outubro 23, 2012

"Conjuntura da Semana. O ‘mensalão” e a esquerda. Uma leitura crítica a partir da esquerda" (IHU)

PICICA: "Uma contribuição para problematizar o tema do ‘mensalão’ é olhá-lo a partir do método da complexidade sugerida por Edgar Morin que propugna que nada está isolado, todas as ações reverberam e apresentam consequências. Ainda mais sofisticado, Morin fala no princípio do ‘caráter complexo da ética’ que se manifesta naquilo que chama da ‘ecologia da ação’. Diz Morin: “Desde o momento em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja ela, esta começa a escapar de suas intenções. Ela entra num universo de interações e finalmente o meio ambiente apossa-se dela num sentido que pode se tornar contrário ao da intenção inicial. Com frequência a ação retorna em bumerangue sobre nossa cabeça”, escreve ele no livro Introdução ao pensamento complexo (Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 80-1)." 

Conjuntura da Semana. O ‘mensalão” e a esquerda. Uma leitura crítica a partir da esquerda

A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário:

A esquerda e o ‘mensalão’
Mensalão’: O que pensa grande parte da esquerda
Condescendência com o ‘mensalão’: A melhor postura?
Desvio ideológico. Quando os fins justificam os meios
Ser de esquerda também é ser republicano
Mensalão e o ‘caráter complexo da ética’. Uma chave de leitura

O ‘mensalão’ em frases

Eis a análise.

‘Mensalão’: O que pensa grande parte da esquerda

O julgamento da Ação Penal 470, popularmente conhecida como 'mensalão', vai chegando ao final no Supremo Tribunal Federal – STF. Na raiz da ação está a acusação de que dinheiro público foi utilizado para a compra de apoio político no Congresso durante o primeiro mandato do governo Lula e irrigou campanhas políticas de vários partidos entre 2003 e 2005.

Embora a ação tenha julgado vários personagens da esfera privada – banqueiros, empresários e publicitários –, o foco maior ficou nos personagens da esfera pública, particularmente das lideranças de proa do PT e entre elas, a principal, José Dirceu, maior dirigente do PT depois de Lula e considerado o grande mentor e estrategista de tê-lo levado à presidência.

A simultaneidade do julgamento com o transcurso das eleições de 2012 elevou ainda mais a temperatura política. A repercussão daquele que já é considerado o maior e mais extenso julgamento da história do Supremo Tribunal Federal (STF), foi e continua sendo grande.

A esquerda brasileira, majoritariamente, trata a ação como “julgamento político” – muitos como um “julgamento de exceção”. O foco em figuras públicas do PT, a decisão do STF em agendar o julgamento durante as eleições, a postergação da ação do ‘mensalão do PSDB’ para 2013 – esquema de desvio de recursos públicos para a campanha de Eduardo Azeredo em 1998, para muitos o “pai” do mensalão atual – e o reiterado discurso de que o mensalão trata-se de caixa 2, expediente utilizado por todos os partidos, segundo análise recorrente, convergiram para a tese de conspiração, perseguição e tentativa dos setores conservadores para derrubar o PT e Lula no “tapetão”.

Essa posição foi amplamente difundida nas redes sociais e reproduzida por muitas organizações e intelectuais. A CUT afirmou que o ‘mensalão’ era golpe para depor Lula. O cineasta Luiz Carlos Barreto comparou o ‘mensalão’ aos atos institucionais do período militar, particularmente direcionado para atingir José Dirceu: “É a crônica de uma condenação  (de José Dirceu) anunciada há sete anos. Trata-se de um Ato Institucional que não é percebido. Estamos ao sabor de qualquer acusação baseada em testemunho”. A professora da Usp Maria Vitória Benevides disse que o julgamento se tornou político: “Considero que é um julgamento político, não um julgamento jurídico”.
O ex-secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães foi ainda mais longe ao associar o julgamento do ‘mensalão’ no STF a tentativa de desqualificação da figura de Lula. Segundo ele, “as classes tradicionais - ou, se preferirem, retrógradas, reacionárias - nunca vão aceitar que um nordestino [Lula] tenha se transformado em um líder respeitado e reconhecido internacionalmente. É disso que se trata. É isso o que estamos vendo". Esse raciocínio é reiterado por Leonardo Boff que nesses dias afirmou: “Ouve-se no plenário ecos vindos da Casa Grande que gostaria de manter a Senzala sempre submissa e silenciosa”, escreve o teólogo. Segundo ele, "a ideologia que perpassa os principais pronunciamentos dos ministros do STF parece eco da voz dos outros, da grande imprensa empresarial que nunca aceitou que Lula chegasse ao Planalto”.

É Boff quem de certa forma sintetiza o que muitos pensam. Disse ele: “Há um provérbio popular alemão que reza: ‘você bate no saco mas pensa no animal que carrega o saco’. Ele se aplica ao PT com referência ao processo do ‘mensalão’. Você bate nos acusados mas tem a intenção de bater no PT. A relevância espalhafatosa que o grosso da mídia está dando à questão, mostra que o grande interesse não se concentra na condenação dos acusados, mas através de sua condenação, atingir de morte o PT”. Segundo Boff, o ‘mensalão’ e o uso dele é uma estratégia da direita para desqualificar e destruir Lula e o PT.

Como se pode perceber o debate em torno do ‘mensalão’ assumiu ares extremados de ideologização. Um tema incandescente e que dificulta análise mais serena, entretanto, nem a tática do avestruz, não enfrentá-lo e, tampouco, enxergá-lo como simples conspiração auxilia na contribuição da análise dos equívocos cometidos pela esquerda no poder.

Condescendência com o ‘mensalão’: A melhor postura?


É inegável o uso político do julgamento do mensalão – recurso constitutivo ao pesado jogo político. No seu conteúdo geral, entretanto, a posição de intelectuais citados anteriormente, que ilustram o que pensa a maioria dos militantes de partidos de esquerda, particularmente do movimento sindical e das pastorais, é simplista.

Simplista porque não se dá conta de que a ausência de uma radical crítica ao modus operandi secular de apropriação do público para consecução de interesses privados – no caso dinheiro público usado por agrupamentos políticos em troca de sustentação e apoio aos seus interesses – corrobora o sentimento geral de que ética não combina com política e de que é mesmo normal desvios aqui e acolá. A concepção desses intelectuais autoriza aquela velha história de que em função de objetivos considerados maiores, os fins justificam os meios.

Acaba dando sustentação à tese de muitos que admitem e até mesmo consideram normal que no mundo da política é aceitável uma ‘zona cinzenta de amoralidade’. Entre os que sustentam essa tese está o filósofo José Arthur Giannotti [1]. Segundo ele, “na medida em que a política, entre muitas coisas, consiste numa luta entre amigos e inimigos, ela pressupõe a manipulação do outro, desde logo suporta, portanto, certa dose de amoralidade”. Giannotti diz que a política, assim como “qualquer jogo competitivo sempre requer um espaço de tolerância para certas faltas”. Segundo ele é “preciso diferenciar o juízo moral na esfera pública do juízo moral na intimidade, pois são diferentes suas zonas de indefinição. No primeiro caso, o juízo moral se torna inevitavelmente arma política para acuar o adversário e enaltecer o aliado, de tal modo que a investigação da verdade fica determinada por essa luta visando a vitória de um sobre o outro”.

Por outro lado, alerta ele que “cada vez mais tendemos a aceitar a regra de que o político, devendo se aventurar na zona da amoralidade, pague quando ultrapasse os limites sociais da tolerância”.

É corrente no mundo da política a ideia de que a ética dos fins justifica os meios. Esse raciocínio encontra guarida na recente afirmação de Emir Sader para quem "o fundamental é derrotar a 'tucanalha' em São Paulo. Eu posso gostar ou não do Maluf, mas vou fazer campanha para o Haddad do mesmo jeito", diz ele justificando a aliança do PT com o PP de Maluf. De acordo com essa argumentação vale tudo para derrotar o outro, inclusive aceitar em seu palanque quem sempre defendeu ideias radicalmente opostas e, mais grave, praticou atos ilícitos no poder.

A gama de intelectuais, militantes sociais e organizações que se recusam a aceitar que o mensalão existiu, sugerem condescendência com o caso, assim como deseja o PT. “O PT quer que a sua militância e a sociedade sejam condescendentes com o caso, tentando produzir uma alucinação negativa de que ele não existiu. E isto é grave. Imaginar que medidas que sempre serviram para julgar os outros não devem julgar o próprio PT”, afirma Thales Ab'Sáber.

Segundo ele, “os banqueiros de Wall Street também sustentam que não devem ser julgados ou responsabilizados por suas ações, que quebraram o mundo, que elas aconteceram por uma natureza automática das coisas”. O filósofo afirma que “a tentativa de naturalizar e tornar invisíveis os crimes é a mesma na corrupção de Estado da política brasileira e na corrupção financeira do mercado global. Trata-se de apostar em uma política do absurdo para salvar a própria pele, o que pode acabar produzindo efeitos políticos regressivos muito graves sobre o todo”.

Tampouco se pode ver o ‘mensalão’ como um erro ou falta pontual como pensa Boff ao considerar que o que aconteceu foi uma “queda” numa caminhada maior. Diz ele: “Reconheço com dor que quadros importantes da direção do partido se deixaram morder pela mosca azul do poder e cometeram irregularidades inaceitáveis. Muitos sentimo-nos decepcionados, pois depositávamos neles a esperança de que seria possível resistir às seduções inerentes ao poder (...) Lamentavelmente houve a queda. Mas ela nunca é fatal. Quem cai, sempre pode se levantar”.

É ingenuidade pensar que o que aconteceu foi acidental, ocasional. Não se dá conta de que mesmo os partidos de esquerda, como o PT, aceitaram, assimilaram e incorporaram as regras do jogo do poder ancoradas no autoritarismo, patrimonialismo e fisiologismo. O que sucedeu com o ‘mensalão’ e suas derivações é regra corrente na estruturação, financiamento e mobilização pela disputa do poder. Tampouco vale a justificativa de que os outros sempre fizeram o mesmo e apenas agora, por ser o PT, é que o julgamento passa a ser rigoroso. Esse argumento é lamentável, empobrecedor e desastroso, uma vez que justifica a corrupção.

Desvio ideológico. Quando os fins justificam os meios

Por mais desagradável e doloroso que possa ser – “a dor me impede de falar”, diz o ministro Gilberto Carvalho –, faz-se necessário dialogar com a tese de que o PT se transformou num partido tradicional no modo de fazer política, mesmo que ideologicamente seja mais progressista do que os outros, ao menos dos considerados grandes.

Segundo o professor de filosofia Thales Ab'Sáber “o episódio demonstrou claramente que o PT passou a agir como um partido tradicional brasileiro”. Segundo ele, “foi o cartão de visita e o atestado das práticas políticas de direita que o partido passou a utilizar para chegar e se manter no poder – entendida a direita aqui nos termos da política brasileira. Conchavos de bastidores com partidos oportunistas e mesmo politicamente inimigos, manipulação de processos eleitorais através de acordos que serão pagos posteriormente a qualquer custo, concepção do Estado como uma fonte de financiamento dos interesses particulares de grupos, tudo isso à margem da lei”.

O filósofo destaca que “não é de nenhum modo um mundo de práticas digno dos ideais e proposições políticas criativas e modernizadoras que embalaram o PT no tempo de sua criação e crescimento. Não por acaso, é isto que quer dizer o mensalão: guinada às praticas políticas tradicionais, de modo que o PT se tornou confiável e parte do clube brasileiro do uso particular do Estado, das elites que sempre agiram assim. O mensalão é a instalação do PT na política de direita brasileira”, diz ele.

As afirmações de Thales Ab'Sáber são corroboradas pelo cientista político Fábio Wanderley Reis ao afirmar que “o mensalão só foi possível em decorrência de uma espécie de desvio ideológico, a arrogância produzida por certa autoimagem ideologicamente condicionada, que levou à desqualificação dos outros participantes do jogo parlamentar, considerados burgueses, e à ideia de que o melhor a se fazer era comprar sua lealdade. É um cinismo autorizado, um maquiavelismo de araque, em função de objetivos considerados maiores, com a ideia de que os fins justificam os meios”.

Por outro lado, o “desvio ideológico” sempre foi justificado em nome da governabilidade, da indispensável necessidade de uma maioria de sustentação ao governo. Na origem da montagem da governabilidade encontra-se a raiz do mensalão destaca Werneck Vianna: “Por causa da natureza fragmentária do quadro partidário e da dispersão dos votos dela resultante, o governante vê-se tangido, em nome da governabilidade, a reter insulado o cerne do programa com que foi eleito – que nunca sai ileso dessa operação – e a facultar o acesso à máquina estatal e às suas agências a aliados de ocasião com o objetivo de obter maioria parlamentar. O cimento notório dessas coligações deriva do loteamento entre elas de posições no interior da administração pública, tornando-a vulnerável às pressões privatistas exercidas em favor de financiadores de campanhas e de apoiadores políticos”.

Em outro artigo, o sociólogo reafirma a essência do surgimento do mensalão: “A matéria bruta da Ação Penal 470, o mensalão, foi gestada no interior e a partir dessa decisão política de perseguir objetivos de mudança social desancorada de uma ativa esfera pública democrática, que importava a mobilização dos movimentos sociais, que logo, aliás, seriam postos sob a influência de agências estatais, quando não estatalizados tout court, convertendo-se a política num quase monopólio da chefia do Executivo”.

Segundo ele, “aos partidos dessa bizarra coalizão presidencial, tangidos a ela com a expectativa de extrair recursos públicos para sua reprodução eleitoral, caberia conceder apoio parlamentar às iniciativas governamentais, enquanto ao Executivo, pelas vias decisionistas do direito administrativo, caberia realizar a agenda de mudanças avaliada como compatível com as circunstâncias”.

Segundo Werneck, “a Ação Penal 470 [mensalão] expôs a nu as fragilidades do sistema político vigente, em particular a modalidade sui generis com que aqui se pratica o presidencialismo de coalizão, indiferente a programas políticos e cruamente orientado para ações estratégicas com vista à conquista do voto e à reprodução eleitoral das legendas coligadas. Nesse processo, os partidos migram da órbita da sociedade civil para a do Estado, quando passam a ser criaturas dele”.

Ser de esquerda também é ser republicano
O ‘mensalão’ embora publicamente não aceito e condenado, é compreendido por muitos como um expediente que foi necessário para garantir governabilidade e realizar os avanços que o Brasil precisava, como dito anteriormente. Nessa concepção trata-se de um mal menor em função de um bem maior – a ideia de que os fins justificam os meios, como já destacado.

É recorrente no Brasil, a tese de que para sobreviver na política, por um lado, é preciso estar ao lado de quem está no poder e, por outro, quem está no poder precisa se aliar aos que não estão para criar as condições de governar. Segundo o professor da Unicamp Roberto Romano, “é proibido no Brasil ser oposição”. Diz ele: “Se discordar, não tem acesso aos recursos. Sem recursos, não leva obras para a sua região. Sem obras, não é reeleito, fica fora do jogo. Esse ‘é dando que se recebe’, essa ausência de partidos reais, tem como origem essa estrutura do Estado brasileiro que é supercentralizada”.

Na opinião de Roberto Romano, os partidos – PT e PSDB – que ocuparam a presidência da República nos últimos anos se renderam ao pragmatismo. Segundo ele, “os dois partidos, na Presidência da República, se renderam à lógica do conservadorismo que rege os tratos entre o poder central e as regiões brasileiras, dominadas por oligarquias truculentas e corrompidas. Ambos precisaram rasgar os alvos éticos em proveito da ‘arte do possível’ (o termo é de Bismark). Nas alianças pela ‘governabilidade’, as duas agremiações sacrificaram no altar do realismo político seus programas anteriores, de esquerda ou centro-esquerda”.

Chega a ser anacrônico, mas há quem inclusive distinga o ‘mensalão’ do PT ao do PSDB. Para muitos militantes de esquerda, o ‘mensalão’ do PT foi um mal necessário para avançar uma agenda de reformas sociais no Brasil, diferentemente do ‘mensalão’ do PSDB ou mesmo da compra de votos no congresso operada pelo PSDB para garantir o mecanismo da reeleição de FHC que foi feita para preservar os interesses da continuidade da agenda do mercado. 

O uso de recursos públicos orientado para objetivos corporativos, de grupos, como seu viu no ‘mensalão’ manifesta o que o professor da Unicamp, Roberto Romano intitula de “ética da tirania”, ou seja, a ideia de “uma ética que opera em favor dos governantes”. Segundo ele, se trata “da ética que nega direitos às ‘pessoas comuns’ é a ética do ‘sabe com quem está falando’? A ética do absolutismo tirânico. Não podemos esquecer que, na tradição ética e jurídica antiga e moderna, tirano ‘é quem usa os bens dos governados como se fossem seus’. A lição está em Aristóteles, São Tomás , Jean Bodin  e outros mais. No Brasil temos uma ética da tirania porque o que fazem nossos operadores do Estado é julgar de sua propriedade o que é público”.

A contemporização com os desvios do PT, ou a indulgência para com parcela dos seus dirigentes, assume caráter antirrepublicano: "O nome próprio do moderno é o da autonomia que se exprime no exercício da livre manifestação de vontade da cidadania, a partir de uma vida associativa e de partidos políticos que extraiam sua seiva de um mundo da vida descontaminado do poder administrativo e do poder sistêmico da economia, para usar a linguagem, incontornável na cena contemporânea, de Jürgen Habermas”, escreve Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio.

O Estado, quando subordinado a agrupamentos – quaisquer agrupamentos, da bancada ruralista à bancada evangélica ou ainda de consórcios partidários –, perde seu caráter republicano naquilo que tem de mais importante, de tratar todos como iguais, identificando, porém, os que dele mais precisam, os setores mais vulneráveis. Nesta perspectiva a ação do julgamento do mensalão deve ser interpretada como um avanço republicano na correção das regras, mesmo que conservadoras, do funcionamento político-partidário.

“O Rubicão foi atravessado à vista de todos e, na nova margem em que nos encontramos, não há mais caminho de volta”, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna, comentando o julgamento do STF. Segundo ele, “provavelmente, ecoaram nesse tribunal os argumentos de maior alcance pedagógico já registrado entre nós em favor da democracia representativa”.

Na análise de Werneck, “em alguns votos contundentes, em que personagens clássicos da Roma republicana foram evocados, ministros da Suprema Corte demonstravam estar conscientes de que anunciavam um novo começo para a democracia brasileira sob a égide de uma ética republicana”. Segundo ele, “democracia de massas, que se amplifica com as poderosas mudanças sociais de que o País é hoje um laboratório aberto, não pode desconhecer a República e as suas instituições, sob pena de se ver dominada pelos interesses políticos e sistêmicos estabelecidos”.

A interpretação de Werneck pode ser demasiada otimista, o reverso, porém, a pura e simples desqualificação do julgamento é pior ainda. Ser de esquerda também é ser republicano, ou seja, estabelecer, defender e pactuar regras de funcionamento do aparelho do Estado que não se subordinem às lógicas corporativas e privativas.


Mensalão e o ‘caráter complexo da ética’. Uma chave de leitura

Uma contribuição para problematizar o tema do ‘mensalão’ é olhá-lo a partir do método da complexidade sugerida por Edgar Morin que propugna que nada está isolado, todas as ações reverberam e apresentam consequências. Ainda mais sofisticado, Morin fala no princípio do ‘caráter complexo da ética’ que se manifesta naquilo que chama da ‘ecologia da ação’. Diz Morin: “Desde o momento em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja ela, esta começa a escapar de suas intenções. Ela entra num universo de interações e finalmente o meio ambiente apossa-se dela num sentido que pode se tornar contrário ao da intenção inicial. Com frequência a ação retorna em bumerangue sobre nossa cabeça”, escreve ele no livro Introdução ao pensamento complexo (Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 80-1).

Morin alerta que “uma ação não depende somente da vontade daquele que a pratica, depende também dos contextos em que ela se insere, das condições sociais, biológicas, culturais, políticas que podem ajudar o sentido daquilo que é a nossa intenção. Dessa forma, as ações podem ser praticadas para se realizar um fim específico, mas podem provocar efeitos contrários aos fins que pretendíamos”.

O que o pensador francês sugere é que “boas intenções” ou mesmo ações feitas em nome do suposto “bem comum” podem resultar no oposto ao desejado. Segundo ele, “a ecologia da ação implica que não é suficiente apenas ter boa vontade. Temos de tentar examinar as condições em que se dá a ação, e então, de acordo com a necessidade, poderemos segui-la, ou transformá-la, ou ainda abandoná-la. Portanto, há duas ideias importantes na ética: uma, quando nos decidimos pro uma ação pelo bem, fazemos um balanço dos efeitos de nossa ação, e assim, ao tornarmo-nos conscientes de seus efeitos, podemos rever nossas ações ou decisões. Em segundo lugar, a ideia de que é preciso traçar uma estratégia de ação, ou seja, ficar atento aos elementos novos e às informações que se somam à situação”.

Diz Morin: “Penso no período em que vivi durante a guerra, ou no pós-guerra, na minha relação com o comunismo, quando conheci pessoas ou militantes que achavam que trabalhavam para o bem da humanidade sem perceber que trabalhavam, ao contrário, pela sua escravidão. Isso, contudo, pode estender-se a todas as atividades. Quantas pessoas não acreditam trabalhar para o bem, sem perceber que na realidade estão sendo manipuladas”?

Aqui entra o PT e a ação de muitos de seus dirigentes, o comovente depoimento de José Genoíno: "A sensação de estar numa noite escura e de ser condenado injustamente”. Genoíno e tantos outros “aceitavam” o jogo do ‘mensalão’e suas diferentes modalidades – o mesmo vale para militantes de base – na convicção de que se tratava de um mal menor ou mesmo necessário para o avanço das reformas no Brasil.

Emerge aqui uma questão: A instauração de políticas sociais, o bolsa-família, a política de cotas, a mobilidade social dos mais pobres para cima, fornecem um “salvo conduto” aos erros de seus dirigentes? Tudo pode ser justificado ou atenuado porque o PT, no governo, passou a adotar políticas sociais antes inexistentes?
Na cabeça de muitos, o ‘mensalão’ foi um desvio necessário – garantir governabilidade – para o Brasil avançar. Muitos sequer viram gravidade no fato, uma vez que se trata de prática corriqueira na política nacional adotada por todos os partidos – ou quase todos – que se passou a chamar de “caixa 2”. Talvez, a complacência com o ‘mensalão’ deva-se também em parte ao fato de que o mecanismo do “caixa 2” seja utilizado em outras esferas da sociedade e não apenas na esfera pública.

Para muitos, o julgamento do ‘mensalão’ retoma uma agenda udenista no país, ao gosto da direita, que procura obsessivamente desmontar os avanços sociais obtidos na Era Lula. Nessa ótica, o ‘mensalão’ é algo menor diante de tantas conquistas e avanços sociais e econômicos. É inegável que a direita procura se apropriar desse discurso e usa o ‘mensalão’ como um aríete para abalar a fortaleza em que se transformou o mito Lula, porém, cabe a esquerda social abordar esse tema e critica-lo pela esquerda. Validar o discurso de que não se pode criticar os dirigentes do PT pelos equívocos que cometeram porque isso significa jogar “água no moinho da direita” é recusar a essência do que significa ser esquerda.

A polêmica do ‘mensalão’ suscita e recoloca em pauta o debate do que é ser esquerda hoje.

Notas:

1 - Artigo publicado na Folha de S.Paulo, 17-5-2001.


O ‘mensalão’ em frases

Comandante

“Há nos autos diversos elementos de convicção, harmônicos entre si, de que José Dirceu comandava o núcleo político que, por sua vez, orientava o núcleo partidário, que agia em concurso com o núcleo financeiro" – Joaquim Barbosa, ministro do STF – Folha de S. Paulo, 18-10-2012.

"O que esses diálogos (Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto) e depoimentos mostram é o vínculo de hierarquia e subordinação existente entre o ex-chefe da Casa Civil e os demais integrantes do núcleo político, Delúbio Soares [ex-tesoureiro do PT] e José Genoino [ex-presidente]" – Joaquim Barbosa, ministro do STF – Folha de S. Paulo, 18-10-2012.

O que é isso...

“Ministros do governo Dilma acusam José Dias Toffoli de "traição" pelo voto a favor da condenação de José Genoino por corrupção ativa no mensalão” – Vera Magalhães, jornalista – Folha de S. Paulo, 18-10-2012.

... companheiro?

“Dizem que, para absolver José Dirceu, Toffoli condenou "um inocente" e relatam que, apesar de já ter votado em Genoino, o ministro do STF nunca teve simpatia pelo ex-deputado quando atuava no PT” – Vera Magalhães, jornalista – Folha de S. Paulo, 18-10-2012.

Joga a chave

“O PT tergiversa, fala em lançar um manifesto logo após a eleição, mas está matutando como fazer algo mais para marcar posição contra as condenações. O que se diz nas "internas" é que o partido não pode assistir calado às prisões de José Dirceu e José Genoino. Há quem defenda "botar fogo", sem dizer exatamente o que significaria isso. E há quem nutra a esperança de que a presidente Dilma Rousseff assine o indulto dos prisioneiros, desconsiderando o potencial deflagrador de crise entre Poderes desse gesto” – Dora Kramer, jornalista – O Estado de S. Paulo, 17-10-2012.

Réu

"Não costumo comentar manifestação de político, este não é o meu papel. Ele é um réu, e réu eu trato como réu. Se determinado réu resolve politizar o julgamento, problema dele" – Joaquim Barbosa, ministro do STF, referindo-se à carta publicada por José Dirceu afirmando que a decisão do STF é "um juízo político e de exceção" – O Estado de S. Paulo, 11-10-2012.

Inocente

"Retiro-me do governo com a consciência dos inocentes. Não me envergonho de nada. Continuarei a lutar com todas as minhas forças por um Brasil melhor, mais justo e soberano, como sempre fiz" – José Genoíno, ao renunciar ao cargo de assessor especial do Ministério da Defesa – O Estado de S. Paulo, 11-10-2012.

Hipocrisia

"Não é a primeira nem será a última vez que os setores conservadores demonstram sua intolerância, sua falta de vocação democrática, sua hipocrisia, os dois pesos e medidas com que abordam temas como a liberdade de comunicação, o financiamento das campanhas eleitorais, o funcionamento do Judiciário, sua incapacidade de conviver com a organização independente da classe trabalhadora brasileira" – resolução do Diretório Nacional do PTO Estado de S. Paulo, 11-10-2012.

Hipocrisia

“Minha sede de justiça, que não se confunde com o ódio, a vingança, a covardia moral e a hipocrisia que meus inimigos lançaram contra mim nestes últimos anos, será minha razão de viver” – José Dirceu, ex-ministro do governo Lula – Folha de S. Paulo, 10-10-2012.

Espetáculo

"Uma coisa é a transparência, outra é o espetáculo. Não sei se faz bem à democracia. (...) Então o ministro Ricardo Lewandowski [revisor] está proibido de ter opinião jurídica diferente de Joaquim Barbosa [relator], porque um virou herói? Lewandowski é um dos 11 integrantes. Então tudo o que falar está contaminado, porque não está no senso comum do que todo mundo pensa? Então vamos fazer justiça com as próprias mãos" – Jacques Wagner, governador da Bahia – PT – Valor, 10-10-2012.

Noite escura

"É a sensação de estar numa noite escura e de ser condenado injustamente. A coragem é que dá sentido à luta pela liberdade” – José Genoíno, ex-presidente nacional do PT – O Estado de S. Paulo, 10-10-2012.

AI

"É a crônica de uma condenação (de José Dirceu) anunciada há sete anos. Trata-se de um Ato Institucional que não é percebido. Estamos ao sabor de qualquer acusação baseada em testemunho” – Luiz Carlos Barreto, cineasta e produtor – Folha de S. Paulo, 10-10-2012.

Lei

"O STF decidiu aplicar a lei, que não exige atos de ofício, documentos assinados, gravações para se condenar. Essas exigências têm como fim assegurar a impunidade de poderosos” - Demétrio Magnoli, sociólogo – Folha de S. Paulo, 10-10-2012.

Luz apagada

“Réus do mensalão responsabilizam Dirceu pelo desfecho do julgamento. Eles achavam que a única saída para evitar uma condenação em massa era lutar pelo desmembramento do processo – o que faria com que não fossem julgados em grupo no STF, e sim por juízes de primeira instância. A mídia não jogaria tanto holofote sobre o caso. Dirceu foi contra” – Mônica Bergamo, jornalista – Folha de S. Paulo, 10-10-2012.

Palmeiras

"A população não está preocupada com isso [mensalão], o povo está preocupado se o Palmeiras vai cair e se Fernando Haddad vai ganhar" – Lula, ex-presidente da República – Folha de S. Paulo, 08-10-2012.

“O povo é muito inteligente, sabe a diferença das coisas. O povo sabe o que é julgamento e o que é votação. O povo está querendo um prefeito que cuide de sua rua, seu bairro, sua vila, sua cidade. Fora disso o povo não quer saber se tem mensalão, sé é corintiano, se é santista, se é Palmeiras” – Lula, ex-presidente da República – Folha de S. Paulo, 08-10-2012.

Domínio

"José Dirceu detinha o domínio final dos fatos. Em razão do elevadíssimo cargo, atuava em reuniões fechadas, jantares, encontros secretos, exercendo comando e dando garantia ao esquema criminoso com divisão de tarefas" – Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal – STF – O Estado de S. Paulo, 04-10-2012.

Superlativa

"José Dirceu mantinha influência superlativa sobre os corréus" – Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal – STF – O Estado de S. Paulo, 04-10-2012.

É ele

“É Luiz Fux, e não o ministro Joaquim Barbosa, o alvo principal da raiva de Lula e de réus do mensalão. Antes de ser indicado ministro, Fux fez um périplo por gabinetes de Brasília e escritórios de São Paulo. Mas Lula tinha restrições a ele. Disse a vários interlocutores achar estranho que um magistrado fosse apoiado tanto por Delfim Netto quanto por João Pedro Stédile, do MST” – Mônica Bergamo, jornalista – Folha de S. Paulo, 04-10-2012.

É ele 2

“O aval decisivo à indicação de Fux veio de Antonio Palocci, então poderoso ministro do governo Dilma Rousseff. Réus do mensalão, na época, não se opuseram. Mas hoje se dizem surpresos: no julgamento, o ministro segue na íntegra os votos de Barbosa, condenando praticamente todos os acusados" – Mônica Bergamo, jornalista – Folha de S. Paulo, 04-10-2012.

Salutar

"As urnas dirão se houve repercussão, mas, a meu ver, seria bom que houvesse, seria salutar" – Roberto Gurgel, procurador-geral da República – O Estado de S. Paulo, 04-10-2012.

Meio termo

“Se condenado no processo do mensalão, José Dirceu não deve cumprir pena em regime fechado. O cálculo é de um dos mais rigorosos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal). Acusado de dois crimes, o ex-ministro deve ser condenado no máximo ao regime semiaberto” – Mônica Bergamo, jornalista – Folha de S. Paulo, 04-10-2012.

Abalo

"Esperaram sete anos para fazer o julgamento na véspera da eleição. Isso explica por que o Haddad não deslanchou mais rápido" – Maria Vitória Benevides, professora da USP – Folha de S. Paulo, 03-10-2012.

"Estamos abalados. Eu estou abalada porque acho que há uma dose de manipulação e de injustiça flagrante. Considero que é um julgamento político, não um julgamento jurídico” – Maria Vitória Benevides, professora da USP – Folha de S. Paulo, 03-10-2012.

Nordestino

"As classes tradicionais – ou, se preferirem, retrógradas, reacionárias – nunca vão aceitar que um nordestino [Lula] tenha se transformado em um líder respeitado e reconhecido internacionalmente. É disso que se trata. É isso o que estamos vendo" – Samuel Pinheiro Guimarães, ex-secretário-geral do Itamaraty – Folha de S. Paulo, 03-10-2012.

Day after

“Em conversa com um interlocutor na semana passada, José Dirceu disse que, se for condenado à prisão, vai virar um "mártir" do PT e continuará fazendo política da cadeia” – Vera Magalhães, jornalista – Folha de S. Paulo, 02-10-2012.

Visitas

"Não me falta companhia” – José Dirceu ao informar que o ex-presidente Lula liga um dia sim, um dia não, para saber como ele está e que o escritor Fernando Morais, o produtor Luiz Carlos Barreto e o líder do MST, João Pedro Stédile, estão entre as visitas – Folha de S. Paulo, 17-09-2012.

Preparado

"A expectativa que eu tenho? Eu fui cassado pela Câmara dos Deputados [em 2005] sem provas. De lá para cá, eu sofri um linchamento como corrupto e quadrilheiro. Eu estou preparado para qualquer resultado” – José Dirceu, ex-ministro do governo Lula – Folha de S. Paulo, 17-09-2012.

Zero

"O PT tem defeitos. Mas se tem algo que não conhecemos no PT é a palavra covardia. A chance de eu fugir do Brasil é nenhuma. Zero” – José Dirceu, ex-ministro do governo Lula – Folha de S. Paulo, 17-09-2012.

Quadro

“José Dirceu foi um dos melhores quadros políticos formados pela esquerda brasileira nos últimos 30 anos. O PT deve muito a ele, bem mais que a Lula, o fato de ter-se transformado numa fabulosa, disciplinada e enraizada máquina político-sindical, comparável, nas virtudes e nos defeitos, à social-democracia alemã do início do século 20” – Vinicius Mota, jornalista – Folha de S. Paulo, 17-09-2012.

Trágico ou épico

“Por isso, haverá algo de trágico ou de épico no julgamento de Dirceu, a depender do resultado. Inevitável será associar sua eventual condenação ao descomedimento que acomete homens lançados ao poder – e sua eventual absolvição à superação de provações, marca dos heróis” – Vinicius Mota, jornalista – Folha de S. Paulo, 17-09-2012.

Reto

"A vida é como uma estrada. Não adianta você dizer que foi na reta certinho, por mil quilômetros, e depois entra na contramão e pega alguém. Você tem que ser reto pela sua vida inteira" – Cármen Lúcia, ministra do STF – Folha de S. Paulo, 29-08-2012.

Favores

“Políticos aceitam favores. Sabem que em algum momento terão de retribuir. Foi assim no mensalão. Se o STF considerar tal compadrio um crime, um passo decisivo terá sido dado para reduzir esse tipo de prática” – Fernando Rodrigues, jornalista – Folha de S. Paulo, 29-08-2012.

Lenha na fogueira

"No auge do julgamento do mensalão, a autobiografia que o ex-deputado federal pelo PT Antonio Carlos Biscaia lança em 3 de setembro será um novo revés para o partido. Biscaia, que presidia a CCJ em 2005, diz ter sofrido pressão de José Dirceu para paralisar o processo de cassação contra ele na comissão. Narra a influência de Roberto Jefferson no início do governo Lula e afirma que Ricardo Berzoini (SP), que presidia o PT, negociou o dossiê dos "aloprados" contra o PSDB em 2006" – Vera Magalhães, jornalista – Folha de S. Paulo, 18-08-2012.

O cara

"O ex-deputado diz no livro que, em fevereiro de 2003, pediu a Dirceu que não nomeasse um aliado de Jefferson para a Delegacia Regional do Trabalho do Rio. "Não. A indicação é do Jefferson", teria respondido o então titular da Casa Civil, que prometeu investigar os nomes levados pelo petebista" – Vera Magalhães, jornalista – Folha de S. Paulo, 18-08-2012.

Digital

"No caso dos aloprados, Biscaia, que presidia a CPI dos Sanguessugas, diz que Berzoini lhe pediu para receber Jorge Lorenzetti, chefe de inteligência da campanha de Lula, que teria dito que a família Vedoin, denunciada por pagar propina na venda de ambulâncias para o governo, estaria vendendo um dossiê contra José Serra" – Vera Magalhães, jornalista – Folha de S. Paulo, 18-08-2012.


Fonte: IHU

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