julho 31, 2015

Filme — Os Demônios de São Petersburgo — Fiódor Dostoiévski

PICICA: "São Petersburgo, 1860. Um membro da família imperial é assassinado. Alguns dias depois, o escritor Fyodor Michailovitch Dostoiévski se encontra com Gusiev, um jovem homem comprometido com um hospital psiquiátrico. Gusiev confessa que ele participou do plano terrorista e revela que seus amigos conspiradores estão planejando matar outro parente do Czar.

O jovem homem também dá para Dostoévski o endereço de Alexandra, sua líder. O escritor precisa encontrá-la e convencê-la a cancelar a nova tentativa de assassinato. Dostoévski está no limite de sua sanidade mental, sob tremenda pressão de seus credores e o prazo final para entrega de um novo livro se aproximando rapidamente enquanto ele sofre de ataques de epilepsia.

Durante o dia, com a ajuda de Anna Grigorjevna, uma jovem estenógrafa, ele edita "O Jogador". A noite, ele continua sua extenuante busca pelo grupo terrorista."

Filme — Os Demônios de São Petersburgo — Fiódor Dostoiévski

Francisco Wiederwild

Foucault, Nietzsche e a Crítica da Modernidade — por Roberto Machado

PICICA: "Para esta palestra fora escolhido pelo autor o título “Foucault, Nietzsche e a Crítica da Modernidade”, no entanto, poderia ter sido escolhido apenas “Foucault e Nietzsche” já que, na década de sessenta, a temática e as questões que norteiam as investigações de Foucault são expostas fundamentalmente nas obras do filósofo alemão Friedrich W. Nietzsche. Além de elucidar essa temática fundamental o filósofo Roberto Machado — professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro — explica também a dinâmica metodológica foucaultiana e seus sucessivos deslocamento em relação a epistemologia, que se devem ao profundo interesse do filósofo francês na filosofia nietzschiana, sobretudo no que diz respeito à "razão" e "modernidade" — os dois temas básicos desta palestra."

Foucault, Nietzsche e a Crítica da Modernidade — por Roberto Machado

Francisco Wiederwild

Tudo o que você sabe sobre drogas está errado. POR Raphael Mestres

PICICA: " Tem circulado nas redes sociais um texto intitulado “Descoberta a provável causa do vício. E não é o que você pensa” de Johann Hari, falando sobre como a ideia que todos temos sobre as dependências químicas está equivocada.

 Li o texto e assisti à palestra do autor no TED (disponibilizada com legendas ao final deste post). Achei tudo o que ele fala realmente muito interessante e esclarecedor. No entanto, apresento algumas ressalvas para que os menos avisados não tirem conclusões precipitadas das informações que ele apresenta." 

Tudo o que você sabe sobre drogas está errado

Raphael Mestres

        Tem circulado nas redes sociais um texto intitulado “Descoberta a provável causa do vício. E não é o que você pensa” de Johann Hari, falando sobre como a ideia que todos temos sobre as dependências químicas está equivocada.


 Li o texto e assisti à palestra do autor no TED (disponibilizada com legendas ao final deste post). Achei tudo o que ele fala realmente muito interessante e esclarecedor. No entanto, apresento algumas ressalvas para que os menos avisados não tirem conclusões precipitadas das informações que ele apresenta.

      A grande sacada de Hari foi demonstrar que a dependência química não é tão “química” quanto pensamos. Para isso ele faz algumas observações simples e perturbadoras:

       Médicos administram grandes quantidades de diamorfina (heroína) para pacientes que sofreram acidentes e fraturas graves. Os pacientes não saem do hospital “viciados”. 20% dos soldados americanos na Guerra do Vietnã consumia muita heroína. Ao término da guerra, quase todos eles voltaram aos seus lares e pararam o consumo naturalmente. Ratos se matavam de overdose em gaiolas isoladas quando tinham acesso a uma mistura de água com cocaína ou heroína. Quando foram colocados em gaiolas cheias de estímulos e companheiros para se divertir, praticamente ignoraram essa mistura.

       Esses fatos realmente contradizem a nossa ideia de que as drogas possuem componentes químicos que prenderão para sempre seus usuários e nos apontam para outros fatores responsáveis pelas dependências químicas.

          Parece que a química das drogas perde seu poder frente a uma família amorosa torcendo pelo paciente fora do hospital ou frente a uma esposa ansiosa esperando o marido voltar da guerra. Perde seu poder até frente a uma gaiola cheia de estímulos e companhias para ratos, que se matavam de overdose quando estavam em gaiolas isoladas.

 
Com isso, Hari conclui que o principal fator responsável pela dependência não são os componentes químicos das drogas, mas a escassez de vínculos e conexões positivas. Ter um trabalho que você ama, uma família para encontrar ao final do dia, relacionamentos saudáveis e recompensadores fazem com que optemos por manter a sobriedade para desfrutar destas benesses que a vida proporciona.

           O erro cometido atualmente por nós e apontado por Hari é que, na tentativa de recuperar os dependentes químicos, acabamos dificultando ainda mais a criação de vínculos e conexões deles com a sociedade. Os isolamos, os rotulamos e fazemos com que se sintam envergonhados. Na verdade, os punimos pela doença que têm, quando as evidências apontam que a saída seria justamente o contrário: favorecer a criação de vínculos e conexões saudáveis para que eles não precisem do vínculo com as drogas.

        Hari também cita como exemplo Portugal, que melhorou muito seus índices de dependências químicas ao descriminalizar todas as drogas e investir o dinheiro usado para medidas repressivas na reconexão dos dependentes químicos à sociedade.

          E aqui pode ser que alguém chegue a duas conclusões perigosas:

         1) “Já que é uma questão de vínculos, o tratamento para dependências químicas, com medicação, psicoterapia e internação não tem sentido” e

         2) “Bom, se é assim, a saída socialmente ideal é descriminalizar todas as drogas, como foi feito em Portugal”.

          Cuidado, não podemos ignorar a outra parte dos fatos.

        O erro apontado por Hari de que “isolamos, rotulamos, envergonhamos e punimos os dependentes” não diz respeito à necessidade ou não de tratar a dependência química, mas à forma como nós, individualmente, enxergamos o dependente e nossa postura diante dele. Também serve como crítica a alguns tratamentos fragmentados feitos por profissionais não capacitados, que adotam uma visão moralista, e não científica, das dependências químicas.

        O tratamento da dependência química, nas suas diferentes formas, deve contribuir para a capacidade do paciente de reconstruir vínculos saudáveis.

    O próprio dependente químico, em seu processo de adoecimento, vai se desconectando dos vínculos positivos que possuía e vai se conectando com a droga. Hari aponta que a conexão com a droga é um tipo de alívio para a incapacidade do indivíduo de conectar-se com os outros, seja por causa de traumas, isolamento ou dificuldades da vida.

       Quando surgem as doenças psiquiátricas decorrentes do uso abusivo de drogas essa desconexão do dependente se cristaliza ainda mais tornando muito mais difícil a criação de vínculos saudáveis. O tratamento, com medicação, psicoterapia, grupos e terapias alternativas, contribui para recuperar e desenvolver no dependente a capacidade de se vincular novamente.

       O “isolamento” em comunidades terapêuticas, muitas vezes, é importante para cortar os vínculos destrutivos que o dependente estabelece com traficante, com outros usuários ou até com a própria família codependente, para que viva a possibilidade de estabelecer novas conexões saudáveis, seja com os profissionais, com os colegas de internamento, com os grupos religiosos e com o trabalho, dentro e fora da comunidade, na reinserção social.

       Portanto, o tratamento da dependência química tem todo o sentido de existir, principalmente para facilitar as conexões necessárias para a recuperação.


A importância dessas descobertas é no sentido de sabermos que não adianta medicação, psicoterapia e todo o resto se as conexões e vínculos não estiverem sendo estimulados e criados a partir disso.

       Usando como analogia a experiência dos ratos, não adianta fazer tudo o que fazemos no tratamento se a gaiola continuar vazia e isolada. Usar droga vai ser a única coisa a fazer. O tratamento deve se ocupar de “encher a gaiola” de atrativos e companhias saudáveis. É preciso enriquecer a vida do dependente.

         Quanto à conclusão de que a descriminalização é a saída socialmente ideal e que Portugal é um exemplo disso, podemos analisar tal como o tratamento. O ponto chave está no investimento em reconectar os dependentes à sociedade e em oferecer conexões saudáveis para os cidadãos.

        Não foi a descriminalização que funcionou em Portugal, mas o investimento em criação de empregos para dependentes em recuperação, microempréstimos para que pudessem começar seus negócios, incentivos a empresas para que os contratassem. Foi o objetivo de que “cada dependente em Portugal tivesse algo pelo qual sair da cama todo dia de manhã” que fez a diferença.

        A descriminalização foi apenas um meio de arrecadar fundos para esses novos investimentos e não a solução para o problema.

       Johann Hari afirma ao fim da sua palestra: “o contrário da dependência química não é sobriedade. O contrário da dependência química é conexão”. Isso poderia ser um mantra repetido incansavelmente nos tratamentos.

        E nas discussões sobre a legalização, embasadas nas críticas à “Guerra às drogas” eu sugeriria uma adaptação desse mantra: “o contrário da Guerra às drogas não é a legalização ou descriminalização, mas criar oportunidades de conexão”.

        Afinal de contas, conceitos brilhantes como esse devem ser usados sem medo de errar.

         Veja aqui a palestra TED de Johann Hari:



Fonte: Rapahel Mestres

Descoberta a provável causa do vício. E não é o que você pensa - POR Johann Hari (BRASIL POST)

PICICA: "Faz cem anos que as drogas foram proibidas pela primeira vez - e, ao longo desse século de guerra contra as drogas, professores e governos nos contaram histórias de vício. Essas histórias estão enraizadas em nossas mentes. Elas parecem óbvias, verdades evidentes. 

Até três ano atrás, quando comecei uma jornada de 50 000 quilômetros para escrever meu novo livro, 'Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs' (Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução livre), eu também acreditava nisso. Mas o que descobri em minhas viagens é que quase tudo o que nos contaram sobre o vício está errado - e existe uma história muito diferente à nossa espera, se estivermos prontos para ouvi-la.

Se realmente absorvermos essa nova história, teremos de mudar muito mais que a guerra contra as drogas. Teremos de nos transformar."

Descoberta a provável causa do vício. E não é o que você pensa

  Autor de ‘Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs’
COCAINE

Faz cem anos que as drogas foram proibidas pela primeira vez - e, ao longo desse século de guerra contra as drogas, professores e governos nos contaram histórias de vício. Essas histórias estão enraizadas em nossas mentes. Elas parecem óbvias, verdades evidentes. 

Até três ano atrás, quando comecei uma jornada de 50 000 quilômetros para escrever meu novo livro, 'Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs' (Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução livre), eu também acreditava nisso. Mas o que descobri em minhas viagens é que quase tudo o que nos contaram sobre o vício está errado - e existe uma história muito diferente à nossa espera, se estivermos prontos para ouvi-la.

Se realmente absorvermos essa nova história, teremos de mudar muito mais que a guerra contra as drogas. Teremos de nos transformar.

Aprendi com uma mistura extraordinária de pessoas que conheci na estrada. Dos amigos de Billie Holiday, que me ajudaram a entender como o fundador da guerra contra as drogas a perseguiu e ajudou a matá-la. De um médico judeu que foi tirado às escondidas do gueto de Budapeste quando era bebê, para depois destravar os segredos do vício quando adulto. 

De um transexual traficante de crack do Brooklyn que foi concebido quando sua mãe, uma viciada em crack, foi estuprada pelo pai dele, um policial de Nova York. De um homem que foi mantido preso no fundo de um poço durante dois anos por uma ditadura para depois emergir e ser eleito presidente do Uruguai, começando os dias finais da guerra contra as drogas.

Tinha uma razão bastante pessoal para sair em busca dessas respostas. Uma das minhas primeiras lembranças da infância é tentar acordar um parente, sem sucesso. Desde então, venho pensando sobre o mistério do vício - o que faz algumas pessoas se fixar em uma droga ou um comportamento a ponto de não conseguir parar? Como ajudamos essas pessoas a voltar para a gente? Ao envelhecer, outro parente próximo ficou viciado em cocaína, e eu me envolvi com uma pessoa viciada em heroína. Acho que me sinto em casa perto de viciados.

Se você me perguntasse lá atrás o que provoca o vício em drogas, te olharia como se você fosse um idiota e diria: "Drogas. Dã." Não é difícil entender. Achei que tivesse visto isso acontecer na minha própria vida. Qualquer um consegue explicar. Imagine se eu, você e as próximas 20 pessoas que passarem na rua tomássemos uma droga potente por 20 dias. Existem agentes químicos fortes nessas drogas, então no vigésimo-primeiro dia nossos corpos precisariam desses químicos. Teríamos uma necessidade urgente deles. Estaríamos viciados. Esse é o significado de vício.

Essa teoria foi estabelecida por meio de experimentos com ratos - experimentos que foram injetados na psique americana nos anos 1980, em um famoso anúncio da Partnership for a Drug-Free America. Você talvez se lembre. O experimento é simples. Coloque um rato numa gaiola, sozinho, com duas garrafas d'água. Uma delas tem só água. A outra tem água misturada com cocaína ou heroína. Em quase todas as vezes que você fizer esse experimento, o rato vai ficar obcecado com a água com drogas. Ele vai tomá-la até morrer.

O anúncio explica: "Só uma droga é tão viciante, nove de dez ratos de laboratório vão usá-la. E usá-la. E usá-la. Até a morte. É chamada cocaína. E ela pode fazer o mesmo com você".

Mas, nos anos 1970, um professor de psicologia de Vancouver chamado Bruce Alexander percebeu algo estranho nesse experimento. O rato está sozinho na gaiola. Ele não tem nada para fazer além de usar a droga. O que aconteceria se tentássemos algo diferente? Então Alexander criou o Rat Park. É uma gaiola sofisticada, onde os ratos têm bolas coloridas e túneis para brincar, vários amigos e a melhor das comidas: tudo o que um rato poderia desejar. Alexander queria saber o que iria acontecer.
No Rat Park, todos os ratos tomaram água das duas garrafas, é claro, porque não sabiam o que elas continham. Mas o que aconteceu depois foi surpreendente.

Os ratos nessa vida boa não gostavam da água com drogas. Eles basicamente a ignoravam: consumiam menos de um quarto dessa água, em comparação com os animais isolados. Nenhum deles morreu. Todos os ratos que estavam sozinhos em suas gaiolas se tornaram dependentes da droga, mas isso não aconteceu com nenhum dos animais do Rat Park.

Inicialmente, achei que isso fosse meramente uma idiossincrasia dos ratos, até descobrir que havia - na mesma época do experimento do Rat Park - um equivalente humano em andamento. Era a Guerra do Vietnã. 

A revista Time relatou que, entre os soldados americanos, usar heroína estava se tornando um hábito tão corriqueiro quanto mascar chiclete, e existem evidências sólidas para sustentar tal afirmação: cerca de 20% dos soldados americanos ficaram viciados em heroína no Vietnã, segundo um estudo publicado no Archives of General Psychiatry. Muita gente ficou compreensivelmente aterrorizada; elas achavam que com o fim da guerra um enorme número de viciados voltaria para casa.

Mas, na realidade, cerca de 95% dos soldados viciados - segundo o mesmo estudo - simplesmente pararam de usar heroína. Alguns poucos foram para clínicas de recuperação. Eles passaram de uma gaiola aterrorizante para uma agradável, e não queriam mais usar drogas.

Alexander argumenta que essa descoberta é uma contestação profunda tanto da visão direitista, segundo a qual o vício é uma fraqueza moral causada por uma vida de festas e hedonismo, quanto da visão liberal, que diz que o vício é uma doença que existe num cérebro quimicamente sequestrado. Na verdade, segundo Alexander, vício é adaptação. Não é você. É a gaiola.

Depois da primeira fase do Rat Park, Alexander levou seu teste além. Ele refez os primeiros experimentos, nos quais os ratos se tornavam usuários compulsivos de drogas. Ele os deixou usar a droga durante 57 dias - se tem um jeito de ficar viciado, é esse. 

Então ele tirou os animais do isolamento e os colocou no Rat Park. Alexander queria saber se, uma vez viciado, o cérebro estava sequestrado e não havia maneira de recuperá-lo. As drogas assumem o controle? O que aconteceu - de novo - foi impressionante. Os ratos pareciam exibir alguns tremores de abstinência, mas logo pararam de usar as drogas pesadamente e voltaram a ter uma vida normal. A gaiola boa os salvou. (As referências completas de todos os estudos que estou mencionando estão no livro.)

Quando soube disso, fiquei encucado. Como seria possível? Essa nova teoria é um ataque tão radical ao que nos contaram que não parecia ser verdade. Mas, quanto mais cientistas entrevistava, quanto mais estudos lia, mais descobria coisas que não pareciam fazer sentido - a menos que você leve em conta essa nova abordagem.

Eis um exemplo de experimento que acontece à sua volta, e pode inclusive acontecer com você um dia desses. Se você for atropelado e quebrar a bacia, provavelmente vão te dar diamorfina, o nome médico para heroína. 

No hospital, haverá muita gente tomando heroína por longos períodos, para aliviar a dor. A heroína que o médico te der vai ser muito mais pura e potente que aquela usada pelos viciados, que compram uma droga adulterada pelos traficantes. Então, se a velha teoria do vício estiver certa - a culpa é da droga; ela faz seu corpo precisar dela -, é óbvio o que vai acontecer. As pessoas sairão do hospital e irão direto procurar um traficante para comprar heroína.

Mas eis o que é estranho: isso virtualmente nunca acontece. Como me explicou o médico canadense Gabor Mate os usuários de heroína médica simplesmente param, apesar de meses de uso. A mesma droga, usada pelo mesmo período, cria viciados nas ruas, mas não afeta os pacientes de hospitais.

Se você ainda acredita, como eu acreditava, que o vício é causado por agentes químicos, isso não faz sentido. Mas, se você acredita na teoria de Bruce Alexander, a imagem começa a entrar em foco. O viciado da rua é o rato da primeira gaiola, isolado, sozinho, com uma única fonte de conforto. O paciente do hospital é o rato da segunda gaiola. Ele vai para casa, para uma vida em que está cercado pelas pessoas que ama. A droga é a mesma, mas o ambiente é diferente.

Isso nos dá um insight muito mais profundo que a necessidade de entender os viciados. O professor Peter Cohen argumenta que os seres humanos têm uma necessidade profunda de estabelecer laços e conexões. É como nos satisfazemos. Se não conseguirmos nos conectar uns com os outros, vamos nos conectar com o que encontrarmos - a bolinha pulando na roleta ou a ponta da agulha de uma seringa. Ele diz que deveríamos simplesmente parar de falar em "vício": deveríamos falar em "ligação". Um viciado em heroína criou uma ligação com a droga porque não conseguiu estabelecer outras conexões.

O oposto de vício, portanto, não é sobriedade. É conexão humana.

Quando soube disso tudo, fui sendo persuadido gradualmente. Mas restava uma dúvida incômoda. Será que os cientistas estão dizendo que a parte química do vício não faz diferença nenhuma?
Me explicaram - você pode se viciar em jogo, mas ninguém vai achar que você vai injetar um baralho nas veias. Você pode ser viciado, mas não há o lado químico. Fui a uma reunião dos Viciados em Jogos Anônimos em Las Vegas (com a permissão de todos os presentes, que sabiam que eu estava lá apenas como observador). Eles eram tão viciados quanto os usuários de cocaína e heroína que conheci. Mas uma mesa de pôquer não tem químicos.

Ainda assim, perguntei: a química desempenha algum papel? Um experimento tem a resposta precisa, que descobri no livro The Cult of Pharmacology (o culto da farmacologia, em tradução livre), de Richard DeGranpre.

Todos concordam que fumar cigarros é um dos processos mais viciantes que existem. Os químicos do tabaco vêm da nicotina. Quando foram inventados os adesivos de nicotina, no começo dos anos 1990, houve uma grande onda de otimismo - os fumantes poderiam satisfazer suas necessidades químicas sem o resto dos efeitos imundos (e mortais) do cigarro. Seria a libertação.

Mas o Ministério da Saúde descobriu que apenas 17,7% dos fumantes conseguem parar de fumar usando adesivos de nicotina. É claro que não é pouca coisa. Se os químicos respondem por 17,7% do vício, como mostra esse dado, ainda temos milhões de vidas arruinadas globalmente. Mas o que ele revela, mais uma vez, é que a história que nos contaram sobre as causas químicas do vício é real, mas só uma parte pequena de uma fotografia muito maior.

Isso tem enormes implicações para a secular guerra contra as drogas. Essa guerra massiva - que, como vi, mata gente dos shoppings mexicanos às ruas de Liverpool - é baseada na afirmação de que precisamos erradicar fisicamente uma vasta gama de químicos, pois eles sequestram cérebros e provocam o vício. Mas, se as drogas em si não são as causadoras do vício - se, na verdade, é a desconexão que causa o vício --, então nada disso faz sentido.

Ironicamente, a guerra contra as drogas na verdade potencializa esses causadores de vício. Por exemplo: fui a uma prisão no Arizona - "Tent City" --, onde os detentos ficam presos em minúsculas celas de pedra ("O Buraco") por semanas a fio se usarem drogas. É a versão humana mais próxima que consigo imaginar das gaiolas de isolamento dos ratos. Quando os presos saem da cadeia, não conseguirão emprego, porque têm ficha criminal - garantido um isolamento ainda maior. Vi exemplos assim no mundo inteiro.

Existe uma alternativa. Você pode criar um sistema desenhado para ajudar os viciados a se reconectar com o mundo - e, assim, deixar o vício para trás.

Isso não é teoria. Está acontecendo. Vi com meus próprios olhos. Cerca de 15 anos atrás, Portugal tinha um dos piores problemas de drogas da Europa - 1% da população era viciada em heroína. Os portugueses tentaram a guerra contra as drogas, mas o problema só piorava. Então decidiram fazer algo radicalmente diferente. Resolveram descriminar todas as drogas e usar o dinheiro gasto para prender os viciados em programas de reconexão - com seus sentimentos e com a sociedade. O passo mais crucial é garantir moradia e empregos subsidiados, para que eles tenham propósito na vida, algo que os faça sair da cama pela manhã. Em clínicas acolhedoras, vi os viciados aprendendo a se reconectar com seus sentimentos, depois de anos de trauma e de um silêncio forçado causado pelas drogas.

Um exemplo que observei foi um grupo de viciados que recebeu um empréstimos para começar uma empresa de coleta de lixo. Repentinamente, eles eram um grupo, todos conectados entre si e com a sociedade, cuidando uns dos outros.

Agora se conhecem os resultados disso tudo. Um estudo independente do British Journal of Criminology descobriu que, desde a total descriminação, o vício caiu e o uso de drogas injetáveis teve redução de 50%. Repito: o uso de drogas injetáveis teve redução de 50%. A descriminação foi um sucesso tão grande que pouquíssima gente em Portugal defende uma volta ao antigo sistema. O maior opositor dessa política em 2000 era João Figueira, o principal policial da força antidrogas. Ele fez alertas terríveis, do tipo que se espera ouvir na Fox News ou ler no Daily Mail. Mas, quando conversamos em Lisboa, Figueira me disse que nenhuma de suas previsões se confirmou - e agora ele espera que o resto do mundo siga o exemplo português.

Isso não é relevante só para os viciados que amo. É relevante para todos nós, pois nos força a pensar de maneira diferente a respeito de nós mesmos. Os seres humanos são animais que precisam de laços. Precisamos de conexões e de amor. A frase mais sábia do século 20 foi "Apenas se conecte", de E.M. Forster. Mas criamos um ambiente e uma cultura que cortou conexões, ou que oferece apenas um simulacro delas: a internet. O crescimento do vício é sintoma de uma doença mais profunda na maneira como vivemos - constantemente olhando para o próximo objeto brilhante que queremos comprar, em vez dos humanos que nos cercam.

O escritor George Monbiot fala na "era da solidão" Criamos sociedades humanas em que o corte de conexões nunca foi tão fácil. Bruce Alexander, o criador do Rat Park, me disse que falamos demais em recuperação de indivíduos. Precisamos falar de recuperação social - como todos nos recuperamos juntos da doença do isolamento que recai sobre nós como uma névoa densa.

Mas essas novas evidências não são apenas um desafio político. Elas não nos forçam somente a transformar nossas cabeças. Elas nos forçam a transformar nossos corações.

É muito difícil amar um viciado. Quando olho para os viciados que amo, é sempre tentador optar pela estratégia durona recomendada por programas como Intervention - falar para o viciado tomar jeito ou então cortá-lo de sua vida. A mensagem é que o viciado que não parar com as drogas deve ser rejeitado. É a lógica da guerra contra as drogas importada para nossas vidas. Mas, na verdade, aprendi que isso só agrava o vício - e você pode perder a pessoa para sempre. Voltei para casa determinado a me aproximar como nunca dos viciados da minha vida - dizer para eles que os amo incondicionalmente, consigam eles parar ou não.

Quando terminei minha longa jornada, olhei para meu ex-namorado, em crise de abstinência, tremendo no quarto de visitas, e pensei nele de um jeito diferente. Há um século estamos entoando cantos de guerra sobre os viciados. Quando secava a testa dele, me ocorreu que deveríamos estar entoando canções de amor.

A história completa da jornada de Johann Hari - contada por meio das histórias das pessoas que ele conheceu - está em 'Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs' 
(Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução livre), publicada pela Bloomsbury. O livro foi elogiado por Elton John, Naomi Klein e Glenn Greenwald, entre outros. Saiba mais sobre o livro
 
As referências completas e fontes para todas as informações citadas neste artigo estão nas extensas notas do livro.

Se quiser ficar atualizado sobre o livro e o assunto, curta a página 

Este artigo foi originalmente publicado pelo HuffPost US e traduzido do inglês.

Fonte: Brasil Post

Da crise emergirá o pós-capitalismo? Entrevista a Jonathan Derbyshire (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Jornalista britânico que cobriu levantes pós-2011 em todo o mundo aposta: sistema não suportará sociedade conectada em rede que ajudou a criar"

Da crise emergirá o pós-capitalismo?


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Jornalista britânico que cobriu levantes pós-2011 em todo o mundo aposta: sistema não suportará sociedade conectada em rede que ajudou a criar

Entrevista a Jonathan Derbyshire, em Prospect | Tradução: Gabriela Leite e Inês Castilho | Imagem: Banksy
MAIS: Os textos de Paul Mason já publicados por Outras Palavras estão aqui
Ao cobrir, para a TV britânica, a fase mais recente da crise na Grécia, o jornalista Paul Mason alcançou quase-onipresença em seu país: Mason falando com Alexis Tsipras e outros membros do Syriza; Mason em mangas de camisa diante da câmera, diante do banco central da Grécia; Mason desviando de bombas em outro confronto entre anarquistas e a polícia — isso forma parte da iconografia da crise grega para muitos britânicos.


“Pós-Capitalismo: Um Guia para Nosso Futuro”, de Paul Mason, foi publicado por Allen Lane


Agora, enquanto a Grécia e o resto da Europa recuperam seu fôlego, Mason retornou para a Inglaterra para lançar seu novo livro: “Post-Capitalism: a guide to our future” [“Pós-capitalismo: um guia para nosso futuro”]. Não é um trabalho de reportagem, mas uma ampla análise histórica e econômica. Inspirada pela análise de Marx sore relações sociais capitalistas, ela vai, no entanto, além disso — de uma maneira que, reconhece o autor, talvez não agrade alguns de seus amigos na extrema esquerda. O livro é uma análise do “neoliberalismo” — o capitalismo altamente financeirizado que dominou a maior parte do mundo desenvolvido nos últimos 30 anos — e, ao mesmo tempo, uma tentativa de imaginar o que poderia substituí-lo.

“Pós-Capitalismo: Um Guia para Nosso Futuro”, de Paul Mason, foi publicado por Allen Lane.
O capitalismo, escreve Mason, é um sistema altamente adaptativo: “Nos grandes momentos de encruzilhada, ele se transforma e muda, em resposta ao perigo”. Seu instinto mais básico de sobrevivência, ele argumenta, “é impulsionar mudanças tecnológicas”. Mas o autor acredita que as tecnologias de informação que o capitalismo desenvolveu nos últimos vinte anos ou mais não são, apesar das aparências, compatíveis com o capitalismo — não em sua forma presente, e talvez nem em qualquer outra forma. “Quando o capitalismo não puder mais se adaptar à mudança tecnológica, o pós-capitalismo irá se tornar necessário”.

Mason não está sozinho ao acreditar que a humanidade está à beira de uma profunda revolução tecnológica, é claro. Ouve-se isso de outras vozes: que falam, por exemplo, sobre a “Segunda Era da Máquina” e a promessa (assim como a ameaça) de máquinas inteligentes e da “internet das coisas”. O que torna singular a análise de Mason é, no entanto, a maneira pela qual ele funde um balanço das mutações tecnológicas do que costumava ser chamado de “capitalismo tardio” com uma tentativa de identificar o que Engels chamou, no final do século XIX, de a “parteira da sociedade”, a classe capaz de liderar a transformação social. Segundo o livro, não será a velha classe trabalhadora, como Marx e Engels pensaram, mas o que Mason chama de “rede”. Ao colocar em contato permanente milhões de pessoas, Mason escreve, “o capitalismo da informação criou um novo agente de mudança na história: o ser humano bem formado e conectado”.
Encontrei-me com Mason em Londres e comecei a entrevista pedindo a ele:

Paul Mason: para ele, "indivíduos em rede"  são um novo sujeito histórico, que substituíram a velha classe trabalhadora do marxismo, e se converteram no que Engels chamava de "parteiros da história"
Paul Mason: para ele, “indivíduos em rede” são um novo sujeito histórico, que substituíram a velha classe trabalhadora do marxismo, e se converteram no que Engels chamava de “parteiros da história”

Descreva, por favor, o modelo “neoliberal”, que segundo você chegou a um ponto de ruptura

O neoliberalismo é tanto uma ideologia quanto um modelo econômico. O capitalismo precisa ser compreendido em seu conjunto em cada fase de sua existência. Vivemos o que podemos chamar de capitalismo neoliberal. Este sistema que funciona com um núcleo que opera de acordo com valores neoliberais e uma periferia que não opera. Argumento que o neoliberalismo, como sistema funcional, está em crise porque sua mola central — o amplo consumo financeirizado, combinado com baixo crescimento dos salários — é uma máquina para produzir bolhas e seu estouro. No livro, sustento que uma eventual saída para o sistema (rumar para um info-capitalismo bem sucedido) pode ser viável em certas circunstâncias, mas esta transição é improvável.

Lado a lado com o que você identifica como as características negativas do neoliberalismo (financeirização excessiva e desestabilizadora), também há a revolução tecnológica.

O neoliberalismo foi a forma econômica na qual ocorreram os avanços mais dramáticos da técnica humana sobre a natureza. Em segundo lugar, foi o período no qual países como China e Índia desenvolveram-se de modo surpreendente, um fenômeno que ainda precisa ser compreendido em sua totalidade. Argumento, porém, que esta forma econômica não é mais capaz de conter os níveis do dinamismo tecnológico que conseguiu liberar. Não acredito que o próprio neoliberalismo, eu seus próprios valores neoliberais, seja o condutor da mudança tecnológica. A economista Mariana Mazzicato prova esse ponto: não são apenas o Vale do Silício, o empreendedorismo e o dinheiro dos fundos de hedge que produzem o iPhone — é a Nasa, são as grandes universidades como Stamford.
O que estamos vendo hoje é que a rapidez da inovação não está sendo combinada com implementação de políticas ou evolução de modelos de negócios. Isso impõe uma questão: até que ponto o poder de transformação destas novas tecnologias resultará numa terceira revolução industrial? Eu não vejo isso acontecer sob paradigma neoliberal.

Mas, como você mesmo aponta, a nova tecnologia também foi possibilitadora do neoliberalismo, por ter aprimorado a capacidade de explorar o que é chamado algumas vezes de “capital humano”.

A era Keynesiana produziu a última geração de indivíduos hierarquizados, coletivizados. Eu fui produzido por ela e sei que este mundo acabou. Uma das virtudes de se ter 55 anos é ter visto o novo mundo nascer. Hoje, como Foucault afirma, somos empreendedores do self. A internet permitiu que as massas fossem parte do laboratório social do self. Ela nos permite fazê-lo de uma maneira que nem começamos a entender. Ela criou um novo sujeito humano.

A divergência entre eu e os apoiadores do neoliberalismo é em torno de uma questão: o sujeito humano vai transcender o sistema atual, romper com ele e reformar a sociedade humana? Todas as visões de transformação social têm, a partir de agora, de enxergar o que eu chamo de “indivíduo em rede”. Acredito que as revoltas que narrei em meu livro anterior, Why It’s Kicking Off Everywhere (“Por que está começando em todo lugar”, em tradução livre), são revoltas destas pessoas. Se elas são um novo sujeito histórico, que substitui a velha classe trabalhadora do marxismo, essa é uma grande coisa. É uma grande novidade que devemos buscar compreender.

Você lamenta o mundo que perdemos? O mundo keynesiano de coletividades e solidariedades? Poucas partes de seu livro têm tom de elegia. A nota dominante é mais de excitação com as possibilidades econômicas e políticas que as novas tecnologias e novos modos de subjetividade humana oferecem.

Eu lamento, sim. Escrevi em meu primeiro livro, Live Working or Die Fighting (Viva trabalhando ou morra lutando”, em tradução livre), que o que estamos lamentando, e o que ficou para trás, foi uma anomalia na história do movimento dos trabalhadores. Foi um movimento de trabalhadores socialmente estável, que construiu um caminho de coexistência pacífica com o capital. O que fiz foi cavar na história e descobrir que a indisciplinada história do trabalho foi a de pessoas que foram, elas mesmas e de sua própria maneira, empreendedoras de si mesmas. E tiveram um nível de quase total oposição ao mundo que viveram, coisa que a geração do meu pai, a da era keynesiana, não teve.

De que tradições você está falando, especificamente?

Anarquismo na comuna de Paris. Anarco-sindicalismo nos EUA — os Wobblies. O que o comunismo acrescentou a essas histórias foi a coletividade. Mas se você esquecer as histórias oficiais marxistas sobre a Comuna ou os Wobblies, descobrirá que é uma história de indivíduos rebeldes. Quando comecei a mergulhar nessa história, percebi que a era Keynesiana, apesar do nosso luto, foi uma anomalia.

Também foi uma anomalia na história do capitalismo, não? Não é essa uma das mensagens do livro de Thomas Pikkety, O Capital no Século XXI?

É uma anomalia na história do capitalismo. Também é uma anomalia da história da classe trabalhadora.

Vamos nos voltar ao aspecto econômico de sua argumentação no livro. Sua afirmação é que o capitalismo não consegue “capturar o ‘valor’ gerado pela nova tecnologia.” Você pode desenvolver isso um pouco?

Assim que soubemos que estávamos em uma economia da informação, ficou óbvio que a categoria das coisas chamadas pelos economistas de “externalidades” seriam importantes. O teorista do capital cognitivo, Yann Moulier-Boutang, coloca desta maneira (e eu concordo): toda a questão do capitalismo do século XXI é saber quem captura as externalidades. Devem ser as empresas, que vão ter posse delas e utilizá-las, como faz o Google? A externalidade positiva para o Google é que ele pode ver o que estamos buscando, mas nós não conseguimos ver o que nós mesmo estamos. Então ele pode, agora, construir um modelo de negócio monopolizado, com base nos segredos revelados por sua mineração de dados.

Você quer dizer que, sob os atuais arranjos, o capitalismo só pode capturar o valor gerado pelas novas tecnologias por meio do monopólio? Google, Apple e outros estão ganhando muito dinheiro com isso.

Eles estão ganhando dinheiro. Criaram um monopólio da informação. E, especialmente no que diz respeito aos bens de informação, têm conseguido suprimir o mecanismo de formação de preços. Ele iria, em condições naturais, reduzir o preço da informação que estão vendendo a zero. Eu digo no livro que a declaração da missão da Apple deveria ser, na verdade: “Existimos para prevenir a abundância de música!” Ou, do Google: “Existimos para prevenir a abundância do autoconhecimento das pessoas sobre o que elas fazem na internet”.

Existem dois problemas com isso. Primeiro, é lógico sugerir que nenhum desse monopólios pode sobreviver. Certamente, seu valor de mercado não reflete sua capacidade para continuar monopolizando o que fazem. Segundo: portanto, você não pode ter a completa utilização da informação. A próxima questão é: Existe um meio termo? Haverá algum espaço, que possamos explorar, entre o monopólio e a liberdade? Acredito realmente que sim. Não estou dizendo que tudo deve ser de graça. Estou dizendo que deve haver múltiplos modelos de negócio entre o monopólio e a liberdade.

Você não está dizendo, então, que os mercados vão desaparecer em um futuro pós-capitalista? Afinal, mercados e capitalismo não são a mesma coisa. Mercados são apenas mecanismos para alocar recursos.

É natural — e está acontecendo — que a natureza social da informação leve a formas de atividade de não-mercado. A Wikipédia é uma forma de atividade não mercantil — é um buraco de 3 milhões de dólares no mundo da propaganda.

Você escreve, em certo ponto, que os membros “mais perspicazes” da elite global já são lúcidos a ponto de abordar algumas das questões com as quais você lida no livro — por exemplo, a desigualdade, seu impacto sobre o crescimento, a “estagnação secular” e o papel da negociação coletiva na garantia de salários maiores. O antigo secretário do Tesouro dos EUA, Larry Summers, escreveu vastamente sobre todos estes três problemas, oferecendo diagnósticos não tão diferentes dos seus.

Há pessoas na elite global que se permitiram entender o que estamos passando. Uma das coisas que compreendem é que a desigualdade vai ser desfuncional. Não apenas não querem ser linchados em suas camas, mas também entendem que o dinamismo das economias capitalistas só será retomado se houver um aumento dos salários. Também compreenderam a chamada questão do limite de juro zero — a ideia de que, em uma economia onde as taxas de juros reais estão constantemente zeradas, será constantemente necessário adotar políticas monetárias não-ortodoxas. Políticas monetária não-ortodoxas são arenosas. Qualquer um que entendeu a crítica de Keynes nos anos 1920 e começo dos 1930 vai entender o problema da “viscosidade”. Nos anos trinta, os salários eram pegajosos — eles não iriam cair o suficiente. Agora, é a política monetária que é pegajosa. O problema é: de onde o novo dinamismo da economia virá? Larry Summers entende isso. E pessoas nos mercados de títulos também.

O passo final é que eles olham aos choques exógenos e isso os aterroriza. Isso me aterroriza também. As pessoas no poder, nos ministérios da Fazenda, não vão se autorizar a quantificar a gravidade dos choques que estão a caminho. Se 60% dos títulos emitidos pelos Tesouros nacionais tornarem-se insolventes devido aos custos relacionados com o envelhecimento das populações, algo que as agências de risco consideram provável; se a imigração acontecer na escala que se espera; se tivermos nove bilhões de pessoas clamando para entrar no mundo desenvolvido…

Se o neoliberalismo fosse um sistema funcional, como era nos idos de 2001, e não tivesse deixado esta condição, você provavelmente poderia dizer: “Droga, as coisas vão ficar realmente difíceis, mas provavelmente será possível resolver.” Mas esse capitalismo eclerosado, estagnado e fibrilado sob o qual vivemos desde 2008, não tem chance alguma de sobreviver às tormentas. E mesmo que eu esteja errado sobre a transição que vejo e desejo, seus defensores teriam de aparecer e dizer o que um info-capitalismo dinâmico, o que uma terceira revolução industrial poderia ser.

Mas me parece que Summers ou alguém como o economista Robert Gordon teriam que aceitar a parte de diagnóstico de sua análise…

Certo. Mas a razão pela qual não atravessei o caminho até o território do Robert Gordon é que lá está a produtividade potencial. Sua visão da produtividade potencial inerente à tecnologia da informação transbordando para o mundo real … Acho que é maior do que ele aceita ser.

Por que você pensa que ele subestima isso?

É porque pessoas como Gordon não estão preparadas para entrar nesse mundo inferior, entre valor de uso e valor de troca, que as externalidades representam. Não acho que lendo meu livro a maioria das pessoas aceitarão que a transição, potencialmente, se dá em direção ao  mundo não-mercantil, centralizado na informação, de baixa intensidade de trabalho, pós-capitalista. Mas se pensam que estamos indo em direção a uma forma de info-capitalismo com uma terceira revolução industrial, eles precisam contar para nós qual é a síntese de alto-valor. Que cara terá essa era eduardiana da terceira revolução industrial?

Haverá sinais desse futuro na chamada economia do compartilhamento? Em empreendimentos como Airbnb e Uber?

Meu palpite é que eles são o AltaVista da economia de partilha. O teórico social francês André Gorz explorou isso. Disse que é perfeitamente possível imaginar o capitalismo colonizando as relações interpessoais. O Uber é isso – a questão não são os motoristas de taxi, mas as pessoas darem carona umas às outras. Gorz prevê que nos tornaríamos provedores mútuos de microsserviços. Mas disse: “Essa não pode ser uma economia de alto-valor”. Esse é o problema. Você não pode construir um negócio garimpando a reserva da capacidade automobilística de todos, sua capacidade para fazer massagem Reiki, a meia hora sobressalente de cada eletricista. Você pode fazê-lo, e a economia da partilha é a maneira perfeita para fazê-lo, mas isso simplesmente não resulta na era eduardiana, na Belle Epoque. A Belle Epoque será o sequenciamento de genes e a possibilidade de gastar metade do dia jogando squash.

A maioria dos marxistas detestará esta hipótese. Significa dizer, contra Marx, que a humanidade se liberta por si própria, que as pessoas podem descobrir, dentro do capitalismo, recursos mentais para imaginar um novo futuro e ir direto a ele de um modo que, de 1844 em diante, Marx pensou ser impossível.

Você toma emprestada a ideia de “ciclo longo” do economista soviético Nikolai Kondratieff. Ele argumentava que a história do capitalismo pode ser entendida como uma sucessão de ciclos, cada um deles com uma ascensão turbinada por inovação tecnológica com duração de aproximadamente 25 anos, seguida de uma queda com aproximadamente a mesma duração e que geralmente acaba numa depressão. Esses longos ciclos são muito mais longos que os ciclos de negócio identificados com a economia convencional. Por que você considera proveitosa a abordagem de Kondratieff?

Penso que necessitamos de teorias maiores que os ciclos de negócio e menores que a destruição completa do sistema. Quando você aplica a teoria de Kondratieff ao período pós 1945, percebe o sistema funcionando perfeitamente até 1973. E então ele desmorona. O neoliberalismo vem junto e resolve o problema destruindo o poder de barganha do trabalho. Olhar para as coisas através das lentes de Kondratieff força você a colocar a questão: será o neoliberalismo a forma bem sucedida do novo capitalismo ou o fim da linha que prolongou o ciclo por tempo demais? Escolho a segunda alternativa.

Em que parte do ciclo nos encontramos agora?

Estamos bem no fim de um quarto longo ciclo muito prolongado. Estamos na fase de depressão do quarto longo ciclo, que coincidiu com a ascensão tecnológica do quinto. De modo que acredito que os longos ciclos podem sobrepor-se. Penso que estamos numa posição incomum, do ponto de vista histórico. Claramente, a revolução da informação está ai e as bases de um tipo de capitalismo completamente novo podem estar emergindo. O que aconteceu é que as velhas relações sociais da metade passada da onda anterior não irão adiante. Não há Keynes, apenas o reminiscente do velho. Se você olha para Mark Zuckerberg, do Facebook, ou Jeff Bezos, da Amazon, verá que são pessoas agnósticas sobre o futuro de todo o sistema. Eles veem apenas o futuro de sua própria corporação.

Meu uso de Kondratieff é para tentar responder a pergunta sobre onde estamos. As outras periodicidades – o ciclo de negócio de dez anos e a época, de 500 anos – não são suficientes. Não há uma cadeira de Estudos Pós Capitalistas na Universidade de Wolverhampton! Eles estão na infância.

Você mencionou André Gorz. No livro, você cita um trecho em que ele diz, em 1980, que a classe trabalhadora está morta. Se estava certo, quem será o agente de mudança social?

O fato terrível e desafiante pode ser que, se o capitalismo tem um início, um meio e um fim, então o movimento dos trabalhadores também. Em outras palavras, o declínio da luta trabalhista organizada, com base no trabalho manual, especializado, branco e masculino, parece-me partedo que está acontecendo ao capitalismo. Sou alguém que veio deste background e viveu mergulhado nele. Mas argumento que o sujeito histórico que trará o pós-capitalismo já existe e é o indivíduo em rede. A noção de Antonio Negri de “fábrica social” era arrogante nos anos 1970s, porque era muito cedo. Mas me parece ser justa agora – todos nós participamos na criação de marcas, no estabelecimento de escolhas de consumo, estamos alimentando o capitalismo financeiro por meio do nosso uso das finanças. Por isso, consigo comprar a ideia de que existe uma fábrica social. Se quiser desligá-la, deve fazer como William Benbow sugeriu na década de 1820, parando a “grande festa”. Agora, duvido que isso vá acontecer. Portanto, a maneira menos utópica de fazer isso é lutando pelos interesses dos indivíduos em rede, para que eles não tenham suas informações roubadas, arbitrariamente acessadas pelo Estado, para seus estilos de vida poderem florescer, para que eles tenham escolhas.

São tantos os levantes que cobri – Turquia e Brasil são bons exemplos. São assalariados em rede que não aguentam os níveis de corrupção e intromissão em suas vidas – o islamismo na Turquia, corrupção no Brasil. Que tipo de revolução é essa? Há uma discussão entre aqueles que se envolveram com meu livro: se este é o agente, é “por si” ou “em si”, como diria Marx. Seriam essas pessoas capazes de adquirir um nível espontâneo de entendimento da situação que os levasse a tomar algumas das medidas políticas insinuadas neste livro como um caminho a seguir? Neste momento eles ainda não chegaram lá, claramente. O que são é muito hábeis em construir seu espaço pessoal. Podemos zombar disso, por ser em pequena escala. Mas, ao construir um espaço que é simultaneamente econômico e pessoal, penso que esta geração está fazendo algo muito significativo.

Será que os impregno com a mesma inevitabilidade e teleologia com que o marxismo impregnou a classe trabalhadora? Não. No livro, gasto muito tempo desmontando a compreensão marxista de classe trabalhadora. Sempre senti, como alguém que tem essa bagagem, que o kit de ferramentas que o marxismo tinha para descrever a classe trabalhadora era dos menos convincentes – sobretudo para a própria classe trabalhadora.

A certa altura, você altura escreve que o marxismo é uma grande “teoria da história”, porm se equivoca como “teoria da crise”. O que quer dizer com isso?

Quero dizer que é uma grande teoria para analisar a sociedade de classes. Por exemplo, durante a revolução do Egito em 2011, tendo lido O 18 Brumário de Luis Bonaparte, de Marx, eu poderia dizer aos radicais egípcios que, quando o caos se instalasse, as mesmas pessoas que estavam ao lado deles dariam as boas vindas à ditadura. É provável que o capitalismo evocasse algo novo, capaz de impor ordem. O que impôs desordem foi a Irmandade Muçulmana. Ver as mesmas pessoas que tinham apoiado a revolução chamando o general Sisi para derrubar a Irmandade faz sentido, se você leu O 18 Brumário.

Eu perguntei a Alexis Tsipras antes de o Syriza ser eleito: “Quais seriam as ameaças para um governo de esquerda, se você conquistasse o poder?” Contei a ele: “Você se lembra que [Salvador] Allende nomeou [Augusto] Pinochet [no Chile]? Allende nomeou o general para deter um golpe militar. Nós rimos. A questão, você poderia argumentar, é que o governo da Grécia está sendo colonizado pelas mesmas forças que ele imaginou estar ali para combater. Neste momento, a elite empresarial está pensando: “Apenas Tsipras pode governar a Grécia.” Eles prefeririam que ele governasse a Grécia sem a extrema esquerda do próprio partido. Sempre encontro capitalistas gregos que me dizem: “Se Tsipras nos escutasse, a Grécia seria um grande país.”

O marxismo força você a fazer perguntas que não são feitas pelos jornalistas mainstream. Neste momento, a questão mais importante para os gregos é: o que está acontecendo com as massas? As massas não estão derrotadas. Elas não acreditam que Tsipras é Luis Bonaparte. Muitos fazem objeção ao que ele fez, mas não acreditam que ele seja uma força da reação. Eles acreditam no que está dizendo – que está fazendo algo contra a própria vontade e que irá compensar isso com um ataque à oligarquia. Esperam que esse ataque à oligarquia aconteça. Minha observação é de que houve uma grande radicalização, na Grécia. Quando o verão terminar, veremos uma renovação real tanto das lutas de base como do radicalismo do governo.

O foco naquilo que as pessoas estão dizendo nos pubs é algo que interessa muito a dois tipos de pessoas: às forças da polícia secreta e aos marxistas! Eu gasto o maior tempo possível ouvindo as pessoas.

Qual é o desafio jornalístico para ventilar esse tipo de questão? Trabalhar para uma rede de TV como o Channel Four impõe certamente certas restrições ao modo como você opera.

Um bom jornalista de assuntos sociais, que é o que penso ser, irá, na Grécia por exemplo, conversar com primeiros-ministros, ministros de Estado, mas irá também atrás dos estivadores, dos anarquistas. Ainda por cima, você tem somente dois minutos e trinta segundos. Essa é a razão por que gastei os últimos seis meses buscando recursos e realizando um grande documentário que virá a público, espero, no final deste ano, e que conta a história do Syriza desde as bases, a partir das ruas. Queria fazer isso porque no meu trabalho diário nunca poderia contar essa história. É simplesmente impossível.

E sobre a acusação, frequentemente dirigida a você (e feita várias vezes, durante os últimos meses na Grécia) de que, ao operar dessa forma, você excede os limites da propriedade jornalística ou da isenção?

Penso que todos estão errados! A realidade é que o mundo é governado por uma elite dedicada a reforçar, de modo às vezes completamente aberto, a desigualdade e tudo o que a acompanha. Na Grécia, a “austeridade” é uma forma de coerção. Fico feliz de dizer isso porque essa é a minha análise da realidade. Muita gente no Financial Times ou no Wall Street Journal não compartilha dessa minha visão. Mas estou muito feliz, e meus patrões estão permanentemente felizes com o modo como pratico o jornalismo. As pessoas que não gostam devem simplesmente acostumar-se a ele.

Com ideias como as que estão neste livro, a razão de divulgar uma ideia radical é que você não espera que Andy Burnham ou Tim Farron, [dirigentes do Partido Trabalhista britânico] irão telefonar e dizer, “gosto disso, Paul. Vamos incluir na política do partido.” A questão é ser um pouco do contra. Há pensamento único demais. Meu desejo com esse livro é fazer como num workshop de teatro – levar as pessoas a uma experiência fora do corpo, a ficar largadas no chão, na piscina das próprias lágrimas. Então, quando elas voltarem à segurança do grupo, talvez possam fazer alguma coisa mais honesta.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

julho 30, 2015

Albert Camus: 1913-1960. Una Tragedia de la Felicidad

PICICA: "Un film de Jean Daniel y Jöel Calmettes para CFK Productions y Max Armanet el Philippe Cazer" 



Albert Camus: 1913-1960. Una Tragedia de la Felicidad from A Parte Rei on Vimeo.
Un film de Jean Daniel y Jöel Calmettes para CFK Productions y Max Armanet el Philippe Cazer

Un film de Jean Daniel y Jöel Calmettes para CFK Productions y Max Armanet el Philippe Cazer

Epistemologia Feminista, Gênero e História. Margareth Rago. (TERRITÓRIOS DE FILOSOFIA)

Epistemologia Feminista, Gênero e História.
Margareth Rago.*

Introduzindo o debate.

Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era possível uma história das mulheres, num trabalho que se tornou bastante conhecido, no qual expunha os inúmeros problemas decorrentes do privilegiamento de um outro sujeito universal: a mulher. [1] Argumentava que muito se perdia nessa historiografia que, afinal, não dava conta de pensar dinamicamente as relações sexuais e sociais, já que as mulheres não vivem isoladas em ilhas, mas interagem continuamente com os homens, quer os consideremos na figura de maridos, pais ou irmãos, quer enquanto profissionais com os quais convivemos no cotidiano, como os colegas de trabalho, os médicos, dentistas, padeiros ou carteiros. Concluía pela necessidade de uma forma de produção acadêmica que problematizasse as relações entre os sexos, mais do que produzisse análises a partir do privilegiamento do sujeito. Ao mesmo tempo, levantava polêmicas questões: existiria uma maneira feminina de fazer/escrever a história, radicalmente diferente da masculina? E, ainda, existiria uma memória especificamente feminina?

Em relação à primeira questão, Perrot respondia simultaneamente sim e não. Sim, porque entendia que há um modo de interrogação próprio do olhar feminino, um ponto de vista específico das mulheres ao abordar o passado, uma proposta de releitura da História no feminino. Não, em se considerando que o método, a forma de trabalhar e procurar as fontes não se diferenciavam do que ela própria havia feito antes enquanto pesquisadora do movimento operário francês. Entendia, assim, que o fato de ser uma historiadora do sexo feminino não alterava em nada a maneira como estudara e recortara o objeto. Na verdade, sua argumentação deslocava a discussão, deixando de considerar o modo de produzir e narrar a História para focalizar o objeto de estudo, sem pensar, por exemplo, por que ela não poderia ter trabalhado femininamente um objeto ou um tema masculino?[2] Ao mesmo tempo, Perrot destacava as diferenças de registro da memória feminina, mais atenta aos detalhes do que a masculina, mais voltada para as pequenas manifestações do dia-a-dia, geralmente pouco notadas pelos homens.[3]

Mais recentemente, outro prestigiado historiador francês advertiu contra os perigos de se investir a diferença entre os sexos de uma força explicativa universal; de se observar os usos sexualmente diferenciados dos modelos culturais comuns aos dois sexos; de se definir a natureza da diferença que marca a prática feminina; e da incorporação feminina da dominação masculina.[4] Muito preocupado em reconhecer a importância da diferenciação sexual das experiências sociais, Chartier revelava certo constrangimento em relação à incorporação da categoria do gênero, numa atitude bastante comum entre muitos historiadores, principalmente do sexo masculino.

Procuro, neste texto, levantar alguns pontos de reflexão sobre a epistemologia feminista e sua ressonância na historiografia. É da maior importância discutir questões tão candentes e atuais, especialmente num encontro acadêmico que procura perceber as possibilidades abertas para a produção do conhecimento pelas discussões que giram em torno da incorporação da categoria do gênero e que apontam para a sexualização da experiência humana no discurso.

Epistemologia feminista: ensaiando alternativas.

Ao menos no Brasil, é visível que não há nem clarezas, nem certezas em relação a uma teoria feminista do conhecimento. Não apenas a questão é pouco debatida mesmo nas rodas feministas, como, em geral, o próprio debate nos vem pronto, traduzido pelas publicações de autoras do Hemisfério Norte. Há quem diga, aliás, que a questão interessa pouco ao “feminismo dos trópicos”, onde a urgência dos problemas e a necessidade de rápida interferência no social não deixariam tempo para maiores reflexões filosóficas.[5]

Contrariando posições e tentando aproximar-me da questão, gostaria de esboçar algumas idéias. Afinal, se considerarmos que a epistemologia define um campo e uma forma de produção do conhecimento, o campo conceitual a partir do qual operamos ao produzir o conhecimento científico, a maneira pela qual estabelecemos a relação sujeito-objeto do conhecimento e a própria representação de conhecimento como verdade com que operamos, deveríamos prestar atenção ao movimento de constituição de uma (ou seriam várias?) epistemologia feminista, ou de um projeto feminista de ciência.[6] O feminismo não apenas tem produzido uma crítica contundente ao modo dominante de produção do conhecimento científico, como também propõe um modo alternativo de operação e articulação nesta esfera. Além disso, se consideramos que as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural diferenciada da masculina, ao menos até o presente, uma experiência que várias já classificaram como das margens, da construção miúda, da gestão do detalhe, que se expressa na busca de uma nova linguagem, ou na produção de um contradiscurso, é inegável que uma profunda mutação vem-se processando também na produção do conhecimento científico.

Certamente, a questão é muito mais complexa do que estou formulando aqui, já que, de um lado, há outras correntes vanguardistas do pensamento contemporâneo, atuando no sentido das profundas desestabilizações e rupturas teóricas e práticas em curso. Além do mais, seria ingênuo considerar que a teoria feminista rompe absolutamente com os modelos de conhecimento dominantes nas Ciências Humanas, sem reconhecer que se há rupturas, há também muitas permanências em relação à tradição científica. No entanto, quero chamar a atenção especificamente para o aporte feminista às transformações em curso no campo da produção do conhecimento.

Na consideração da existência de uma/várias epistemologia/s feminista/s, valeria então destacarmos, de início, dois pontos: o primeiro aponta para a participação do feminismo na ampla crítica cultural, teórica, epistemológica em curso, ao lado da Psicanálise, da Hermenêutica, da Teoria Crítica Marxista, do Desconstrutivismo e do Pós-modernismo. Esta crítica revela o caráter particular de categorias dominantes, que se apresentam como universais; propõe a crítica da racionalidade burguesa, ocidental, marxista incluso, que não se pensa em sua dimensão sexualizada, enquanto criação masculina, logo excludente. Portanto, denuncia uma racionalidade que opera num campo ensimesmado, isto é, a partir da lógica da identidade e que não dá conta de pensar a diferença. É neste ponto que o feminismo se encontra especialmente com o pensamento pós-moderno, com a crítica do sujeito, com as formulações de Derrida e Foucault, entre outras.[7] O segundo, embutido no primeiro, traz as pro- postas desta nova forma de conceber a produção do conhecimento, do projeto feminista de ciência alternativa, que se quer potencialmente emancipador.

1 – A crítica feminista.

Não é demais reafirmar que os principais pontos da crítica feminista à ciência incidem na denúncia de seu caráter particularista, ideológico, racista e sexista: o saber ocidental opera no interior da lógica da identidade, valendo-se de categorias reflexivas, incapazes de pensar a diferença. Em outras palavras, atacam as feministas, os conceitos com que trabalham as Ciências Humanas são identitários e, portanto, excludentes. Pensa-se a partir de um conceito universal de homem, que remete ao branco heterossexual civilizado do Primeiro Mundo, deixando-se de lado todos aqueles que escapam deste modelo de referência. Da mesma forma, as práticas masculinas são mais valorizadas e hierarquizadas em relação às femininas, o mundo privado sendo considerado de menor importância frente à esfera pública, no imaginário ocidental.

Portanto, as noções de objetividade e de neutralidade que garantiam a veracidade do conhecimento caem por terra, no mesmo movimento em que se denuncia o quanto os padrões de normatividade científica são impregnados por valores masculinos, raramente filóginos. Mais do que nunca, a crítica feminista evidencia as relações de poder constitutivas da produção dos saberes, como aponta, de outro lado, Michel Foucault. Este questionara radicalmente as representações que orientavam a produção do conhecimento científico, tida como o ato de revelação da essência inerente à coisa, a partir do desvendamento do que se considerava a aparência enganosa e ideológica do fenômeno. Especialmente nas Ciências Humanas, chegar à verdade do acontecimento, “compreendê-lo objetivamente” significava retirar a máscara que o envolvia na superfície e chegar às suas profundezas. Foucault criticava, assim, a concepção dominante na cultura ocidental de que o conhecimento, a produção da verdade se daria pela coincidência entre o conceito e a coisa, no movimento de superação da distância entre a palavra e a coisa, entre a aparência e a essência.

A convergência entre a crítica feminista e as formulações dos “filósofos da diferença”, como Foucault, Deleuze, Lyotard, Derrida, entre outros, já foi observada por várias intelectuais.[8] A filosofia pós-moderna propõe, a partir de um solo epistemológico que se constitui fora do marxismo, novas relações e novos modos de operar no processo da produção do conhecimento: a “descrição das dispersões” (Foucault) e não a “síntese das múltiplas determinações” (Marx); revelar o processo artificial de construção das unidades conceituais, temáticas suposta- mente “naturais”: a desconstrução das sínteses, das unidades e das identidades ditas naturais, ao contrário da busca de totalização das multiplicidades. E, fundamentalmente, postula a noção de que o discurso não é reflexo de uma suposta base material das relações sociais de produção, mas produtor e instituinte de “reais”. A produção do conhecimento se daria, assim, por outras vias. Como disse Foucault:

“Mas não se trata aqui de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. Em uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às “coisas”, “despresentificá-las”; (…) substituir o tesouro enigmático das “coisas” anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento histórico;”.[9]

Do mesmo modo, as teóricas feministas propuseram não apenas que o sujeito deixasse de ser tomado como ponto de partida, mas que fosse considerado dinamicamente como efeito das determinações culturais, inserido em um campo de complexas relações sociais, sexuais e étnicas. Portanto, em se considerando os “estudos da mulher”, esta não deveria ser pensada como uma essência biológica pré-determinada, anterior à História, mas como uma identidade construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes. Como se vê, a categoria do gênero encontrou aqui um terreno absolutamente favorável para ser abrigada, já que desnaturaliza as identidades sexuais e postula a dimensão relacional do movimento constitutivo das diferenças sexuais.

Vale ainda notar a aproximação entre as formulações da teoria feminista e a valorização da cultura pelo pós-modernismo, ao contrário da sociedade para o marxismo. Nesse contexto, a História Cultural ganha terreno entre os historiadores, enfatisando a importância da linguagem, das representações sociais culturalmente constituídas, esclarecendo que não há anterioridade das relações econômicas e sociais em relação às culturais. O discurso, visto como prática, passa a ser percebido como a principal matéria prima do historiador, entendendo-se que se ele não cria o mundo, apropria-se deste e lhe proporciona múltiplos significados.[10]

É nesta perspectiva que Joan Scott, conhecida anteriormente por seus trabalhos na área da História Social, ao procurar explicar alternativamente o “problema” da trabalhadora, a divisão sexual do trabalho, a oposição entre o lar e o trabalho, inverte radicalmente o caminho tradicional da interpretação histórica, enfatisando a importância do discurso na constituição de uma questão socio-econômica. A divisão sexual do trabalho é, então, percebida como efeito do discurso. Segundo ela,

“Ao invés de procurar causas técnicas e estruturais específicas, devemos estudar o discurso a partir do qual as divisões do trabalho foram estabeleci- das segundo o sexo. O que deve produzir uma análise crítica mais aprofundada das interpretações históricas correntes.”[11]

Explica que a diferença sexual inscrita nas práticas e nos fatos é sempre construída pelos discursos que a fundam e a legitimam, e não como um reflexo das relações econômicas. Considera insustentável a difundida tese de que a industrialização provocou uma separação entre o trabalho e o lar, obrigando as mulheres a escolher entre o trabalho doméstico e o assalariado. Para ela, o discurso masculino, que estabeleceu a inferioridade física e mental das mulheres, que definiu a partilha “aos homens, a madeira e os metais” e “às mulheres, a família e o tecido” provocou “uma divisão sexual da mão-de-obra no mercado de trabalho, reunindo as mulheres em certos empregos, substituindo-as sempre por baixo de uma hierarquia profissional, e estabelecendo seus salários em níveis insuficientes para sua subsistência.” (idem)

2 – O projeto de ciência feminista ou um modo feminista de pensar?

É dificil falar de uma epistemologia feminista, sem tocar na discussão sobre os perigos da reafirmação do sujeito “mulher” e de todas as cargas constitutivas dessa identidade no imaginário social. Afinal, como já se observou exaustivamente, a questão das relações sexuais e da mulher especificamente nasce a partir das lutas pela emancipação deste sujeito antes definido como “sexo fragil”. É na luta pela visibilidade da “questão feminina”, pela conquista e ampliação dos seus direitos específicos, pelo fortalecimento da identidade da mulher, que nasce um contradiscurso feminista e que se constitui um campo feminista do conhecimento. É a partir de uma luta política que nasce uma linguagem feminista. E, no entanto, o campo teórico que se constitui transforma-se a tal ponto que, assim como a História Cultural, deixa de lado a preocupação com a centralidade do sujeito. Como se de repente os efeitos se desviassem dos objetivos visados no ponto de partida: a categoria relacional do gênero desinveste a preocupação de fortalecimento da identidade mulher, ao contrário do que se visava inicialmente com um projeto alternativo de uma ciência feminista.

Esta é uma das principais dificuldades que emergem, ao se tentar conceitualizar o campo epistemológico em que se funda um conhecimento sobre as mulheres e, agora, sobre as relações de gênero. A categoria do gênero, já observou Joan Scott, não nasce no interior de um sistema de pensamento definido como o conceito de classes em relação ao marxismo. Embora seja apropriada como instrumento analítico extremamente útil, pro- cede de um campo profundamente diverso daquele que tinha como horizonte a emancipação social de determinados setores sociais. Helen Longino observa, ainda, que foi depois do desenvolvimento do pensamento feminista nas áreas da história, antropologia, teoria literária, psicologia e sociologia que se passou a pensar nos conceitos através dos quais se operava. A reflexão filosófica foi posterior à prática teórica.[12]

Isto significa: 1) que houve uma incorporação das questões feministas em diferentes campos da produção do conhecimento científico, de fora para dentro, como por exemplo, na psicanálise ou no campo marxista. Os temas da mulher e do gênero foram incorporados às questões colocadas pela historiografia marxista, sem ter nascido a partir dela, enfrentando, aliás, sérias dificuldades em seu interior. Sabemos como a questão das relações entre os sexos, a história da sexualidade e do corpo, as lutas políticas das mulheres foram secundarizadas no marxismo, tidas como secundárias em relação às questões da luta das classes. Do mesmo modo, a questão étnica e racial. É impossível deixar de pensar na reação que o livro História da Sexualidade, de Foucault teve por parte dos historiadores ligados à História Social, por exemplo. De certo modo, não se pensava nas relações sexuais como dimensão constitutiva da vida em sociedade e como uma das definidoras de nossa forma de operar conceitualmente. A sexualidade era identificado à força instintiva, biológica e, assim, não merecia ser historicizada. Este era o lugar que tinha não apenas no marxismo, mas no imaginário ocidental.

2)         Esta incorporação, portanto, não se deu sem maiores complicações. Porque a entrada dos temas feministas em campos epistemológicos masculinos provocou muitas desestabilizações e, mesmo, rupturas, a despeito das muitas permanências. Os conceitos se mostravam estreitos demais para pensar a diferença, aliás, masculinos, muitas vezes misóginos, precisavam ser transformados, abandonados, questionados, refeitos. Como lembra Elizabeth Grosz, não se tratava afinal de um simples esquecimento das mulheres de um campo neutro e objetivo de conhecimentos: “Sua amnésia é estratégica e serve para assegurar as bases patriarcais do conhecimento.”[13] Além disso, esta entrada, por exemplo, no campo do marxismo só foi possível porque este, ao dar sinais de esgotamento, estava sendo amplamente critica – do, vários conceitos se mostravam insuficientes, e os marxistas partiam em busca de renovações conceituais, temáticas, de atualização.[14]

3)         Esta incorporação remete, ainda, a uma outra questão: a que vem uma epistemologia feminista? Para que necessitamos de uma nova ordem explicativa do mundo? Para melhor controlar o pensamento e o mundo? Uma nova ordem das regras para trazer poder político a um setor que se sente excluído? Sandra Harding pergunta, então, ao lado de muitas outras feministas, se não estaríamos correndo o risco de repor o tipo de relação poder-saber que tanto criticamos:
“Como é que o feminismo pode redefinir totalmente a relação entre saber e poder, se ele está criando uma nova epistemologia, mais um conjunto de regras para controlar o pensamento?”[15]

É possível contra-argumentar lembrando que não há como fugir ao fato de que todas as minorias relativamente organiza- das, e não apenas as mulheres, estão reivindicando uma fatia do bolo da ciência e que nenhum dos grupos excluídos, – negros, africanos, orientais, homossexuais, mulheres, com suas pro- postas de epistemologias alternativas – feminista, terceiro mundista, homossexual, operária – pode hoje reivindicar um lugar de hegemonia absoluta na interpretação do mundo. Além disso, há que se reconhecer as dimensões positivas da quebra das concepções absolutizadoras, totalizadoras, que até recentemente poucos percebiam como autoritárias, impositivas e hierarquizantes. Não há dúvidas de que o modo feminista de pensar rompe com os modelos hierárquicos de funcionamento da ciência e com vários dos pressupostos da pesquisa científica. Se a crítica feminista deve “encontrar seu próprio assunto, seu próprio sistema, sua própria teoria e sua própria voz,” como diz Showalter, é possível dizer que as mulheres estão construindo uma linguagem nova, criando seus argumentos a partir de suas próprias premissas.[16]

Vamos dizer que podemos pensar numa epistemologia feminista, para além do marxismo e da fenomenologia, como uma forma específica de produção do conhecimento que traz a marca especificamente feminina, tendencialmente libertária, emancipadora. Há uma construção cultural da identidade feminina, da subjetividade feminina, da cultura feminina, que está evidenciada no momento em que as mulheres entram em massa no mercado, em que ocupam profissões masculinas e em que a cultura e a linguagem se feminizam. As mulheres entram no espaço público e nos espaços do saber transformando inevitavelmente estes campos, recolocando as questões, questionando, colocando novas questões, transformando radicalmente. Sem dúvida alguma, há um aporte feminino/ista específico, diferenciador, energizante, libertário, que rompe com um enquadramento conceitual normativo. Talvez daí mesmo a dificuldade de nomear o campo da epistemologia feminista.

Vejamos alguns aspectos desse aporte: o questionamento da produção do conhecimento entendida como processo racional e objetivo para se atingir a verdade pura e universal, e a busca de novos parâmetros da produção do conhecimento. Aponta, então, para a superação do conhecimento como um processo meramente racional: as mulheres incorporam a dimensão subjetiva, emotiva, intuitiva no processo do conhecimento, questio nando a divisão corpo/mente, sentimento/razão. Simmel já fizera esta observação, em 1902, ao indagar sobre as possíveis contribuições da “Cultura Feminina” num mundo masculino, e Helen Longino complementa:

“Em busca de parâmetros (groundings) conceituais e filosóficos alternativos, muitos pensadores abraçaram modos de análise que rejeitam a dicotomização entre razão e paixão, entre saber e sentimento.”[17]

Para ela, o pensamento feminista trouxe a subjetividade como forma de conhecimento. “We all see feelingly”, afirma, o que se opõe radicalmente ao ideal de conhecimento objetivo trazido das Ciências Naturais para as Ciências Humanas. Entrando num mundo masculino, possuído por outros, a mulher percebe que não detém a linguagem e luta por criar uma, ou ampliar a existente: aqui se encontra a principal fonte do aporte feminista à produção do conhecimento, à construção de novos significados na interpretação do mundo.

Portanto, o feminismo propõe uma nova relação entre teoria e prática. Delineia-se um novo agente epistêmico, não isolado do mundo, mas inserido no coração dele, não isento e imparcial, mas subjetivo e afirmando sua particularidade. Ao contrário do desligamento do cientista em relação ao seu objeto de conhecimento, o que permitiria produzir um conhecimento neutro, livre de interferências subjetivas, clama-se pelo envolvimento do sujeito com seu objeto. Uma nova idéia da produção do conhecimento: não o cientista isolado em seu gabinete, testando seu método acabado na realidade empírica, livre das emoções desviantes do contato social, mas um processo de conheci- mento construído por indivíduos em interação, em diálogo crítico, contrastando seus diferentes pontos de vista, alterando suas observações, teorias e hipóteses, sem um método pronto. Reafirma-se a idéia de que o caminho se constrói caminhando e interagindo.

Defendendo o relativismo cultural, questiona também a noção de que este conhecimento visa atingir a verdade pura, essencial. Reconhece a particularidade deste modo de pensa- mento e abandona a pretensão de ser a única possibilidade de interpretação. Concordando com Sandra Harding: “Uma forma de resolver o dilema seria dizer que a ciência e a epistemologia feministas terão um valor próprio ao lado, e fazendo parte integrante, de outras ciências e epistemologias – jamais como superiores às outras.”(p.23)

Enfatiza a historicidade dos conceitos e a coexistência de temporalidades múltiplas. Nesta direção, a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias mostra a confluência das te dências historiográficas contemporâneas com as inquietações feministas; defendendo a “instabilidade das categorias feministas” (Sandra Harding), fala em hermenêutica crítica e no historismo:

“a historiografia feminista segue os mesmos parâmetros (que a desconstrução de Derrida, a arqueologia da Foucault, a teoria crítica marxista, a história social e conceitual dos historistas alemães, a historiografia das mentalidades), pois tem seu caminho metodológico aberto para a possibilidade de construir as diferenças e de explorar a diversidade dos papéis informais femininos.”[18]

Os estudos feministas inovam, então, na maneira como trabalham com as multiplicidades temporais, descartando a idéia de linha evolutiva inerente aos processos históricos.

Feminismo e História

Seria interessante, por fim, pensar como os deslocamentos teóricos produzidos pelo feminismo têm repercutido na produção historiográfica. A emergência de novos temas, de novos objetos e questões, especialmente ao longo da década de setenta deu maior visibilidade às mulheres enquanto agentes históricos, incialmente a partir do padrão masculino da História Social, extremamente preocupada com as questões da resistência social e das formas de dominação política.[19] Este quadro ampliou-se, posteriormente, com a explosão dos temas femininos da Nouvelle Histoire, como bruxaria, prostituição, loucura, aborto, parto, maternidade, saúde, sexualidade, a história das emoções e dos sentimentos, entre outros.

É claro que muitos discordarão da divisão sexual dos temas históricos acima proposta, já que há muitas outras dimensões implicadas na ampliação do leque temático, principalmente a crise da “historiografia da Revolução” e a redescoberta da Escola dos Annales. Entretanto, poucos poderão negar que a entrada desses novos temas se fêz em grande parte pela pressão crescente das mulheres, que invadiram as universidades e criaram seus próprios núcleos de estudo e pesquisa, a partir dos anos setenta. Feministas assumidas ou não, as mulheres forçam a inclusão dos temas que falam de si, que contam sua própria história e de suas antepassadas e que permitem entender as origens de muitas crenças e valores, de muitas práticas sociais frequentemente opressivas e de inúmeras formas de desclassificação e estigmatização. De certo modo, o passado já não nos dizia e precisava ser reinterrogado a partir de novos olhares e problematizações, através de outras categorias interpretativas, criadas fora da estrutura falocêntrica especular.

A descoberta da origem da “mãe moderna” a partir do modelo rousseauísta, proposta por Elisabeth Badinter, por exemplo, foi fundamental para se reforçar o questionamento do padrão de maternidade que havia vigorado inquestionável até os anos 60 e reforçar a luta feminista pela conquista de novos direitos; a genealogia dos conceitos da prostituição, da homossexualidade e da perversão sexual, entre outros, foi extremamente importante enquanto reforçava a desconstrução prática das inúmeras formas de normatização.[20] A história do corpo feminino trouxe à luz as inúmeras construções estigmatizadoras e misóginas do poder médico, para o qual a constituição física da mulher por si só inviabilizaria sua entrada no mundo dos negócios e da política. O questionamento das mitologias científicas sobre sua suposta natureza, sobre a questão da maternidade, do corpo e da sexualidade foi fundamental em termos da legitimação das transformações libertadoras em curso.

O campo das experiências históricas consideradas dignas de serem narradas ampliou-se consideravelmente e juntamente com a emergência dos novos temas de estudo, isto é, com a visibilidade e dizibilidade que ganharam inúmeras práticas sociais, culturais, religiosas, antes silenciadas, novos sujeitos femininos foram incluídos no discurso histórico, partindo-se inicialmente das trabalhadoras e militantes, para incluir-se, em seguida, as bruxas, as prostitutas, as freiras, as parteiras, as loucas, as domésticas, as professoras, entre outras. A ampliação do conceito de cidadania, o direito à história e à memória não se processavam apenas no campo dos movimentos sociais, passando a ser incorporados no discurso, ou melhor, no próprio âmbito do processo da produção do conhecimento.

Para tanto, novos conceitos e categorias tiveram de ser introduzidos a partir das perguntas levantadas pelo feminismo e dos deslocamentos teóricos e práticos provocados. Por que se privilegiavam os acontecimentos da esfera pública e não os constitutivos de uma história da vida privada? Por que se desprezava a cozinha, em relação à sala, e a casa em relação à rua? Onde uma história dos segredos, das formas de circulação e comunicação femininas, das fofocas, das redes interativas construídas nas margens, igualmente fundamentais para a construção da vida em sociedade? Quais as possibilidades de uma História no feminino? Não apenas a história das mulheres, mas a história contada no registro feminino?[21]

Neste contexto, ficou evidente a precariedade e estreiteza do instrumental conceitual disponível para registrar as práticas sociais que passavam a ser percebidas, embora existentes desde sempre. Para o historiador formado na tradição marxista, especialista na recuperação histórica das lutas sociais e da dominação de classes, como falar das práticas desejantes, com que conceitos poderia construir uma história do amor, da sexualidade, do corpo ou do medo? Como trabalhar a questão da religiosidade e das reações diante da vida e da morte?

No casos dos estudos feministas, o sucesso da categoria do gênero se explica, em grande parte, por ter dado uma resposta interessante ao impasse teórico existente, quando se questionava a lógica da identidade e se decretava o eclipse do sujeito. Categoria relacional, como observa Joan Scott, encontrou campo extremamente favorável num momento de grande mudança das referências teóricas vigentes nas Ciências Humanas, e em que a dimensão da Cultura passava a ser privilegiada sobre as de- terminações da Sociedade. Assim como outras correntes de pensamento, a teoria feminista propunha que se pensasse a construção cultural das diferenças sexuais, negando radicalmente o determinismo natural e biológico. Portanto, a dimensão simbólica, o imaginário social, a construção dos múltiplos senti- dos e interpretações no interior de uma dada cultura passavam a ser priorizados em relação às explicações econômicas ou políticas.

Em termos da historiografia, estas concepções se aproximam das formuladas pela História Cultural. Esta põe em evidência a necessidade de se pensar o campo das interpretações culturais, a construção dos inúmeros significados sociais e culturais pelos agentes históricos, as práticas da representação, deixando muito claro que o predomínio prolongado da História Social, de tradição marxista, secundarizou demais o campo da subjetividade e da dimensão simbólica. Exceção feita a E.P. Thompson, que aliás se tornou extremamente famoso apenas na década de oitenta, grande parte dos estudos históricos de tendência marxista mantinham-se presos ao campo da política e da economia, este sendo considerado o “lugar do real” e da inteligibilidade da história. Apenas nas últimas décadas, passou-se a falar incisivamente em imaginário social, nas representações sociais, em subjetividade e, para tanto, a História precisou buscar aproximações com a Antropologia, a Psicanálise e a Literatura. Além disso, na medida em que o discurso passou a ser dotado de positividade, os historiadores também perceberam que era inevitável interrogar o próprio discurso e dimensionar suas formas narrativas e interpretativas.

Em relação aos estudos feministas, e a despeito das inúmeras polêmicas em curso, vale notar que a categoria do gênero abre, ainda, a possibilidade da constituição dos estudos sobre os homens, num campo teórico e temático bastante renovado e radicalmente redimensionado. Após a “revolução feminista” e a conquista da visibilidade feminina, após a constituição da área de pesquisa e estudos feministas, consagrada academicamente em todo o mundo, os homens são chamados a entrar, desta vez, em um novo solo epistêmico. É assim que emergem os estudos históricos, antropológicos, sociológicos – interdisciplinares – sobre a masculinidade, com enorme aceitação. Cada vez mais, portanto, crescem os estudos sobre as relações de gênero, sobre as mulheres, em particular, ao mesmo tempo em que se constitui uma nova área de estudos sobre os homens, não mais percebidos enquanto sujeitos universais.

Sem dúvida alguma, os resultados das inúmeras perspectivas abertas têm sido dos mais criativos e instigantes. O olhar feminista permite reler a história da Colonização no Brasil, no século 16, a exemplo do que realiza a historiadora Tânia Navarro Swain, desconstruindo as imagens e representações construídas pelos viajantes sobre as formas de organização dos indígenas, sobre a sexualidade das mulheres, supostamente fogosas e promíscuas, instituindo sua amoralidade. Num excelente trabalho genealógico, a historiadora revela como os documentos foram apropriados e reinterpretados pela historiografia masculina, através de conceitos extremamente misóginos, cristalizando-se imagens profundamente negativas a respeito dos primeiros habitantes da terra, considerados para sempre incivilizados e inca- pazes de cidadania.

Já Maria Izilda Matos e Fernando A. Faria, estudando as composições musicais de Lupicínio Rodrigues, a partir da categoria do gênero, descortinam as formas de construção cultural das referências identitárias da feminilidade e da masculinidade, nas décadas de quarenta e cinquenta, dominantes até recente- mente. A partir da análise das letras de músicas produzidas pelo famoso compositor gaúcho, podem visualizar não apenas as experiências femininas, mas “seu universo de relações com o mundo masculino”, numa proposta bastante enriquecedora e inovadora.

Finalizando… 

As possibilidades abertas para os estudos históricos pelas teorias feministas são inúmeras e profundamente instigantes: da descontrução dos temas e interpretações masculinos às novas propostas de se falar femininamente das experiências do cotidiano, da micro-história, dos detalhes, do mundo privado, rom- pendo com as antigas oposições binárias e de dentro, buscando respaldo na Antropologia e na Psicanálise, incorporando a dimensão subjetiva do narrador.

Na historiografia feminista, vale notar, a teoria segue a experiência: esta não é buscada para comprovar aquela, aprioristicamente proposta. Opera-se uma deshierarquização dos acontecimentos: todos se tornam passíveis de serem historicizados, e não apenas as ações de determinados sujeitos sociais, sexuais e étnicos das elites econômicas e políticas, ou de outros setores sociais, como o proletariado-masculino-branco, tido como sujeito privilegiado por longo tempo, na produção acadêmica. Aliás, as práticas passam a ser privilegiadas em relação aos sujeitos sociais, num movimento que me parece bastante democratizador. Assim, e como diria Paul Veyne, o que deve ser privilegiado pelo historiador passa a ser dado pela temática que ele recorta e constrói, e não por um consenso teórico exterior à problemática, como acontecia antes quando se trabalhava com o conceito de modo de produção, por exemplo, ou ainda, quando a preocupação maior com o passado advinha de suas possibilidades em dar respostas à busca da Revolução. A realidade já não cede à teoria.

Enfim, parece que já não há mais dúvidas de que as mulheres sabem inovar na reorganização dos espaços físicos, sociais, culturais e aqui, pode-se complementar, nos intelectuais e científicos. E o que me parece mais importante, sabem inovar libertariamente, abrindo o campo das possibilidades interpretativas, propondo múltiplos temas de investigação, formulando novas problematizações, incorporando inúmeros sujeitos sociais, construindo novas formas de pensar e viver.

Notas.
  1. Michelle Perrot – Une histoire des femmes est-elle possible? Paris: Rivage, 1984.
  2. Lembre-se que M.Perrot escrevera um importante estudo no campo da História Social: les ouvriers en grève. France 1871-1890. Mouton, 1974.
  3. M. Perrot – “Práticas da Memória Feminina”, Revista Brasileira de História, S. Paulo: Anpuh/Marco Zero, vol.9, no.18,1989.
  4. Roger Chartier – “Diferenças entre os sexos e dominação simbólica”, Cadernos PAGU, no.4, Unicamp, 1995.
  5. Uma instigante discussão sobre o tema, encontra-se em Roberto Cintra Martins – “Filosofia da Ciência e feminismo: uma ligação natural”, in: Lucila Scavone (org.)- Tecnologias reprodutivas. Gênero e Ciência. S.Paulo: UNESP, 1996.
  6. A esse respeito, veja-se Linda Alcoff e Elizabeth Potter (orgs.) – Feminist epistemologies. New York and London: Routledge, 1993.
  7. Vide a respeito Mary McCanney Gergen (ed.) – O pensamento feminista e a estrutura do conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/EdUNB, 1993; Cláudia Costa Lima – “O leito de Procusto: gênero, linguagem e as teorias feministas”, Cadernos PAGU, no.2, Unicamp, 1993.
  8. Veja-se, por ex., Jane Flax – “Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista”, in Heloísa Buarque de Hollanda – Pósmodernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
  9. Michel Foucault – Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p.54
  10. Keith Jenkins – Re-thinking history. London: Routledge, 1991.
  11. Joan W. Scott – “La Travailleuse”, in G. Duby e M.P errot (orgs.) – Histoire des femmes, vol.4. Paris: Plon, 1991, p.428.
  12. Helen E. Longino – “To See Feelingly: Reason, Passion, and Dialogue in Feminist Philosophy”, in Donna C. Stanton e A. Stewart (org.) Feminisms in the academy, Ann Arbor: The University of Michigan Press,1995, p.21.
  13. Elizabeth Grosz – “Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of Reason”, in L. Alcoff e E. Potter, op. cit. p.206.
  14. Veja-se a propósito Donna Haraway – “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. UNICAMP, Cadernos PAGU, no.5, 1995, P.14.
  15. Sandra Harding – “A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Feminista”, in Revista de Estudos Feministas, vol.1, no.1, 1993, Rio de Janeiro CIEC/ECO/UFRJ, p.19.
  16. Elaine Showalter – “A crítica feminista no território selvagem”, in: Heloísa Buarque de Hollanda (org.) – Tendências e impasses. O Feminismo como Crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.29.
  17. G. Simmel – “Cultura Feminina”, in Filosofia do amor. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1993; Helen Longino, idem, p.20.
  18. Maria Odila Leite da Silva Dias – “Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano”, in Albertina de O. Costa e Cristina Bruschini (orgs.) – Uma questão de gênero. RJ.: Editora Rosa dos
  19. Margareth Rago – “As mulheres na Historiografia Brasileira”, in Zélia Lopes (org.) – A história em debate, SP: Editora da UNESP, 1991.
  20. Vejam-se as discussões de Jurandir Freire Costa – “O referente da identidade homossexual”, in Richard Parker e Regina M. Barbosa (orgs.) – Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
  21. Tânia Navarro Swain – “Feminino/Masculino no Brasil do século XVI: um estudo historiográfico”,1995, (mimeo); Maria Izilda S. de Mattos e Fernando A. de Faria – Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues: O Feminino, O Masculino e Suas Relações. RJ: Bertrand Brasil, 1996.

*A presente narrativa foi originalmente publicada em: RAGO, Margareth. Epistemologia Feminista, Gênero e História. In: Pedro, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)- MASCULINO, FEMININO, PLURAL. Florianópolis: Ed.Mulheres,1998

Fonte: Territórios de Filosofia