PICICA 1: "O que são, afinal, os índios para a
ordem capitalista? Um ônus, um entrave, uma aberração, mas que, por não
ser conveniente à “civilização” assim declará-los, recebem da nossa
Constituição instrumentos para sua proteção que são constantemente
“desmoralizados” (e é inevitável usar aqui esta palavra porque a
proteção aos índios assume exatamente uma feição moral na ordem
jurídica, ao mostrar como somos gratos e responsáveis com nossas,
digamos, “origens”), como na decisão da Justiça Federal que exterminou,
por enquanto, a paciência dos índios e sua esperança de viver no espaço
que a “civilização” reservou àqueles que a antecederam. E sobreviveram à
sua afirmação.
A carta à Justiça Federal não deixa dúvida: os Guarani-Kaiowá cansaram de reivindicar o direito de sobreviver como índios e não aceitam viver senão como índios.
Não aceitam migrar para o regime do trabalho precário (prestado, no
geral, a quem tomou suas terras) ou da mendicância às margens do
exuberante mundo das mercadorias. O “bilhete suicida” que essa
comunidade manda para nós, não o tomem como chantagem, “drama” etc. É um
“basta”, um “chega”, mas principalmente uma prova de que os índios, com
sua habitual sabedoria, entenderam melhor do capitalismo e de sua
“civilização” do que nós, que nele estamos afundados até o pescoço – e
um pouco mais.
Não só sua própria existência, mas a
forma como os índios insistem em mantê-la é uma grande afronta ao
capital e sua lógica."
PICICA 2: Leia, também, "Corta essa de suicídio!" e "O canário nas minas de carvão".
PICICA 2: Leia, também, "Corta essa de suicídio!" e "O canário nas minas de carvão".
“O
que espanta, desta vez, é que os próprios Guarani-Kaiowá tenham pedido
ao seu inimigo mais ou menos declarado – esta coisa que insistimos em
tratar como “civilização” – que seja mais sincero. Sim, mais sincero e
diga claramente que o índio não interessa, não se encaixa no modo de
vida a que todos, sem privilégios (ouçam o eco iluminista…), estamos
condenados.”
Há 13 anos a Editora Expressão Popular
vem contribuindo para a batalha das ideias e para o fortalecimento da
cultura socialista em nossa sociedade. Nossa contribuição só foi
possível por contarmos com a solidariedade e o compromisso de mais de
300 companheiros e companheiras que se juntaram a nós e fizeram/fazem
parte deste processo através da cessão de direitos autorais, de
trabalhos de revisão, editoração, diagramação, divulgação etc.
Seguimos firmes nesta batalha e estamos
buscando travá-la cada vez co mais afinco e em mais frentes. Neste
sentido, estamos inaugurando em nosso site a seção “Batalha das ideias”,
na qual publicaremos textos de intervenção e de combate, com vistas a
fortalecer a cultura socialista em seu mais amplo espectro. Primaremos
por conteúdos que estejam para além tanto das discussões do que Antonio
Gramsci bem definiu como “pequena política” quanto dos debates
estritamente acadêmicos.O intuito desta iniciativa é apresentar de modo
mais dinâmico temas que contribuam para uma melhor compreensão da nossa
sociedade hoje com vistas a transformá-la, através de textos que
recuperem os aspectos atuais do pensamento clássico da classe
trabalhadora.
O texto da seção é bastante oportuno e
atual, tendo em vista a dramática situação de desamparo e injustiça
vivida pelos indígenas brasileiros. Confira abaixo.
Ser índio em tempos de mercadoria, de Tarso de Melo*
A recente divulgação da carta que uma
comunidade indígena Guarani-Kaiowá de Dourados (MS) enviou à Justiça
Federal pedindo que, uma vez que não lhes é permitido viver da forma que
consideram digna, seja logo decretada a morte de toda a comunidade, por
cruel que pareça, não deveria causar espanto. Condenados à morte,
sejamos sinceros, os índios brasileiros já estão há mais de 500 anos,
mas a execução da sentença é lenta, torturante e cínica.
O que espanta, desta vez, é que os
próprios Guarani-Kaiowá tenham pedido ao seu inimigo mais ou menos
declarado – esta coisa que insistimos em tratar como “civilização” – que
seja mais sincero. Sim, mais sincero e diga claramente que o índio não
interessa, não se encaixa no modo de vida a que todos, sem privilégios
(ouçam o eco iluminista…), estamos condenados.
Aprendemos com Marx que o capital
libertou o trabalhador da escravidão à força, típica de formações
econômicas pré-capitalistas, para submetê-lo a uma forma diversa de
escravidão: o trabalho assalariado, a compra e venda da força de
trabalho. (Sim, ainda há trabalho escravo – e ele não é incompatível com
o capitalismo. Apenas não pode ser a regra, porque a valorização do
capital depende de sua circulação também na forma de salário, o que não
impede que um ou outro capitalista faça uso da extração violenta da
força de trabalho.)
O trabalho como mercadoria é – em regra,
insisto – o único compatível com uma sociedade em que tudo é
mercadoria, em que o acesso aos bens indispensáveis à existência passa
inescapavelmente pelo mercado: pagou, tem; não pagou, não tem. Ponto
final. É óbvio, neste esquema rigoroso de trocas, que não se tolere
qualquer exceção à lógica mercantil. Em outras palavras, o que o
capitalismo não tolera é a manutenção, em seu mundo, do que não é mercadoria e, ainda por cima, impede o livre desenvolvimento de suas forças.
O que são, afinal, os índios para a
ordem capitalista? Um ônus, um entrave, uma aberração, mas que, por não
ser conveniente à “civilização” assim declará-los, recebem da nossa
Constituição instrumentos para sua proteção que são constantemente
“desmoralizados” (e é inevitável usar aqui esta palavra porque a
proteção aos índios assume exatamente uma feição moral na ordem
jurídica, ao mostrar como somos gratos e responsáveis com nossas,
digamos, “origens”), como na decisão da Justiça Federal que exterminou,
por enquanto, a paciência dos índios e sua esperança de viver no espaço
que a “civilização” reservou àqueles que a antecederam. E sobreviveram à
sua afirmação.
A carta à Justiça Federal não deixa dúvida: os Guarani-Kaiowá cansaram de reivindicar o direito de sobreviver como índios e não aceitam viver senão como índios.
Não aceitam migrar para o regime do trabalho precário (prestado, no
geral, a quem tomou suas terras) ou da mendicância às margens do
exuberante mundo das mercadorias. O “bilhete suicida” que essa
comunidade manda para nós, não o tomem como chantagem, “drama” etc. É um
“basta”, um “chega”, mas principalmente uma prova de que os índios, com
sua habitual sabedoria, entenderam melhor do capitalismo e de sua
“civilização” do que nós, que nele estamos afundados até o pescoço – e
um pouco mais.
Não só sua própria existência, mas a
forma como os índios insistem em mantê-la é uma grande afronta ao
capital e sua lógica. Vejam o que diz a carta: “Nós comunidades
cultivamos o solo, produzimos a alimentação aqui mesmo, plantamos
mandioca, milho, batata-doce, banana, mamão, feijão e criamos de animais
domésticos, como galinhas e patos. Aqui agora não passamos fome mais.
As nossas crianças e adolescentes são bem alimentadas e felizes, não
estão pensando em prática de suicídio. Assim, há uma década, nesses 12
hectares estamos tentando sobreviver de formas saudáveis e felizes,
resgatando o nosso modo de ser e viver Guarani-Kaiowá, toda a noite
participando de nosso ritual religioso jeroky e guachire”. Como assim
alimentadas, saudáveis e felizes? Sem ter pago por isso? Este
intercâmbio do homem com seus iguais e com a natureza orientado apenas e
tão-somente por suas necessidades – do espírito e do estômago – é
inadmissível para o capital. Mais ainda: é sobre sua negação que se
constituiu a forma como vivemos nos últimos 3 ou 4 séculos.
Os índios, neste contexto, são não
apenas supérfluos, mas uma espécie de mau exemplo a ser apagado do
horizonte de formas de “ser e viver” à venda – sim, à venda – em nosso
tempo. O que será de uma sociedade “sem alternativas” se tolerar uma
forma de vida que se nega à troca, ao dinheiro, à concentração da
riqueza, ao desperdício? Desta vez, a pedido dos próprios índios, a
“civilização” terá oportunidade de declarar o que pensa a este respeito.
A propósito, a Constituição brasileira
afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).
Se nossas autoridades, que têm sua
função justificada por essa mesma Constituição, não se preocuparem em
respeitar tais palavras, será muito difícil evitar que se confirmem a
tragédia da carta dos índios e o pessimismo das linhas acima. Mas também
será cada vez mais difícil – creio e espero – manter os grupos
oprimidos e suas reivindicações dentro de comportados limites legais.
*Tarso de Melo (1976) é advogado, mestre
e doutor em Direito pela FDUSP, professor da FACAMP e coordenador de
pós-graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É um dos
coordenadores da coleção Direitos e Lutas Sociais (Dobra/Outras
Expressões).
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Fonte: Combate ao Racismo Ambiental
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