PICICA: "[...] Vinciane Despret, uma filósofa belga, conta a história do
sabido Hans. Não confundir com o menino Hans. Esse Hans era um cavalo
capaz de acertar perguntas relacionadas a problemas matemáticos. Ele não
se limitava a operações de soma e subtração, mas também multiplicação,
potenciação e até raiz quadrada. Você fazia a pergunta ao cavalo e ele
respondia batendo a pata no chão. O número de batidas correspondia à
resposta. Seu dono o levava em grandes apresentações públicas na
Alemanha do começo do século passado. Era considerado um gênio para
muitos, documentado até no New York Times, mas havia quem desconfiasse.
Até que, sentindo-se insultado, o dono decidiu pôr à prova o talento de
Hans, autorizando uma investigação mais aprofundada sobre seu prodígio."
A revolta dos leões-marinhos
Semana passada, fui ao Aquário de Santos com a namorada. O Aquário é o segundo parque mais visitado do estado de São Paulo, muito popular entre as crianças. O visitante percorre um corredor à meia luz com aquários dos dois lados. Você passeia entre tanques estilizados, com legendas explicativas, repletos de peixes, moluscos, crustáceos, anfíbios e répteis marinhos. Tem também um enorme viveiro refrigerado com dezenas de pinguins e, no final do percurso, o tanque do leão-marinho. Chama-se Inti. A principal atração do Aquário fica num espaço bem amplo ao ar livre. Era possível vê-lo de um ponto abaixo do nível d´água, onde ele nadava submerso a velocidades aparentemente incompatíveis com o jeitão desajeitado do bicho. O animal realmente impõe a sua presença. Ele ia até o final do tanque, fazia uma virada ágil, e voltava para uma nova passada. Talita e eu ficamos um tempo observando aquela massa negra, gorda e brilhosa, quase uma entidade psicanalítica, fazendo várias passagens rente ao vidro.
Estávamos já indo embora, quase na saída, quando de repente Inti veio em nossa direção e pôs a cabeça pra fora da água. Ali pertinho, à distância de poucos palmos, tive uma nítida impressão: “Talita, olha só, ele tá olhando pra você!”. O leão-marinho parecia mesmo estar mirando fixamente pra ela, enquanto aproveitava para tomar fôlego e piscar os olhos. Nessa hora, ele me pareceu bem mais simpático do que no nado submerso, e não pude evitar de associá-lo ao Leôncio, o personagem da Disney. Aí, a criançada veio correndo, e fez um semi-círculo ao redor da gente. Mas elas vieram e ficaram quietinhas, contemplando o bicho e a mulher se encarando, separados apenas pelo vidro do tanque. Foi estranho, um stásis sensível, meio que um momento Tarkovski, com expressões congeladas, água corrente e luzes que tremem. Saímos dali afetados por tudo.
Logo depois, refletindo, comentei como aquilo poderia ter sido possível devido a um processo de humanização do leão-marinho. Em primeiro lugar, humanização como uma projeção subjetiva nossa, que não corresponde exatamente ao que aconteceu. Estaríamos projetando no animal emoções humanas. E, a partir daí, interpretando o comportamento e as reações dele. O que seria um registro ilegítimo, porque não poderíamos ter acesso ao modo de ver e viver o mundo do animal. Outra hipótese que formulei era que o próprio Inti já estaria humanizado. Nem tanto a humanização como uma distorção de nossa percepção a respeito, mas como um condicionamento a que o animal estaria submetido ao longo do tempo, que teria acabado por humanizá-lo como um hábito próprio. Tantos anos em cativeiro, rodeado de gente tentando interagir com ele, o leão-marinho já teria sido domesticado a responder aos estímulos humanos. Seu aparelho perceptivo inteiramente adestrado a reagir ao mundo dos homens, suas expectativas e desejos. E aí, não seria estranho ele tentar comunicar-se com alguém com tanta empatia, como tinha ocorrido.
Talita me repreendeu imediatamente as duas hipóteses. O problema não estava no leão-marinho. Mas em mim mesmo. Eu é que estaria antropomorfizando. Nem tanto o bicho em si, mas antropomorfizando a experiência no seu conjunto, a própria relação esboçada entre ela e Inti. Foi aí que ela me conduziu até este texto, que achei extraordinário.
A autora, Vinciane Despret, uma filósofa belga, conta a história do sabido Hans. Não confundir com o menino Hans. Esse Hans era um cavalo capaz de acertar perguntas relacionadas a problemas matemáticos. Ele não se limitava a operações de soma e subtração, mas também multiplicação, potenciação e até raiz quadrada. Você fazia a pergunta ao cavalo e ele respondia batendo a pata no chão. O número de batidas correspondia à resposta. Seu dono o levava em grandes apresentações públicas na Alemanha do começo do século passado. Era considerado um gênio para muitos, documentado até no New York Times, mas havia quem desconfiasse. Até que, sentindo-se insultado, o dono decidiu pôr à prova o talento de Hans, autorizando uma investigação mais aprofundada sobre seu prodígio.
Em 1904, foi instaurada uma comissão pública para fazer a avaliação do cavalo Hans. A “Comissão Hans” foi formada com 13 membros de várias especialidades, sob a direção intelectual do psicólogo alemão Oskar Pfungst, trazendo a atenção imediata do mundo científico. Foram então realizados vários testes. Outras pessoas que não o dono foram colocadas para fazer as perguntas. O cavalo acertava. O dono foi afastado. O cavalo acertava. Hans foi colocado noutro lugar, isolado dos espectadores. Ele continuava acertando! Finalmente, a comissão criou uma situação em que Hans não conseguia dar uma resposta correta. Se o perguntador não soubesse a resposta à própria pergunta, Hans errava. Ou seja, de alguma maneira ainda desconhecida, o cavalo estava lendo as respostas nos perguntadores.
“Ah sim, não é gênio, é só um cavalo telepata”, foi a primeira conclusão, não sem certo alívio, da comunidade vizinha, onde talvez algumas pessoas nem soubessem o que é uma raiz quadrada. A comissão, no entanto, foi refinando os experimentos, até descobrir que, de fato, os perguntadores inadvertidamente passavam as respostas ao cavalo. Não é que quisessem passar a cola, é que o cavalo era tão empático, que conseguia ler movimentos imperceptíveis nos corpos dos perguntadores. Pfungst concluiu que, ao atingir o número de batidas de pata correto, a pessoa sofria uma ligeira distensão dos músculos, sutil a ponto de nenhum espectador perceber, mas que o sabido Hans pegava. A expectativa da pessoa de que Hans acertasse produzia nela uma alteração mínima, um fenômeno na fronteira da consciência, do estado de relaxamento muscular. O cavalo, afinal, é um animal treinado para responder a estímulos corporais de seus montadores, tão mais fáceis de ler e responder quanto mais familiarizado estiver o animal com a pessoa em questão. Daí, as perguntas do dono, que realmente não estava de má fé, ser quase sempre respondidas com sucesso, enquanto outras pessoas obtivessem um índice de acertos menor.
O original da interpretação de Vinciane está em ver esse mesmo caso sob outra perspectiva. Na tradição, o caso do sabido Hans é lido como um exemplo de antropomorfismo. O cavalo estaria humanizado. Hans estava voluntariamente participando da “brincadeira” da gente, de maneira amistosa e atenciosa. Conhecia a fundo o corpo humano, e assim conseguia interagir com os humanos num nível íntimo. Mas e o ponto de vista inverso, não estaria correto? Não poderia ser Hans a treinar os humanos, treiná-los a como indicar-lhe as respostas? Quanto mais tempo a pessoa se relacionava com o cavalo, — e quanto mais atenção e expectativa depositava nessa relação, — mais Hans “adivinhava” as respostas. A taxa de acerto era diretamente proporcional à relação afetiva investida por ambos. Em que medida é o cavaleiro que adestra o cavalo e se familiariza com ele, e não o próprio cavalo que prepara seus cavaleiros? familiarizando-os com determinados macetes, sinais e esquemas corporais? Não estaria o próprio Hans, — mediante sinais e dicas igualmente pouco perceptíveis, — condicionando o movimento corporal do perguntador, para lhe passar a cola? E mais: talvez do mesmo modo que a pessoa estava passando a cola inadvertidamente, Hans estivesse, igualmente de modo pouco consciente, treinando-a a passar cola. Quer dizer, a relação emocional entre um e outro se dando além da esfera da consciência, mas nem por isso é menos efetiva e transformadora.
Disso, Vinciane mostra como não se trata de uma relação humanizante. O ponto de vista antropomórfico perde de vista a relação. É preciso simetrizar essa equação, colocando em evidência também o outro efeito, zoomórfico. Não para cometer o erro simétrico (zoomorfizar o humano), mas para recolocar todo o problema de um modo diverso, com outras coordenadas e outras premissas. Isto é, nem tanto uma relação com causa e efeito, sujeito e objeto bem determinados. O humano como causa eficiente/sujeito, o animal como efeito suportado/objeto. Isso está embaçado no caso. Pode-se falar mais realmente, sim, numa relação com dois sujeitos, em processo cruzado de antropomorfização e zoomorfização, — ou “antropozoogênese” como Vinciane prefere chamar. Dá-se uma franja de indistinção entre causa e efeito, em que uma nova realidade, uma realidade antropozoomórfica é criada.
Ora, o humano ativa um ponto de vista humano no animal, na mesma conexão corporal em que o animal ativa um ponto de vista animal no humano. Estar nessa relação, investindo-se emocionalmente, significa estar aberto para o outro num nível muito mais produtivo do que supunha a psicologia da época. Aí, existe uma questão de disposição subjetiva, com imediato efeito de metamorfose. É abrir-se para um devir-cavalo do homem e um devir-homem do cavalo, — tudo acontecendo no plano relacional dos corpos e trocas corporais. Eu estou formulando o problema Hans, mas Hans está formulando um problema “Eu”, ou seja, um problemão em que eu me torno, por assim dizer, o outro do outro. Vinciane explica assim como está em questão um híbrido, uma quimeração em duplo sentido, o que vai pôr em xeque não só a perspectiva antropomórfica e a zoomórfica, — mas o próprio campo epistêmico que nos permite acreditar em algo como o “mundo humano” ou algo como o “mundo animal”.
Hans nos fala sobre nós próprios, enquanto seres inumanos. O leitor imagine, agora, as consequências dessa virada “relacional” não só para o estudo dos animais e o método científico, mas para a ética e a política…
O leão-marinho do Aquário, portanto, não estava humanizado. Ou pelo menos essa seria uma versão muito achatada (e egocêntrica) da verdade. Eu estava reduzindo convenientemente as coisas. A disposição de Talita em se deixar afetar por Inti também fazia ocorrer nela, no nível corporal, um devir-leão-marinho. Não tanto que a Talita percebesse desabrochar nela um lado animal, e certamente ela não saiu do Aquário imitando um mamífero aquático. Na verdade, o devir-leão-marinho está todo ele indexado àquela situação, — àquele tempo e espaço que eu, por exemplo, vivenciei tarkovskianamente.
O que importaria destacar, no meu entendimento, seria como perceber essa relação humano-leão-marinho ativar forças corporais e relacionais, na fronteira da consciência, com imediato efeito ético e político. E como essas forças se propagam, ou poderiam se propagar. Uma transformação de transformações, apesar de toda a sua singeleza e pequeneza, capaz de reconfigurar a situação inteira, desestabilizando não só a minha própria inscrição nela, mas a das crianças, dos funcionários, e do próprio Aquário como prisão ecológica que é.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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