julho 09, 2014

"A revolução do futuro e as máquinas", por Jason Read

PICICA: "[...] a ideia de um “fim do trabalho” tem ganhado ao mesmo tempo dimensões utópicas e distópicas, aparecendo tanto como libertação da fadiga, quanto perda de sentido."

A revolução do futuro e as máquinas

08/07/2014
Por Jason Read


Por Jason Read, no blogue Unemployed negativity, em 19/6/14 | Trad. Bruno Cava



Player_Piano

Num pequeno grande texto a respeito do Fragmento sobre as máquinas (K. Marx, Grundrisse), o filósofo marxista italiano Paolo Virno compara o texto de Marx com as citações da bíblia usadas pelos herois em filmes de faroeste. Como Virno diz, os versos eram citados de modo que sempre pareciam apropriados, seus significados é que mudavam em função da cena. Um exemplo mais contemporâneo dessa situação pode ser achado no filme Pulp fiction (Q. Tarantino, 1994), na cena em que Jules, interpretado por Samuel L. Jackson, reconsidera um fragmento bíblico específico.

Como Virno explica, o Fragmento sobre as máquinas tem sido usado para desdobrar várias posições teóricas diferentes, indo desde uma crítica da suposta neutralidade do conhecimento científico, à ideia do “fim do trabalho”, até tornar-se, no trabalho de Virno e outros, num texto fundante da formulação do general intellect [NT tradução aproximada: "intelecto geral de massa"] como força produtiva e base para uma nova subjetividade coletiva.

Numa linha alternativa ao método de leitura de Virno, gostaria de sugerir que isto pode ser estendido para além do fragmento de Marx. Os assuntos gerais do Fragmento, particularmente a transformação do trabalho produzida pelo conhecimento científico, mostra que o assunto é mais antigo e mais persistente do que pareça à primeira vista. A fantasia de ferramentas que se movem sozinhas, de instrumentos musicais e meios de transporte que se movem por si próprios, aparece tão cedo quanto em Aristóteles, que escreveu: “Se cada ferramenta pudesse realizar a sua tarefa a comando ou antecipando instruções… um mestre artesão não precisaria de assistentes, nem escravos”.

O ponto de Aristóteles está em que jamais será possível se livrar da hierarquia: a servidão é um fato interno da humanidade. Para ele, não é possível imaginar uma automação total, que nos fizesse prescindir de servos. Aristóteles também não consegue apreender a teoria do valor do trabalho, medido pelo tempo investido na atividade. Apesar disso, a ideia do fim do trabalho veio reaparecendo ao longo da história do pensamento, intensificando-se com o desenvolvimento das máquinas. Com isso, a ideia de um “fim do trabalho” tem ganhado ao mesmo tempo dimensões utópicas e distópicas, aparecendo tanto como libertação da fadiga, quanto perda de sentido.

O primeiro romance de Kurt Vonnegut, A revolução no futuro [NT em inglês, Player Piano, 1952], apresenta uma versão literária notável para o Fragmento de Marx, e também pode ser considerado uma releitura possível desse texto (mesmo sem evidências dessa relação). O romance é talvez a coisa mais próxima que o escritor chegou de produzir algo como uma ficção científica hardcore. Embora seu segundo romance, Sirens of Titan (1959), seja um livro melhor em vários aspectos, ele sempre me atingiu como uma ficção metacientífica, que joga com os tropos e convenções da ficção científica, exércitos marcianos, controle da mente etc.

A revolução no futuro vislumbra uma sociedade completamente automatizada, completamente taylorizada. A ideia básica consiste em que as habilidades, o conhecimento e os movimentos corporais dos trabalhadores são registrados pelos engenheiros em cartões perfuráveis. Os cartões então se tornam a base para o funcionamento das máquinas substitutas. Como Adam Smith escreveu, o processo de mecanização acompanha a divisão do trabalho; ele acontece apenas quando o trabalho se encontra dividido em várias atividades parciais e combináveis, trabalho partido em pequenos movimentos. Nesse momento, o trabalho se torna passível da mecanização.

No romance de Vonnegut, isto conduz ao deslocamento massivo de trabalhadores para fora da produção, bem como implica uma economia planificada. Os engenheiros e tecnocratas assumem o controle. Os trabalhadores removidos, aqueles que falharam em demonstrar uma inteligência suficiente para ser engenheiros, terminam quer como parte do massivo exército de ocupação dos Estados Unidos, quer num programa de emprego civil voltado à construção de estradas e pontes. Estranhamente, essa é uma sociedade que apresenta situações simultâneas de pleno emprego e desemprego geral. Todos têm um trabalho, suficiente direito à moradia, plano de saúde, e acesso a bens de consumo, mas muito poucos produzem alguma coisa. Os programas de emprego civil e militar consistem menos em estímulos keynesianos à economia, do que numa forma de ocupar-se com algum trabalho.

Enquanto a imagem de futuro do cartão taylorista data o livro, como um produto da década de 1950, Vonnegut consegue fazer algumas observações que antecipam a ascensão de uma economia dos serviços. Os únicos empregos que não estão padronizados, não submetidos à mecanização, são os de barbeiro e atendente de bar. Isto não se dá porque seus movimentos também não pudessem ser divididos, duplicados e mecanizados, mas, sim, devido à natureza do serviço que eles prestam: o trabalho emocional não pode ser substituído.

Vonnegut detalha o que acontece quando é inaugurado um bar completamente automatizado: “No primeiro dia, bombou, com uma fila de espera dobrando o quarteirão. Com uma semana da inauguração, a curiosidade já tinha sido saciada, e foi um dia movimentado quando cinco clientes apareceram. Então abriu um pé sujo quase do lado, cheio de poeira e germes como um bar vitoriano, com iluminação precária e um garçom sujo, ineficiente e provavelmente mau caráter. Foi um sucesso imediato.”

Portanto, pode-se ler o romance de Vonnegut como uma descrição da economia dos serviços, a ascensão do trabalho emocional, desde a perspectiva do fordismo. Existe aí um vago reconhecimento que as pessoas fazem mais no trabalho do que simplesmente produzir coisas, que as pessoas compram algo mais do que comida, roupa ou casa. Embora isso apareça de maneira marginal — imaginado através dos “poros da velha sociedade”. Vale notar, também, que Vonnegut se concentra em dois exemplos masculinos para descrever o trabalho emocional no meio do século 20, que são exceções ante a feminização generalizada do trabalho emocional.

O que talvez mais torne datado o romance de Vonnegut, ou que o faça um texto interessante para justapor ao de Marx e às várias releituras do Fragmento sobre as máquinas, seja a sua dimensão antropológica (uma colorida por certa ideia de masculinidade, também). A automação completa do trabalho não é considerada um problema do ponto de vista econômico, embora haja referências ao capitalismo planificado pelo estado, mas um problema de sentido humano. Os milhões a quem é atribuída uma ocupação no trabalho, provida pelo estado, perdem o senso de sentido, de que o trabalho tenha algum propósito. Como o padre explica a um dos engenheiros: “vocês projetaram-nos como parte integrante da economia, no mercado, e agora eles estão achando — a maioria deles — que não sobrou quase nada. Um pouquinho menos do que o suficiente, de qualquer modo. Quando a revolta vier ela não será uma revolta contra um emprego sem sentido nos serviços civis, não será por uma vida sem trabalho, mas será uma revolta contra a máquina. Ela será uma revolução pela volta de um trabalho com sentido.”

Assim, para pô-lo ao lado de Aristóteles, encontramos em Vonnegut outro limite da imaginação. Da mesma maneira que Aristóteles não conseguia imaginar as máquinas que pudessem guiar-se sozinhas e, por conseguinte, via a servidão como condição universal; Vonnegut não consegue imaginar uma vida sem trabalho, vendo portanto o próprio trabalho como universal. Claro que os limites de Aristóteles eram mais persistentes, ainda que superáveis. Já uma vida sem trabalho é para nós ainda tão inimaginável, inclusive quando as máquinas que nos substituem não funcionam mais com cartões perfuráveis. Ler Vonnegut hoje com o Fragmento das máquinas sugere que a ideia do trabalho como necessário à vida humana persistirá por ainda muito depois da racionalização tecnológica. Ou, colocado de outra maneira, o que seria preciso para lermos A revolução no futuro como uma utopia?


Jason Read é professor norte-americano e autor de The micropolitics of Capital, bloga no http://www.unemployednegativity.com

Tradutor:
Bruno Cava é blogueiro (http://www.quadradodosloucos.com.br/) e participa da rede UniNômade.

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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