PICICA: "As muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias
possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre
sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente (e hoje possivelmente de
formas mais explícitas do que antes). Elas são também, renovadamente,
reguladas, condenadas ou negadas. Na verdade, desde os anos sessenta, o
debate sobre as identidades e as práticas sexuais e de gênero vem se
tornando cada vez mais acalorado, especialmente provocado pelo movimento
feminista, pelos movimentos de gays e de lésbicas e sustentado, também,
por todos aqueles e aquelas que se sentem ameaçados por essas
manifestações. Novas identidades sociais tornaram-se visíveis,
provocando, em seu processo de afirmação e diferenciação, novas divisões
sociais e o nascimento do que passou a ser conhecido como “política de identidades” (Stuart Hall, 1997)."
Pedagogias da Sexualidade.
Guacira Lopes Louro.*
Como jovem mulher, eu sabia que a sexualidade era um assunto privado,
alguma coisa da qual deveria falar apenas com alguém muito íntimo e,
preferentemente, de forma reservada. A sexualidade — o sexo, como se
dizia — parecia não ter nenhuma dimensão social; era um assunto pessoal e
particular que, eventualmente, se confidenciava a uma amiga próxima.
“Viver” plenamente a sexualidade era, em princípio, uma prerrogativa da
vida adulta, a ser partilhada com um parceiro do sexo oposto. Mas, até
chegar esse momento, o que se fazia? Experimentava-se, de algum modo, a
sexualidade? Supunha-se uma “preparação” para vivê-la mais tarde? Em que
instâncias se “aprendia” sobre sexo? O que se sabia? Que sentimentos se
associavam a tudo isso?Certamente as respostas a essas questões dependiam (e dependem) de inúmeros fatores. Geração, raça, nacionalidade, religião, classe, etnia seriam algumas das marcas que poderiam ajudar a ensaiar uma resposta. De modo especial, as profundas transformações que, nas últimas décadas, vêm afetando múltiplas dimensões da vida de mulheres e de homens e alterando concepções, as práticas e as identidades sexuais teriam de ser levadas em consideração. Jovens ocidentais de grandes cidades do final do século XX terão, sem dúvida, outras respostas ( seguramente, outras perguntas) se comparados com a jovem que eu fui e com jovens de outras épocas, outras regiões…
As muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente (e hoje possivelmente de formas mais explícitas do que antes). Elas são também, renovadamente, reguladas, condenadas ou negadas. Na verdade, desde os anos sessenta, o debate sobre as identidades e as práticas sexuais e de gênero vem se tornando cada vez mais acalorado, especialmente provocado pelo movimento feminista, pelos movimentos de gays e de lésbicas e sustentado, também, por todos aqueles e aquelas que se sentem ameaçados por essas manifestações. Novas identidades sociais tornaram-se visíveis, provocando, em seu processo de afirmação e diferenciação, novas divisões sociais e o nascimento do que passou a ser conhecido como “política de identidades” (Stuart Hall, 1997).
Se as transformações sociais que construíam novas formas de relacionamento e estilos de vida já se mostravam, nos anos 60, profundas e perturbadoras, elas se acelerariam ainda mais, nas décadas seguintes, passando a intervir em setores que haviam sido, por muito tempo, considerados imutáveis, trans-históricos e universais. As novas tecnologias reprodutivas, as possibilidades de transgredir categorias e fronteiras sexuais, as articulações corpo-máquina a cada dia desestabilizam antigas certezas; implodem noções tradicionais de tempo, de espaço, de “realidade”; subvertem as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de morrer. Jornais e revistas informam, agora, que um jovem casal decidiu congelar o embrião que havia gerado, no intuito de adiar o nascimento de seu filho para um momento em que disponha de melhores condições para criá-lo; contam que mulheres estão dispostas a abrigar o sêmen congelado de um artista famoso já morto; revelam a batalha judicial de indivíduos que, submetidos a um conjunto complexo de intervenções médicas e psicológicas, reclamam uma identidade civil feminina para completar o processo de transexualidade que empreenderam. Conectados pela Internet, sujeitos estabelecem relações amorosas que desprezam dimensões de espaço, de tempo, de gênero, de sexualidade e estabelecem jogos de identidade múltipla nos quais o anonimato e a troca de identidade são freqüentemente utilizados (Kenway, 1998). Embaladas pela ameaça da AIDS e pelas possibilidades cibernéticas, práticas sexuais virtuais substituem ou complementam as práticas face-a-face. Por outro lado, adolescentes experimentam, mais cedo, a maternidade e a paternidade; uniões afetivas e sexuais estáveis entre sujeitos do mesmo sexo se tornam crescentemente visíveis e rotineiras; arranjos familiares se multiplicam e se modificam…
Todas essas transformações afetam, sem dúvida, as forma
s de se viver e de se construir identidades de gênero e sexuais. Na verdade, tais transformações constituem novas formas de existência para todos, mesmo para aqueles que, aparentemente, não as experimentam de modo direto. Elas permitem novas soluções para as indagações que sugeri e, obviamente, provocam novas e desafiantes perguntas. Talvez seja possível, contudo, traçar alguns pontos comuns para sustentação das respostas. O primeiro deles remete-se à compreensão de que a sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas é social e política. o segundo, ao fato de que a sexualidade é “aprendida”, ou melhor, é construída, ao longo de toda a vida, de muitos modos, por todos os sujeitos.
Compondo identidades
A sexualidade, afirma Foucault, é um “dispositivo histórico” (1988). Em outras palavras, ela é uma invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a partir de múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem “verdades”. Sua definição de dispositivo sugere a direção e a abrangência de nosso olhar:
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas (…) o dito e o não-dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (Foucault, 1993, p.244).
É, então, no âmbito da cultura e da história que se definem as identidades sociais (todas elas e não apenas as identidades sexuais e de gênero, mas também as identidades de raça, de nacionalidade, de classe, etc). Essas múltiplas e distintas identidades constituem os sujeitos, na medida em que esses são interpelados a partir de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. Reconhecer-se numa identidade supõe, pois, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência. Nada há de simples ou de estável nisso tudo, pois essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo tempo, lealdades distintas, divergentes ou até contraditórias. Somos sujeitos de muitas identidades. Essas múltiplas identidades sociais podem ser, também, provisoriamente atraentes e, depois, nos parecerem descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e abandonadas. Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes. Portanto, as identidades sexuais e de gênero (como todas as identidades sociais) têm o caráter fragmentado, instável, histórico e plural, afirmado pelos teóricos e teóricas culturais.
Admite-se (embora com algumas resistências) que um operário venha a se transformar num patrão ou que uma camponesa se torne empresária. Representados de formas novas, ele ou ela provavelmente também passam a se perceber como outros sujeitos, com outros interesses e estilos de vida. Aceita-se a transitoriedade ou a contingência de identidades de classe. A situação torna-se mais complicada, no entanto, se um processo semelhante ocorre com relação às identidades de gênero e sexuais. Uma notícia de jornal [1] pode servir de exemplo: numa pequena cidade da Alemanha, o prefeito, algum tempo depois de eleito, assume publicamente uma nova identidade de gênero. Ele agora apresenta-se como mulher e comunica sua intenção de completar essa transformação através de processos médicos, especialmente cirúrgicos. A cidade inicia um movimento para destitui-lo pois, na opinião de grande parte da população, ele é agora “outra” pessoa. Seus eleitores sentem-se enganados e com o direito de anular sua escolha, pois ele transgrediu uma fronteira considerada intransponível e proibida. Uma mudança que, aparentemente, estaria mais ligada à sua vida pessoal é questionada de modo radical, supondo-se que ela afetará sua atividade de governante. Curiosamente, no entanto, não se pensa em destituir um homem ou uma mulher públicos que abandonem as idéias ou as proposições que defenderam e pelas quais foram eleitos e se vinculem a partidos ou grupos diametralmente opostos. Ainda que, nesse caso, as mudanças possam ter um efeito muito mais direto e imediato na função pública, a questão é banalizada. Quando uma figura de destaque assume, publicamente, sua condição de gay ou de lésbica também é freqüente que seja vista como protagonizando uma fraude; como se esse sujeito tivesse induzido os demais a um erro, a um engano. A admissão de uma nova identidade sexual ou de uma nova identidade de gênero é considerada uma alteração essencial, uma alteração que atinge a “essência” do sujeito.
Pela centralidade que a sexualidade adquiriu nas modernas sociedades ocidentais, parece ser difícil entendê-la como tendo as propriedades de fluidez e inconstância. Freqüentemente nos apresentamos (ou nos representamos) a partir de nossa identidade de gênero e de nossa identidade sexual. Essa parece ser, usualmente, a referência mais “segura” sobre os indivíduos. Conforme diz Jeffrey Weeks (1995, p.89), podemos reconhecer, teoricamente, que nossos desejos e interesses individuais e nossos múltiplos pertencimentos sociais possam nos “empurrar” em várias direções; no entanto, nós “tememos a incerteza, o desconhecido, a ameaça de dissolução que implica não ter uma identidade fixa”; por isso, tentamos fixar uma identidade, afirmando que o que somos agora é o que, na verdade, sempre fomos. Precisamos de algo que dê um fundamento para nossas ações e, então, construímos nossas “narrativas pessoais”, nossas biografias de uma forma que lhes garanta coerência. Para Weeks é aqui, justamente, que o corpo se torna a referência central:
Num mundo de fluxo aparentemente constante, onde os pontos fixos estão se movendo ou se dissolvendo, seguramos o que nos parece mais tangível, a verdade de nossas necessidades e desejos corporais. (…) O corpo é visto como a corte de julgamento final sobre o que somos ou o que podemos nos tornar. Por que outra razão estamos tão preocupados em saber se os desejos sexuais, sejam hetero ou homossexuais, são inatos ou adquiridos? Por que outra razão estamos tão preocupados em saber se o comportamento generificado corresponde aos atributos físicos? Apenas porque tudo o mais é tão incerto que precisamos do julgamento que, aparentemente, nossos corpos pronunciam (Weeks, 1995, p.90-91).
Nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por força, a identidade. E, aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si; em conseqüência, esperamos que o corpo dite a identidade, sem ambigüidades nem inconstância. Aparentemente se deduz uma identidade de gênero, sexual ou étnica de “marcas” biológicas; o processo é, no entanto, muito mais complexo e essa dedução pode ser (e muitas vezes é) equivocada. Os corpos são significados pela cultura e, continuamente, por ela alterados. Talvez devêssemos nos perguntar, antes de tudo, como determinada característica passou a ser reconhecida (passou a ser significada) como uma “marca” definidora da identidade; perguntar, também, quais os significados que, nesse momento e nessa cultura, estão sendo atribuídos a tal marca ou a tal aparência. Pode ocorrer, além disso, que os desejos e as necessidades que alguém experimenta estejam em discordância com a aparência de seu corpo. Weeks (1995) lembra que o corpo é inconstante, que suas necessidades e desejos mudam. O corpo se altera com a passagem do tempo, com a doença, com mudanças de hábitos alimentares e de vida, com possibilidades distintas de prazer ou com novas formas de intervenção médica e tecnológica. Num tempo de AIDS, por exemplo, a preocupação com o exercício do “sexo seguro” vem sugerindo novos modos de encontrar prazer corporal, alterando práticas sexuais ou produzindo outras formas de relacionamento entre os sujeitos. Nesse final de milênio, usando a metáfora do ciborgue cunhada por Donna Harraway (1991), teríamos de admitir que muitas fronteiras foram transgredidas: há agora “potentes fusões e perigosas possibilidades” que tornam problemáticos os dualismos de mente e corpo, animal e máquina, humano e animal. Os corpos não são, pois, tão evidentes como usualmente pensamos. Nem as identidades são uma decorrência direta das “evidências” dos corpos.
De qualquer forma, investimos muito nos corpos. De acordo com as mais diversas imposições culturais, nós os construímos de modo a adequá-los aos critérios estéticos, higiênicos, morais, dos grupos a que pertencemos. As imposições de saúde, vigor, vitalidade, juventude, beleza, força são distintamente significadas, nas mais variadas culturas e são também, nas distintas culturas, diferentemente atribuídas aos corpos de homens ou de mulheres. Através de muitos processos, de cuidados físicos, exercícios, roupas, aromas, adornos, inscrevemos nos corpos marcas de identidades e, conseqüentemente, de diferenciação. Treinamos nossos sentidos para perceber e decodificar essas marcas e aprendemos a classificar os sujeitos pelas formas como eles se apresentam corporalmente, pelos comportamentos e gestos que empregam e pelas várias formas com que se expressam.
É fácil concluir que nesses processos de reconhecimento de identidades inscreve-se, ao mesmo tempo, a atribuição de diferenças. Tudo isso implica a instituição de desigualdades, de ordenamentos, de hierarquias, e está, sem dúvida, estreitamente imbricado com as redes de poder que circulam numa sociedade. O reconhecimento do “outro”, daquele ou daquela que não partilha dos atributos que possuímos, é feito a partir do lugar social que ocupamos. De modo mais amplo, as sociedades realizam esses processos e, então, constroem os contornos demarcadores das fronteiras entre aqueles que representam a norma (que estão em consonância com seus padrões culturais e aqueles que ficam fora dela, às suas margens. Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão e essa passa a ser a referência que não precisa mais ser nomeada. Serão os “outros” sujeitos sociais que se tornarão “marcados”, que se definirão e serão denominados a partir dessa referência. Desta forma, a mulher é representada como “o segundo sexo” e gays e lésbicas são descritos como desviantes da norma heterossexual.
Ao classificar os sujeitos, toda sociedade estabelece divisões e atribui rótulos que pretendem fixar as identidades. Ela define, separa e, de formas sutis ou violentas, também distingue e discrimina. Tomaz Tadeu da Silva (1998) afirma:
Os diferentes grupos sociais utilizam a representação para forjar a sua identidade e as identidades dos outros grupos sociais. Ela não é, entretanto, um campo equilibrado de jogo. Através da representação se travam batalhas decisivas de criação e imposição de significados particulares: esse é um campo atravessado por relações de poder. (…) o poder define a forma como se processa a representação; a representação, por sua vez, tem efeitos específicos, ligados, sobretudo, à produção de identidades culturais e sociais, reforçando, assim, as relações de poder.
Distintas e divergentes representações podem, pois, circular e produzir efeitos sociais. Algumas delas, contudo, ganham uma visibilidade e uma força tão grandes que deixam de ser percebidas como representações e são tomadas como sendo a realidade. Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, “normais” (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião etc.) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também falam pelos “outros” (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos. Por tudo isso, podemos afirmar que as identidades sociais e culturais são políticas. As formas como elas se representam ou são representadas, os significados que atribuem às suas experiências e práticas é, sempre, atravessado e marcado por relações de poder. A “política de identidade”, antes referida, ganha sentido nesse contexto, pois, como diz Tomaz T. Silva (1998), é através dela que “os grupos subordinados contestam precisamente a normalidade e a hegemonia” das identidades tidas como “normais”.
Esses mecanismos operam, fortemente, no campo da sexualidade. Aqui, uma forma de sexualidade é generalizada e naturalizada e funciona como referência para todo o campo e para todos os sujeitos. A heterossexualidade é concebida como “natural” e também como universal e normal. Aparentemente supõe-se que todos os sujeitos tenham uma inclinação inata para eleger como objeto de seu desejo, como parceiro de seus afetos e de seus jogos sexuais alguém do sexo oposto. Conseqüentemente, as outras formas de sexualidade são constituídas como antinaturais, peculiares e anormais. É curioso observar, no entanto, o quanto essa inclinação, tida como inata e natural, é alvo da mais meticulosa, continuada e intensa vigilância, bem como do mais diligente investimento.
Educando corpos, produzindo a sexualidade “normal”
Corrigan (1991, p.200) destaca sua entrada numa grande escola particular inglesa: “O primeiro dia ficou impresso com horror para o resto de minha vida”, diz ele, “as regras de Aske (o nome da escola) permitiam — para bem produzir o menino — formas legitimadas de violência exercidas por alguns garotos (sênior ou maiores sob alguns aspectos) sobre os “novos”. Conforme ele conta, a “produção do menino” era um projeto amplo, integral, que se desdobrava em inúmeras situações e que tinha como alvo uma determinada forma de masculinidade. Era uma masculinidade dura, forjada no esporte, na competição e numa violência consentida. Na percepção de Corrigan, todos os investimentos eram feitos no corpo e sobre o corpo. Nas escolas, segundo ele (p.210), os corpos “são ensinados, disciplinados, medidos, avaliados, examinados, aprovados (ou não), categorizados, magoados, coagidos, consentidos…” A passagem pela adolescência, numa rígida escola inglesa, deixaria para sempre marcas no seu corpo.
Minhas lembranças escolares parecem menos duras. Mas hoje tenho consciência de que a escola também deixou marcas expressivas em meu corpo e me ensinou a usá-lo de uma determinada forma. Numa escola pública brasileira predominantemente feminina, os métodos foram outros, os resultados pretendidos eram diversos. Ali nos ensinavam a sermos dóceis, discretas, gentis, a obedecer, a pedir licença, a pedir desculpas. Certamente também nos ensinaram, como a Corrigan, as ciências, as letras, as artes que deveríamos manejar para sobreviver socialmente. Mas essas informações e habilidades foram transmitidas e atravessadas por sutis e profundas imposições físicas. Jovens escolarizados, aprendemos, tanto ele quanto eu, a suportar o cansaço e a prestar atenção ao que professores e professoras diziam; a utilizar códigos para debater, persuadir, vencer; a empregar os gestos e os comportamentos adequados e distintivos daquelas instituições. Os propósitos desses investimentos escolares eram a produção de um homem e de uma mulher “civilizados”, capazes de viver em coerência e adequação nas sociedades inglesa e brasileira, respectivamente.
A ação pedagógica mais explícita, aquela que encheria as páginas dos planejamentos e dos relatórios educacionais, voltava-se, muito provavelmente, para a descrição, em detalhes, das características que constituíam a qualificação “civilizado”, ou seja, voltava-se de forma manifesta para os atributos lógicos e intelectuais que, supostamente, seriam adquiridos na escola, através de práticas de ensino específicas. O investimento mais profundo, contudo, o investimento de base da escolarização se dirigia para o que era substantivo: para a formação de homens e mulheres “de verdade”. Em que consistia isso? Existiam (e, sem dúvida, existem) algumas referências e critérios para discernir e decidir o quanto cada menino ou menina, cada adolescente e jovem estava se aproximando ou se afastando da “norma” desejada. Por isso, possivelmente, as marcas permanentes que atribuímos às escolas não se refletem nos conteúdos programáticos que elas possam nos ter apresentado mas sim se referem a situações do dia-a-dia, a experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior, com colegas, com professoras e professores. As marcas que nos fazem lembrar, ainda hoje, dessas instituições têm a ver com as formas como construímos nossas identidades sociais, especialmente nossa identidade de gênero e sexual.
Uma de minhas lembranças mais fortes e recorrentes a respeito de minha vida escolar está ligada à importância que era atribuída àquela escola como “escola padrão”. Fazia parte dessa representação uma engenhosa combinação de tradição e modernidade, na qual o peso da tradição prevalecia, seguramente. De algum modo parecia que cabia a nós, estudantes, carregar o peso daquela instituição. Talvez se esperasse que nós fôssemos, também, uma espécie de estudante “padrão”. Lembro-me de ouvir, sempre, a mensagem de que, vestidas com o uniforme da escola, nós “éramos a escola”! Isso implicava a obrigação de manter um comportamento “adequado”, respeitoso e apropriado, em qualquer lugar, a qualquer momento. O uniforme — saia azul pregueada e blusa branca com um laço azul-marinho — era, ao mesmo tempo, cobiçado por ser distintivo da instituição e desvirtuado por pequenas transgressões. A saia, mantida num comprimento “decente” no interior da escola, era suspendida ao sair dali, enrolada na cintura de forma a conseguir um estilo “mini”, mais condizente com a moda; o laço descia (do botão mais alto da blusa rente à gola onde deveria estar) alguns centímetros, de forma a proporcionar um decote mais atraente (o número de botões dependia da ousadia de cada uma). Essas subversões, quando descobertas por alguma funcionária ou professora da escola, em qualquer lugar da cidade, eram alvo de repreensões individuais ou coletivas, particulares ou comunicadas aos pais e mães etc. (O olhar panóptico ia muito além das fronteiras do prédio escolar!) A preocupação com o uniforme, defendida pela escola como uma forma de democratizar os trajes de suas estudantes e poupar gastos com roupas, era reiterada cotidianamente, com implicações que transitavam pelos terrenos da higiene, da estética e da moral. Apesar de submetidas a seu uso obrigatório, a maioria de nós tentava introduzir alguma marca pessoal que pudesse afirmar “esta sou eu”. Adolescentes, estávamos cada vez mais conscientes de que podíamos inscrever em nossos corpos indicações do tipo de mulher que éramos ou que desejávamos ser. O cinema, a televisão, as revistas e a publicidade (que também exerciam sua pedagogia) nos pareciam guias mais confiáveis para dizer como era uma mulher desejável e tentávamos, o quanto era possível, nos aproximar dessa representação. A escola, por seu lado, pretendia desviar nosso interesse para outros assuntos, adiando, a todo preço, a atenção sobre a sexualidade.
Essa dessexualização do espaço escolar atingia também nossas professoras e professores. Ao ler o livro de Debbie Epstein e Richard Johnson, Schooling sexualities (1998), deparei-me com uma situação muito semelhante à que existia em minha antiga escola. Relatando uma pesquisa numa instituição inglesa atual, eles assim descrevem uma assembléia escolar:
Os professores e professoras chegam com seus formulários e tomam seus lugares ao longo das paredes do hall (diversamente das meninas, eles/as não têm de se sentar de pernas cruzadas no chão) observam as estudantes com um olhar disciplinar. Eles e elas também vestem uma espécie de uniforme. Os poucos homens trajam calças cinza de flanela e camisas de cores lisas com uma gravata e uma jaqueta (mas não um paletó). As mulheres se vestem de cores variadas, mas de estilos semelhantes. Estão vestidas de modo a parecerem “respeitáveis”. Calçam sapatos práticos, mas nada muito feminino. Não há saltos altos nem botas aqui. Ao invés disso, sapatos baixos ou de saltos moderados. Não há nenhuma “última moda”, nenhum indicativo de estilo heterossexual, gay ou lésbico entre os professores e as professoras (Epstein e Johnson, 1998, p.111).
As mulheres que habitam minhas memórias escolares também se assemelham a esse quadro, com um agravante para o meu (o nosso) olhar juvenil: um número expressivo delas era “solteirona”! A palavra tinha um peso muito forte, nos anos sessenta. Representava não apenas uma mulher que não era casada, mas uma mulher virgem, que não havia sido tocada. A atmosfera religiosa que cercava a vida escolar acentuava sua apresentação discreta e austera e vários outros indícios nos sinalizavam que essas eram mulheres sós. Sobre algumas delas circulavam histórias de noivos que haviam morrido antes do casamento e isso explicava por que essas se vestiam constantemente de luto, sem qualquer traço de maquiagem. Lembro que eram um tema recorrente de nossas conversas: imaginávamos como viviam e criávamos apelidos e códigos que nos permitiam falar delas de forma cifrada, só compreensível para quem pertencia ao grupo. Mas quem desejaria se parecer com elas? A figura era, certamente, muito pouco atraente para nós, reforçada, ainda, pela representação social da professora-solteirona. Como tornar, então, o magistério uma opção sedutora, numa escola que, afinal, pretendia formar professoras? Em que medida decidir por essa profissão nos obrigaria a carregar alguns desses traços? Como subverter tudo isso? As poucas professoras mais jovens ou casadas (preferentemente as que detinham os dois atributos) ganhavam, geralmente, nossa admiração. Elas acenavam para uma outra representação de magistério (e, principalmente, de mulher) que nos parecia mais “moderna”.
Não pretendo atribuir à escola nem o poder nem a responsabilidade de explicar as identidades sociais, muito menos de determiná-las de forma definitiva. É preciso reconhecer, contudo, que suas proposições,, suas imposições e proibições fazem sentido, têm “eleitos de verdade”, constituem parte significativa das histórias pessoais. É verdade que muitos indivíduos não passam pela instituição escolar e que essa instituição, resguardadas algumas características comuns, é diferenciada internamente. As sociedades urbanas, no entanto, ainda apostam muito na escola, criando mecanismos legais e morais para obrigar que todos enviem seus filhos e filhas à instituição e que esses ali permaneçam alguns anos. Essas imposições, mesmo quando irrealizadas, têm conseqüências. Afinal, passar ou não pela escola, muito ou pouco tempo, é uma das distinções sociais. Os corpos dos indivíduos devem, pois, apresentar marcas visíveis desse processo; marcas que, ao serem valorizadas por essas sociedades, tornam-se referência para todos.
Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem, provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo e o espaço de uma forma particular. Mãos, olhos e ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente desatentos ou desajeitados para outras tantas.
Na investigação de uma escola religiosa masculina (Louro, 1995), ouvi as lembranças de um homem sobre seu passado escolar:
… uma coisa que foi impresso em mim, lá, foi primeiro pensar e depois falar. O controle, o autocontrole emocional… controlar-se para não explodir era uma coisa em que eles insistiam muito, porque os nossos modelos eram sempre os santos… Eles liam muito para gente vidas de santos. Então, lembro de uma coisa que eu treinava e que foi uma coisa que eles imprimiram em mim… Como é que tu podes ter o autocontrole? É aquela história: tu contas até 10 antes de explodir, não é? (…) então, se eu chegasse em casa louco para contar alguma coisa, eu devia, primeiro, me “segurar” um pouco. (Conta até 10 antes de contar o que tu queres contar!) Eu me segurava, me segurava, segurava, segurava e aí, depois, eu contava. Eu treinava isso, era um exercício! Aquilo foi uma coisa que calou em mim e acho que ficou impressa em mim até hoje… Eu sou uma pessoa assim, muito controlada… Claro que eu também tenho as minhas explosões como todo mundo, mas, de um modo geral, eu aprendi a me controlar e aprendi a primeiro ouvir e depois falar… (A., depoimento, 1995).
As tecnologias utilizadas pela escola alcançam, aqui, o resultado pretendido: o auto- disciplinamento, o investimento continuado e autônomo do sujeito sobre si mesmo. Com a cautela que deve cercar todas as afirmações pretensamente gerais, é possível dizer que a masculinidade forjada nessa instituição particular almejava um homem controlado, capaz de evitar “explosões” ou manifestações impulsivas e arrebatadas. O homem “de verdade”, nesse caso, deveria ser ponderado, provavelmente contido na expressão de seus sentimentos. Conseqüentemente, podemos supor que a expressão de emoções e o arrebatamento seriam considerados, em contraponto, características femininas.
Alguns estudiosos afirmam que são comuns, entre rapazes e homens, em muitas sociedades, os tabus sobre a expressão de sentimentos, o culto a uma espécie de “insensibilidade” ou dureza.
Nas suas relações de amizade, podem ser acentuadas a camaradagem e a lealdade; no entanto, são mais ou menos freqüentes os obstáculos culturais à intimidade e à troca de confidências entre eles (Kimmei e Messner, 1992). Certamente esses não devem ser considerados “atributos” masculinos (o que seria próprio de uma argumentação essencialista) e, na verdade, inúmeras situações atestam laços muito estreitos de amizade entre meninos, rapazes e homens adultos (Morrei, 1994). A competição, no entanto, que é freqüentemente enfatizada na formação masculina, parece dificultar que meninos e jovens “se abram” com seus colegas, expondo suas dificuldades e fraquezas. Para um garoto (mais do que para uma garota) tornar-se um adulto bem- sucedido implica vencer, ser o melhor ou, pelo menos, ser “muito bom” em alguma área. O caminho mais óbvio, para muitos, é o esporte (no caso brasileiro, o futebol), usualmente também agregado como um interesse masculino “obrigatório”.
Para construir um corpo vitorioso no esporte, colocam-se em ação técnicas, exercícios, adestramentos, disputas, enfrentamentos. Talvez por isso o mesmo homem que me contou suas memórias escolares responsabilize seu corpo por sua vocação intelectual. No decorrer da longa entrevista que tivemos, ele repetiu, várias vezes, que “era miúdo”, que tinha um corpo “frágil”, pouco adequado para o esporte. Sua escola, como grande parte das escolas masculinas, enfatizava o esporte e, neste terreno, suas chances de sucesso pareciam pequenas. Ele “escolheu”, então, investir no campo intelectual. Ali estava sua oportunidade de vencer e de tornar-se o melhor. Por ser “miúdo”, ele também usou “calças curtas” por muito tempo (“afinal era mais barato, pois gastava menos pano e mesmo que ralasse os joelhos não rasgava a calça”). A situação, que persistiu mesmo quando ele já estava mais “adiantado”, deixava-o “louco de vergonha”, pois, arremata: “todos usavam calça comprida, menos eu!” O corpo parecia mantê-lo criança quando já era um adolescente, prejudicando seu embate com os parceiros de sua idade.
Para Foucault (1993, p.146), “o domínio e a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo”. Historicamente, os sujeitos tornam-se conscientes de seus corpos na medida em que há um investimento disciplinar sobre eles. Quando o poder é exercido sobre nosso corpo, “emerge inevitavelmente a reivindicação do próprio corpo contra o poder” (Foucault, 1993, p.146). Buscamos, todos, formas de resposta, de resistência, de transformação ou de subversão para as imposições e os investimentos disciplinares feitos sobre nossos corpos.
Num corpo de menina, é um evento marcante a chegada da primeira menstruação. A primeira menstruação está carregada de sentidos, que (mais uma vez) são distintos segundo as culturas e a história. Joan Brumberg (1998) escreveu uma “história íntima das garotas americanas”, onde demonstra as profundas transformações que foram vividas pelas adolescentes, no trato e na produção de seu corpo, nos últimos séculos. A primeira menstruação passou, neste período, de tema privado para público (tornando-se um interesse do mercado); o momento, antes tratado fundamentalmente como um marco de “passagem” da infância para a vida adulta, era vinculado, estreita e diretamente, à sexualidade e à capacidade reprodutiva das mulheres; mais tarde, no entanto, com o advento dos absorventes e de outros produtos industrializados e com a medicalização da menstruação, de certa forma essas questões ficaram secundarizadas e ganharam maior destaque a higiene e a proteção do corpo, a limpeza e a aparência. A expectativa e a ansiedade pela primeira menstruação, a comparação com as colegas de escola estão entre as lembranças significativas de muitas de nós. Como desejávamos participar das rodas de conversa sobre as minúcias desses períodos! Elas serviam, de certo modo, para fazer uma separação entre quem ainda era menina e aquelas que já eram “moças”. Essas conversas representavam, quase sempre, a porta de entrada para muitas outras confidências e discussões sobre a sexualidade e se constituíam num espaço privilegiado para construção de saberes sobre nossos corpos e desejos. Na leitura de diários de jovens das mais distintas gerações (conforme a pesquisa de Joan Brumberg), são notáveis as mudanças na forma de registro desse momento, no tipo de linguagem utilizada para fazer referências ao corpo e à sexualidade. Difere também o apelo à mãe, a outras mulheres, a amigas ou, mais recentemente, a busca do supermercado mais próximo para adquirir o absorvente. A reclusão e a imobilidade de tempos antigos são substituídas pelo estímulo à atividade e à higiene dos tempos atuais. A extensa ladainha de cólicas, dores de cabeça e cuidados parece pouco adequada para o modelo de mulher dinâmica vendido pela publicidade. No entanto, em nossa cultura, para muitas mulheres hoje adultas, não é possível esquecer as antigas recomendações; recomendações que chegavam até mesmo a impedir de “lavar a cabeça” ou “tomar banho frio” durante o período menstrual. Nas escolas, essa era uma justificativa aceita para dispensa das aulas de educação física e muitas garotas faziam uso desse expediente todos os meses, pois, afinal, nesses dias estavam “doentes”. As professoras também tinham direito à falta mensal justificada, supostamente devido ao fato de que suas condições para dar aulas “naqueles dias” poderiam não ser adequadas.
Todas essas práticas e linguagens constituíam e constituem sujeitos femininos e masculinos; foram — e são — produtoras de “marcas”. Homens e mulheres adultos contam como determinados comportamentos ou modos de ser parecem ter sido “gravados” em suas histórias pessoais. Para que se efetivem essas marcas, um investimento significativo é posto em ação: família, escola, mídia, igreja, lei participam dessa produção. Todas essas instâncias realizam uma pedagogia, fazem um investimento que, freqüentemente, aparece de forma articulada, reiterando identidades e práticas hegemônicas enquanto subordina, nega ou recusa outras identidades e práticas; outras vezes, contudo, essas instâncias disponibilizam representações divergentes, alternativas, contraditórias. A produção dos sujeitos é um processo plural e também permanente. Esse não é, no entanto, um processo do qual os sujeitos participem como meros receptores, atingidos por instâncias externas e manipulados por estratégias alheias. Ao invés disso, os sujeitos estão implicados, e são participantes ativos na construção de suas identidades. Se múltiplas instâncias sociais, entre elas a escola, exercitam uma pedagogia da sexualidade e do gênero e colocam em ação várias tecnologias de governo, esses processos prosseguem e se completam através de tecnologias de autodisciplinamento e autogoverno que os sujeitos exercem sobre si mesmos. Na constituição de mulheres e homens, ainda que nem sempre de forma evidente e consciente, há um investimento continuado e produtivo dos próprios sujeitos na determinação de suas formas de ser ou “jeitos de viver” sua sexualidade e seu gênero.
A despeito de todas as oscilações, contradições e fragilidades que marcam esse investimento cultural, a sociedade busca, intencionalmente, através de múltiplas estratégias e táticas, “fixar” uma identidade masculina ou feminina “normal” e duradoura. Esse intento articula, então, as identidades de gênero “normais” a um único modelo de identidade sexual: a identidade heterossexual (Louro, 1997, 1998). Nesse processo, a escola tem uma tarefa bastante importante e difícil. Ela precisa se equilibrar sobre um fio muito tênue: de um lado, incentivar a sexualidade “normal” e, de outro, simultaneamente, contê-la. Um homem ou uma mulher “de verdade” deverão ser, necessariamente, heterossexuais e serão estimulados para isso. Mas a sexualidade deverá ser adiada para mais tarde, para depois da escola, para a vida adulta. É preciso manter a “inocência” e a “pureza” das crianças (e, se possível, dos adolescentes), ainda que isso implique no silenciamento e na negação da curiosidade e dos saberes infantis e juvenis sobre as identidades, as fantasias e as práticas sexuais. Aqueles e aquelas que se atrevem a expressar, de forma mais evidente, sua sexualidade são alvo imediato de redobrada vigilância, ficam “marcados” como figuras que se desviam do esperado, por adotarem atitudes ou comportamentos que não são condizentes com o espaço escolar. De algum modo são indivíduos “corrompidos” que fazem o contraponto da criança inocente e pura. Debbie Epstein e Richard Johnson (1998, p.119) referem-se a uma situação dessas, não por acaso tendo como alvo uma garota, cuja aparência é considerada precocemente sensual no contexto da instituição pesquisada. Segundo os pesquisadores, ela é “sexualizada como parte do processo de dessexualização da escola”. Alguns indivíduos, especialmente garotas, dizem eles, tornam-se “indivíduos míticos” e podem “carregar a sexualidade negada (ou mesmo reprimida) que está presente/”ausente” por toda parte na escola”. Essa garota é, então, vista como um “caso triste” e, curiosamente, ao mesmo tempo em que a instituição a considera “uma vítima”, a trata como “culpada”. Ao ser estigmatizada, ela exerce, sobre todos, uma espécie de fascinação. “Constituindo-a como o “outro”, eles (professores, professoras, direção) também a constróem como um objeto de desejo” (Epstein e Johnson, 1998, p.120).
A evidência da sexualidade na mídia, nas roupas, nos shopping-centers, nas músicas, nos programas de TV e em outras múltiplas situações experimentadas pelas crianças e adolescentes vem alimentando o que alguns chamam de “pânico moral”. No centro das preocupações estão os pequenos. Paradoxalmente, as crianças são ameaçadas por tudo isso e, ao mesmo tempo, consideradas muito “sabidas” e, então, “perigosas”, pois passam a conhecer e a fazer, muito cedo, coisas demais. Para muitos, elas não são, do ponto de vista sexual, “suficientemente infantis” (Epstein e Johnson, 1998, p.120).
Redobra-se ou renova-se a vigilância sobre a sexualidade, mas essa vigilância não sufoca a curiosidade e o interesse, conseguindo, apenas, limitar sua manifestação desembaraçada e sua expressão franca. As perguntas, as fantasias, as dúvidas e a experimentação do prazer são remetidas ao segredo e ao privado. Através de múltiplas estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditando que as questões da sexualidade são assuntos privados, deixamos de perceber sua dimensão social e política.
As coisas se complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com interesses ou desejos distintos da norma heterossexual. A esses restam poucas alternativas: o silêncio, a dissimulação ou a segregação. A produção da heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da homossexualidade. Uma rejeição que se expressa, muitas vezes, por declarada homofobia.
Esse sentimento, experimentado por mulheres e homens, parece ser mais fortemente incutido na produção da identidade masculina. Em nossa cultura, a manifestação de afetividade entre meninos e homens é alvo de uma vigilância muito mais intensa do que entre as meninas e mulheres. De modo especial, as expressões físicas de amizade e de afeto entre homens são controladas, quase impedidas, em muitas situações sociais. Evidentemente elas são claramente codificadas e, como qualquer outra prática social, estão em contínua transformação.
Máirtín Mac an Ghaill (1994, p.1) conta uma experiência que teve quando era professor de uma escola secundária inglesa. Um aluno, logo após saber que havia passado nos exames, entregou a Máirtín, no pátio da escola, um buquê de flores. Rapidamente o fato se espalhou e professores e estudantes passaram a se referir à situação através de piadas heterossexistas. Em conseqüência, o estudante acabou se envolvendo numa briga para se “defender” e o diretor chamou o professor à sua sala. Ali, conta Máirtín,
… ele me informou que eu tinha ido longe demais dessa vez. Quando comecei a me defender, dizendo que não poderia ser responsabilizado pela briga, o diretor me interrompeu, perguntando sobre o que eu estava falando. Imediatamente me dei conta da significação simbólica do que acontecera no pátio: a troca de flores entre dois homens era institucionalmente muito mais ameaçadora do que a violência física de uma luta masculina.
A homofobia funciona como mais um importante obstáculo à expressão de intimidade entre homens. É preciso ser cauteloso e manter a camaradagem dentro de seus limites, empregando apenas gestos e comportamentos autorizados para o “macho”. No caso relatado por Máirtín Mac an Ghaill adicionava-se, ainda, uma dimensão racial ao episódio: nesta escola, onde os professores eram predominantemente brancos, os rapazes e homens muçulmanos eram percebidos como sendo “intrinsecamente mais sexistas” e, assim, os professores ficaram “confusos”, conforme diz o autor, quando viram um jovem muçulmano entregar flores ao seu professor.
Embora a homofobia seja muitas vezes evidente em nossa sociedade, isso não impede que, em inúmeras situações e em distintas idades, meninos e homens constituam grupos extremamente “fechados” e os vivam de forma muito intensa. Equipes de futebol; parcerias de acampamentos, caçadas e pescarias; rodas de chope ou de jogos de carta e bilhar se constituem, freqüentemente, em redutos exclusivamente masculinos nos quais a presença de mulheres não é admitida. Nessas fraternidades são vividas, muitas vezes, situações em que os corpos podem ser comparados, admirados e tocados, de formas “justificadas” e “legítimas”. Nos banheiros e vestiários escolares, os garotos aprendem, desde cedo, a conviver com a nudez coletiva. O mesmo não acontece com as garotas, em situações semelhantes. Mesmo que, atualmente, sejam notáveis as transformações no comportamento de meninas e jovens mulheres. Ainda que a nudez entre elas seja mais visível e comum), a arquitetura de escolas e clubes usualmente ainda prevê, nos setores femininos, cabines ou biombos para garantir a privacidade.
Meninos e meninas aprendem, também desde muito cedo, piadas e gozações, apelidos e gestos para dirigirem àqueles e àquelas que não se ajustam aos padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem.
Em seu livro Praticamente normal. Uma discussão sobre o homossexualismo, Andrew Sullivan (1996) fala da história de seu “segredo”, das inúmeras situações que lhe ensinaram a necessidade de esconder, desde criança, seus desejos e interesses. Ele conta como aprendeu, também, a fazer piadas sobre homossexuais, “a mover as alavancas sociais da hostilidade contra o homossexualismo antes mesmo de ter a mais vaga noção quanto ao que elas se referiam“( Sullivan, 1996, p. 15).
Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse “contagiosa”, cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser interpretada como uma adesão a tal prática ou identidade. O resultado é, muitas vezes, o que Peter McLaren (1995) chamou de um apartheid sexual, isto é, uma segregação que é promovida tanto por aqueles que querem se afastar dos/das homossexuais como pelos/as próprios/as.
A maior visibilidade de gays e lésbicas, bem como a expressão pública dos movimentos sexuais, coloca, hoje, essas questões em bases novas: por um lado, em determinados círculos, são abandonadas as formas de desprezo e de rejeição e incorporados alguns traços de comportamento, estilo de vida, moda, roupas ou adornos característicos dos grupos homossexuais; por outro lado, essa mesma visibilidade tem acirrado as manifestações antigays e antilésbicas, estimulado a organização de grupos hiper-masculinos (geralmente violentos) e provocado um revigoramento de campanhas conservadoras de toda ordem.
De um modo geral, salvo raras exceções, o/a homossexual admitido/a é aquele ou aquela que disfarça sua condição, “o/a enrustido/a”. De acordo com a concepção liberal de que a sexualidade é uma questão absolutamente privada, alguns se permitem aceitar “outras” identidades ou práticas sexuais desde que permaneçam no segredo e sejam vividas apenas na intimidade. O que efetivamente incomoda é a manifestação aberta e pública de sujeitos e práticas não-heterossexuais. Revistas, moda, bares, filmes, música, literatura, enfim todas as formas de expressão social que tornam visíveis as sexualidades não-legitimadas são alvo de críticas, mais ou menos intensas, ou são motivo de escândalo. Na política de identidade que atualmente vivemos serão, pois, precisamente essas formas e espaços de expressão que passarão a ser utilizados como sinalizadores evidentes e públicos dos grupos sexuais subordinados. Aí se trava uma luta para expressar uma estética, uma ética, um modo de vida que não se quer “alternativo” (no sentido de ser “o outro”), mas que pretende, simplesmente, existir pública e abertamente, como os demais.
Richard Johnson (1996, p.176), seguindo Eve Sedgwick, fala do closet (essa forma escondida e “enrustida” de viver a sexualidade não hegemônica) entendendo-o como “uma epistemologia”, ou seja, como um “modo de organizar o conhecimento/ignorância”. Analisando como essa epistemologia tem marcado nossas concepções de sexualidade, ele se refere ao conjunto de oposições binárias com que operamos, especialmente nas escolas, e cita os seguintes pares: homossexual/heterossexual; feminino/masculino; privado/público; segredo/revelação; ignorância/conhecimento; e inocência/iniciação”. Sua argumentação agrega mais uma dicotomia: closeting/educação (o que talvez pudesse ser traduzido por ocultamento ou segredo/educação), para discutir o quanto as escolas — que, supostamente, devem ser um local para o conhecimento — são, no tocante à sexualidade, um local de ocultamento. A escola é, sem dúvida, um dos espaços mais difíceis para que alguém “assuma” sua condição de homossexual ou bissexual. Com a suposição de que só pode haver um tipo de desejo sexual e que esse tipo — inato a todos — deve ter como alvo um indivíduo do sexo oposto, a escola nega e ignora a homossexualidade (provavelmente nega porque ignora) e, desta forma, oferece muito poucas oportunidades para que adolescentes ou adultos assumam, sem culpa ou vergonha, seus desejos. O lugar do conhecimento, mantém-se, com relação à sexualidade, como o lugar do desconhecimento e da ignorância. As memórias e as práticas atuais podem contar da produção dos corpos e da construção de uma linguagem da sexualidade; elas nos apontam as estratégias e as táticas hoje institucionalizadas das “Identidades sexuais e de gênero. Na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, é exercida uma pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras. Muitas outras instâncias sociais, como a mídia, a igreja, a justiça etc. também praticam tal pedagogia, seja coincidindo na legitimação e denegação de sujeitos, seja produzindo discursos distantes e contraditórios.
Gradativamente, vai se tornando visível e perceptível a afirmação das identidades historicamente subjugadas em nossa sociedade. Mas essa visibilidade não se exerce sem dificuldades. Para aqueles e aquelas que se reconhecem nesse lugar, “assumir” a condição de homossexual ou de bissexual é um ato político e, nas atuais condições, um ato que ainda pode cobrar o alto preço da estigmatização.
Curiosamente, no entanto, as instituições e os indivíduos precisam desse “outro”. Precisam da identidade “subjugada” para se afirmar e para se definir, pois sua afirmação se dá na medida em que a contrariam e a rejeitam. Assim, podemos compreender por que as identidades sexuais “alternativas”, mesmo quando excluídas ou negadas, permanecem ativas (e necessárias): elas se constituem numa referência para a identidade heterossexual; diante delas e em contraposição a elas a identidade hegemônica se declara e se sustenta.
Por outro lado, na medida em que várias identidades — gays, lésbicas, queers, bissexuais, transexuais, travestis — emergem publicamente, elas também acabam por evidenciar, de forma muito concreta, a instabilidade e a fluidez das identidades sexuais. E isso é percebido como muito desestabilizador e “perigoso”. A sexualidade “é tecida na rede de todos os pertencimentos sociais que abraçamos”, como lembra Weeks (1995, p.88), ela não pode ser compreendida de forma isolada. Nossas identidades de raça, gênero, classe, geração ou nacionalidade estão imbricadas com nossa identidade sexual e esses vários marcadores sociais interferem na forma de viver a identidade sexual; eles são, portanto, perturbados ou atingidos, também, pelas transformações e subversões da sexualidade. Temos, pois, que concordar com a afirmação de Weeks de que a emergência dessas “identidades sexuais de oposição” (como ele as denomina), “coloca em questão a fixidez das identidades herdadas de todos os tipos, não apenas sexual”. Para os grupos conservadores tudo isso parece muito subversivo e ameaça atingir e perverter, também, conceitos, valores e “modos de vida” ligados às identidades nacionais, étnicas, religiosas, de classe. Para os grupos que estão comprometidos com a mudança sexual também são colocados desafios, como lembra Weeks, na medida em que essas identidades de oposição acenam para o movimento constante. Como articular, então, as lutas? Como “fixar” os pontos comuns? Os sujeitos deslizam e escapam das classificações em que ansiámos por localizá-los. Multiplicam-se categorias sexuais, borram-se fronteiras e, para aqueles que operam com dicotomias e demarcações bem definidas, essa pluralização e ambigüidade abre um leque demasiadamente amplo de arranjos sociais.
Os discursos sobre sexualidade evidentemente continuam se modificando e se multiplicando. Outras respostas e resistências, novos tipos de intervenção social e política são inventados. Atualmente, renovam-se os apelos conservadores, buscando formas novas, sedutoras e eficientes de interpelar os sujeitos (especialmente a juventude) e engajá-los ativamente na recuperação de valores e de práticas tradicionais. Esses discursos não são, obviamente, absolutos nem únicos; muito pelo contrário, agora, mais do que antes, outros discursos emergem e buscam se impor; estabelecem-se controvérsias e contestações, afirmam-se, política e publicamente, identidades silenciadas e sexualmente marginalizadas. Aprendemos, todos, em meio a (e com) essas disputas.
Questionado sobre sua História da sexualidade, Foucault respondeu, certa vez, que não pretendia escrever uma arqueologia das fantasias sexuais, mas sim uma arqueologia do discurso sobre a sexualidade e que esse discurso era “uma relação entre o que fazemos, o que estamos obrigados a fazer, o que nos está permitido fazer, o que nos está proibido fazer no campo da sexualidade; e o que está proibido, permitido, ou é obrigatório dizer sobre nosso comportamento sexual” (FOUCAULT, 1996, p.96). Acho que foi disso que procurei tratar aqui: das formas e das instâncias onde aprendemos esse discurso, de nossa apropriação de uma linguagem da sexualidade que nos diz, aqui, agora, sobre o que falar e sobre o que silenciar, o que mostrar e o que esconder, quem pode falar e quem deve ser silenciado. Procurei mostrar, também, que podemos (e devemos) duvidar dessas verdades e certezas sobre os corpos e a sexualidade, que vale a pena pôr em questão as formas como eles costumam ser pensados e as formas como identidades e práticas têm sido consagradas ou marginalizadas. Ao fazer a história ou as histórias dessa pedagogia, talvez nos tornemos mais capazes de desarranjá-la, reinventá-la e torná-la plural.
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Notas.
- A notícia, divulgada através da Associated Press, refere-se ao prefeito Norbert Michael Lindner, da cidade de Quellendorf, na Alemanha, que comunicou sua decisão de mudar de gênero, tornando-se mulher, em setembro de 98.
Fonte: Territórios de Filosofia
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