PICICA: "DIPLOMATIQUE – A eleição de 1989 é um marco dessa inflexão?
ANDRÉ SINGER – É um marco desse processo, que depois foi aprofundado
pelas políticas do governo Fernando Henrique Cardoso. Mas não é só isso,
porque estamos falando de hegemonia cultural. O que acontece é que os
valores de mercado, de ascensão individual, de competição e os valores
ligados a uma intensa mercantilização dos espaços públicos começaram a
se tornar correntes, sobretudo na chamada classe média tradicional e
depois em estratos médios mais amplos. Então, passamos a assistir ao
surgimento de manifestações ideológicas, com articulistas, autores de
livros e até artistas, produtores influentes, que defendiam abertamente
esses pontos de vista, algo que não se encontrava até meados dos anos
1980. Assim, a presença quase total que a esquerda tinha no plano da
cultura foi quebrada e passou a haver uma competição na qual continua
existindo uma esquerda, mas a direita é crescente. Com isso, não quero
dizer que ela necessariamente vai se tornar hegemônica, mas passou a
haver uma competição."
Novas expressões do conservadorismo brasileiro
Segundo o cientista político André Singer, a quebra da hegemonia da esquerda no plano cultural e a resistência aos programas sociais do lulismo e à resultante ascensão social estão na raiz das ondas conversadoras que prosperam atualmente no Brasil
por Luís Brasilino
DIPLOMATIQUE – Em debate na USP realizado em agosto, o senhor identificou que a esquerda brasileira perdeu a hegemonia no plano cultural que possuía nas décadas de 1960 a 1980. Como se deu esse processo?
ANDRÉ SINGER – Parto de artigo famoso do professor Roberto Schwarz1 em que ele sugere a ideia de que houve um fenômeno inesperado depois do golpe de 1964: em lugar de uma retração da cultura de esquerda, tivemos um período de expansão e até de hegemonia cultural – não política − da esquerda. Fiquei com isso na cabeça e me ocorreu, embora nunca tenha podido escrever a respeito, que talvez essa hegemonia cultural tenha persistido até o final dos anos 1980. Isso porque, passado o período mais duro da repressão, que começou com o AI-5 em dezembro de 1968 e foi até a chamada abertura com o [Ernesto] Geisel em 1974, essa hegemonia cultural da esquerda voltou. Lembro bem que, no final dos anos 1970 e começo dos 1980, praticamente não se encontravam pensadores, articulistas e ideólogos que tomassem posições abertamente de direita. Estávamos sob hegemonia política da direita, mas no plano cultural a hegemonia da esquerda continuou e até se acentuou no final dos anos 1970, quando se iniciou o que talvez tenha sido, por sua capilaridade, o maior movimento grevista ocorrido no Brasil. Esse movimento de base gerou o que chamo de “onde democrática”, aproximadamente de 1978 a 1988, com uma profusão de movimentos organizados configurando uma democratização da sociedade por baixo, e isso acentuou ainda mais a hegemonia cultural da esquerda. Paralelamente, no final dos anos 1970, começo dos 1980, tem início no mundo a onda neoliberal.
DIPLOMATIQUE – E o Brasil estava em descompasso com essa tendência.
ANDRÉ SINGER – O neoliberalismo no Brasil foi retardado por essa conjuntura, cujo emblema maior talvez tenha sido a campanha das “Diretas já”. Só que, no plano mundial, começou a crescer o neoliberalismo, um fenômeno ideológico que o [historiador inglês] Perry Anderson classifica como o de maior sucesso de toda a história. Ou seja, não é apenas um conjunto de políticas governamentais, mas uma concepção de mundo que ganhou corações e mentes. Finalmente, entre o fim dos anos 1980 e começo dos 1990, o neoliberalismo entrou no Brasil.
DIPLOMATIQUE – A eleição de 1989 é um marco dessa inflexão?
ANDRÉ SINGER – É um marco desse processo, que depois foi aprofundado pelas políticas do governo Fernando Henrique Cardoso. Mas não é só isso, porque estamos falando de hegemonia cultural. O que acontece é que os valores de mercado, de ascensão individual, de competição e os valores ligados a uma intensa mercantilização dos espaços públicos começaram a se tornar correntes, sobretudo na chamada classe média tradicional e depois em estratos médios mais amplos. Então, passamos a assistir ao surgimento de manifestações ideológicas, com articulistas, autores de livros e até artistas, produtores influentes, que defendiam abertamente esses pontos de vista, algo que não se encontrava até meados dos anos 1980. Assim, a presença quase total que a esquerda tinha no plano da cultura foi quebrada e passou a haver uma competição na qual continua existindo uma esquerda, mas a direita é crescente. Com isso, não quero dizer que ela necessariamente vai se tornar hegemônica, mas passou a haver uma competição.
DIPLOMATIQUE – Qual é o papel das Igrejas nesse processo?
ANDRÉ SINGER – Esse é um fator extremamente importante, porque o Brasil é um país onde o catolicismo era e continua sendo muito forte. É visível que a inflexão da Igreja Católica para a esquerda nos anos 1960 e 1970 impactou muito no sentido dessa hegemonia cultural. A influência da Igreja Católica no Brasil era enorme, continua sendo muito grande, e, quando ela virou para a esquerda, arrastou camadas extensas da sociedade. Nos anos 1980, a onda neoliberal influenciou a Igreja com uma virada para a direita que começou com o papa João Paulo II e lentamente foi entrando no Brasil. Isso é muito importante para entender a presença da hegemonia cultural da esquerda e depois sua quebra. A esse fator se soma um segundo, que é a avalanche pentecostal e neopentecostal no Brasil. O crescimento das confissões evangélicas parece ser compatível com a proliferação de uma ideologia mais conservadora. É difícil fazer afirmações categóricas, porque esse universo é muito diversificado, mas a impressão que tenho é que as confissões pentecostais e neopentecostais tendem a favorecer uma percepção de que a melhora das condições de vida depende do esforço individual, não de movimentos coletivos.
DIPLOMATIQUE – O senhor também identifica outras ondas conservadoras que extrapolam o plano cultural, especialmente entre a classe média paulistana. Quais são elas?
ANDRÉ SINGER – Em termos de classe propriamente, não há dúvida de que esse segmento tem uma propensão conservadora por razões materiais. Trata-se de uma parcela dentro de uma sociedade muito desigual como a brasileira, que tem privilégios, que tem o que perder, portanto, há motivos para uma inclinação no sentido da manutenção da situação que a beneficia. Porém, o que aconteceu é que uma parte desse segmento, que estou chamando de classe média tradicional, entrou e participou da frente antiditadura durante os anos 1970 e 1980, gerando uma simpatia por posições mais à esquerda. Isso explica também certa entrada que o PT chegou a ter nesses segmentos no começo de sua trajetória. Essa situação mudou radicalmente com o surgimento do lulismo, um processo dos últimos dez anos.
DIPLOMATIQUE – É desse realinhamento que o senhor trata em seu novo livro?2
ANDRÉ SINGER – Tem a ver, mas nesse caso é um fenômeno particular dentro do realinhamento: a classe média tradicional se fechou em bloco contra as políticas sociais promovidas pelo lulismo. Parece ser uma reação ao processo de ascensão social de setores que antes estavam estagnados numa condição de muita pobreza. É um fenômeno muito recente e não está bem pesquisado, mas a gente vê, ouve conversas, lê no jornal essa reação à presença de pessoas de renda mais baixa nos aeroportos. O que isso significa? Esses espaços eram exclusivos; só pessoas com renda mais alta podiam frequentar.
DIPLOMATIQUE – Sintomático disso são as reclamações por parte das classes média e alta sobre uma crescente dificuldade de encontrar empregados domésticos.
ANDRÉ SINGER – É, isso é o elemento que coloquei no meu livro Sentidos do lulismo. Chama muito minha atenção também porque houve realmente uma mudança no trabalho doméstico, com elevação da renda e melhora das condições de trabalho. Isso tem a ver com o fato de que caiu o desemprego e entraram em cena programas sociais que criaram um piso, dando a essas pessoas a possibilidade de escolher não trabalhar por menos de certa quantia, o que é extremamente importante se considerarmos que existem cerca de 6 milhões de empregados domésticos no Brasil. É um elemento desse conjunto de mudanças que está ocorrendo no Brasil e, aparentemente, há uma reação a isso por parte da classe média. Há também uma terceira onda, que é ainda menos conhecida e mais recente: um neoconservadorismo em uma parcela bem pequena do conjunto das 30 milhões de pessoas que ultrapassaram a linha de pobreza nos anos Lula, um segmento que deu um passo além, subindo não um, mas dois ou três degraus. Um fator disso tem a ver com o medo da mudança. Essas pessoas teriam certa consciência de que o processo de ascensão não durará para sempre e, portanto, não seriam simpáticas a políticas para promover a ascensão de novas camadas, pondo em risco aquilo que já ganharam. Outro elemento desse neoconservadorismo é que, às vezes, se nota entre aqueles que sofreram um processo de ascensão social uma antipatia com os programas sociais. É curioso. É como se essas pessoas se “dessolidarizassem” daquelas que ainda precisam da transferência de renda, compartilhando uma impressão de que o processo de ascensão social decorre do esforço individual, e não de políticas coletivas. Um terceiro fator, mais específico da cidade de São Paulo, é a questão do empreendedorismo. Isto é, há uma quantidade de pessoas envolvidas com pequenos negócios e tentando melhorar de vida por meio deles. Bom, esse pequeno empreendedor tem uma tendência conservadora, justamente porque ele só conta consigo mesmo, diferentemente de um assalariado.
DIPLOMATIQUE – O que organiza esse movimento conservador? Não há um partido que canalize essas ondas. Pode-se dizer que a mídia cumpre esse papel?
ANDRÉ SINGER – Essas ondas conservadoras não estão sendo expressas no plano da política, sobretudo da política partidária. Por quê? Porque nesse ponto entra em jogo outro fator, que é o realinhamento eleitoral. À medida que o lulismo obteve uma maioria no país, a oposição foi obrigada a jogar com as regras do jogo impostas por esse movimento. Essa é a principal consequência do realinhamento. Ele fixa uma agenda, por isso o lulismo é tão importante, porque determinou uma agenda no país, e esta é, fundamentalmente, a redução da pobreza. Sendo essa a agenda, a oposição não pode expressar nitidamente o ponto de vista de sua base social, porque assim ela perderia as eleições. Essa é a razão pela qual o candidato do PSDB em 2010, o ex-governador José Serra, propôs duplicar o número de pessoas atendidas pelo Bolsa Família, em lugar de combatê-lo, como gostaria a classe média tradicional. Desse modo, ocorre um fenômeno curioso: há um crescimento da ideologia conservadora na sociedade, mas ela não encontra expressão na política. Quanto aos meios de comunicação, nós precisamos entender o seguinte: o conservadorismo no Brasil é muito antigo e tem um lastro histórico profundo. O diferente nessa história foi o período de hegemonia cultural da esquerda. Agora, estamos voltando para um momento anterior, mas que é de uma certa normalidade, porque o Brasil tem esse lastro conservador. Os meios de comunicação têm um papel nisso? Certamente. Mas é preciso também considerar que a análise dos meios de comunicação não deve ser feita em bloco; eles não são uma coisa só, há certa heterogeneidade. [Porém,] Partes do sistema de mídia certamente compõem essa primeira onda conservadora que está quebrando a hegemonia cultural da esquerda.
DIPLOMATIQUE – Como o lulismo, um fenômeno tão contraditório, opera nessa chave?
ANDRÉ SINGER – O lulismo é uma nova síntese que junta elementos conservadores e não conservadores. Por isso é tão contraditório e difícil de entender. O lulismo pegou um apreço pela manutenção da ordem que tem ressonância nos setores mais pobres da população. Nesse ponto, retomo a questão de que, na formação social brasileira, se tem um vasto subproletariado que, por estar aquém da condição de proletário, não tem como participar da luta de classes, a não ser em situações muito especiais e definidas. Assim, o que o lulismo fez foi juntar esse apreço pela ordem com a ideia de que é preciso mudar. Que tipo de mudança? A redução da pobreza por meio da incorporação do subproletariado ao que chamo de cidadania trabalhista. Desse modo, o lulismo propõe transformações por meio de uma ação do Estado, mas que encontra resistência do outro lado. Basta prestar atenção no noticiário para ver como o embate político está posto o tempo todo nas decisões econômicas, no braço de ferro a cada momento em que se precisa baixar os juros, aumentar o gasto público ou controlar o câmbio. Essas decisões passam por um tremendo embate político que não está nas ruas; é preciso ler o jornal com atenção para perceber. O lulismo propõe mudanças, mas sem radicalização, sem um confronto extremado com o capital e, portanto, com a manutenção da ordem. Nesse sentido, é um fenômeno híbrido, que captura um tanto desse conservadorismo. Por isso uma análise mais simplista e dicotômica não consegue dar conta da complexidade da situação que estamos vivendo.
DIPLOMATIQUE – Em 2010, o senhor deu uma entrevista destacando a importância de o PT se manter na esquerda para politizar esse subproletariado.3 É isso que pode frear essas ondas conservadoras?
ANDRÉ SINGER – O Brasil ainda tem uma herança daquilo que chamei de grande onda democrática dos anos 1980. Que herança é essa? Primeiro a Constituição, com mecanismos de participação direta e, além disso, dispositivos efetivos de organização da sociedade. Grandes movimentos sociais se organizaram e uma parte deles segue atuando na sociedade, enquanto novos surgem, embora também seja possível identificar certos movimentos que declinaram. O Brasil ainda tem energia organizativa de baixo para cima. Segundo pesquisas que li, [essa energia] foi incrementada pelo Bolsa Família. Principalmente em comunidades do interior, as mulheres estão adquirindo certa autonomia a partir do momento em que têm um cartão, não dependem de mais ninguém e recebem uma quantia de dinheiro por mês, recurso a que elas nunca tiveram acesso e que é, sobretudo, constante, com o qual elas podem contar. Há indicações de que essas mulheres estão se organizando, por exemplo, em cooperativas, empreendimentos igualitários de mudança de sua condição de vida. Tudo que seja organização da sociedade pela base ajuda a frear essas ondas conservadoras. Não há motivo para imaginar que essa onda conservadora venha de maneira avassaladora, que não há nada do outro lado. Sobre a questão do PT, gostaria de observar que, como eu disse em 2010, continuo acreditando que este momento é especial, porque se abriu uma janela de oportunidade para o diálogo da esquerda com os segmentos mais pobres da população. Isso é muito interessante porque, sobretudo no Nordeste, esse era o setor que votava normalmente com o conservadorismo e agora está com o lulismo. É uma oportunidade ímpar de politizar esses setores, no sentido da transformação social. No entanto, de 2010 para cá, passados quase dois anos, não vejo o PT muito engajado nesse tipo de trabalho. Eu às vezes temo que essa oportunidade seja perdida, uma oportunidade que está aberta para toda a esquerda. Porém, os setores da esquerda que não estão no PT têm tido dificuldade para compreender os avanços sociais e simultaneamente o impacto conservador que o lulismo representa. Há que se entender essa contradição e, ao não entender, perde-se a plataforma de diálogo com os setores que estão sendo beneficiados por essas políticas.
Luís Brasilino
Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.Ilustração: Daniel Kondo
1 “Cultura e política, 1964-69”. In: Roberto Schwartz, O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
2 Singer identifica que, desde a reeleição do presidente Lula em 2006,
houve uma aproximação do subproletariado em direção ao lulismo e um
distanciamento do PT por parte da classe média tradicional. Ver Os sentidos do lulismo, Companhia das Letras, São Paulo, 2012.
3 “Cabe ao PT politizar o subproletariado”, Brasil de Fato, São Paulo, n.374, 29 abr.-5 maio 2010.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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