PICICA: "[...]em um mundo
globalizado, a desconstrução das formas tradicionais do direito e da
soberania é inevitável. Em suma, devemos aceitar que a governança global
é “pós-democrático” no sentido de que ela não suporta mais o sistema
representativo original e radical, que apoiou e garantiu a legitimidade
do Estado É fato que os órgãos, as técnicas e as práticas de governança
global possuem a flexibilidade e a fluidez necessária para se adaptarem a
situações de mudança de forma consistente, e que sua aplicabilidade
pode ser atribuída a uma pluralidade de formas controladas de
regulamentação, muitas vezes de forma indireta, por oligarquias e
oligopólios, especialmente os econômicos.
Certo. Mas esta análise da crise do direito e da soberania
na globalização, com o forte conteúdo de desconstrução que a
caracteriza, não consegue lidar com o outro termo (não ao mesmo tempo e
de forma síncrona) posto neste contexto: o tema do “comum”."
O direito do comum: o que existe na fronteira entre o público e o privado?
20/10/2012
Por Negri / Sérgio Rauber
O direito do comum na visão de
Antonio Negri, uma aposta de práxis constituinte que coloca em marcha a
afirmação de novos direitos, menos como norma do que potência de
autoprodução de movimento e vida, e além das dicotomias infernais do
estado e do mercado, o público e o privado, a norma e o fato.
–
Por Antonio Negri | Trad. Sérgio Rauber (publicado originalmente no blogue [... a coisa toda], em 16 de outubro de 2011.
Dissolução. Cientistas do direito têm
destacado algumas características-chave da governança global: a
tendência dos processos e práticas de governança ultrapassarem a rigidez
dos sistemas jurídicos e das estruturas reguladoras; a fragmentação do
sistema jurídico sob a pressão do conflito global e a colisão de
diferentes gêneros e espécies de normas. A governança global mina
qualquer tentativa de unificar os sistemas jurídicos frente à
necessidade universal de operar em um lógica modular, com a qual seja
possível gerir conflitos e assegurar a compatibilidade legal dos
fragmentos do mundo global. Neste sentido, a governança global é de fato
um “governo do estado de exceção”, (obviamente na direção oposta
daquela teorizada por Carl Schmitt para definir soberania).
Parece-nos que esta conclusão é correta e que, em um mundo
globalizado, a desconstrução das formas tradicionais do direito e da
soberania é inevitável. Em suma, devemos aceitar que a governança global
é “pós-democrático” no sentido de que ela não suporta mais o sistema
representativo original e radical, que apoiou e garantiu a legitimidade
do Estado É fato que os órgãos, as técnicas e as práticas de governança
global possuem a flexibilidade e a fluidez necessária para se adaptarem a
situações de mudança de forma consistente, e que sua aplicabilidade
pode ser atribuída a uma pluralidade de formas controladas de
regulamentação, muitas vezes de forma indireta, por oligarquias e
oligopólios, especialmente os econômicos.
Certo. Mas esta análise da crise do direito e da soberania
na globalização, com o forte conteúdo de desconstrução que a
caracteriza, não consegue lidar com o outro termo (não ao mesmo tempo e
de forma síncrona) posto neste contexto: o tema do “comum”.
Observamos primeiro que os termos global e comum não são
coextensivos. Considerá-los como tal, é banalizá-los (Nancy, Esposito,
etc.) Pelo contrário: qualquer seja a sobreposição política e jurídica,
global é sempre um termo espacial; e, comum é sempre uma categoria de
produção (com impacto significativo sobre o campo ontológico). Por quê,
então combiná-los? Porque a globalização é a causa dessa ligação entre
dois conceitos ou categorias tão diferentes? Claro, de modo superficial,
porque na forma em que são reduzidos, não se trata de uma definição
categórica e, muito menos, da constituição do comum. Na verdade, a
mundialização é o motor caótico da pulverização e/ou da
imprevisibilidade da atividade especialmente determinada pelo fluxo
residual (não por isso menos eficaz) das ações soberanas.
Se não contarmos com uma abordagem ideológica, poder-se-ia
supor que o termo “comum” intervenha na discussão como um tema central,
quando, na verdade, a globalização e as práticas legais que a
acompanham, o transcendental do direito privado e do direito público e
consequentes práticas jurídicas que a sobre-determinam, falhamos
completamente em sua definição. Parece que há aspectos, dimensões,
perfis do “comum” que – se não dermos uma resposta concreta à crise de
sobre e subdeterminação da ordem global – não requalificam o terreno
discursivo. Retomaremos este assunto mais tarde. Ponha-se desta maneira:
em razão da dissolução, não somente jurisprudencial, mas conceitual do
“velho direito”, como é que se estabelece o tema do “comum”?
História. A hipótese majoritária retem que
o velho direito é definido, essencialmente, com base no conceito da
propriedade privada. Esse horizonte hipotético não é ultrapassável? E,
então, frente à dissolução que se constrói sobre o campo da governança
global do direito, como configurar a permanência do direito? Sob
qualquer ponto de vista, uma análise material e dialética em torno
deste argumento, parece confirmar que a dissolução determinada pela
globalização, historicamente demonstrada e refletida em sua crise atual,
confirma a impossibilidade da evolução do direito privado e do direito
público a outro tipo de direito, um tertium genus. Menos ainda,
explicitamente, sua evolução a uma “lei comum”. Deve-se acrescentar
imediatamente aqui que o termo “lei” é tão ambíguo e impreciso quanto o
termo “comum”.
Prova disso é quando você considera o continente direito.
Na cultura ocidental, a dimensão jurídica torna-se crucial desde o
momento em que se organizou em torno da figura (por isso, ficcional) do
indivíduo-proprietário. O quadro institucional (e conceitual) da lei
ocidental tem suas raízes nas necessidades do indivíduo, moldado nas
relações conflituosas (de soma zero) que ele tem com o seu homólogo, no
caso. O estabelecimento do Corpus Juris de Justiniano serve como ponto
culminante da evolução do direito no mundo romano, e o que lhe dá forma e
constituição nos próximos dois mil anos de história legal. Assim, o
direito romano será reaprendido e treinado de acordo com as necessidades
do capitalismo nascente. É a interpretação deste, de forma adequada,
que servirá de instrumento para organizar a acumulação primitiva de
capital. É uma característica desta história o fato de que os
procedimentos jurídicos, processuais e jurisprudenciais consolidaram o
direito do indivíduo-proprietário e produziram um mecanismo de validação
uniforme da propriedade (o mercado) e da soberania (o Estado). Ambos
sistemas (mercado e Estado) concentram seu poder sobre o indivíduo
excluindo qualquer outro sujeito da esfera de jurisdição dada. Rhodus
Hic, hic salta. Procurar, neste âmbito, uma passagem para além da
estrita concepção privatística do direito e de seus procedimentos de
aplicação e verificação é inútil. Consequentemente, a busca de uma
definição para o “comum” nesta área é completamente inadequada. O
direito de tradição continental (notadamente romano-germânico) não
permite reconhecer o “comum” do modo que historicamente é interpretado. A
fronteira entre o público e o privado (aquilo que vai do conflito à
soma zero) não deixa espaço, até agora, para a definição de um terceiro
polo.
O vazio conceitual ocorre, mesmo quando tomamos a tradição
da antiga lei saxônica que é chamada de common law – que podemos
traduzir como um direito “para” o comum, para o ordinário do povo. Se
trata de um direito arcaico intimamente ligado às estruturas
tradicionais comunitárias das cidades medievais. Porém, Maitland e
Polock quando analisam este “direito para o ordinário do povo” advertem
que, longe de ser um direito do “comum”, é um direito individual, um
direito que não está em relação de ruptura com o individualismo
jurídico, ou seja, com o interesse da propriedade. Na verdade, é um
direito que o indivíduo pode opor ao público, um direito que de nenhum
modo pode reconduzir à essência do “comum”, àquela “equidade na
coprodução de norma jurídica não estatal” (que é a recente definição do
direito do “comum”). Não é mera coincidência que as definições sobre o
“comum” são tomadas emprestadas aos anos ‘50, por exemplo de Hayek, e
são perfeitamente conhecidas em seu sentido e significação.
Parece ser muito difícil reconhecer um direito do “comum”
que nasce dentro das velhas estruturas jurídicas (mercado, Estado) e
delas se emancipa. Tanto mais, se (como frequentemente se teoriza no
campo do socialismo jurídico) se pensa que a evolução do direito
público, em função antagonista ao direito privado, forneça uma base para
a transição ao direito do “comum”. Interessante, a propósito, é a
referência sobre a experiência soviética. Pasukanis – o maior jurista do
tempo – viu imediatamente com grande clareza. Não se dá – disse ele – o
direito proletário “com a mera transição para a fase do socialismo
desenvolvido. O desaparecimento das categorias de direito burguês
significa a extinção do direito em geral, ou seja, o desaparecimento
gradual do momento jurídico na relação entre os homens”. Quanto ao
Estado soviético, este é definido como um capitalismo de
Estado proletário. No capitalismo de Estado proletário, são dadas, de
acordo com Pasukanis, as duas realidades do intercâmbio e do direito. A
primeira consiste numa vida econômica que se desenvolve de forma
“pública” (programas gerais, planos de produção e distribuição, etc). A
segunda consiste na ligação entre as unidades econômicas que realizam
suas atividades “na forma do valor do valor das mercadorias circulantes
e, em seguida, na forma jurídica do contrato”. Agora é evidente, que a
primeira tendência (de direito público e planejamento) não apresenta
qualquer perspectiva progressiva e se abre somente para uma extinção e
gradual da forma jurídica em geral, refletida somente na gestão
econômica da sociedade. A segunda tendência é a que, possuindo as formas
de autonomia econômica, e considerando-as na suas formas de cooperação e
interação, é que poderá crescer em direção ao “comum”.
Curioso é notar que no discurso soviético (minoritário, mas
marxianamente correto) de um Pasukanis, venha sublinhada a
impossibilidade de extração do direito do “comum” do direito público e
venha, ao invés disso, considerada a possibilidade jogar sobre a
cooperação do trabalho coletivo, não só como uma saída para a construção
privatista do direito, mas também como uma construção de novas formas
de vida e de organização social não-capitalísitica (o “mercado sem
capitalismo” - do camponês chinês comum, em Arrighi é um modelo com a
mesma ressonância).
E a história atual? Na qual se afirmam os procedimentos de
governança, nos dá alguma indicação positiva de uma transição para o
“comum”? É possível entrever, nos procedimentos de governança, uma
“tendência à descentralização” contra a forte propensão à concentração
do poder capitalista global sobre o mundo? À fragmentação dos poderes
contra a sua unidade econômica sólida? À possibilidade de controle
difuso por parte de uma opinião pública ativa? à experimentação de fundo
dos mecanismos de participação na divisão social do trabalho e na
redistribuição da riqueza? Com elevado otimismo, poderíamos imaginar,
mas na realidade vemos que a governança é concebida como um exercício de
poder e produção de normas jurídicas, como modalidade institucional
aberta, flexível, de geometria variável, em um programa jurídico livre
de centro e dependente de mecanismos de conflito entre normas e de
competição entre ordenamentos – bom, que sobre este modelo já se sabe de
há muito utópico e que a história atual mostra bastante a
impossibilidade de um desenvolvimento linear do sistema legal vigente em
direção a um sistema de direito do “comum”.
Factual. Tendo dito o que temos dito,
resta perguntar por que o mundial recorda o “comum”. A lembrança surge
porque a globalização, por contraste, nos situa imediatamente à frente
de um outro “comum”, por assim dizer “ruim”: o ordinário do capital.
A transformação da lei do valor (quando a medida do tempo de trabalho
substituiu o seu poder de cooperação, e os dispositivos de circulação de
mercadorias, serviços, indústria e comunicação surgem como agentes da
exploração capitalista, quando o processo de subsunção real, isto é, da
transição da produção industrial de bens para o controle da vida social
envolvida no trabalhar, com a automação e informatização da produção –
bem, tudo isto tem o capital como biopoder global. A nova base em que
aexploração se instaura e efetiva, consiste em uma transição progressiva
do comando da fábrica (organização e disciplina do taylorista e
fordista em massa dos trabalhadores) para o controle da sociedade
(através da hegemonia do trabalho imaterial na produção, da valorização
através do trabalho cognitivo, do controle financeiro, etc): vale dizer
que a nova base sobre a qual opera o capital é a de explorar a
cooperação, as linguagens, as relações sociais comuns (reside, em geral,
nas chamadas “externalidades social”, internalizadas à produção
capitalista em escala global).
Um só exemplo, partindo da atual crise econômica global.
Muitas são as leituras que são feitas. Em todo caso, vindo da direita ou
da esquerda, as razões para a crise eram reputadas ao “descolamento”
entre as finanças e a “produção real”. Se assumirmos o novo pressuposto
de que temos falado até aqui, se refere ao surgimento de uma nova
qualidade de trabalho vivo “comum” e a sua exploração como tal,
insistiremos que a “financeirização” da economia global não é um desvio
improdutivo ou parasitário de quantidades crescentes de mais-valia e de
poupança coletiva, mas uma nova forma de acumulação de capital,
simétrica aos novos processos de produção de valor social e cognitivo.
Para superar esta crise, é inútil fingir que a resposta possa evitar a
construção de novos direitos de propriedade sociais e de bens “comuns” –
e esses direitos, obviamente opõe-se ao direito de propriedade privada e
exigem a ruptura daquele direito público no qual a propriedade privada
representa a força de lei.
[Repetir como elaborado no Uninomade workshop:
“se, finalmente, agora o acesso as bens comuns, tomou a forma de ‘dívida
privada’ (é somente em torno do acumulação desta dívida que a crise
explodiu), hoje, então é, pois, legítimo reivindicar o mesmo direito na
forma de “renda social”. Reconhecer estes direitos comuns é, portanto, a
única maneira e justa via para acabar com a crise”].
Aproximações 1. O direito tradicional não
pode, portanto, definir (e até mesmo a recorrer) ao “comum”. Estará
sempre constrito, na atual crise, a um ato de governança, por assim
dizer, restritiva e condenada a uma ambiguidade substancial. A
governança não pode realmente fazer fluir o intercâmbio social e, ao
mesmo tempo, otimizar o fluxo. Isto significaria transcrever a soberania
em termos negociais, desfazer a hierarquia das estruturas de decisão,
introduzir uma perspectiva de relações fragmentadas e policêntricas,
enfraquecer a tradicional separação entre público e privado -, mas não
poderia fazer nada mais que isso. Chignola nos lembra, seguindo as
pegadas de John Fortescue e do juiz Coke: “o termo governança refere-se,
desde o início, tanto ao governo enquanto pessoalmente referido como o
direito do príncipe a comandar, quanto à hierarquia de cargos
administrativos que dele depende, como, muitas vezes, ao conjunto de
normas, costumes, estatutos e liberdades que definem o entrelaçamento do
direito e dos poderes de organização político civis”. No pôr-do-sol do
Estado de Direito são repetidas os mantras do seu alvorecer.
Diminuindo a desconfiança com que até agora temos lidado
com com o conceito de governança, admitindo, todavia, que ela pode
abrir-se em termos constituintes, em condições diversas às que tem se
apresentado. Assumamos que o terreno do “comum” que se apresenta mais
próximo, como um campo de transição do público ao “comum” e que a
governança se adapte à esta transição: a pergunta a fazer, neste
momento, seria: se o direito tradicional não consegue definir (para
controlar, para transcrever, para estabelecer) o do “comum” – de que
modo pode a governança aproximar-se dele? Isto é: a governança
(ambiguamente, expressando uma espécie de cognato) pode construir o novo
direito?
Aproximações 2. Do ponto de
vista reflexivo da filosofia do direito tentamos aqui levantar a questão
de como se define “o comum”. Proponho qualquer exemplo que representem
os casos (mesmo os que resultem em combinações infinitas), mas que
talvez possa ajudar-nos a prosseguir.
Por um lado, então, o “comum” foi definido em termos de um
darwinismo sociopolítico como o efeito das relações de coprodução
econômicas e políticas. A este respeito, é bem conhecida a famosa
fórmula de Saint Simon, retomada por Marx e Engels, segundo a qual a
“administração das coisas” tomará o lugar do “governo dos homens”. O
“comum” aqui é revelado como a administração econômica da sociedade em
si. Ao auto-equilíbrio que o mercado neoliberal sugere, o socialismo
responde com a auto-organização econômica consciente dos homens. Essa
fórmula retorna constantemente no socialismo, pelo menos até os escritos
de Lênin. Isto trata, evidentemente, de uma teleologia do “comum”,
enervada na racionalidade tecnológica industrial. O “comum” é um “feito”
(fatto particípio do verbo fare) “um movimento real que efetiva um estado das coisas atual”.
Um modelo diferente de definição do “comum” é
aquele sociológico institucional. O desenvolvimento, da sociedade civil
às formas de organização pública, até um conceito do “comum” concebido
como resultado societário ou associativista, é visto e apontado como o
produto de uma atividade contínua. À necessidade de base económica e
tecnológica do primeiro modelo, aqui se opõe um ativismo processual e
social. Considerado em suas figuras mais recentes, o “comum” de forma
“institucional” é definido (p.ex. em Luc Boltanski) por meio do abandono
da sociologia que se concentra no acento sobre a dimensão vertical e
sobre a opacidade da consciência alienada dos atores, em vantagem de
uma sociologia que insiste sobre relações horizontais (e, claro, redes) e
sobre a ação “situada” de atores guiados por razões estratégicas ou
necessidades morais. Os elementos da “performatividade” do social são
colocados em primeiro plano e, mesmo que o público (o Estado) seja
chamado e assunto (assumido) como elemento de equilíbrio do processo,
este institucionalismo sociológico pragmático reconhece as contradições
dentro das quais se processa, portanto, fecha, o poder de seus
dispositivos abertos. Em suma, “um movimento real, que faz atual um
estado de coisas.”
Um terceiro modelo interessante (que representa a média dos
extremos), sempre a partir da perspectiva de uma definição de “comum”, é
a reapresentação de uma teoria filosófica dialética (débil) das
relações. Um caminho sobre o qual tinha avançado o formalismo de
Habermas e sobre o qual procede o realismo de Honneth. O “comum” é visto
aqui como uma Aufhebung (fraca), desnecessária. A dificuldade
de sua realização consiste em determinar – no indefinido contexto de
condições – a compossibilidade das diferenças. Experimentamos coisas
que, para outros, que quase se tornam evidentes no desenvolvimento do
projeto foucaultiano, quando se considera um modelo epistemológico mais
importante do que um dispositivo político.
Estas aproximações são assim. Todos atacam a ideia de que o
“comum” pode ser de alguma maneira pressuposto e afirmam a suposição de
que só podemos pensar as práticas sociais de produção do “comum”. Como a
governança pode interpretar, e possivelmente ir além, dessas premissas
em um caminho que leva para o “comum”?
Para evitar novos obstáculos, perguntamos aqui se uma
determinação de ação em comum deve necessariamente ter uma forma de
“instituição”, quando se avança sobre este campo. Ao se responder
negativamente à questão se poderá preferivelmente insistir que a
produção de regras não relevantes na legislação podem assumir uma forma
de uso negocial, de práticas do “comum” que não podem se dar
senão através de determinações concretas e de relações de poder. Neste
contexto, se poderá ainda depois perguntar: como articular o terreno da
propriedade com o terreno da utilidade? Quais são as condições de
compossibilidade dos indivíduos/singularidades? Como evitar a força da
solidez da identidade encerre qualquer possibilidade de compresença de
singularidades? Quais são os processos de subjetivação medeiam através
destes processos constitutivos? O estabelecimento do “comum” não
“aditivo” e tampouco “integrativo”, um “comum” que não é “somma” nem
mesmo “organismo” pode ser dar-se fora de uma progressão (ou regressão,
forte ou tênue) da dialética hegeliana?
Para responder à pergunta e sobre algumas outras questões/experiência.
Experimento 1. Se assumirmos que o
contexto da governança, em que a pluralidade de atores desenvolve a sua
ação, é desprovida de qualquer determinação finalística ou de valor; se
toda determinação é um poder que ganha (ou perde) em comparação com
outros poderes, o primeiro exemplo jurídico que se pode referir à busca
do “comum”, é aquele tradicionalmente representado pelo direito
internacional de guerra. Aqui, paradoxalmente, o “comum” se desliga do
global. Este é certamente um campo livre de formalismos. São, de fato,
evidentes os riscos que se corre, no caso de pretende operar aqui com
conceitos de governo liberal, de direito ou doutrinas de justiça
ancoradas nos diagramas do racionalismo metafísico abstrato. Assim
fazendo, diminuir-se-ia a prática jurídica para a simples memorização de
fatos – e esta é a maneira pela qual a sociologia e empirismo
realistas conduziram-nos a um campo (definido por Carl Schmitt no
direito internacional como o não-direito), onde a governança é definida
pela ausência de qualquer possibilidade de nomos. Estamos novamente
imersos na dissolução. O experimento de direito internacional não
modifica a dissolução senão através do deslocamento. Este deve por-se
sobre o terreno da globalização, como uma nova reflexão. Que reconheça o
antagonismo básico entre eles, em todos os sentidos, mova o processo de
revisão, o que elimina qualquer homologia com o passado, todas as
referências a antigas constituições internacionais, para construir ovos e
eficaz regulamentos provisórios sobre as novas áreas e temas
(biopolítica e, especialmente, os meios de comunicação financeira) etc,
etc.
Um segundo exemplo é o dos direitos sindicais, na luta de
classes. Na transição pós-fordista e durante o curso da crise econômica –
desfeito o compromisso do Reno e, em geral o contratualismo industrial,
mais ou menos corporativo – o problema da regulação do trabalho social e
de redistribuição do “produto interno bruto” tornaram-se questões
agora quase livres de todos estatutos jurídicos, deslocadas do terreno
da produtivo diretamente ao da (re)produção social. Mesmo neste caso,
qualquer homologia com as lei sindicais do passado é em vão, mesmo aqui
há uma iniciativa para abrir um processo constituinte. No entanto, o que
é, hoje, é também neste caso, um terreno caracterizado por
determinações semelhantes às estabelecidas no direito internacional – um
verdadeiro desastre das formas jurídicas tradicionais. Para o momento
parecem possíveis apenas táticas de operações de resistência.
Experimento 2. É a linha da Commonwealth.
Ele nos força a enfrentar o problema de um eventual direito
do “comum” do ponto de vista de uma ontologia do “comum”.
Este caminho começa a partir do reconhecimento da
construção e da sujeição funcional do “comum” por parte do capitalismo
global, financeiro, militar. Longe de propor processos de reconhecimento
puro ou de apropriação da estrutura e das figuras do “comunismo de
capital” e seu Estado, esta linha de pensamento sugere conceber os
processos de governança como instrumento de ulterior desestruturação
do direito tradicional e, em segundo lugar, objetiva o procurar, no
interior dessa desestruturação, o emergência de novas figuras de
cooperação produtiva.
A única saída, em relação a essas questões, parece ser:
1. A reafirmação do tema do “comum” em um campo que não é
socialmente homogêneo, que não provê institucionalidade nem homologia
pre constituinte, mas é atravessado por antagonismos originais: por um
lado há uma força de trabalho, mais e mais precária, que reconhece sua
autonomia do capital; de outro, está a relação de comando que o capital
está sempre em busca de renovar. A solução desses conflitos não pode
dar-se segundo alguma determinação teleológica ou dialética. É um
contexto maquiavélico dentro do qual se move. Cada determinação é
uma potência que ganha (ou perde) em comparação com outra potência. O
sentido do processo aqui é identificado ao quanto assimilado e produzido
pelo poder (potência) de decisão coletiva.
2. Neste quadro, o “comum” não pode ser colocado em
continuidade com a tradição jurídica, não pode configurar-se como um
terreno dentro do qual se propõe, a partir do exterior, as ideias de
justiça… pode somente conter a construção dos usos e governar-se em
imanência, em sua reciprocidade e mútua. O direito internacional (como
não-direito propriamente) é, a partir deste ponto de vista, o modelo ao
qual podemos nos referir (mas em sentido inverso, ao contrário do modo
como Carl Schmitt abordou a questão).
3. A inversão de perspectiva schmittiana, não de
recuperação de “exceção”, mas na insistência de um “excedente” do
trabalho cognitivo, a assunção de um contexto bio-político adequado,
etc, em suma, o estudo das doutrinas e das práticas desestruturantes do
direito ocidental e o exercício (na desconstrução do direito) do poder
constituinte, constituem a única reposta viável hoje sobre estas
questões.
Pasukanis, nos anos 20, havia proposto algumas linhas muito
interessante: “é bastante claro que a lógica dos conceitos jurídicos
corresponde à lógica das relações sociais em uma sociedade que produz
bens e que, é propriamente nestas relações e não na permissão de uma
autoridade, que há de ser encontrado a raiz do sistema de direito
privado. A lógica das relações de dominação e subordinação, portanto,
são apenas parcialmente abrangidos pelo sistema de conceitos jurídicos.
Assim, o conceito jurídico de Estado nunca pode tornar-se uma teoria e
sempre será a alteração ideológica dos fatos”. Imaginar um direito
do “comum” (mas por que falar agora de direito, não é?) deve, desse
modo, – uma vez desestruturada a constituição proprietária - a partir da
pluralidade, da rede de relações de trabalho com formas de regulação, o
que compreende o desenvolvimento do potencial das relações de produção
sociais – que são, na equidade e no interior do que é coproduzido,
normas jurídicas não-estatais para regular a vida em comum.
Devemos seguir o exemplo de fenômenos cooperação da força
de trabalho, da auto valorização, introduzindo um excedente de
capacidade de produção do trabalho individual e coletivo; necessário
caminhar ao longo do interior dos fenômenos financeiros, revelando o
poder das relações simétricas entre a produção social e o sistema de
signos – reinventando provavelmente a este nível, uma teoria da
“valor-trabalho” (e sua medição). É só neste caso, será possível
estabelecer as linhas que, por exemplo (e não simplesmente em termos
táticos, mas finalmente estratégicos), subindo da condição do Welfare ao
“comum” (que sob esta luz, começa a se definir como um espaço de
participação democrática mais igualitária de distribuição).
Nota para nota de Teubner. (Hardt e Negri) Teubner
começa de modo confuso alguns conceitos do Commonwealth, mas em sua
caracterização definitiva das diferenças e semelhanças entre o seu e o
nosso caminho é muito justo e generoso
Há duas semelhanças com a nota: 1. O reconhecimento da
insuficiência da alternativa entre as soluções neo-liberal de mercado e
as soluções keynesianas ou socialistas (Estado). Se uma terceira via
ainda não foi dada, é preciso inventá-lo.
2. valorização da pluralidade do campo social e a insistência em um movimento político baseado na multiplicidade. Bem até agora.
A primeira crítica de Teubner é, de fato – quando chega o
final de seu discurso – que nós sustentamos uma solução política
unificada e totalizante político que trai nossa crença inicial na
multiplicidade. Sobre este ponto, nós aderimos à insistência quanto à
multiplicidade de Teubner, simplesmente colocando neste contexto, a
necessidade de “fazer multidões”, ou simplesmente de fazer sociedade –
não como uma totalidade social unificada, mas como um contexto
coerente de relações sociais estáveis. Nós não acreditamos que estejamos
muito longe de Teubner sobre essa questão.
Acreditamos, todavia, que a discussão vai se extende em
profundidade quanto à utilização dos conceitos sobre os setores público e
privado. De acordo. Em primeiro lugar, com o uso de que Teubner faz do
conceito de “público”. Ele quer destruir o Estado e usa este conceito
para muitas das determinações a que nós chamamos pelo termo “comum”. A
questão fica mais complicada quando ele quer recuperar o conceito de
“privado”. De passagem, ele diz que se pode estar de acordo com a nossa
crítica da propriedade privada, mas que ainda existem muitos outros usos
para o conceito, que ele gostaria de manter privados. Nós nunca
dissemos que todas as garantias para o que Teubner quer manter como
privado devem ser jogadas fora. Pelo contrário. Gostaríamos de
caracterizá-los, ao invés de usar a noção de privacidade (privacy), com
os conceitos de autonomia e liberdade, conceitos estes que são muito
diferentes porque são fundados não sobre a separação e proteção, mas sim
sobre nosso poder (power).
Finalmente – talvez o mais importante – cremos que Teubner
subestima a intensidade da nossa crítica à propriedade privada, ou
melhor, subestima a transformação social radical exigida pela abolição
da propriedade privada. Ele assume que todos os outros significados
da “privacy” (fora da propriedade) são neutros com relação à propriedade
“privada” -, enquanto nós acreditamos que eles estão intimamente
envolvidos. Em suma, gostaria de aprofundar com Teubner o argumento de
Psukanis, quando ele demonstra que a propriedade privada funda o direito
burguês (e capitalista), enquanto as outras energias da singularidade
(a responsabilidade no trabalho, a alegria da pesquisa científica, a
solidariedade social etc) permitem que você construa o “comum”. Estamos
tão convencidos disto que não nos parece estranho que o “comum” possa
ser construído a partir das virtudes pessoais, em detrimento da força do
público, do Estado (que novamente se ergue para garantir a proteção da
propriedade). Teubner pode não perceber as condições em que a
propriedade privada, em todos os contextos, ameaça os jogos de linguagem
que ele deseja preservar.
(tradução do original italiano para o português por @sergiorauber)
Fonte: Rede Universidade Nômade
Nenhum comentário:
Postar um comentário