PICICA: "Quem observou o mundo em profundidade, percebe quanta sabedoria existe no fato de os homens serem superficiais” – Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §59"
Fuganti – Filosofia Superficial
Quem observou o mundo em profundidade, percebe quanta sabedoria existe no fato de os homens serem superficiais” – Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §59
Recado àqueles que clicaram neste texto pensando “era só o que me faltava, o mundo hoje está tão superficial que existe até uma filosofia da superfície“: pois é, vocês vão se surpreender…
Estamos acostumados a pensar na
superfície como algo ruim, sem consistência, perecível, cuja firmeza não
é confiável. Pobre daqueles que perderam a superfície por uma falsa
profundidade. Este texto foi escrito para quebrar com estes preconceitos
e desfazer a hierarquia superfície/profundidade.
Começo dizendo que é na superfície onde
tudo se dá, é nela onde tudo acontece. A expressão de todo ser se dá na
superfície, a profundidade emerge até o limiar de si para se manifestar.
“Os poros estão entupidos“, diz o filósofo Luiz Fuganti, é
preciso limpar a pele, limpar esta zona de troca, este ponto onde tudo
acontece, tudo se encosta. Atingir a superfície é retomar o campo dos
acontecimentos, o lugar onde a potência se efetua. Limpar os poros é
reaprender a estar no acontecimento, atingir o ponto último onde a
realidade se dá, reapropriar-se da vida.
Por que superfície do ser? Porque o ser tem uma força, essa força é uma profundidade; mas a força se efetua, se afirma. Ela se efetua como? Na extremidade de si mesma: ao se efetuar, ela vai até o limite de si mesma. Esse limite é o limite da superfície física, é a própria superfície física” – Luiz Fuganti
A vida se dá nos encontros, e os
encontros acontecem na superfície dos corpos, até mesmo o inconsciente
está na superfície. Tudo se dá nos encontros e todo encontro é no
extremo de si mesmo. “Liberar a superfície, esse campo de
representação ou esse plano de organização, esse plano estratificado,
liberar isso para que exatamente essa zona comece a fazer circular as
energias” (Fuganti). Mas para filosofar assim é preciso fazer o
trabalho em si mesmo, deixar para trás todas as marcas que nos prendem,
jogar no chão as correntes, desfazer-se daquilo que carregamos
inutilmente e nos torna pesados. É preciso tornar-se leão. O peso não nos deixa dançar!
Matamos Deus (veja aqui),
ele era o mais sério e profundo, mas ainda estamos aprendendo a lidar
com esse enorme acontecimento. Ainda carregamos muita religiosidade na
humanidade que carregamos em nós. É necessário quebrar com os ídolos,
destruir toda falsa altura, a voz que vem lá de cima é falsa! É preciso
destruir toda falsa profundidade, nossos demônios que nos tentam não são
tão ruins quanto nos fizeram acreditar! Só se quer descer ou subir
quando se perde o horizonte onde se passam os acontecimentos.
Agora é a natureza que dita suas regras,
não mais Deus. Logo, é preciso saber selecionar o que nos acontece,
saber fazer passar as intensidades, se tornar uma zona de passagem para
os encontros, colocar-se à espreita para o acontecimento enquanto
acontecimento. “Gerar um plano de consistência seletivo [...] porque
ele faz com que só passe o que se afirma e o que se conecta; não passa o
que congela, o que te marca, o que te rouba a superfície, o que te
rouba o território” (Fuganti).
Afirmar uma filosofia da superfície é
retomar o ser em sua imanência, é reencontrar-se com aquilo que somos,
reconhecer as dobras, os campos de força onde o desejo atua, fazer
passar o desejo em nós, nos fluxos que nos alimentam. “Há uma queda das essências em altura numa superfície que desliza”
(Fuganti). A essência não é mais algo fechado, não vem do mundo das
ideias, não cai do céu, não está no inconsciente recalcado, ela se cria
nos encontros, ela se faz no toque das superfícies, ela se cria e recria
selecionando os encontros. A essência é agora nossa capacidade de
afetar e ser afetado, nossa própria capacidade de diferenciar-se de si
mesmo.
O objeto do pensamento e do desejo agora se encontra na superfície e não mais na profundidade. É a chamada filosofia do acontecimento, a emergência do acontecimento. Então há agora uma geografia do pensamento, uma geografia do desejo; e tudo o que há de real acontece na superfície, todo o real sobe à superfície” – Luiz Fuganti
Por quais caminhos chegamos onde estamos?
Quais forças nos orientam? Estamos agora em um terreno de intensidades,
criamos platôs, fugimos e nos encontramos em diferentes espaços de
intensidade e expressão. Trocamos a história pela geografia, o divã do
neurótico pelo passeio do esquizofrênico. Podemos afirmar um campo de
expressão, criar as contingências onde o encontro acontecerá. Onde estão
os planaltos? Onde estão as montanhas? Que formações rochosas me
beneficiam? E, é claro, onde fica o mar? Queremos surfar na superfície
da existência, na crista da onda do devir!
“A política – com ética, digamos assim – está na superfície”
(Fuganti). Filosofar com a superfície é tornar-se político. O
anarquismo é a mais fiel desta expressão: sem verticalidades (no máximo
transversalidades), o ponto mais alto ainda está ligado ao chão. Só uma
política superficial pode esconjurar o poder, ele perde o chão porque
paira nas alturas. Aí vemos que a política não é contrato social, nem
direitos humanos, nem soberania nacional. “É uma problematização da efetuação das forças. É uma problematização da expansão” (Fuganti).
Será, então, que a própria filosofia não
nasce da superfície? Da abelha pousando na orquídea aos pés tocando a
grama, a filosofia nasce no contato das superfícies. Os raios de sol
tocando a pele, duas bocas que se beijam. Os encontros criam a
possibilidade de filosofar. Nosso objetico é retomar a superfície,
entender como se dão as relações, as trocas, os contatos; esconjurar o
poder das alturas, acabar com as autoridades, as Leis imutáveis;
encontrar os pontos de encontro, criar territórios em comum. O profundo
se manifesta na superfície… tudo o mais é ilusão.
É na superfície extrema que a eternidade se fabrica” – Luiz Fuganti
Fonte: Razão Inadequada
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