maio 28, 2014

"Como descolonizar o Brasil, no século XXI", por Luã Braga de Oliveira

PICICA: "[...] torna-se inviável discutir o racismo e o preconceito com as religiões de matriz africana no Brasil sem colocar como questão central a natureza escravista e colonialista da formação do Brasil contemporâneo. Atitudes de discriminação do negro e de sua cultura ressaltam o aspecto colonial que ainda é preservado no seio da sociedade brasileira, manifestando-se até em políticas públicas e em decisões judiciais, como visto. Nas palavras de Caio Prado Jr. : “O passado, aquele passado colonial [...], aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir”. Para abordar a questão do colonialismo e seu papel na propagação de discursos discriminatórios, utilizarei as contribuições de um filósofo tão brilhante quanto pouco explorado atualmente no meio acadêmico : Frantz Fanon."


Como descolonizar o Brasil, no século XXI

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Decisão judicial que desprezou religiões africanas não é fato isolado. Para situá-la, é preciso examinar “colonialismo”, um processo cultural muito mais profundo que julgamos

Por Luã Braga de Oliveira

Recentemente, no dia 28 de Abril de 2014, fomos surpreendidos com uma decisão judicial absolutamente controversa. O juiz Eugênio Rosa de Araújo, titular da 17ª Vara Federal, recusou-se a dar ganho de causa a uma ação movida pelo Ministério Público Federal. A ação pedia a retirada de uma série de vídeos do Youtube que ofendiam o Candomblé, a Umbanda e seus praticantes. Assistindo ao vídeos, torna-se difícil aceitar a defesa de que aquele conteúdo não ofendia as religiões supracitadas e seus praticantes.

Porém, a tese defendida pelo juiz rompeu de maneira muito mais brusca os limites da sensatez. Segundo Eugênio Rosa de Araújo, as religiões afrobrasileiras em questão sequer cumpriam os requisitos que, segundo ele, configuravam uma manifestação religiosa como uma religião. Para ele, para algo ser considerado uma religião seria necessário : Ter um Deus a ser venerado (assim, com “D” maiúsculo), ter um livro sagrado e possuir um sistema hierárquico.

Como candomblecista, proveniente de uma família com diversos praticantes de religiões afrobrasileiras, me senti pessoalmente ofendido. Entretanto, me senti mais ofendido enquanto cidadão e ser pensante. Primeiramente, devido ao galopante desconhecimento do Candomblé e da Umbanda desfilado pelo juiz. Além destas terem um rígido sistema hierárquico, possuem um respeitável portfólio de deuses a serem venerados. Em segundo lugar, pela constatação do estágio pouco avançado em que nos encontramos para a superação dos elos que nos prendem a nosso passado colonial e escravista. Estes elos manifestam-se recorrentemente nas atitudes e nos discursos dos indivíduos na sociedade. Entretanto, ultimamente eles tem se manifestado de maneira assustadora e preocupante nas altas esferas políticas – e agora jurídicas –, colocando a perder os singelos passos que demos em direção a pluralização de direitos básicos outrora restringidos a determinados setores da sociedade.

A discriminação enquanto elemento histórico

Não é possível discorrer sobre o preconceito com as religiões afrobrasileiras separadamente do racismo. Desse modo, é necessário contextualizar, politizar e historicizar as formas de discriminação (religiosa, racial, sexual, etc). No que tange a discriminação racial e religiosa, é necessário trazer à tona o caráter particularmente histórico destas práticas. O racismo não está no discurso. Ele apenas manifesta-se no discurso. O racismo, todavia, está na forma subalterna e subserviente na qual se deu a inserção do negro e sua cultura na sociedade de classes e na construção do Brasil.

Isso posto, torna-se inviável discutir o racismo e o preconceito com as religiões de matriz africana no Brasil sem colocar como questão central a natureza escravista e colonialista da formação do Brasil contemporâneo. Atitudes de discriminação do negro e de sua cultura ressaltam o aspecto colonial que ainda é preservado no seio da sociedade brasileira, manifestando-se até em políticas públicas e em decisões judiciais, como visto. Nas palavras de Caio Prado Jr. : “O passado, aquele passado colonial [...], aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir”. Para abordar a questão do colonialismo e seu papel na propagação de discursos discriminatórios, utilizarei as contribuições de um filósofo tão brilhante quanto pouco explorado atualmente no meio acadêmico : Frantz Fanon.

Descolonização como caminho de superação

Frantz Fanon (1925-1961) foi um psiquiatra e filósofo crítico afro-francês nascido na ilha de Martinica – departamento ultramarino insular francês no Caribe. Ainda criança, fora incentivado a rejeitar sua ascendência africana em favor da nacionalidade francesa. Após receber o diploma de psiquiatria, Fanon trabalhou em um hospital na Argélia durante a ocupação francesa. A experiência – que lhe proporcionou contato com a faceta mais cruel do colonialismo francês – e a influência prévia nele exercida por Aimé Cesáire e seus pensamentos o fizeram se interessar pelos estudos anti-coloniais. Sua obra contribuiu largamente para os estudos que se aprofundaram na pós-modernidade. Fanon atribuiu uma conceituação aprofundada e mais sofisticada ao colonialismo tal qual conhecemos. O filósofo não descrevia o colonialismo apenas como uma subjugação física de um povo por outro, mas como um conjunto de elementos que tinham como princípio a negação da diversidade e da pluralidade, em favor de um determinado modo de produção/comportamento/pensamento. Diferentemente de outras formas de dominação, o colonialismo teria como característica ser a “negação sistemática e estrutural da diversidade”. Segundo o autor, colonialismo seria a ”negação sistemática do outro”.

Para Fanon, o mundo colonial é um “mundo compartimentado e maniqueísta”. As manifestações culturais do colonizado e do colonizador são descritas como mutuamente excludentes, de modo que só haveria espaço no establishment para uma destas visões – no caso, a do colonizador. Dessa forma, sendo a colonização o processo de “negação sistemática do outro”, são comuns estratégias de desumanização. Caracterizar o indivíduo colonizado como “não-humano” ajuda a legitimar o discurso colonizador. São recorrentes na história instrumentos de desumanização compondo o discurso de regimes totalitários e xenofóbicos, por exemplo. Durante o regime nazista, pesquisas pseudo-científicas eram desenvolvidas com o objetivo de provar que judeus e negros pertenceriam a uma raça inferior, sub-humana.

Do mesmo modo que caracterizar o indivíduo colonizado como “não-humano” é um instrumento comum do discurso colonialista, caracterizar sua cultura como “não-cultura” – no caso, sua religião como “não-religião” – é igualmente comum. Visto isso, a determinação deste juiz em não considerar as religiões de matriz africana como religiões de fato e de direito só demonstra que o processo de descolonização pela qual a sociedade brasileira deve passar está distante de ser completado. Não só a descolonização não foi feita da maneira satisfatória, mas diversos atores sociais e políticos hoje presentes e atuantes empenham-se na tentativa de aprofundar o estágio de colonização do qual nunca nos livramos.

Por uma educação pluriversal e polirracional

Outro pensador que contribuiu amplamente para este debate foi Antonio Gramsci (1891-1937). Ao reformular a teoria marxista e resignificar o papel da superestrutura na reprodução do modo de vida capitalista e da ideologia liberal burguesa, Gramsci desenvolveu um importante conceito : A hegemonia cultural. Por meio dela, a ideologia da classe dominante é disseminada de modo a ser internalizada nas classes dominadas. A hemonia cultural garante, portanto, que as classes dominadas não só concederão sua força de trabalho para a acumulação de riqueza da classe dominante, mas reproduzirão os ideais e os valores desta última. Como essa hegemonia é exercida ? Gramsci afirma que a hegemonia cultural da classe dominante é exercida através do que chamou de meios de construção de consensos. Seriam eles as instituições responsáveis por construir os valores, o pensamento e os costumes da sociedade capitalista. Em outras palavras, são as instituições reponsáveis por dizer o que vamos pensar, como vamos agir e que valores teremos como base em nossas vidas. São elas : A grande mídia, as instituições religiosas, as instituições de ensino, o núcleo familiar, etc. Dessa forma, como superar esta conjuntura e iniciar o processo de descolonização cultural que urge ser implementado?

O professor Renato Nogueira Jr. (UFRRJ), em palestra no TEDxUFF, enquanto versava sobre a questão do ensino religioso nas escolas, defendeu uma tese interessante de reestruturação da pedagogia envolvida no ensino das religiões na escolas. Para ele, o paradigma existente no processo pedagógico hoje é universal e monorracional. Este modelo pedagógico seria responsável por propagar ideologias colonizantes, e só a adoção de um processo pluriversal e polirracional de construção do conhecimento seria capaz de subverter esta ordem. Podemos dizer, portanto, que o modelo de construção de consensos detentor da hegemonia cultural em nossa sociedade é universal e monoracional. A universalidade (do latim “unius” – um- e “versus” – alternativa), exclui a multiplicidade de pensamentos, culturas, tradições e costumes, ao criar paradigmas axiomáticos e fronteiras do conhecimento. A monorracionalidade prevê um único caminho congnitivo para os processos construção do conhecimento. Na sociedade ocidental capitalista e cristã, a monoracionalidade nos condiciona a pensar sob a lógica positivista. Expoentes do pensamento filosófico ocidental – desde Platão, passando por Descartes e Kant – fundamentam o nosso modus pensandi. Este modelo é hegemônico pois, por meio do discurso espistemológico, reforça o modo de produção e reprodução que é base da sociedade capitalista. Desse modo, uma possível alternativa no combate as práticas descriminatórias seria a implementação de um modelo pedagógico pluriversal e polirracional nos meios de construção de consensos (escolas, mídia, instituições religiosas, família, etc). Não se trataria mais de buscar as teorias/visões/ideologias que supostamente melhor interpretariam e representariam a realidade, mas criar condições para um debate plural e polidialógico.

A implementação deste modelo, no entanto, esbarra nos interesses políticos, econômicos e ideológicos de frações da sociedade que hoje controlam as instituições responsáveis por produzir estes consensos. É de extrema dificuldade a obtenção de avanços no debate acerca dos métodos de descolonização do pensamento e de superação dos discursos racistas, machistas, homofóbiocos – entre outros que representam a normatividade universal e monoracional a qual estamos submetidos – sem pensar em profundas reformas nas instituições mais conservadoras que hoje detém o monopólio do discurso. Existe alguns esforços neste sentido, como as propostas de democratização da comunicação, reformas na pedagogia aplicada nas escolas, resignificação do conceito de família – no qual se incluiriam famílias compostas por casais homossexuais, etc. Cabe à sociedade apoiar e incentivar estes esforços de modo a nos fazer avançar no processo de descolonização cultural – ou, ao menos, nos fazer parar de retroceder.

Fonte:  Blog da Redação

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