julho 31, 2014

"O verdadeiro problema ortográfico", por Sírio Possenti

PICICA: "Se projetos de reforma como o que tramita em Comissão do Senado forem levados adiante, pouquíssimos problemas de escrita que se encontram na escola e nas ruas serão solucionados. Simplesmente porque suas principais causas – a diversidade de pronúncias e as hipóteses dos escreventes – não podem ser controladas por lei."

 

LÍNGUA & LINGUAGEM

O verdadeiro problema ortográfico


Por Sírio Possenti em 29/07/2014 na edição 809

Reproduzido do Ciência Hoje On-Line, 25/7/2014


Em ’Ubaldo, Fidel e o lápis‘, José de Souza Martins conta que João Ubaldo Ribeiro e ele tinham um interesse comum: o uso popular de palavras ‘novas’, “que chegam às pessoas comuns através da tevê, do rádio e da publicidade”. Informa que Ubaldo tinha uma ‘besteiroteca’, que incluía exemplos como “Parabéns grassa você é muito espessial”, “Deus potrêja esta casa”, “Vende-se filhote de lavrador”, “Vende-se colchão altopédico”.

Primeira observação: uma das coisas que mais me espantam é que intelectuais de alto gabarito não tenham informações elementares sobre questões elementares de linguagem, que estão em qualquer manual que um calouro de letras pode ler (em verdadeiras faculdades de letras, não em colegiões).
Especialmente, me espanta que cacem basicamente erros de grafia e que não manifestem a menor capacidade de compreender o que se passa na cabeça de quem escreve errado. Só riem. Se levassem em conta, por exemplo, a escrita antiga (do tempo de Camões, digamos), imagino que sua avaliação mudaria completamente. Mas parece que nunca viram nenhum desses documentos, que só conhecem as atualizações. No máximo, lembram de ‘farmácia’ com ‘ph’...

Claro que se pode reagir humoristicamente aos exemplos citados (e a muitos semelhantes), que podem ser vistos nas ruas e, hoje, no Google, digitando placas do meu Brasil. Mas, além de provocar riso, esse material também pode ser visto como fonte de dados de extrema relevância para uma descrição mais acurada da nossa língua. Especialmente, já que a besteiroteca tem a ver basicamente com ortografia, uma análise desses materiais poderia iluminar debates sobre o tema. 

Nova reforma?

Mal se implantam as regras do recente acordo ortográfico entre países lusófonos e já surge um movimento para fazer outra reforma, que simplificaria a ortografia. Ela seria mais uniforme (por exemplo, prescreve escrita uniforme para o fonema /s/, que sempre seria grafado com a letra ‘s’, o que resultaria em escritas como ‘sesta’ para as atuais ‘sexta’ / ‘cesta’ / ‘sesta’); e seriam eliminadas algumas “contradições” (‘estender’ e ‘extensão’, por exemplo).

Ora, qualquer análise da escrita popular e da produzida nos primeiros anos de escola mostra que os erros de grafia se dividem em diversos tipos: a) erros como escrever ‘casa’ e ‘exemplo’ com ‘z’, ‘caça’ com ‘ss’, ‘jeito’ com ‘g’ etc.; b) erros ligados a pronúncia variável (‘mininu’ (=menino), ‘curuja’ (=coruja), ‘anzou’ (=anzol), sem contar a famosa troca entre ‘mal’ e ‘mau’; c) juntar palavras separadas (‘serhumano’, com ou sem ‘h’) e separar palavras (‘ante posto’); d) acrescentar (‘apito’ = apto) ou tirar (‘habto’ = hábito) letras; e) eliminar ditongos (‘vassora’, ‘otro’, ‘pexe’) ou criá-los (‘professoura’, ‘bandeija’) etc.

Ou seja: uniformizar a grafia com base em análise fonológica não resolve o problema que se pretende resolver, porque se parte de duas hipóteses sem nenhum fundamento: a) que todos os falantes adotam a mesma pronúncia; b) que o único problema é a relação letra/fonema. Ora, como os poucos exemplos mostram, os problemas são mais numerosos e nenhuma reforma pode resolvê-los. 

Saídas para uma escrita melhor

Os exemplos de João Ubaldo revelam alguns aspectos mais complexos. Se ‘espessial’ assinala um problema desses que qualquer um consegue mencionar, nem toca no problema que surge na escrita de palavras menos conhecidas.

O exame de casos mostra que uma das soluções do escrevente é associá-las a palavra conhecidas, como no caso de ‘altopédico’, mais ou menos misteriosamente associado a ‘ortopédico’, um provável exemplo de etimologia popular: sendo ‘orto’ uma forma desconhecida, é associado a ‘alto’, forma conhecida. Pela mesma razão, escreve-se ‘lavrador’ por ‘labrador’.

Mesmo uma fonologia elementar, ‘aplicada’ à escrita, tem excelentes explicações para grafias como ‘malmita’, ‘agricula’, ‘chapiação’, ‘conzinheiro’, ‘viaigi’, ‘almusar’ (para o ‘u’, no caso), ‘afiace’ (afia-se), ‘dilícia’, ‘difisiu’ (difícil).

O que têm em comum todos esses casos, citados em O português popular escrito, de Edith Pimentel Pinto, é que não seriam atingidos por uma reforma que simplificasse a ortografia, porque sua origem não é a grafia legal diversa para o mesmo fonema nem uma pequena contradição local.

O que origina essas grafias é uma hipótese elaborada por um escrevente com pouca escolaridade e, consequentemente, com pouca familiaridade com a escrita. O que indica a única saída para uma escrita melhor, desse ponto de vista: escola melhor e maior contato com a escrita.

Quem tem acesso a uma boa escola e escreve regularmente não tem problemas (graves, pelo menos) de grafia. Nem no Brasil, nem na França ou Inglaterra, países em que se falam línguas cuja escrita está bem longe da fala.

Se projetos de reforma como o que tramita em Comissão do Senado forem levados adiante, pouquíssimos problemas de escrita que se encontram na escola e nas ruas serão solucionados. Simplesmente porque suas principais causas – a diversidade de pronúncias e as hipóteses dos escreventes – não podem ser controladas por lei.

Se a solução é óbvia, os caminhos para chegar a ela são conhecidos dos especialistas. Mas, infelizmente, são completamente desconhecidos não só pela ‘sociedade’, mas mesmo por representantes das letras de alto gabarito (e por senadores supostamente menos iletrados), como o revela a besteiroteca mencionada anteriormente.

***

Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas 

"O Brasil à beira de uma nova crise externa?" - Publicado por Retrato do Brasil

PICICA: "Desindustrialização e juros altos tornaram país vulnerável. Para evitar desastre, será preciso mudar política econômica, no sentido oposto ao desejado pelos conservadores"


O Brasil à beira de uma nova crise externa?



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Desindustrialização e juros altos tornaram país vulnerável. Para evitar desastre, será preciso mudar política econômica, no sentido oposto ao desejado pelos conservadores

Ponto de Vista do Retrato do Brasil, parceiro editorial de Outras Palavras

Muita gente considera um problema ter qualquer tipo de dívida. Mas não é difícil entender por que é razoável uma empresa obter um empréstimo para investir em máquinas, equipamentos e instalações com o objetivo de produzir mais e de forma mais rentável. A empresa coloca o pagamento parcelado do empréstimo em seu orçamento e passa a pagá-lo anual ou mensalmente, como faz com a folha de salários, o pagamento de fornecedores e o consumo de eletricidade, por exemplo.

Se o investimento resulta em crescimento de receitas suficiente para pagar o aumento das despesas gerado pela dívida, tanto do principal tomado de empréstimo como dos juros cobrados pelo emprestador, e ainda gera para a empresa mais lucros do que os obtidos antes, o negócio foi bom, é claro. O problema é quando esse esquema não funciona, ou porque a dívida foi contraída a juros muito altos ou porque o plano de investimentos foi ruim e a empresa passa a necessitar sistematicamente de mais empréstimos de terceiros para pagar as contas correntes.

Com as contas externas dos países acontece algo parecido: é razoável usar a poupança externa, seja de empresas estrangeiras, seja de organismos internacionais, desde que a juros razoáveis e para bons projetos de investimento. O grande problema sempre é os empréstimos passarem a ser um mecanismo de jogar para a frente dívidas velhas de projetos mal-sucedidos, que, afinal, levam a empresa à falência.


Os países também podem quebrar. As relações econômico-financeiras entre nações são registradas no “balanço de pagamentos”, uma forma de contabilização instituída pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), organização criada no pós-Segunda Guerra Mundial. O balanço é formado por duas contas básicas, ambas contabilizando entradas e saídas:

  • uma, de prazo mais longo, é a conta de capitais. Ela registra empréstimos tomados de financiadores para investimento ou investimentos feitos diretamente por empresas ou aplicadores;
  • a outra é a do dia a dia, a conta das transações correntes, na qual são registradas as compras e vendas de mercadorias e serviços, inclusive os chamados serviços do capital, em que se incluem os compromissos decorrentes de empréstimos ou investimentos, como juros, lucros, dividendos, royalties e aluguéis de equipamentos.
O resultado das transações correntes de países pouco desenvolvidos, como o Brasil, é sistematicamente negativo na parte referente às rendas do capital e de serviços e positivo em relação à compra e venda de mercadorias. De um modo geral, países como o nosso são exportadores de bens primários e têm um saldo na conta de compra e venda de mercadorias, que é usado para cobrir o déficit na conta referente às rendas do capital. Se esse saldo não cobre tal déficit – se há, portanto, déficit em transações correntes –, então, como se diz, para “fechar o balanço de pagamentos”, é preciso que venham de fora ou novos empréstimos ou investimentos. Nos últimos 67 anos foi isso o que, de modo geral, aconteceu com o Brasil.

Historicamente, um déficit em transações correntes num valor equivalente a 3% do PIB é sinal de descontrole na capacidade do país de gerar riqueza para honrar compromissos com bancos, empresas e governos estrangeiros. Em dois momentos, relativamente recentes, em 1982 e em 1998, quando o déficit das transações correntes do Brasil passou muito dos 3% aceitáveis, o País não conseguiu obter o capital externo necessário para cobrir o prejuízo nem tinha poupança – na forma de reservas em divisas externas – para pagar suas contas com o estrangeiro. Recorreu então ao FMI, que exerce o papel de UTI dos países em dificuldades, os quais, em troca dessa assistência, são obrigados a engolir amargos programas de ajuste de suas economias.

O gráfico que ilustra as duas páginas seguintes [????] expressa, ano a ano, no período de 1947 a 2014, o saldo brasileiro em transações correntes como percentagem do PIB. Mostra que, embora as transações correntes brasileiras sejam basicamente negativas ao longo de todo o período, as duas crises citadas são visivelmente destacadas. E revela ainda mais: que o déficit em transações correntes vem crescendo ano a ano e parece apontar para uma nova crise. Em 2013, foi de 3,65% do PIB; em abril deste ano, atingiu 4,7%.

Há diferenças importantes entre as duas crises e a que se delineia agora. A primeira ocorreu durante o período da ditadura militar. Em 1974, o déficit de transações correntes do Brasil chegou a 6,8% do PIB. Além das dívidas e dos rendimentos do capital estrangeiro a pagar, o Brasil se viu diante de um déficit enorme na balança comercial, decorrente da brusca elevação nos preços do petróleo, da baixa produção local desse insumo e do grande desenvolvimento local da indústria automobilística. A solução encontrada foi um enorme programa de investimentos baseado em novos empréstimos, tomados principalmente pelas empresas estatais, de bancos privados e de instituições de fomento internacionais. Isso funcionou e o déficit caiu, mas por pouco tempo. Já em 1982, com um déficit em transações correntes de 6% do PIB, o Brasil “quebrou”.

O País quebrou de novo em 1998, com déficit em conta corrente menor, de 4,3% do PIB, mas numa nova conjuntura internacional. A crise de 1982 foi deflagrada em 1979 pela elevação abrupta das taxas de juros básicas do mercado financeiro pelo Federal Reserve (Fed), o banco central americano, o que inaugurou uma nova política para combater o processo inflacionário interno do país. O desastre brasileiro se deu após um longo período de crescimento da economia, com taxas médias de crescimento anual de 8,9% entre 1968 e 1980. A dívida externa pública tinha crescido muito – de 10 bilhões para 100 bilhões de dólares entre o começo dos anos 1970 e o início da década seguinte –, mas vinha sendo rolada, com a esperança de que os novos projetos de investimento permitissem que ela começasse a ser paga. Quando o Fed elevou, numa tacada, de 5% para 21% a taxa de juros paga aos compradores de títulos do governo dos EUA, no entanto, houve uma corrida por esses papéis e uma fuga de capitais das operações de rolagem da dívida externa brasileira e de países em desenvolvimento em geral.

O problema em 1998 foi outro. A inflação tinha saído de controle no período entre os anos finais do regime militar e o final do primeiro governo do período de redemocratização, entre 1982 e 1990. Em 1992, o governo de Fernando Collor de Mello, eleito em sintonia com os ventos liberais que varriam o mundo desde a queda do Muro de Berlim e o desmantelamento da União Soviética, deu início a um processo de atração de capitais para o País com uma enorme elevação dos juros internos, que passaram a ser, desde então, em termos reais, os maiores do mundo. Em 1994, o Brasil renegociou sua dívida antiga e, em 1995, um novo governo, de Fernando Henrique Cardoso, fez, então, um plano de estabilização no qual garantiu aos investidores de fora o direito de sair do País a qualquer instante com um câmbio de um dólar para cada real que tivessem investido aqui – ou seja, sem perda cambial. A inflação caiu imediatamente, como que por milagre, capital começou a entrar em grande quantidade, para adquirir participação ou controle de empresas locais e para aplicações em bolsa, que dispararam.

Ao contrário do período do regime militar, os empréstimos brasileiros não eram mais tomados por estatais para investimentos – essas empresas estavam em processo de privatização e quase não investiam. O Brasil ficou muito mais aberto financeiramente – os capitais eram atraídos para cá pelo enorme diferencial entre os juros internos e os externos –, mas não se desenvolveu. A taxa de crescimento do PIB nos anos dos governos liberais de Collor de Mello e do primeiro mandato de FHC caiu: ficou a menos de 3% ao ano, um terço da média dos anos 1968–1980.

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Bastou uma mudança não tão abrupta das condições de financiamento internacional, provocada pela quebra de um grande fundo financeiro americano, o Long Term Capital Management, em 1997, para haver uma contração do mercado financeiro internacional. Mesmo com a venda acelerada de suas estatais a partir do início de 1998, o Brasil ficou sem dinheiro para rolar suas dívidas – a velha, renegociada, e a nova, contraída com a liberalização – e, no final do ano, internou-se novamente no FMI.

A tese dos governos liberais era a de que a abertura da economia brasileira elevaria a produtividade interna, traria tecnologia e facilitaria o crescimento integrado do Brasil na nova ordem mundial. De fato, com os ajustes internos, o capital estrangeiro veio para cá, principalmente para comprar empresas já prontas e para os chamados investimentos em carteira, a compra de ações e títulos de dívida, de empresas locais e do próprio governo. Para agravar os problemas, a valorização do real no período 1994–1998, decorrente da entrada de dólares para aproveitar o diferencial de juros, derrubou as exportações, e a balança comercial do País saiu de um saldo de mais de 10 bilhões de dólares em 1994 para um déficit de cerca de 7 bilhões de dólares em 1998.

O resultado político da crise financeira resultante do fracasso do plano de desenvolvimento dos governos liberais foi a eleição, em 2002, do candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Após a eleição de Lula o Brasil apresentou, num primeiro momento,entre 2003 e 2007, consecutivos superávits em transações correntes. A partir de então, no entanto, vieram déficits crescentes, de forma que, na soma dos resultados dos dois governos de Lula e do atual governo da presidente Dilma Rousseff, incluída a expectativa de que neste ano o déficit seja aproximadamente igual ao do ano passado, de 80 bilhões de dólares, é possível que o rombo nas contas correntes do País alcance 317 bilhões de dólares.

O governo diz que está tudo sob controle. Seu principal argumento é que já pagou a dívida externa e, além disso, tem reservas de 370 bilhões de dólares, algo inédito em nossa história, e, portanto, tem de onde tirar o dinheiro para “fechar” o balanço de pagamentos anual. Qual o engodo nessa argumentação?

As reservas não são, de fato, do governo. Não vêm, também, do saldo do dia a dia nas contas do País com o exterior. Como vimos, nesses quase 12 anos de governos petistas, a balança brasileira de transações correntes acumulou um rombo de mais de 300 bilhões de dólares. As reservas, de fato, são dólares comprados pelo Banco Central brasileiro de tomadores de empréstimos externos. Como os negócios no País só podem ser feitos na moeda nacional, o BC fica com os dólares na forma de reservas e dá a esses tomadores – sejam empresas ou o sistema financeiro local – os reais para as aplicações internas. Tanto os investidores de fora como os tomadores de empréstimo locais têm continuado a alimentar esse processo de formação de reservas em função do grande diferencial de juros que continua havendo entre o que é cobrado lá fora e o que se cobra aqui dentro.

O Brasil começou a sair do desvario que foi a tentativa de se integrar à economia global pagando juros brutais já no final do segundo mandato de FHC, quando passou a ter superávits expressivos em sua balança comercial em função do extraordinário crescimento das exportações de commodities a preços altos, resultantes, por sua vez, do não menos extraordinário processo de urbanização e crescimento econômico da China. Essa conjuntura já mudou. A crise do sistema capitalista global se instalou em meados de 2008 e não dá sinais de ter sido resolvida. Os chineses – empurrados, aliás, por incontáveis manifestações populares de descontentamento com o processo acelerado de crescimento econômico com concentração de renda ocorrido na carona que pegaram na expansão recente do sistema capitalista – já estão em outra.

O Brasil não pode contar com um saldo de mais de 40 bilhões de dólares anuais em sua balança comercial como os que teve no auge desse processo, nos anos 2005–2007. O saldo da balança comercial brasileira vem despencando: caiu para 2,5 bilhões de dólares no ano passado. Ao mesmo tempo, o déficit na conta de renda dos capitais aplicados aqui não para de crescer e, ao contrário da China, o Brasil se tornou ainda mais dependente dos capitais e da tecnologia externos. Apenas com o aluguel de equipamentos como sondas para exploração de petróleo, modernas retroescavadeiras e colheitadeiras, por exemplo, o Brasil vai gastar o equivalente a quase oito vezes o saldo comercial esperado para 2014: 19 bilhões de dólares.

É preciso lembrar, também, que nossas supostas enormes reservas são pequenas diante da perspectiva de um novo grande ajuste das finanças internacionais que puxe capitais para fora do País. Em seis meses, entre julho e dezembro de 2008, durante a fase aguda da crise provocada pela falência do banco Lehman Brothers, saíram do País 347 bilhões de dólares. E, entre junho e setembro de 2011, foram embora 226 bilhões. É hora de o País abandonar esse mau caminho, seja ele dirigido pelo atual governo, reeleito, seja por um novo, que o substitua.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

"Uma pintura na construção dum mundo (2ª parte)", por João Bernardo

PICICA: "A pintura vai-se fundir com outras artes na construção da vida. É o Urbanismo." 

Uma pintura na construção dum mundo (2ª parte)

 

3 de julho de 2014   



  

A pintura vai-se fundir com outras artes na construção da vida. É o UrbanismoPor João Bernardo
Leia aqui a primeira parte deste texto.
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Piet Mondrian foi o primeiro obreiro do verdadeiro sentido da pintura; foi ele quem compreendeu plenamente as suas novas necessidades, quem conjugou todos os anteriores esforços para atingir o autêntico e desalienado quadro.
As suas técnicas inovadoras resumem o desaparecimento dos artifícios narrativos.
Começa por analisar o que é uma tela; e vê que tudo o que nela se possa construir tem de obedecer às suas qualidades; e que só assim o quadro poderá evoluir plenamente na única direcção que lhe dá inteira liberdade. E para ele a tela é, antes de mais, um quadrilátero imóvel, de superfície plana; são estas as três características que vão determinar a sua pintura.

Composição em v, az e am, 1930
Piet Mondrian, Composição em Vermelho, Azul e Amarelo, 1930
«Para ele a tela é um quadrilátero imóvel, de superfície plana»

Um dos primeiros passos dados por Mondrian foi, tal como em muitos outros artistas, a destruição da figura. Mas desapega-se tão completamente dela que nem lhe vai buscar a raiz dos elementos dos seus quadros: cria-os, não em função das imagens tradicionais, mas sim em função do próprio quadro; é este que domina inteiramente. É o grande senhor da sua pintura.
E é também em função do quadro que acaba de destruir a perspectiva. Aquela superfície plana só pede elementos planos; a sua geometria é extremamente cuidadosa na eliminação de qualquer artifício. E o cuidado que põe na forma põe-no também na cor; anula a tão descritiva sombra, mestra em dar ao quadro profundidade e movimento. Acaba por utilizar só as cores puras e radiantes, afastando os tons sombrios que com elas pudessem contrastar.
O quadro torna-se, assim, abstracto, plano e estático. A imobilidade da pintura é uma das grandes preocupações de Mondrian. Àquela compensação dos elementos que produz um equilíbrio dinâmico, ele substitui o mais rigoroso equilíbrio estático. Por isso os contornos das suas figuras são paralelos às bermas da tela; não há ali nada do movimento de um Klee ou de um Kupka (este último até, em certos aspectos, tão próximo de Mondrian). E a sua severidade era tão grande que criticou asperamente Doesburg [1], amigo e companheiro de luta, por colocar as figuras fazendo com os lados do quadro [2] ângulos de quarenta e cinco graus, o que lhes dava certa animação.

Klee Halme 38
Paul Klee, Halme, 1940
«Não há em Mondrian nada do movimento de um Klee…»
Vertical Plains Blue and Red 1913 Frantisec Kupka
Františec Kupka, Planos Verticais em Azul e Vermelho, 1913
«…ou de um Kupka»
van Doesburg
Theo van Doesburg, Contracomposição XIV, 1925
«Mondrian criticou van Doesburg por colocar as figuras fazendo com os lados do quadro
ângulos de quarenta e cinco graus»

Até que por fim atingiu o quadro puro; ele próprio nos disse como procedia [3]: dividindo a tela em quatro quadriláteros desiguais, que com ela formavam ângulos de noventa graus; e um desses quadriláteros [4] sendo, do mesmo modo, dividido em quatro partes. Evidentemente que não seria o único, mas era, no entanto, o mais perfeito método de se encaminhar na pintura não-narrativa; tão perfeito que se parecia ter chegado a um fim, a um limite inultrapassável. Mondrian parecia ter decidido a destruição do quadro.
Ele próprio teria tido a noção disso [5]: o quadro antecipa, dizia, a relação desejada entre os elementos da natureza; e enquanto essa relação não existir de facto no mundo, existirá na tela; mas a pintura extinguir-se-á, perderá a razão de ser, logo que a realidade seja mudada, se transforme em harmonia, se torne plenamente apta à vida humana.
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E a pintura vê então apontada a sua nova função: prevê a futura relação entre as coisas. Não de um modo distante e inactivo; prevê revolucionariamente, para ela contribuindo. Vai começar a criar no mundo os princípios da harmonia. Vai oferecer toda a sua pujança ao trabalho de harmonização da natureza. E deixa de ser a pintura que se vê, para passar a ser a pintura em que se vive.
E assim, para quê o quadro? Com efeito, Mondrian condenou-o à inutilidade. A tela era a derradeira herança da pintura narrativa; agora, é insuficiente para o que se deseja; que desapareça também; como desapareceu o movimento; e a perspectiva; e a figura. Que desapareça, como desapareceu a narração!
A pintura vai-se integrar em algo mais vasto. Vai-se fundir com outras artes na construção da vida. É o Urbanismo.
As experiências da «De Stijl» já haviam seguido por este caminho, embora não se libertando inteiramente do quadro; e se Hans Arp foi quem mais avançou neste sentido, muito, na altura, lhe ficou por fazer. No entanto, a decoração do café «De Unie» [6], de Amesterdão [confundi a participação de Hans Arp na decoração do café de l'Aubette, em Strasburgo, com a fachada desenhada por Jacobus Oud para o café De Unie, que para mais estava situado em Roterdão], é já bem sugestiva das preocupações da escola de Mondrian.

Aubette
Hans Arp, Sophie Taeuber-Arp e Theo van Doesburg, Decoração do Café de l’Aubette,
Strasburgo, 1926-1928
De Unie
Jacobus Oud, Desenho da Fachada do Café de Unie, Roterdão, 1925
«As preocupações da escola de Mondrian com o urbanismo»

Mas só com o Construtivismo é pela primeira vez formulada a necessidade de se ultrapassar o quadro, de fazer mais alguma coisa que preencher uma tela [7]. Tatline, com o seu projecto de monumento à III Internacional, é um dos seus máximos exemplos.

Tatlin
Vladimir Tatlin, Projecto de Monumento à III Internacional, 1919-1920
«Tatlin é um dos máximos exemplos do Construtivismo»
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Foi esta a transformação da pintura. De arte alienada, porque forçada a uma tarefa que a impedia de se completar, ela passou a uma arte actuante e vivente. Quando pôde enfim abandonar as suas funções narrativas, quando se conseguiu desapegar de todas as suas heranças, descobriu o caminho que lhe permitia a correcta evolução. Hoje ela existe ao lado de todos os revolucionários; ao lado dos homens que constroem casas e dos que constroem sociedades. Hoje ela existe como todo o real humanismo; torna o mundo à medida de se poder viver nele. E poderemos passar por ruas que são pintura. Em casas que são pintura. Em jardins que são pintura.
Plano do artigo
1
- Localização do artigo: acerca das polémicas do figurativo e do não-figurativo em arte.
2
- À pintura, à literatura, ao cinema, etc., se chama artes.
- «Arte» corresponde a um estado de sincretismo inicial.
- Mas as artes foram-se especializando e o termo continuou o mesmo.
- Porque a palavra tem um carácter de convenção e, como tal, precisa de ser aceite e conhecida por todos. Se se quer expor ao público uma ideia nova têm de se utilizar palavras que este conheça e possa compreender. Assim: palavras relacionadas com antigos conceitos. Acontece termos de exprimir ideias inovadoras com palavras antiquadas (o que acentua ainda mais o carácter de convenção dado à palavra).
- Mas por vezes, em vez de ser a palavra a ser dominada, é ela quem domina, e isto porque é por ela que temos de nos exprimir.
- Daí mantermos um mesmo termo «arte» a significar realidades diferentes que é forçoso destrinçar.
3
-Todos os modos de expressão artística conseguem fazer surgir ideias e figuras.
- Mas alguns só artificialmente, forçando o seu carácter, e assim: de uma forma limitada e imperfeita.
- Outros conseguem fazer surgir repetidamente ideias e figuras; isto é: conseguem descrever a evolução duma ideia ou de uma figura. São artes que dão ideia que existe o movimento.
- Podemos assim distinguir as artes em narrativas e não-narrativas.
4
- Mas antes do aparecimento do cinema, e quando a literatura não era facilmente acessível, teve de se forçar o carácter de outras artes e torná-las narrativas. A que mais se prestava a esse fim era a pintura.
- A evolução dos modos de narração na pintura (quanto mais estes se aperfeiçoavam, mais ela se desviava do seu verdadeiro caminho): 1) os painéis 2) os motivos simultâneos no mesmo quadro 3) a descoberta da ilusão do movimento (o movimento, em pintura, é a sua maior alienação): a) as distorções b) as compensações c) o contraste com a sombra.
- Para a pintura ser narrativa a sua simbologia variava consoante o público. Numa mesma época: Greco, Velazquez e Brueghel. Mas isto não significa que as técnicas de narração variassem.
5
- O aparecimento das artes narrativas (o cinema e a alfabetização) liberta a pintura da imposição de ser narrativa.
- Deixando a pintura de contar uma história, a tradição deixa-lhe os modos de a contar: o símbolo (a figura) e a técnica do movimento.
- E deixando a pintura de ser narrativa, o símbolo perde o seu significado (de história) e transforma-se em arabesco.
- E a figura já não precisando do movimento, este torna-se independente.
- A análise do movimento; a pintura do movimento. O Futurismo. Os seus continuadores. O sem saída desta via.
- Mas continuando as pesquisas dos que utilizaram a figura como motivo puramente estético, há pintores que chegam ao motivo estético sem figura. As experiências de Teo [Theo] van Doesburg.
- A pintura começa a antever os seus novos caminhos.
6
- Mondrian como pintor desta nova função da pintura.
- As suas técnicas resumem o desaparecimento do artifício narrativo:
- análise do que é um quadro
- desaparecimento da figura
- desaparecimento da perspectiva; as cores puras
- a ausência de movimento; o equilíbrio estático e o equilíbrio dinâmico.
- Assim, o quadro, para M., era uma previsão das relações que um dia existissem.
- Quando elas existissem, a pintura desapareceria.
7
- E a pintura não só prevê a relação entre as coisas.
- Prevê de um modo revolucionário, para ela contribuindo.
- A pintura vai, assim, começar a criar no mundo essa relação.
- A tela era a derradeira herança do artifício narrativo; o quadro desaparece; a pintura integra-se no Urbanismo.
- As experiências da «De Stijl»; o Construtivismo.
8
- A nova pintura como arte verdadeiramente actuante.
Notas
[1] Ou Vantongerloo? Ou provavelmente os dois?
[2] Ou consigo próprias? Ou as duas coisas?
[3] Se possível, arranjar citação.
[4] Seria sempre o inferior direito?
[5] Se possível, arranjar citação.
[6] Certificar o nome.
[7] Certificar se só com o Construtivismo esta necessidade é perfeitamente sentida, e se as suas experiências se enquadram bem na linha que eu lhes dou.

Fonte: PASSA PALAVRA

"O teatro midiático na perseguição a ativistas", por Raphael Tsavkko Garcia

PICICA: "Não adianta apenas lamentar e repudiar ataques contra membros da imprensa, é preciso também buscar entender as razões e lutar contra quilo que torna a imprensa, em muitos casos, mero capacho do poder.

Os jornalistas, editores e demais responsáveis pela “cobertura” do teatro que virou a vida da Sininho mereceriam, no mínimo, processos por calúnia e difamação. Falta responsabilidade à mídia. Falta responsabilização. Especialmente de patrões, mas também de quem se submete alegremente. Aos colegas jornalistas que corretamente se juntam para reclamar de agressões sofridas, se juntem também – nos juntemos também – contra patrões que obrigam a produção de péssimo jornalismo e contra os que, felizes, conhecem apenas o jornalismo dos poderosos e o reproduzem com prazer."


 

ECOS DOS PROTESTOS

O teatro midiático na perseguição a ativistas

Por Raphael Tsavkko Garcia em 29/07/2014 na edição 809



Os veículos de comunicação do Grupo Globo têm dado não apenas repetidas amostras de jornalismo rasteiro, ou mesmo de antijornalismo, como ainda não conseguiram explicar as informações privilegiadas que têm de um processo a que sequer os advogados de defesa dos acusados tiveram acesso.

O caso dos 23 perseguidos políticos, que tem em Elisa Quadros, a Sininho, o principal alvo da mídia global, demonstra quão perigosa para a democracia pode ser a relação entre um grupo de comunicação e governos, a polícia e setores do judiciário. Sininho tem sido alvo de acusações que parecem roteiro de novela de péssima qualidade, algo que a Globo tem experiência em produzir.
Roteiro macarrônico de novela de quinta em que uma única pessoa parece ter tomado a frente em uma campanha para queimar edifícios públicos, tocar o terror e tudo isso sem que o real propósito sequer fosse mencionado. O que moveria Sininho? Qual sua motivação e objetivos? Isto, os veículos do Grupo Globo não conseguiram ainda bolar. Os personagens e a trama estão dispostos em um cenário quase apocalíptico, mas ainda não conseguiram encaixar detalhes fundamentais à trama. Tampouco conseguiram explicar como pessoas que nunca se viram na vida estão relacionadas e como elementos anarquistas teriam função de direção em organizações hierárquicas. O enredo da novela global simplesmente não bate com a realidade, ainda que esta nunca tenha sido a preocupação.

Interesse imediatos

O mais grave, para além da tentativa de criminalização de movimentos sociais – algo corriqueiro na história deste grupo de comunicação que, como outros, apoiou de maneira entusiasmada o golpe militar, os anos de chumbo, as torturas e desaparecimentos políticos, e que com a redemocratização adotou automaticamente a posição de defender a repressão e o aparato policial –, está no acesso privilegiado ao processo contra os acusados.

Mesmo o desembargador Siro Darlan, responsável pelo habeas corpus de parte dos ativistas há alguns dias, reclamou a falta de colaboração do delegado responsável pelo caso e de que mesmo ele não teve acesso aos documentos. Circulam pelas redes (também redes de amigos e de apoio aos presos políticos e refugiados, como estão sendo considerados) comentários inúmeros de que mesmo os advogados de defesa encontram dificuldade para ter acesso ao processo e que a Globo simplesmente conhece mais detalhes da acusação que eles, que têm o dever de defender seus clientes e são impedidos de fazê-lo.

Estivesse o grupo Globo interessado em praticar algo semelhante ao jornalismo, buscaria saber por que o interesse em ligar ativistas dispersos e muitos sem qualquer conexão entre si a crimes próximos ao terrorismo exatamente durante a Copa do Mundo (vale lembrar que as primeiras prisões deste grupo se deram um dia antes da final da Copa), um dos eventos mais importantes para o governo Dilma e considerado essencial enquanto propaganda em meio a uma grave crise de confiança e governabilidade.

Sininho, esta que sem dúvida é vítima de perseguição midiática que vai além da do grupo Globo, mas conta com a participação da Veja – o protótipo do panfleto de extrema-direita sem qualquer comprometimento com a verdade factual – e de outros meios, foi presa em Porto Alegre. Ela sequer participaria dos protestos durante a final, no Rio de Janeiro, e sua prisão em outro estado denuncia a participação de agentes ou forças muito além de simplesmente as do Rio de Janeiro. Além do mais, os interesses em jogo vão além apenas da Copa, ou mesmo dos interesses imediatos do Rio de Janeiro.

Protestos passaram a atingir o bolso

Os protestos que tomaram o país desde junho de 2013 são o alvo. O direito ao protesto em si, à indignação e à insatisfação. O interesse é maior que do Rio ou de São Paulo, é um interesse das elites políticas nacionais e, em especial, da federal, que foi inegavelmente o principal alvo dos protestos que continuaram a varrer o país depois de junho (este que tinha foco muito mais local, ainda que tenha se espalhado, nos preços das passagens do transporte público).

Ações nas mídias sociais, como o #NãoVaiTerCopa e o #CopaPraQuem causaram reação raivosa de parte da militância ligada ao governo federal e do próprio governo, que logo criaram “respostas” de gosto e efeito duvidoso, como o #VaiTerCopa ou o mais agressivo, #VaiTerCopaSim que abriu espaço para mensagens com tom até mesmo ameaçador.

Se, por um lado, quem estava nas ruas buscava também um diálogo, por outro este espaço nunca existiu. A grande mídia, capitaneada neste caso por Folha de S.Paulo e Globo, correu para criminalizar os protestos, mesmo com seus jornalistas sendo alvos preferenciais da barbárie policial. Barbárie esta que chegou a forçar uma mudança de tom da mídia que, porém, não durou muito.
Começado o novo ano, os protestos passaram a atingir algo mais do que os brios ditatoriais de amplos setores midiáticos; passaram a atingir o bolso. A Globo (mas não só) investiu pesado na Copa do Mundo e não podia ver seus interesses serem prejudicados por alguns jovens revoltados (sic) estavam nas ruas. Era o momento de agir.

PT criminalizou greve 

Não surpreende que hoje o grupo midiático busque chamar os protestos de junho de “junho negro”, numa tentativa de deslegitimar a origem mais imediata da insatisfação que explodiu. Enquanto policiais gravados em vídeo forjando provas e flagrantes ou mesmo participando ativamente de atos de brutalidade contra manifestantes (ou mesmo transeuntes) não causam furor junto à mídia, mas são denunciados e divulgados quase exclusivamente pelas mídias sociais e veículos alternativos, ativistas são criminalizados.

E a criminalização não vem apenas da mídia, como não vem apenas das autoridades cariocas e fluminenses. O ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, já deixou claro seu apoio à repressão, alegando que não há qualquer ilegalidade ocorrendo, pelo contrário. Mesmo a presidente Dilma Rousseff já se manifestou. Seja de forma indireta, usando seu espaço no Facebook para louvar a “integração” das forças de segurança (sic) em uma imagem do mapa do Brasil coalhado por policiais e militares (uma imagem de causar calafrios) e o resultado desta nas ruas, seja declarando com todas as letras que seus esforços junto a dos governos de estados contribuíram para “garantir um padrão de segurança”. Sem dúvida, o padrão do Estado de Exceção.

Como se vê, há um circo montado que vai além das fronteiras do Rio de Janeiro, mas que interessa a diferentes esferas de poder e governo. E interessa à mídia que, neste momento, se alia ao governo federal (e ao PT) na criminalização dos protestos. Os movimentos que estão hoje nas ruas são, em geral, aqueles que o PT não conseguiu cooptar após 12 anos de poder, oferecendo favores e verbas ou, à moda antiga, tomando para si ou para aliados direções em sindicatos e movimentos.

Chegamos a ver militantes destacados do Partido dos Trabalhadores criminalizando a greve dos metroviários em São Paulo – uma greve em tese contra o PSDB, partido inimigo – apenas porque se dava próximo à abertura da Copa do Mundo! Os interesses internos e de manutenção do próprio poder são mais importantes que os interesses de classe e de trabalhadores que historicamente eram apoiados pelo partido.

Jornalismo comprometido com causas sociais

A mídia em geral possui interesses opostos aos desses grupos, assim como, neste momento, o tem PT e governo federal, que não aceitam ver movimentos além de seu controle e muito menos causando problemas e prejuízos à imagem de Dilma e demais aliados. E neste ponto há convergência mesmo com o PSDB, historicamente avesso a qualquer tipo de atividade nas ruas que não sejam carros passando – ou parados em engarrafamentos. O momento é ainda mais dramático porque não apenas verificamos essa confluência de interesses de diversas partes, de diversas esferas e mesmo entre os maiores partidos políticos do país, como também vemos poucas saídas.

Eloisa Samy, David Paixão e Camila Nascimento, três dos 23 perseguidos políticos neste momento, buscaram asilo para fugir à perseguição que enfrentam. O asilo foi negado pelo Uruguai, país com fortes laços com o Brasil, sob argumentos pífios, como chegou a explicar em seu Facebook a professora Daisy Ventura. Os argumentos foram do risível – de que um consulado não seria local para pedido de asilo – ao inacreditável – de que dar o asilo seria reconhecer que o Brasil não seria um país democrático. Oras, o Equador garantiu asilo a Julian Assange, do Wikileaks, em sua embaixada em Londres e em momento algum aventou-se a possibilidade do Equador estar anunciando que a Inglaterra não seria uma democracia. O mesmo vale para a Rússia que garantiu asilo/refúgio a Edward Snowden.

No fim, os conchavos políticos parecem ter saído mesmo da esfera nacional. Para deleite da mídia, Globo em particular, que pôde narrar toda a saga de Eloisa e demais refugiados para uma audiência ávida e não necessariamente crítica.

A situação dos direitos humanos no Brasil vai de mal a pior (em diversas áreas, desde a questão indígena, passando pelos direitos das mulheres e LGBTS, até culminar na total criminalização do direito ao protesto), e infelizmente amplos setores da grande mídia demonstram, entusiasmados, que concordam com tudo. Não aprenderam nada do período em que apoiaram a ditadura. Lembrando que a Rede Globo sequer se desculpou pelo apoio dado – e recebido.

Cabe aos democratas, aos defensores dos direitos humanos e todos aqueles que ainda acreditam nestes valores e também na possibilidade de se fazer um jornalismo comprometido com causas sociais e com os interesses da população lutar contra essa nuvem negra que estacionou sob nossas cabeças. Antes que seja tarde.

***

Jornalismo não é entidade alienígena e exige responsabilidade

Sininho, o nome de guerra da ativista Elisa Quadros, teve a vida devassada desde que surgiu como liderança ou figura proeminente dos protestos de junho no Rio de Janeiro. Ativista com boa interlocução com e entre vários movimentos, chegou a ser capa do panfleto neofascista Veja e foi duramente perseguida, de forma mais que irresponsável, pela mídia – em especial pela Globo – nos dias que se seguiram à sua prisão e à de outros ativistas um dia antes da final da Copa do Mundo.
Já escrevi bastante sobre os eventos que levaram à prisão política de ativistas, alguns chegando ao ponto de pedir asilo político. O que me interessa aqui, porém, é entender esta aura de infalibilidade ou ao menos de ser intocável a que a mídia ou o “jornalismo” parecem ter direito.

Antes de mais nada deixo claro que acho condenável qualquer ato de violência contra profissionais da imprensa, mesmo que este seja Reinaldo Azevedo ou Paulo Henrique Amorim. Porém, é preciso exigir responsabilidade e, acima de tudo, não buscar ampliar a criminalização daqueles que foram atacados pela mídia.

Na saída do presídio, depois de dias de prisão arbitrária e ilegal, amigos de Sininho, Igor e Camila que estavam sendo soltos se estranharam com fotógrafos e jornalistas que acompanhavam a libertação. Fotógrafos são como urubus atrás de carniça, e não digo isso, acreditem, de forma negativa, pois eu mesmo atuei em protestos da mesma forma diversas vezes. Fotógrafos incomodam, estão na frente – e muitas vezes são alvos involuntários. Queremos a melhor foto, nos misturamos com a turba e, no entanto, é preciso entender o clima em que se deu a soltura dos presos políticos.
Clima de revolta. Compreensível.

Não foi o “jornalismo” o responsável por tudo isso

Escrevi ao Correio da Cidadania:

“O caso dos 23 perseguidos políticos, que tem em Elisa Quadros, a Sininho, o principal alvo da mídia global, demonstra quão perigosa para a democracia pode ser a relação entre um grupo de comunicação e governos, a polícia e setores do judiciário. Sininho tem sido alvo de acusações que parecem roteiro de novela de péssima qualidade, algo que a Globo tem experiência em produzir.”

Roteiro macarrônico de novela de quinta em que uma única pessoa parece ter tomado a frente em uma campanha para queimar edifícios públicos, tocar o terror e tudo isso sem que o real propósito sequer fosse mencionado.

O que moveria Sininho? Qual sua motivação e objetivos? Isto os veículos do Grupo Globo não conseguiram ainda bolar. Os personagens e a trama estão dispostos em um cenário quase apocalíptico, mas ainda não conseguiram encaixar detalhes fundamentais à trama.

Tampouco conseguiram explicar como pessoas que nunca se viram na vida estão relacionadas e como elementos anarquistas teriam função de direção em organizações hierárquicas. O enredo da novela global simplesmente não bate com a realidade, ainda que esta nunca tenha sido a preocupação.”

A mídia, e em especial a Globo, transformou as manifestações contra a Copa em uma novela. Teatralizaram tudo e, no processo, tentaram destruir vidas. O jornalismo foi usado no serviço sujo de destruir reputações e vidas e o jornalismo sujo e irresponsável deste e de outros veículos poderia ter acabado com a vida de ativistas e os feito passar anos presos. Tudo, porém, não passava de pura e simples armação. Teatro.

Mas não foi o “jornalismo” enquanto algum tipo de entidade cósmica o responsável por tudo isso. Foram jornalistas, pessoas de carne e osso. Mesmo que não tenham sido exatamente os que estão nas linhas de frente nos protestos, reportando enquanto tomam pimenta da PM, enquanto fotografam e são agredidos pela polícia, são colegas destes, são os que estão nas redações ou mesmo os editores que impunemente inventam o que querem.

Vergonhoso e manipulador

Não, não é o “jornalismo” o culpado, é a classe jornalística (ou parte dela). São tanto os que diretamente manipulam quanto os que calam e consentem. Longe de apoiar ou aplaudir qualquer tipo de agressão a um jornalista – oras, eu estaria também pedindo para apanhar, ainda que até o momento só tenha apanhado da PM, como a maioria dos profissionais da imprensa –, eu entendo o que é a raiva de ser incriminado pela mídia, pelo “jornalismo”, por jornalistas. A raiva é mal direcionada, sem dúvida. É burra? Sem dúvida. Contraproducente? Lógico. Mas não é de forma nenhuma incompreensível.

O jornalismo enquanto entidade “cósmica” tornou intocáveis e inatacáveis os jornalistas que, sem qualquer responsabilidade, usam seu espaço na mídia para destruir reputações e perseguir desafetos. É difícil entender por que, depois de dias presa, Sininho se mostravarevoltada e com raiva ao ser questionada por jornalistas dos mesmos veículos que batalharam para que ela fosse presa? Este último link, aliás, me deixa claro o despreparo e a provocação barata de um jornalista contra uma pessoa que foi criminalizada pela imprensa. Provocativo, sem buscar entender o outro lado, como se com o orgulho ferido porque Sininho não estava dócil e sorridente esperando responder às perguntas da imprensa.

O jornalismo praticado pela grande mídia no Brasil, salvo exceções, é vergonhoso. É manipulador e sequer mereceria ser chamado de “jornalismo”. Mas é o que temos e com a conivência em muitos casos dos jornalistas empregados por esta mídia (sim, muitos se revoltam, muitos têm famílias e não podem se dar ao luxo de reclamar, mas muitos outros têm prazer em fazer aquilo que manda o patrão. Há de tudo).

“Jornalismo” vem de jornalistas

Não adianta apenas lamentar e repudiar ataques contra membros da imprensa, é preciso também buscar entender as razões e lutar contra quilo que torna a imprensa, em muitos casos, mero capacho do poder.

Os jornalistas, editores e demais responsáveis pela “cobertura” do teatro que virou a vida da Sininho mereceriam, no mínimo, processos por calúnia e difamação. Falta responsabilidade à mídia. Falta responsabilização. Especialmente de patrões, mas também de quem se submete alegremente. Aos colegas jornalistas que corretamente se juntam para reclamar de agressões sofridas, se juntem também – nos juntemos também – contra patrões que obrigam a produção de péssimo jornalismo e contra os que, felizes, conhecem apenas o jornalismo dos poderosos e o reproduzem com prazer.

Depois de colegas ficarem cegos pelas balas da PM, depois de centenas de casos de violência policial contra jornalistas me parece intolerável que não haja qualquer reação a isso e que o “jornalismo” praticado pela grande mídia continua a ser tão vergonhoso, enviesado e criminalizador.

E “jornalismo” não vem do nada, mas sim, do trabalho de centenas de profissionais. E estes profissionais podem ser um André Caramante ou uma Eliane Brum, de fato, mas também podem ser Reinaldo Azevedo ou Paulo Henrique Amorim.

***

Raphael Tsavkko Garcia é jornalista, doutorando em Direitos Humanos (Universidad de Deusto) e mestre em Comunicação (Cásper Líbero) 

julho 30, 2014

"De Valladolid a Gaza", por Brahim Senouci

PICICA: "Los desafios son pues globalmente los mismos que en 1550. Para Occidente, se trata de reafirmar su supremacía, en un momento en que se ve cuestionada. La zona más sensible es ese Próximo y Oriente Medio, generoso proveedor de petróleo. Ahí es donde se lleva el hierro y como a grandes tijerazos, se eliminan países tan viejos como el mundo. Sin escrúpulos. Los millones de víctimas, directas o indirectas, son árabes o equivalentes, "moros", una especie inferior a la que se puede tratar sin tapujos. Israel, desde su creación, se define como una "ciudadela avanzada de la civilización." Es el nuevo Cortés, responsable de hacer reinar la ley de Occidente en esta tierra que previamente habrá despojado de su población, mediante la masacre o la domesticación. Ser solidario con Palestina hoy, es luchar contra esa perspectiva y defender una democracia mundial, e la que la igualdad entre los hombres, todos los hombres, se convertiría en la regla."


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De Valladolid a Gaza


brahim-senouci.over-blog.com


Traducido por Alexandre Anfruns para Rebelión



En el siglo XVI, la potencia española está en su apogeo. Sus barcos atraivesan el Atlántico, conquistan El Dorado americano y se apoderan de las extraordinarias riquezas que contiene. Las poblaciones indígenas les facilitan su trabajo. No conocen las armas y, a pesar de su número, terminan por someterse a un pequeño destacamento español liderado por Hernán Cortés. Los colonos se trasladaron a esas regiones y acumularon fortunas considerables sacadas de la explotación de tierras inmensas y de una mano de obra que se componía de esclavos renuentes a rebelarse. Los nuevos jefes aprovechan para infligirles tareas agotadoras, ejercer abusos sexuales y torturas que podian llegar hasta la muerte. Sin embargo, todavía habían españoles que se conmovían por el destino de esos infelices y acusaban a la Iglesia. En su defensa, los colonos argumentaban que, dadas sus costumbres "bárbaras", aquellos indígenas no merecían pertenecer a la especie humana y que, por lo tanto, era lícito tratarles como simples animales.  
A aquello le siguió un debate que condujo a la famosa controversia de Valladolid, para la cual se requirieron muchas celebridades, religiosos o filósofos. Así, en 1550 tuvo lugar lo que la historia retendrá como el primer debate sobre los derechos humanos. La pregunta que se planteó era sencilla: "¿Tienen alma los indios?" El enfrentamiento se cristalizó rápidamente entre el padre Bartolomé de Las Casas y Ginés de Sepúlveda, amigo de Hernán Cortés, canónigo de Córdoba. La tesis de este último es sencilla: Dios le dio a España reinos inferiores sobre los que podía extender su poder para su mayor Gloria. En esa óptica, los indios eran "animales" nacidos para estar bajo el yugo de los españoles. Por otro lado, el padre Bartolomé de Las Casas, de 27 años, defendía el respeto a su dignidad, llegando al extremo de oponerse jurídicamente a los conquistadores, imponiendo un territorio protegido, sin esclavos y sin violencia. ¡Fue él quien ganó la apuesta! De ese modo, se alivió un poco el destino de los indios. Sin embargo, debían convertirse al cristianismo por la fuerza. El epílogo de la controversia es mucho más oscuro. Los colonos, después de haber perdido la masa de obreros dócil y explotable a voluntad de la que disponían, se pusieron a buscar "carne fresca". Se la proporcionó África. Así fue como nació el siniestro comercio triangular, la tragedia de los negros que enriquecieron a traficantes sin escrúpulos cuya fortuna se exhibe en las espléndidas mansiones de Nantes o Burdeos, hoteles cuyos frontones adornan, aún hoy, una "cabeza de negro".

¿Está tan atrás, el siglo dieciséis? ¿Las cosas desde entonces, han cambiado de verdad?

Ciertamente, la esclavitud y las conversiones forzosas han desaparecido. Los indígenas de ayer viven mayoritariamente en países libres. Efectivamente, los occidentales han terminado por someterse a la voluntad de independencia de los pueblos a los que esclavizaron durante mucho tiempo. Está claro, sin embargo, que esta nueva configuración del mundo no ha dado lugar a la generalización del bienestar económico, que se mantuvo más o menos confinado a la esfera occidental. Sobre todo, la liberación de los pueblos ha permanecido en gran medida teórica. La mayoría de ellos se encuentran todavía en un cara a cara desigual con sus antiguas potencias coloniales, que continúan dictando sus líneas políticas ¡e incluso influyen en la elección de sus líderes! El ejemplo de la "Françafrique" dice mucho acerca de la artificialidad de las independencias de muchos países africanos y su continua subordinación frente a los intereses de la antigua metrópoli. Si es necesario, Occidente no hace ascos a recurrir a la vieja politica de los cañones.

Lo hace a menudo, en nombre de los principios morales que, según nos asegura, son los fundamentos de su política. Así es como lo proclama: se trata de cazar dictadores y ofrecer a los pueblos esclavizados la perspectiva de un horizonte de libertad y democracia. El resultado de ese intervencionismo está ante nuestros ojos. Irak y Libia se derriten bajo la mirada indiferente de sus "salvadores". El efecto dominó se extiende a Siria, probablemente condenada a convertirse en un conglomerado de cacicazgos regionales en una sucesión de guerras interminables.

Descartemos la hipótesis de una ceguera de Occidente que le habría llevado a ignorar los efectos de sus intervenciones. Eso sería otorgarle una dosis de imbecilidad que nada tiene que ver con la realidad. Descartemos del mismo modo la tesis de una buena acción que da lugar a efectos perversos. ¿Quién podría imaginar que Blair y Bush, al no encontrar el sueño debido a la situación del pueblo iraquí sometido a Saddam, hubiesen llegado a mentir descaradamente para poder correr en su ayuda? La guerra contra Irak es una demostración de la realidad del paradigma occidental, que subordina el destino del mundo a sus intereses exclusivos. No importa que naciones enteras estén atrapadas en la tormenta, no importa que cientos de miles de niños muriesen a causa de los efectos del largo bloqueo que precedió a la invasión de Irak, no importa que el destino mismo de la Tierra esté en peligro por una desastrosa contaminación generada por un modo de vida enloquecidamente consumista. La preeminencia de Occidente debe mantenerse cueste lo que cueste. No se limita a lanzar obuses. Viste a sus equipos militares con un discurso moral, democrático, de respeto a los derechos humanos. Quiere mantener no sólo su superioridad militar, sino también el monopolio de universalismo. Los valores que preconiza, al mismo tiempo que se deshace de ellos, son los valores universales.

No pueden haber otros. La "comunidad internacional", es Occidente. El resto del mundo es tan sólo un proveedor de materias primas, de mano de obra barata, a cargo de dirigentes serviciales y atentos a los deseos de quien les asegura la permanecencia en el trono. He aquí pues la inmensa área gris a la que pertenecemos, de la que quienes presiden sobre nuestros destinos no son responsables ante sus pueblos, sino ante aquellos a quienes deben sus posiciones. En lo que respecta a Occidente, hay "ellos y nosotros". Ellos, son aquellos cuya humanidad es cuestionable o incluso negada. Esa negación forma parte también de la matriz occidental. Gracias a ella, ha sido capaz de matar a gran escala, torturar, sin que su conciencia y su inoxidable fe en sí mismo fuesen alteradas de manera significativa. Massu, el de la batalla de Argel, explicaba que la tortura había sido posible sólo porque los soldados que la practicaban tenian entre manos no ya a seres humanos, sino a "metecos", "ratones" o "moros". Hay que considerar que la República Francesa ni siquiera necesitó modificar su constitución para instaurar el Código Negro en Africa o el Código del Indigena en Argelia. Las personas que los sufrieron formaban el "cuerpo de excepción", constituido por sujetos que no tenian vocación para ser ciudadanos. Esa actitud no fue el resultado de una minoría racista. Fue compartida por la mayoría de los artistas, intelectuales y personalidades políticas de la época. Jamás revisitada, jamás cuestionada formalmente, ¡la matriz esencialista sigue siendo la brújula de Occidente!

Gaza ofrece una nueva ilustración de ello en la actualidad. Todo ha sido dicho sobre el horror que conoce esa pequeña franja de tierra, sujeta a un bloqueo inhumano durante 8 años. No hace falta añadir nada, excepto algo esencial. Todo el mundo ha tomado nota del apoyo unánime de Occidente a Israel, o más bien la reiteración de este apoyo que en realidad dura desde que Israel existe. Todo el mundo ha constatado la singular falta de empatía de Occidente por las víctimas palestinas, la poca sensibilidad hacia la muerte de niños o bebés. A veces se desliza una palabra de compasión, pero seguida inmediatamente por un reportaje altamente empático con el "sufrimiento" de los israelíes que no pueden sentarse tranquilamente en una playa, disfrutar del surf o de la degustación de helados. Es la matriz esencialista la que tiene la palabra. Los palestinos no tienen ontológicamente los mismos derechos que sus verdugos. Su muerte forma parte del orden establecido. Sin embargo, la de los israelíes, por el contrario, es un escándalo. Las fronteras políticas dejan de ser relevantes cuando lo esencial, es decir la preeminencia del "Nosotros" sobre el "Ellos" está en juego. La izquierda del gobierno francés vuela al rescate de la extrema derecha israelí. 

Obama, Merkel, Hollande, Cameron, y prácticamente todos los líderes occidentales, con la excepción de unos pocos países como Suecia y Noruega, ponen sus diferencias a un lado para estar en comunión mediante su amor a Israel. Incluso olvidan de dar una buena impresión, acompañando sus declaraciones incendiarias con el habitual estribillo de la necesidad de llegar a un acuerdo. Holande incluso llega a acusar el Hamas de torpedear el proceso de paz. ¿Nadie le ha advertido de que ya no existía?

Que Occidente abandone su habitual discurso moral a favor de la defensa incondicional de uno de los suyos, no debe sorprender. Lo hará cada vez más, a medida que su liderazgo hasta entonces indiscutible se agriete con la llegada de nuevos actores. Más preocupante, sin embargo, es la actitud de algunos de nuestros compatriotas que retoman mismos los argumentos favoritos de los sionistas. Así, denuncian el antisemitismo, que sería el combustible de las manifestaciones en contra de la masacre de Gaza. Del mismo modo, se rebelan contra un tipo de solidaridad automática con Palestina, que se ejercería a expensas del apoyo al pueblo sirio, de la asistencia a los mozabitas de Ghardaia y, de manera más general, les desviaría de la lucha por el establecimiento de la democracia en nuestro país. Cukierman y Prasquier, los líderes del CRIF, no dicen nada distinto. Están en misión oficial. Los nuestros, sin embargo, a pesar de su evidente buena fe, juegan contra su propio campo.

Es bastante extraño, dadas las terribles imágenes de los cuerpos desmembrados de niños, imaginar que no sea en contra de esos asesinatos por lo que los manifestantes gritan su ira, sino que lo hagan por un antisemitismo que estaría inscrito en sus genes. Eso se llama un juicio de intenciones, particularmente inoportuno en un momento en el que la población se encuentra indefensa bajo las bombas. Incluso hay quienes adoptan como propia la broma de "escudos humanos" , de los que se serviría el Hamas para protegerse. Es el argumento favorito de Israel. Eso equivale a justificar los crímenes que está cometiendo. Otra queja recurrente: Si los argelinos son solidarios con los palestinos, es por un reflejo instintivo de su tribu áraboislámica. ¿Por qué deberíamos prohibir que mostremos nuestra solidaridad con un pueblo con el que hemos compartido tantas cosas? ¿Por qué deberíamos obedecer las órdenes de aquellos que nos obligan a deshacemos de esos "arcaismos" que nos llevan hacia los que se nos asemejan, sobre todo teniendo en cuenta que la justicia ya está de su lado? Los autores de estas críticas ¿tienen algo que decir, cuando 26 de los 27 países de la Unión Europea querían incluir la dimensión cristiana de Europa en el proyecto de constitución? ¿Encuentran normal que Turquía, aunque secular, sea declarada non grata en la UE porque es musulmana? ¿Nada que decir sobre la solidaridad entre los países ortodoxos o entre los países católicos? Una última cosa, para aquellos que acusan a los manifestantes de su tropismo palestino: les invito a leer la obra de Alain Gresh: "¿Qué representa Palestina?". En ella se encuentran las razones de la centralidad de la causa palestina, causa que va más allá del sencillo reto de compartir unas hectáreas de tierra, y que tiene mucho que ver con el mapa geográfico del Oriente Medio, que se vuelve a dibujar ante nuestros ojos con la sangre de los niños de Siria.

Los desafios son pues globalmente los mismos que en 1550. Para Occidente, se trata de reafirmar su supremacía, en un momento en que se ve cuestionada. La zona más sensible es ese Próximo y Oriente Medio, generoso proveedor de petróleo. Ahí es donde se lleva el hierro y como a grandes tijerazos, se eliminan países tan viejos como el mundo. Sin escrúpulos. Los millones de víctimas, directas o indirectas, son árabes o equivalentes, "moros", una especie inferior a la que se puede tratar sin tapujos. Israel, desde su creación, se define como una "ciudadela avanzada de la civilización." Es el nuevo Cortés, responsable de hacer reinar la ley de Occidente en esta tierra que previamente habrá despojado de su población, mediante la masacre o la domesticación. Ser solidario con Palestina hoy, es luchar contra esa perspectiva y defender una democracia mundial, e la que la igualdad entre los hombres, todos los hombres, se convertiría en la regla.  

Fuente original: brahim-senouci.over-blog.com


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Fonte: Rebelión