laudo, um psiquiatra atesta inexistir elementos para um juízo de periculosidade. Entre os jovens que lá se encontram, há um que chegou a ser efetivamente liberado pela Justiça da Infância e Juventude e que bom tempo depois acabou aprisionado em sua residência em razão do cumprimento de ordem judicial de recolhimento derivada de processo de interdição com ordem de internação compulsória por causa de sua suposta periculosidade.
As ordens de internação originadas nesses processos de interdição têm como característica a absoluta indeterminação do tempo de privação de liberdade. Não há qualquer referência nem mesmo a prazos de reavaliação do caso, nem definição da equipe incumbida de promovê-la. A elaboração de laudos de reavaliação não está listada entre as atribuições da Secretaria de Saúde em relação ao equipamento.
Em 8.02.2008, o Diário Oficial do Estado de São Paulo publicou a Resolução Conjunta SS/SAP - 1, de 7-2-2008, dispondo sobre as visitas na Unidade Experimental de Saúde, restringindo-as a parentes uma vez por semana, aos domingos, regime em tudo assemelhado àquele em vigor nas unidades prisionais e nas unidades da Fundação Casa8. Curiosamente em 18.02.2008, a Secretaria de Estado da Saúde divulgou a flexibilização de ampliação do horário de visitas aos pacientes internados em Hospitais da rede, providência que não alcançou os "pacientes" da unidade experimental de Saúde9.
Eis, em estreita síntese, o que se tem verificado no Estado de São Paulo.
2.CONSIDERAÇÕES SOBRE A UNIDADE EXPERIMENTAL DE SAÚDE E A SITUAÇÃO JURÍDICA DE SEUS INTERNOS
Vivemos num Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus pilares fundantes a regra de que ninguém pode ser preso fora das hipóteses legalmente previstas no ordenamento jurídico. É o princípio da legalidade ou da anterioridade da lei (Constituição Federal, art. 5º., inciso XXXIX). Pois bem, não há previsão legal que autorize o recolhimento dos jovens ora internados na unidade experimental de saúde.
A conversão (ou substituição, ou suspensão) de medida sócio-educativa de internação com aplicação de medida protetiva de encaminhamento a equipamento de saúde que garanta contenção é francamente ilegal. Entre as medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e do adolescente, está a "requisição de tratamento psiquiátrico em regime hospitalar" (art. 101, V). O poder de requisitar o tratamento vincula o poder público a oferecê-lo, mas não o cidadão a cumpri-lo. Assim, aliás, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça10. De outro lado, o tratamento hospitalar a que se refere a lei deve, por óbvio, ser cumprido em hospital. Como o próprio termo de cooperação acima indicado esclarece, a unidade experimental de saúde não é um hospital psiquiátrico, entre outras razões porque "os hospitais psiquiátricos existentes obedecem às diretrizes da política de saúde mental do SUS, caracterizada por serviços que não dispõem de espaços físicos de contenção". A UES, pelo contrário, dispõe de forte aparato de contenção, fornecido pela Secretaria de Administração Penitenciária, como claramente expõe o documento citado.
Pela mesma razão, não há fundamento legal que legitime, desde um juízo cível/família em ação de interdição, ordem para recolhimento em equipamento com as características da Unidade Experimental de Saúde. Isso porque o recolhimento de interditos em estabelecimento adequado a que se refere o art. 1.777 do Código Civil somente é cabível nos termos da legislação que regula as internações psiquiátricas, ou seja, nos termos da lei 10.216/200111. Ora, as modalidades de internação previstas na Lei 10.216, inclusive a internação compulsória – definida como aquela determinada pelo juiz – versam sobre internação em hospital psiquiátrico. Como já dito no parágrafo acima, deriva do próprio termo de cooperação, de forma expressa, que a UES não é hospital psiquiátrico. A propósito, em documento no qual esclarece detalhes sobre tal equipamento, diz o Sr. Secretário da Saúde que " a Unidade em tela não se trata de um equipamento hospitalar, mas de custódia de adolescentes e jovens/adultos".
De outro lado, quem se vê, por determinação judicial, recolhido em equipamento cujo aparato de segurança é garantido com recursos humanos do sistema penitenciário está, sem meias palavras, preso. A prisão em decorrência dos processos de natureza civil está restrita às duas hipóteses do artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal (depositário infiel e inadimplente de pensão alimentícia). É óbvio que nossa ordem jurídica não autoriza a prisão do doente ou deficiente mental em processo civil de interdição. Daí porque o recolhimento a que se refere o art. 1777 do Código Civil não pode jamais corresponder, na prática, a alguma modalidade de aprisionamento12. Na sua forma mais gravosa, o recolhimento poderia assumir os contornos de uma internação psiquiátrica compulsória, termo técnico utilizado pelo art. 6º da Lei 10216/2001. Todavia, como esclarece o próprio Secretário Estadual da Justiça, na internação psiquiátrica, "mesmo quando se dá de forma involuntária ou é determinada compulsoriamente (....) o paciente não é contido seja por grades, muros altos, portas com cadeado, etc., haja vista que caso se evadam do Hospital a família acaba por se encarregar de trazê-los de volta para o tratamento (situação muito comum nesse caso)".
Pelo que se vê, não existe fundamento legal para a imposição da privação de liberdade nos moldes daquela sofrida pelos internos na Unidade Experimental de Saúde. Assim, ainda que houvesse pressões do poder judiciário para a criação do equipamento, não era caso de curvar-se a elas executivo, até porque não há notícia de que tenha havido sentença judicial, ou determinação oriunda de procedimento com observância do devido processo legal, ou seja, no qual Administração tivesse formalmente oportunidade de defender-se e recorrer.
O que se tem na verdade, a partir da leitura do termo de cooperação que define os contornos da unidade experimental de saúde, é que tal equipamento em tudo se assemelha a um hospital de custódia e tratamento destinado ao cumprimento de medida de segurança por adultos13. Tanto quanto um adulto submetido a medida de segurança, os jovens que lá se encontram: a)praticaram crimes graves; b) estão internados não como forma de retribuição pelo crime cometido (princípio da culpabilidade), mas porque foram taxados de perigosos (princípio da periculosidade) por avaliações psiquiátricas; c)estariam recolhidos também sob pretexto de necessitarem de tratamento; d) a privação de liberdade a que se submetem não tem tempo determinado e seu encerramento dependeria, supõe-se, de laudo de cessação de periculosidade; e) estão sob contenção garantida pela Secretaria de Administração Penitenciária; f) todos têm sua entrada e saída definidos por determinação judicial. Essencialmente, pois, os jovens da UES compartilham o mesmo regime de contenção de um adulto sob regime de medida de segurança. Ainda que nominalmente se empreste outro título à contenção que experimentam, na prática, do ponto de vista material, estão submetidos a um regime definido em Direito como medida de segurança.
Ocorre, porém, que a esses jovens não se pode aplicar medida de segurança. Para tanto, era necessário que tivessem cometido seus crimes graves com mais de dezoito anos. Todos eles, contudo, infracionaram quando ainda menores de idade. Para eles não se aplica a legislação de adultos, aplica-se a legislação especial, que não prevê a hipótese de medida de segurança, apenas medida sócio-educativa, que acaba com três anos de duração ou 21 anos de idade14. Não existe medida de segurança para quem praticou crime na menoridade. Aqui no Estado de São Paulo, assim, sob a etiqueta de unidade experimental de saúde e à margem de qualquer legalidade15, criou Casa de custódia tratamento para menores de dezoito anos16.
A situação hoje vigente, assim, revela-se como grave atentado à ordem jurídica, um perigoso ajuste para inovar, sem qualquer respaldo legal, em matéria de privação de liberdade do cidadão. Basta, na linha do que se vem fazendo, que se rotule um cidadão de perigoso – nada mais do isso – para que um juiz cível (apurando condição subjetiva e não um fato objetivo) mande recolhê-lo, sob a vigilância da administração penitenciária, em um equipamento criado pelo Executivo exclusivamente para recebê-lo. Hoje é o perigoso. Amanhã, poderá ser o inconveniente e, silenciosamente, caminhamos rumo ao totalitarismo que legitima a segregação – senão eliminação – de toda a diferença.
Assim, como já dito pelo Superior Tribunal de Justiça, em situação idêntica a essa, "por mais perigoso que seja", sem respaldo legal e constitucional não há como se manter cativo um cidadão17.
Todavia, há que se dar um passo além. Assusta especialmente que as autoridades se curvem à idéia de que tais jovens sejam perigosos sem qualquer reflexão crítica, mínima que seja, sobre as implicações éticas, técnicas, jurídicas e políticas do juízo de periculosidade.
Do ponto de vista técnico, não se poderia olvidar o intenso debate que a questão da periculosidade encontra no âmbito da Psiquiatria, onde respeitáveis profissionais proclamam a inviabilidade de se vaticinar, com um mínimo de rigor necessário, a ocorrência de comportamento humano futuro, tarefa, aliás, estranha ao âmbito da medicina18.
Do ponto de vista ético, lembre-se, no mínimo, que o conceito "tradicional positivista de periculosidade é incompatível com a premissa básica do jushumanismo: todo humano é pessoa porque está dotado de razão e consciência; periculosidade implica determinação (negação da escolha autônoma). Nesse sentido, perigosa pode ser uma coisa, não uma pessoa"19.
Do ponto de vista jurídico, anote-se, entre outros infindáveis argumentos que "qualquer prognóstico que tenha como mérito "probabilidades" não pode, por si só, justificar a negação de direitos, visto que são hipóteses inverificáveis empiricamente. Uma porta aberta para o subjetivismo incontrolável. Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal) é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência. Não existe base legal para prognósticos de reincidência ou, ainda, para o mofado discurso da periculosidade"20.
Quando se trata, de outro lado, de aferir periculosidade de pessoas que transgrediram a lei penal na adolescência, as dificuldades se multiplicam ainda mais. Esclarece o termo de compromisso de criação da UES que ela abrigará "adolescentes/jovens adultos que cumpriram medida sócio-educativa na Fundação e tiveram essa medida convertida, pelo Poder Judiciário, em medida protetiva, por força do disposto no §3º., do artigo 121, do Estatuto da Criança e do Adolescente, por serem estes portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade e/ou possuírem alta periculosidade em virtude de seu quadro clínico"
O exame dos casos dos jovens internados a que se teve acesso observa que, de fato, a maioria deles foi diagnosticada com "transtorno anti-social de personalidade". Ora, trata-se, sem dúvida, de um dos diagnósticos mais controvertidos da Psiquiatria21, existindo forte corrente no sentido de que tal quadro sequer deveria integrar a nosologia médica22. De outro lado, tratando-se o adolescente de pessoa ainda em condição de desenvolvimento (condição essa que deve ser obrigatoriamente considerada por todos os profissionais por força do art. 6º da lei 8069/90), não se recomenda o fechamento de um diagnóstico de tal natureza para pessoas nessa faixa etária 23, até porque o conceito de personalidade pressupõe estabilidade de traços incompatível com intensas transformações biopsicossociais do período adolescente.
Ainda que o diagnóstico tenha sido produzido após os dezoito anos de idade, com se dá em alguns casos, é óbvio que os dados de base essenciais para sua caracterização são recolhidos pelo psiquiatra de condutas levadas a efeito na adolescência, em especial a conduta criminal grave. Ora, se o jovem não infracionou quando adulto – até porque esteve e está desde então preso – como se pode identificar nele uma tendência cristalizada à criminalidade? Altamente duvidoso, pois, do ponto de vista técnico, o etiquetamento dos jovens recolhidos na Unidade Experimental de Saúde como perigosos porque detentores de uma suposta personalidade anti-social. Por tal motivo, entre muitos outros aqui não arrolados, a enunciação de periculosidade para adolescentes é altamente questionável24
Foi diante desse panorama que o legislador optou deliberadamente em não estender, para adolescentes, o regime da medida de segurança, ou algo equivalente25. Aqueles que foram vencidos no debate que democrática e legitimamente resultou no Estatuto da Criança e do Adolescente agora, pretextando um falsa lacuna na lei, ao invés de pressionar o Poder legislativo para alterá-la, optam por "preenchê-la" ao sabor de suas visões particulares, num claro atentado ao princípio democrático da tripartição de poderes.
Os patrocinadores desse estado de coisas, de outro lado, também foram vencidos na luta por um novo modelo de assistência à pessoa com transtorno mental da qual resultou a Lei 10.216/01. Não se conformam que internação psiquiátrica, hoje, não se confunda nem com encarceramento nem com recolhimento por tempo indeterminado26. Não se conformam com uma nova visão em que a doença mental – e seu tratamento - não é mais tida como questão de segurança pública. Não se conformam que, hoje, qualquer paciente tem direito a rápida revisão, por outras instâncias, dos atos médicos que recomendam a internação, claro reconhecimento da imensa relatividade da diagnose e prognose psiquiátrica. Não se conformam, enfim, que a internação somente seja indicada para casos de surto e ainda somente quando os recursos, fora do ambiente hospitalar, se mostrarem insuficientes. Desconfiam do tratamento extrainstitucional. Sacralizando diagnósticos fechados, exigem, à margem da lei vigente, recolhimento, por tempo indeterminado e com vigilância policial, de pessoa sem qualquer sintoma agudo.
O que se verifica no Estado de São Paulo é uma silenciosa – mas gravíssima – ruptura da legalidade por grupos que não se conformam com o aparato normativo vigente. É o que explica a significativa renúncia na busca de alternativas, dentro da legalidade, para um problema que reputam sério e relevante. Um termo de cooperação entre Justiça, Saúde, Segurança Publica, Assistência Social, etc, por certo teria grandes condições de oferecer o tratamento e controle27 que acreditam necessitar esses jovens, minimizando sobremaneira os riscos que cogitam embutidos em sua liberação 28.
Mas isso, curiosamente, jamais foi cogitado.
Nota do blog: Gabriela enviou o nome do autor do texto acima neste mês de abril. Antes tarde do que nunca. Eis o nome do autor: Frasseto, Flávio. A. Unidade Experimental de Saúde – mais um triste capítulo da história de paulista no tratamento de jovens infratores. Mimeo, s/d.
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Esse texto deve constar a referência e autoria:
Frasseto, Flávio. A. Unidade Experimental de Saúde – mais um triste capítulo da história de paulista no tratamento de jovens infratores. Mimeo, s/d.
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