PICICA: "Semana passada dois assuntos estavam em
destaque, até mais que as eleições. O primeiro e na frente de forma
disparada era a novela das oito (que passa às nove – uma explicação
necessária aos leitores portugueses deste site) que está na sua
reta final. Parece que o zagueiro do Vitória bateu na vilã e tem gente
defendendo que ela merecia apanhar. O sujeito é até um bom jogador e vai
ser um grande desfalque na briga pelo título da Série B, mas pô, aí não
tem perdão!
O outro assunto é o tal do mensalão, uma piada que infelizmente não só os baianos compreendem.
Primeiro
é que eu não entendo o porquê de escolherem como astro desta outra
novela o único ministro que é negro. Se praticamente todos estão
condenando os petistas, e estes mesmos petistas escolheram através de
Lula e Dilma quase a totalidade destes ministros, por que o foco na
melanina? Em qual roteiro está escrito que o sujeito que nasce negro tem
que ser “de esquerda” e se não for merece o paredão? Entender a
política por este caminho gera tanta confusão que o ministro em destaque
a cada semana sai na capa de uma revista diferente, às vezes
pertencentes a grupos rivais."
Sobre novelas, esquerdas e mensalão
Se o STF condena um “capa” de forma
sumária, o que entenderão os magistrados deste país adentro ao se
defrontarem com julgamentos essencialmente políticos? Por Daniel Caribé
Confesso estar quase que completamente
por fora das grandes polêmicas deste país. Desde que a televisão da sala
quebrou e aderi à ditadura do automóvel (98% dos leitores pararão de
ler o texto aqui) não sei muito bem o que as pessoas andam comentando.
Mas tem assuntos que de tanto consumirem o povo até um aprendiz de
eremita como eu é tocado, nem que seja pela timeline do Twitter.
Semana passada dois assuntos estavam em
destaque, até mais que as eleições. O primeiro e na frente de forma
disparada era a novela das oito (que passa às nove – uma explicação
necessária aos leitores portugueses deste site) que está na sua
reta final. Parece que o zagueiro do Vitória bateu na vilã e tem gente
defendendo que ela merecia apanhar. O sujeito é até um bom jogador e vai
ser um grande desfalque na briga pelo título da Série B, mas pô, aí não
tem perdão!
O outro assunto é o tal do mensalão, uma piada que infelizmente não só os baianos compreendem.
Primeiro
é que eu não entendo o porquê de escolherem como astro desta outra
novela o único ministro que é negro. Se praticamente todos estão
condenando os petistas, e estes mesmos petistas escolheram através de
Lula e Dilma quase a totalidade destes ministros, por que o foco na
melanina? Em qual roteiro está escrito que o sujeito que nasce negro tem
que ser “de esquerda” e se não for merece o paredão? Entender a
política por este caminho gera tanta confusão que o ministro em destaque
a cada semana sai na capa de uma revista diferente, às vezes
pertencentes a grupos rivais.
Depois, o que mais me assustou foi a
posição de alguns setores da esquerda que comemoraram o encaminhamento
dado pelo STF [Supremo Tribunal Federal] à situação. Eu não vou repetir o
que todo mundo já sabe. Pessoas ligadas ao PT estão sendo julgadas e
uma delas é José Dirceu. Um amigo em outra timeline também
muito famosa fez a seguinte síntese do sujeito, com a qual concordo: “Eu
nunca apoiei e acho que o José Dirceu representa coisas muito
repugnantes de uma tradição de esquerda autoritária com a qual eu não
compactuo – e que, no fim das contas, contribui para a emergência da
classe gestorial capitalista. […] Ou seja, não o defendo, mas é de uma
burrice sem tamanho comemorar, com sorriso nos dentes, algo que os
amigos da ditadura – esses sim nunca julgados e condenados – estão a
soltar rojões. De resto, o capitalismo só mexe as peças para continuar o
jogo. Esse é o fato, e o Dirceu aceitou jogar o jogo e foi para o game over.”
Nada mais a acrescentar a este respeito. Entretanto o sujeito (José
Dirceu, não o meu amigo!) está sendo condenado sem provas e sem as
garantias constitucionais que todo acusado de qualquer coisa merece. Ele
já sentou no banco dos réus com a pecha de culpado e parece que ninguém
nega este fato. E este fato gera implicações para muitos outros que nem
sequer se identificam com o ex-militante clandestino, agora consultor
empresarial entre outras coisas mais.
Ora, isso não é novidade neste país, e
deve ser prática comum em todo canto deste mundo. Todos os dias dezenas
de sujeitos, talvez centenas, são condenados sem ao menos chegar a um
tribunal. É só ligar a TV – para quem tem uma – e ver os meninos pobres
sendo taxados de assassinos, estupradores e ladrões pelos apresentadores
de televisão em pleno horário de almoço. Se não forem para a cadeia
logo em seguida, o que será da vida deles após esta exposição? Já nos
tribunais, dentro dos quais os jornalistas quase nunca têm o interesse
em entrar, estes mesmos sujeitos são sentenciados frequentemente sem os
devidos direitos garantidos. Ninguém está nem aí para estes no país que
está elegendo policiais a cargo de vereador com a campanha “bandido bom é
bandido morto”.
Alguns dos poucos que chegaram até aqui
irão me perguntar o que tem a ver José Dirceu com esses garotos pobres
de nenhuma importância para o crescimento do PIB. Teria que fazer um
longo caminho para tentar mostrar que os projetos de vida de ambos têm
ligação através das políticas sociais implementadas das últimas duas
décadas. Mas o objetivo deste texto é outro e falarei, assim como nas
novelas, do óbvio.
Para
nós há muitas clivagens na esquerda – esse grupo que se pretende ser a
vanguarda dos trabalhadores. É fácil para a gente separar trotskistas de
estalinistas, anarquistas de autonomistas, reformistas de conselhistas,
e por aí segue. Mas para a população em geral pouco importa estas nada
sutis diferenças. Portanto, mesmo José Dirceu sendo esse ser já definido
com a ajuda do amigo em algum parágrafo anterior, ele não passa de um
esquerdista na ótica da maioria. E quando condenam-no deste jeito, não
estão a fazer outra coisa a não ser passar o recado para os demais. É
sim uma vingança histórica. E não é porque não nos identificamos mais
com o PT que ele deixa de nos criar problemas.
O objetivo aqui passa a ser o de chamar a
atenção para o que farão com os outros lutadores sociais deste país,
que a exemplo dos meninos pobres, e talvez de forma ainda mais raivosa e
mais ilegal, já são condenados sem o devido julgamento cotidianamente.
Será que esquecemos que os juízes deste país são formados em sua maioria
por sujeitos avessos às transformações sociais? Se o STF condena um
“capa” deste jeito, de forma sumária, o que entenderão os magistrados
deste país adentro ao se defrontarem com julgamentos essencialmente
políticos? O julgamento do mensalão extrapolou o espetáculo midiático e
deixou de ser uma briga entre capitalistas pela divisão do bolo crescido
pela nossa mais-valia. Agora há um precedente e um incentivo para caça
às bruxas, que no caso são aqueles que, assim como elas faziam, andam
incomodando os poderes estabelecidos.
E o que tanto alegra nisso a estes
setores da esquerda? A ânsia de derrotar (ou substituir?) o PT é tão
grande que alguns limites muito arduamente conquistados são rompidos sem
um pingo de cerimônia. E parte desta esquerda que agora sorri é
exatamente a que passou a desempenhar um papel significativo da política
institucional brasileira após o primeiro turno das eleições municipais
de 2012. A esquerda partidária fora do PT cresceu e não pode ser mais
desprezada. Os seus equívocos, portanto, ganham uma ressonância maior
daqui para frente.
Eu não vou entrar no mérito do complexo
de Édipo que caracteriza esta nova esquerda institucional. Se eles
querem ser iguais ao que os seus pais foram, talvez estejam fazendo um
favor à gente. A questão passa a ficar complicada quando esta mesma
esquerda pauta suas ações não na luta de classes, mas no puro e simples
moralismo. Numa das mais significativas passagem do texto do coletivo Passa Palavra sobre
as lutas que agora acontecem em Portugal contra a Troika (Comissão
Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional),
pontuou-se o seguinte (ver o texto completo aqui):
Um teste infalível para avaliar o grau em que uma proposta de remodelação política se insere no capitalismo é a obsessão com o problema da corrupção […]. Mas veja-se com atenção. A corrupção consiste em não respeitar as regras estabelecidas pelo capitalismo nas relações entre capitalistas, não nas relações dos capitalistas com os trabalhadores. A corrupção não diz respeito à extorsão da mais-valia, ao processo de exploração dos trabalhadores, mas à repartição entre os capitalistas dos frutos dessa exploração. Compreendemos que o problema preocupe os capitalistas e os seus agentes políticos, mas é necessário que os trabalhadores sejam vítimas de profundas ilusões para se ocuparem com a questão.
Deste jeito, quando se faz uma luta
tendo por horizonte a moralização da política, não se pode cair em outra
coisa a não ser nas armadilhas que as próprias classes dominantes
montam para a gente. Essa forma de se fazer política pode até ganhar
alguns votos do setor dos trabalhadores que se situam próximos aos
gestores, que almejam ser gestores também, e que por isso precisam que
as regras do jogo político-econômico sejam claras. São estes que hoje
comumente chamamos classe-média. Porém esta pauta não mobiliza o grosso
da classe trabalhadora. Não foi por menos que o PT junto com o PSB foram
entre os grandes partidos os únicos que cresceram nas eleições
municipais deste mês, mesmo em meio à suposta crise do mensalão. A base
do governo formada por um zilhão de outros partidos continua forte. Por
isso não tem como não reconhecer o cinismo de Lula quando ele afirma,
nas proximidades da cabine da urna eletrônica, que a população está mais
preocupada com o rebaixamento do Palmeiras do que com o mensalão. A
novela, como eu já disse, também se mostra mais importante, pois parece
que a ilusão que vem da TV é mais real do que a que promete uma vida
melhor em um mundo sem corruptos.
Quando
digo que esta esquerda está abrindo mão de forma muito fácil de
conquistas muito caras, me refiro à democracia. Claro está, e cada vez
mais, que no que diz respeito ao processo eleitoral que há a cada biênio
– o período que temos de férias da chateação que são as eleições para a
maior parte da população, e que costuma fragmentar de forma
irreversível muitos movimentos sociais – as esperanças em torno da
transformação da realidade através do voto vêm caindo. O que vem
equivocadamente sendo chamado de “voto de protesto” é prática crescente.
A partir do momento em que as pessoas não enxergam mais o compromisso
do eleito para com elas, então elas deixam de ter compromisso para com o
voto. Mas esta mesma democracia instaurada após a Ditadura Militar tem
outras facetas e uma delas é a que permite que entre nós haja aqueles
que sejam mais radicais nas suas ações, outros menos. Que possamos sair
por aí falando o que quisermos, nem que sejam as besteiras e os
dogmatismos que caracterizam as crenças da maioria dos nossos
companheiros. Já é tão difícil atuar dentro destes limites, imaginem-se
numa arranjo institucional ainda mais restritivo porque mais
policialesco, mais judicializado.
Aqueles que riem da desgraça de José
Dirceu neste momento estão apoiando nada menos que a politização do
judiciário. O problema todo é que isto não começa aqui e o próprio PT
estava a aplaudir esta situação, quando não foi o seu maior criador. Um
exemplo emblemático aconteceu quando transferiram para o Judiciário o
debate sobre o casamento homoafetivo e a legalização do aborto, há pouco
tempo atrás. Estava-se ali abrindo precedente para chegarmos na
situação de hoje. Afinal, parece que não importa mais de onde saia o que
queremos ouvir, pois o importante é que seja dito. Não é? Claro que a
tática dos mais radicais, anticapitalistas e etc. é jogar todo peso nos
movimentos sociais e através deles mudar as instituições. Entretanto, no
plano institucional atual, que é onde os partidos de esquerda atuam,
estes debates deveriam acontecer no Congresso Nacional. É o mínimo que
se espera de uma sociedade democrática, de uma república.
Uma prova de que esta esquerda está
botando fé no caráter progressista do STF é a mobilização que já se
iniciou em torno da anulação das leis aprovadas através da compra de
votos dos parlamentares. Poderiam também incluir no pedido a anulação
das leis que foram aprovadas através de outros tantos mecanismos
ilegais. Por que não? Subtraindo todas estas leis não teríamos quase lei
nenhuma no país, o que caracteriza uma revolução, pois todas as regras
de funcionamento da sociedade estariam por existir. Não deixa de ser uma
proposta genial.
O Poder Legislativo perde sua função de
forma muito acintosa quando os presidentes do país, desde de Fernando
Henrique Cardoso e repetido por Lula e Dilma, adotam a tática do
presidencialismo de coalizão para conseguir a tal da governabilidade,
despolitizando desta maneira o Congresso Nacional e em consequência
abrindo um vácuo institucional no país. O Legislativo anulado e ainda
mais sem credibilidade após os escândalos seguidos de corrupção fica sem
condições de cumprir a sua função constitucional de “casa do povo”. Os
debates não passam mais por lá e muitas das leis, através de medidas
provisórias, são encaminhadas pelo chefe do executivo. Esta era a
oportunidade que o STF precisava para chamar para si esta função que não
é sua, a de pautar os grande debates. Agora é a cobra comendo o próprio
rabo.
O perigo é que se já não temos muito
controle sobre o presidente e os parlamentares, o Judiciário é
completamente imune à vontade popular. Quem vai pautar o STF? Quais as
consequências em dar tanto poder a um órgão tão autônomo? Não vai
demorar muito a aparecerem aqueles que defenderão que faz parte do
equilíbrio entre os poderes tão necessário às democracias modernas a
prática de funções atípicas por cada poder e que inevitavelmente em
momentos de fragilidade de algum deles caberá aos demais manter a ordem
através destas exceções. Só acho importante lembrar o óbvio: que
democracia se faz através da participação popular e não através de
equilíbrio entre poderes. E se já temos uma democracia esvaziada de
sentido por falta de mecanismo de participação direta e pela inutilidade
que é hoje o Legislativo, dar mais poder ao Judiciário só vai
incrementar este quadro autoritário que está se pintando.
Quanto à novela que são as esquerdas,
cheia de vilões e poucos mocinhos, todos à espera do capítulo final sem
data marcada para acontecer e com baixa audiência na maior parte do
tempo, precisa urgentemente sair deste roteiro bipolar. Combater o PT
não pode passar de modo algum por adotar práticas e instituições ainda
mais conservadoras. Tanto o PT quanto o STF estão restringindo o pouco
que resta de democracia no país e deve haver alguma forma de se criticar
um sem apoiar o outro. Já fomos, todos nós, mais criativos e menos
irresponsáveis.
As fotografias que ilustram o artigo são de Sebastião Salgado.
Fonte: Passa Palavra
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