PICICA: " Tem circulado nas redes sociais um texto intitulado “Descoberta a
provável causa do vício. E não é o que você pensa” de Johann Hari,
falando sobre como a ideia que todos temos sobre as dependências
químicas está equivocada.
Li
o texto e assisti à palestra do autor no TED (disponibilizada com
legendas ao final deste post). Achei tudo o que ele fala realmente muito
interessante e esclarecedor. No entanto, apresento algumas ressalvas
para que os menos avisados não tirem conclusões precipitadas das
informações que ele apresenta."
Tudo o que você sabe sobre drogas está errado
Raphael Mestres
Tem circulado nas redes sociais um texto intitulado “Descoberta a
provável causa do vício. E não é o que você pensa” de Johann Hari,
falando sobre como a ideia que todos temos sobre as dependências
químicas está equivocada.
Li
o texto e assisti à palestra do autor no TED (disponibilizada com
legendas ao final deste post). Achei tudo o que ele fala realmente muito
interessante e esclarecedor. No entanto, apresento algumas ressalvas
para que os menos avisados não tirem conclusões precipitadas das
informações que ele apresenta.
A grande sacada de Hari foi demonstrar que a dependência química
não é tão “química” quanto pensamos. Para isso ele faz algumas
observações simples e perturbadoras:
Médicos administram grandes quantidades de diamorfina (heroína)
para pacientes que sofreram acidentes e fraturas graves. Os pacientes
não saem do hospital “viciados”. 20% dos soldados americanos na Guerra
do Vietnã consumia muita heroína. Ao término da guerra, quase todos eles
voltaram aos seus lares e pararam o consumo naturalmente. Ratos se
matavam de overdose em gaiolas isoladas quando tinham acesso a uma
mistura de água com cocaína ou heroína. Quando foram colocados em
gaiolas cheias de estímulos e companheiros para se divertir,
praticamente ignoraram essa mistura.
Esses fatos realmente contradizem a nossa ideia de que as drogas
possuem componentes químicos que prenderão para sempre seus
usuários e nos apontam para outros fatores responsáveis pelas
dependências químicas.
Parece que a química das drogas perde seu poder frente a uma
família amorosa torcendo pelo paciente fora do hospital ou frente a uma
esposa ansiosa esperando o marido voltar da guerra. Perde seu poder até
frente a uma gaiola cheia de estímulos e companhias para ratos, que se
matavam de overdose quando estavam em gaiolas isoladas.
Com isso, Hari conclui que o principal fator responsável pela
dependência não são os componentes químicos das drogas, mas a escassez
de vínculos e conexões positivas. Ter um trabalho que você ama, uma
família para encontrar ao final do dia, relacionamentos saudáveis e
recompensadores fazem com que optemos por manter a sobriedade para
desfrutar destas benesses que a vida proporciona.
O erro cometido atualmente por nós e apontado por Hari é que,
na tentativa de recuperar os dependentes químicos, acabamos dificultando
ainda mais a criação de vínculos e conexões deles com a sociedade. Os
isolamos, os rotulamos e fazemos com que se sintam envergonhados. Na
verdade, os punimos pela doença que têm, quando as evidências apontam
que a saída seria justamente o contrário: favorecer a criação de
vínculos e conexões saudáveis para que eles não precisem do vínculo com
as drogas.
Hari também cita como exemplo Portugal, que melhorou muito seus
índices de dependências químicas ao descriminalizar todas as drogas e
investir o dinheiro usado para medidas repressivas na reconexão dos
dependentes químicos à sociedade.
E aqui pode ser que alguém chegue a duas conclusões perigosas:
1) “Já que é uma questão de vínculos, o tratamento para
dependências químicas, com medicação, psicoterapia e internação não tem
sentido” e
2) “Bom, se é assim, a saída socialmente ideal é descriminalizar todas as drogas, como foi feito em Portugal”.
Cuidado, não podemos ignorar a outra parte dos fatos.
O erro apontado por Hari de que “isolamos, rotulamos,
envergonhamos e punimos os dependentes” não diz respeito à necessidade
ou não de tratar a dependência química, mas à forma como nós,
individualmente, enxergamos o dependente e nossa postura diante dele.
Também serve como crítica a alguns tratamentos fragmentados feitos por
profissionais não capacitados, que adotam uma visão moralista, e não
científica, das dependências químicas.
O tratamento da dependência química, nas suas diferentes formas,
deve contribuir para a capacidade do paciente de reconstruir vínculos
saudáveis.
O próprio dependente químico, em seu processo de adoecimento, vai se
desconectando dos vínculos positivos que possuía e vai se conectando com
a droga. Hari aponta que a conexão com a droga é um tipo de alívio para
a incapacidade do indivíduo de conectar-se com os outros, seja por
causa de traumas, isolamento ou dificuldades da vida.
Quando surgem as doenças psiquiátricas decorrentes do uso abusivo
de drogas essa desconexão do dependente se cristaliza ainda mais
tornando muito mais difícil a criação de vínculos saudáveis. O
tratamento, com medicação, psicoterapia, grupos e terapias alternativas,
contribui para recuperar e desenvolver no dependente a capacidade de se
vincular novamente.
O “isolamento” em comunidades terapêuticas, muitas vezes, é
importante para cortar os vínculos destrutivos que o dependente
estabelece com traficante, com outros usuários ou até com a própria
família codependente, para que viva a possibilidade de estabelecer novas
conexões saudáveis, seja com os profissionais, com os colegas de
internamento, com os grupos religiosos e com o trabalho, dentro e fora
da comunidade, na reinserção social.
Portanto, o tratamento da dependência química tem todo o sentido
de existir, principalmente para facilitar as conexões necessárias para a
recuperação.
A
importância dessas descobertas é no sentido de sabermos que não adianta
medicação, psicoterapia e todo o resto se as conexões e vínculos não
estiverem sendo estimulados e criados a partir disso.
Usando como analogia a experiência dos ratos, não adianta fazer
tudo o que fazemos no tratamento se a gaiola continuar vazia e isolada.
Usar droga vai ser a única coisa a fazer. O tratamento deve se ocupar de
“encher a gaiola” de atrativos e companhias saudáveis. É preciso
enriquecer a vida do dependente.
Quanto à conclusão de que a descriminalização é a saída
socialmente ideal e que Portugal é um exemplo disso, podemos analisar
tal como o tratamento. O ponto chave está no investimento em reconectar
os dependentes à sociedade e em oferecer conexões saudáveis para os
cidadãos.
Não foi a descriminalização que funcionou em Portugal, mas o
investimento em criação de empregos para dependentes em recuperação,
microempréstimos para que pudessem começar seus negócios, incentivos a
empresas para que os contratassem. Foi o objetivo de que “cada
dependente em Portugal tivesse algo pelo qual sair da cama todo dia de
manhã” que fez a diferença.
A descriminalização foi apenas um meio de arrecadar fundos para
esses novos investimentos e não a solução para o problema.
Johann Hari afirma ao fim da sua palestra: “o contrário da
dependência química não é sobriedade. O contrário da dependência química
é conexão”. Isso poderia ser um mantra repetido incansavelmente nos
tratamentos.
E nas discussões sobre a legalização, embasadas nas críticas à
“Guerra às drogas” eu sugeriria uma adaptação desse mantra: “o contrário
da Guerra às drogas não é a legalização ou descriminalização, mas criar
oportunidades de conexão”.
Afinal de contas, conceitos brilhantes como esse devem ser usados sem medo de errar.
Veja aqui a palestra TED de Johann Hari:
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