julho 24, 2015

Francisco, o papa “anticapitalista”. Por Pablo Stefanoni (UniNômade)

PICICA: “Reconhecemos seriamente que as coisas não vão bem num mundo em que há tantos sem-terra, tantas famílias sem-teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas em sua dignidade? (…) Reconhecemos que as coisas não vão bem quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob permanente ameaça? — perguntou o papa — e respondeu a si próprio: “então se reconhecemos isso, digamos sem medo: queremos uma mudança.”

Francisco, o papa “anticapitalista”

Por Pablo Stefanoni, em 19/7, no La Vanguardia | Trad. Bruno Cava

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“Se o capitalismo tem Obama, nós temos Francisco.” O líder do emblemático MST, João Pedro Stédile, não economizou no entusiasmo ao fechar a reunião de cúpula de movimentos sociais em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Foi ali que Bergoglio emitiu um discurso crítico ao capitalismo atual a ponto de o El País de Madrid intitular uma coluna sobre o papa da seguinte maneira: “Francisco nunca simpatizou com os teólogos da libertação. Hoje ele parece um deles.” Nesse conclave, que integra a visita à Bolívia — depois de ir ao Equador e antes de seguir ao Paraguai — diversos movimentos bolivianos e do exterior participaram.

“Reconhecemos seriamente que as coisas não vão bem num mundo em que há tantos sem-terra, tantas famílias sem-teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas em sua dignidade? (…) Reconhecemos que as coisas não vão bem quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob permanente ameaça? — perguntou o papa — e respondeu a si próprio: “então se reconhecemos isso, digamos sem medo: queremos uma mudança.”

Francisco sustentou que existem “múltiplas exclusões e injustiças, em cada atividade laboral, em cada bairro, em cada território” e que, entre elas, há um “fio invisível que une cada uma das exclusões: podemos reconhecê-lo?” — perguntou. “Essas realidades destrutivas respondem a um sistema que se globalizou, que impôs a lógica das ganâncias a qualquer custo sem pensar na exclusão social ou na destruição da natureza”. “Digamos sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, mudança de estruturas, este sistema já não se aguenta mais. Não o aguentam mais os campesinos, não o aguentam os trabalhadores, não o aguentam os povos, não o aguenta a irmã Mãe terra, como dizia São Francisco”. Várias vezes, Francisco foi interrompido por gritos de “Viva o papa”. O seu discurso — ao lado de Evo Morales e de vários dirigentes sociais — foi basicamente político, as citações aos evangelhos foram escassas e as referências à mudança numerosas e sintonizadas com o ambiente. Várias vezes falou da Mãe Terra, chamou os movimentos populares de “poetas sociais”, se referiu à Pátria Grande, ao novo colonialismo e criticou o “sistema excludente”, a concentração dos meios de comunicação (que promovem o colonialismo ideológico), os Tratados de Livre Comércio e as medidas de austeridade, a “terceira guerra mundial em prestações” e resgatou a “fé revolucionária contra o ídolo dinheiro”. O objetivo é o acesso aos três Ts: terra, teto e trabalho. Mas também acesso à saúde, à educação, à inovação, aos esportes e ao lazer. Foi música para os ouvidos da plateia.

Francisco não se furtou de fazer piadas, distinguiu o “Vivir bien” (fórmula que na Bolívia é usada para definir um suposto bem estar não materialista) do “pasarla bien” [NT: fruição descompromissada do tempo]. Falou da “subjugação das grandes empresas” e assinalou que “o futuro da humanidade está nos explorados, pobres e excluídos”, no “campesino ameaçado, no trabalhador excluído, no indígena oprimido, na família sem teto, no estudante sem trabalho”. Os planos de assistência — disse — nunca podem substituir a verdadeira inclusão: “trabalho digno, livre, participativo e solidário”. Em Santa Cruz, retomou vários eixos da encíclica Laudatio Si, cujo êxito se deve às fortes críticas ecológicas.

Aí, quase ao terminar, lançou a sua frase mais forte, a mais aplaudida, a que gerou cumplicidade com a plateia e completou um discurso que, não tivesse abordado esse tema, teria parecido incompleto e até falso: “Foram cometidos muitos e graves pecados contra os povos originários da América em nome de Deus.” E a seguir pediu um perdão explícito pelos crimes durante a dita “conquista” da América, feita com a lógica da espada e a força da cruz. “Se alguns de vocês não podem rezar, peço humildemente que me tenham bem e me mandem boas vibrações.”

Pouco antes, que travessura, Evo Morales havia lhe dado, entre outros presentes, uma escultura formada por cruz, foice e martelo reproduzindo a que tinha sido esculpida por Luis Espinal, padre assassinado por paramilitares em 1980. Como que estivesse colocando à prova o progressismo do papa.

Francisco vem da chamada “teologia do povo”, uma versão “populista” da teologia associada a simpatias políticas pelo peronismo. E como todo peronista, seu desempenho atual não pode ser analisado de maneira indutiva a partir de sua história. Francisco não se explica (somente) por Bergoglio, como o Menem neoliberal não se explicava pelo Menem pré-1989, nem Cristina Kirchner se explicaria pelas suas posições nos anos 90. No peronismo, adaptar-se às circunstâncias é grande parte da chave para o êxito. Mas esse passado “populista” e muito político de Bergoglio explica, ainda assim, muitas de suas facetas atuais. Desse passado vem, por exemplo, a reflexão de Bergoglio sobre o Martín Fierro [NT. Poema nacional argentino], em 2002. Por isso, em que pese o que se escreveu no momento de sua eleição, ele está tão longe de ser para os governos nacional-progressistas o que João Paulo II foi para os regimes comunistas. (Não é este o lugar para revisar a história de Bergoglio nem temas polêmicos como a sua atuação na ditadura, denunciada pelo jornalista Horacio Verbitsky).

O que vale a pena assinalar, sem ser exaustivo nestas linhas, é que a convergência entre o papa e os “movimentos sociais” e os governos “progressistas” se dá através do antiliberalismo, uma sensibilidade que, ao longo da história, teve muitas articulações possíveis, de esquerda e de direita (contra o individualismo, o egoísmo etc). Mas que, ao mesmo tempo, inclui visões organicistas da sociedade que em muitos casos colidem com a liberdade. Por isso, o “papa anticapitalista” pode ser aliado na crítica solidarista contra o capitalismo selvagem (a Igreja amiúde compartilhou tais tons mais pré- do que pós-capitalistas), mas não pode sê-lo nas lutas emancipatórias que incluam direitos reprodutivos,  direitos das ditas minorias sexuais ou direito das mulheres em decidir sobre seus próprios corpos… assim como nas visões mais radicais de lutas contra as hierarquias sociais. O “causar frisson” do papa tem muito do frisson que podem armar os jovens da Ação Católica.
Hoje o inimigo da Igreja já não é o comunismo mas, sobretudo, as igrejas evangélicas, que se expandiram enormemente na América Latina. Como escreveu o antropólogo Pablo Semán na revista Anfibia: “Em termos muito gerais, está acontecendo algo que aprofunda o que João Paulo II tinha percebido depois da queda da União Soviética e que ele próprio havia ajudado a promover: a necessidade de que o catolicismo ocupe um papel junto às maiorias que são a massa de manobra do capitalismo. Ou o catolicismo assume a tarefa ou essas maiorias se configurarão em variadas possibilidades, mas em todo caso prescindindo do catolicismo (o que não é a mesma coisa que prescindir da religião e das mais variadas formas de imaginar, invocar e interagir com o sagrado).” A opção de Francisco foi radicalizar essa busca com uma linguagem épica, convocatória e “sociopolítica”.

Esse discurso enquadrado na doutrina social da Igreja vem preencher, além disso, o lugar vazio que os projetos de transformação social deixaram, com a sua incapacidade de renovar-se e manter a potência crítica, tanto nas visões revolucionárias quanto reformistas. Ademais, faz tempo que a crítica das esquerdas ao capitalismo vem adquirindo tonalidades cada vez mais moralizantes (abandonando assim a análise do capitalismo em si, e de sua capacidade hegemônica, para restringir-se a denunciar as suas injustiças). Por isso, o papa pode ser um aliado de Raúl Castro (a convergência antiliberal é evidente) e Stédile pode encontrar em Francisco alguém que diz coisas que Lula, quem o MST apoia, parece já não poder dizer com a força dos fatos. Também por isso esse discurso social, pronunciado com a habilidade política de Francisco, hoje pareça revolucionário.

Pablo Stefanoni é economista e doutor em história, atualmente chefe de redação da Revista Nueva Sociedad | Democracia e política na América Latina, na Argentina.

Fonte: UniNômade

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