julho 25, 2014

"O riso a cavalo e o galope do sonho", por Rosemberg Cariry

PICICA: "Uma viagem com Ariano Suassuna pelo sertão do Nordeste e pela diversidade do mundo — pouco antes de Caetana levá-lo"

O riso a cavalo e o galope do sonho


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Uma viagem com Ariano Suassuna pelo sertão do Nordeste e pela diversidade do mundo — pouco antes de Caetana levá-lo

Por Rosemberg Cariry

A vida de todos nós está sempre nos preparando surpresas, umas difíceis, outras boas… Entre os bons acontecimentos da minha, está o privilégio de ter encontrado Ariano Suassuna e com ele ter convivido, por muitas semanas, viajando pelo sertão, realizando o O Nordeste de Ariano, com produção e concepção de roteiro de Wagner Campos e Alexandre Nóbrega, produzido pelo SESC Nacional.

Juntos, varamos os sertões do Ceará, Alagoas, Sergipe e Bahia, só parando quando ouvimos a pancada do mar, o denso areal de Aracati, onde Dom Sebastião – o Desejado se desencanta, com seu exército aluminoso, em noite de lua cheia. Nestas andanças, erudito e simples na paciência professoral, Ariano foi-se adentrando, nas artes barrocas populares e nas lendas do povo, nas antropologias e interpretações da nação brasileira… De tudo falou: de índios, de negros, de cafuzos, de brancos, de beatos, de cangaceiros, de lutas e revoluções. “Oropa, França e Bahia” que se reinventam Brasil – pátria dos encontros de todas as etnias e de todas as culturas, sob o signo da universalidade e singularidade que nos engrandece e irmana.


Em várias ocasiões, diante de um curumim, nas ruínas de Canudos, na Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim, vi o mestre Ariano chorar. Ele se mostrava tão sensível, andava com o coração na mão e parecia enternecido, quando a gente do povo o parava nas ruas; ou quando, nas aldeias, os índios dançavam um Toré em sua homenagem e os quilombolas batucavam tambores e sapateavam Zambé. Nessa caminhada, a ele eram destinados tão belos ritos, da mesma forma que o Galo da Madrugada o homenagearia depois, no carnaval do Recife. De todos, ele recebia muitas palavras carinhosas que se traduziam em uma só ideia: “Olha o mestre Ariano, ele é um grande escritor e um defensor do povo brasileiro”. Sim, Ariano Suassuna era um apaixonado pelo povo brasileiro, parte indissociável dele, porque se fez sopro encantado desse mesmo barro; e hoje, depois da sua morte, transformou-se em um defensor perpétuo e desencarnado deste mesmo povo. Ele lutou a boa luta e não se entregou facilmente. Gostava de dizer: “Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver”.

A morte-mulher, que ele chamava Caetana, feiticeira e sedutora, levou-o em seu cavalo branco, riscou os cascos da noite, atritou as faíscas das estrelas e levantou o véu de poeira cósmica nas suaves vias lácteas. A hora fatal foi cantada por Ariano com desassombro, com profundidade e beleza, no poema “A Morte – O Sol do Terrível”:

Mas eu enfrentarei o Sol divino,
O Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei por que a teia do Destino
Não houve quem cortasse ou desatasse.
Não serei orgulhoso nem covarde,
Que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
Pedra do Sono e cetro do Assassino.
Ela virá, Mulher, afiando as asas,
Com os dentes de cristal, feitos de brasas,
E há de sangrar-me a vista o Gavião.
Mas sei, também, que só assim verei
A coroa da Chama e Deus, meu Rei,
Assentado em seu trono do sertão.

Contador de histórias inigualável, com um humor solar, alumioso, Ariano nos acalentava a alma com o riso e nos alimentava a mente com suas sabedorias infindáveis. Para ele, o homem devia encarnar os arquétipos do Rei, do Guerreiro, do cantador de histórias (o mentiroso) e do Palhaço. Ele tinha na alma esses aspectos generosos da grandeza humana. Era um espírito universal. O que Ariano Suassuna tinha de regional era justamente a sua universalidade, amante que era do Cego Oliveira e de Cervantes, de Dostoievsky e de Shakespeare, de Homero e de Garcia Lorca, de Molière e Goethe, de Lino Pedra Azul e de Gil Vicente, de Guimarães Rosa e de Elomar. Mundos que se reinventavam nos sertões sem porteiras, que Ariano carregava e recriava dentro da alma. Este homem amava o Brasil por entender o que de universal herdara o povo brasileiro, numa torrente de signos vindos de todas as culturas, povos e etnias… Por isso, talvez, ele achava que “ao outro” ele só podia dar o melhor de si, a sua própria originalidade.

Tido por alguns como conservador, Ariano Suassuna surpreendia pelas suas ideias avançadas e politicamente arejadas. Ao modo de Machado de Assis, gostava de denunciar o “Brasil oficial” (das elites e dos exploradores do povo), que sempre corta a cabeça do “Brasil real” (os pobres e deserdados dos campos e das cidades) cada vez que este povo avançava em suas conquistas sociais e políticas. Gostava de citar o exemplo de Canudos e dizia que cada vez que a polícia invadia uma favela, era Canudos que está sendo devastada; que cada vez que explorávamos ou humilhávamos uma empregada doméstica, era Canudos que estava sendo pisoteada; que cada vez que se assassinava um líder camponês, indígena ou operário, era a cabeça de Antônio Conselheiro que estava novamente sendo cortada… Canudos saía da história e do sertão, para invadir as favelas cariocas e as cozinhas no nossos apartamentos confortáveis de classe média ansiosa para entrar no “Brasil oficial”… Ariano Suassuna marchou junto com Miguel Arraes em momentos decisivos e corajosos da política nacional e terminou por se filiar ao Partido Socialista Brasileiro, sendo o seu presidente de honra, embora preferisse o reisado de congo com suas cores e brilhos, festas e repartição de comidas e dengos, nos terreiros da gente humilde dos sertões e das cidades.

Se alguém me perguntasse o que, durante toda esta convivência, ao lado dele, peregrinando por cidades, praias, serras, caatingas e desertos, achei mais bonito ou mais importante em Ariano Suassuna, não me seria difícil responder: foi o carinho e o amor que ele dedicava à Dona Zélia, sua mulher – o grande amor da sua vida. Era comovente ver como ele a protegia, como ele estava sempre se desfazendo em mimos por ela e lhe confessando a sua paixão. Via-se ali um amor tão bonito que a todos nós comovia, como se aquele sentimento fosse pura luz e irradiasse calor.

A todos da equipe de filmagem ele tratava com carinho e tinha sempre, todos os dias, uma brincadeira para fazer, uma motivação para que não desanimássemos da nossa difícil missão, quando a pessoa mais velha e mais frágil, a que mais precisava de proteção e renovação de ânimo era ele. De Petrus Cariry mangava porque se cansou na íngreme e pedregosa ladeira que leva à Gruta de Angicos, onde morreram Lampião, Maria bonita e o seu bando; de Júnior Sindeaux Jr. e Ezaquiel Rodrigues (eletricista e assistente) – espécie de dupla de palhaços naturais, sempre inventando presepadas, ao modo de João Grilo e Chicó – ria-se com fartura; de Dirceu Saggin (muito branco à sombra e sempre vermelho ao sol), engenheiro de som, inventava antigos brasões e fidalguias; com Wagner Campos, discutia políticas e conceitos filosóficos; com Alexandre Nóbrega (esposo da sua filha Maria), apontava vontades e estirava a prosa amiga; comigo falava de cantadores e de cinema… Sonhava ver os guerreiros alagoanos em um filme, com a mesma beleza e dignidade dos samurais nos filmes de Akira Kurosawa.

De toda a equipe, Dona Zélia e Ariano dedicavam especial carinho e simpatia sincera à Bárbara Cariry e a Daniel Pustouka: era como se esse casal de jovens enamorados os representassem na juventude, em todo o frescor da vida e confiança no futuro. Para Bárbara e Daniel, Ariano Suassuna pintou uma Igreja de Canudos e afetuoso lhes ofereceu. Era um quadro lindo – um dos presentes mais bonitos que esses jovens terão recebido em suas vidas. Maíra, minha outra filha, como presente, encantou-se com a magia de ouvir Ariano narrar histórias, ao redor de uma fogueira, na Fazenda Magé, em Quixadá.

Depois de um longo intervalo, por causa de doenças ocasionais do mestre Ariano, planejávamos retomar as filmagens, em outubro próximo. De repente, chegou-nos a notícia de que Ariano sofrera um AVC hemorrágico e estava internado no Real Hospital Português, em Recife. Ficamos aflitos, preocupados, como se alguém da nossa família tivesse adoecido. Sim, Ariano é alguém da nossa família, não apenas da minha ou da sua, mas de todos nós nordestinos e brasileiros. Ariano é uma espécie de pai espiritual e mítico de todos os artistas e intelectuais da minha geração. Mesmo os que, por falta de informação ou por equívocos de interpretação, combateram as suas ideias. No fundo, estávamos todos tocados pelo universo mágico e universal da sua literatura, que superava as nossas diferenças ideológicas ou estéticas.

Ninguém lê Ariano Suassuna, impunemente, sem que a sua vida se transforme. Confesso que o meu cinema tem muito de Ariano e do sertão que ele me ensinou a desvendar, a intuir e ver para além das mais chãs aparências. O meu primeiro filme de ficção, “A Saga do Guerreiro Alumioso”, é uma homenagem e leitura compartilhada do universo sertânico e imaginoso de Ariano. Ler a literatura de Ariano é um processo iniciático, feito o do cavaleiro da Távola Redonda, que, à procura do Santo Graal, termina por encontrar a sua própria alma e um sentimento profundo de pertencimento a um povo e lugar; não no sentido de um regionalismo estreito, mas de um “lugar sagrado”, de onde se torna possível amar o mundo e a diversidade cultural dos povos do planeta, enquanto completamos o nosso processo de individuação, no sentido que lhe dava Gustav Jung.

Dizem que, quando o homem morre, encanta-se e encontra sua plenitude. O que sei é que, quando um grande homem morre, faz-se mais vivo do que nunca. Todo morto é mágico, e sua história, livre dos limites da carne, já pode ser contada e reinventada, pelos séculos afora. A plenitude de um homem é a sua eterna reinvenção. Se antes éramos os filhos espirituais em luta edipiana com o pai pela posse da “mãe arte”, com a morte do “pai”, somos seus herdeiros e temos o compromisso de ajudar, como ele o fazia, na recriação ou transformação do mundo. Acredito que mesmo a mais ousada vanguarda nordestina (mesmo aquela que guarda fortes influências estrangeiras) é filha de Ariano, muito embora com ele possa arengar. Em Ariano, todos se encontram: de Chico Science a Caetano Veloso, de Elenilson a Samico, de Marlos Nobre a Antônio José Madureira, de Gilberto Gil a Antônio Nóbrega, de Lenine a Wagner Campos, de Cláudio Assis a Kléber Mendonça – todos beberam na mesma fonte luminosa das artes populares e eruditas universais, por Ariano tão profundamente valorizadas, antes de usarem os engenhos das misturas alquímicas e invenções pós-modernas, para fazerem as suas artes brasileiríssimas. Toda vanguarda, ao negar uma pretensa tradição, tenta dela se apoderar para melhor destruí-la e, ao fazer isto, sela o seu destino: bebe “o veneno” da sua própria destruição enquanto “vanguarda”, pois condenada está a também virar uma tradição, no ciclo sem fim das dinâmicas culturais e das dialéticas históricas. É por isto que a modernidade e as vanguardas do século XX ficaram tão antigas e têm um sabor de tradição. São tão inofensivas e saborosas como uma tapioca com queijo, servida com café quente, ao entardecer.

Ariano se foi, levado pela morte Caetana e as “asas rubras de dragões antigos”, feito um guerreiro do reisado, que subiu pro céu e o seu pai – o seu herói, o seu Rei – que cedo lhe roubaram, com sua mãe, em companhia de São Pedro, está agora a recebê-lo na porta, para fazer de novo pulsar juntos dois corações. Encantou-se feito Dom Sebastião. Com certeza, se existe mesmo este céu do qual fala a tradição bíblica, deve ser como o céu imaginado pelo poeta e cordelista José Pacheco – um céu que é uma representação do sertão, com casa de varanda, pote de barro, terreiro para dança de guerreiros e congadas, vaquejada e cantadores… Não tenho dúvida de que, neste momento, Ariano já deve estar neste céu, arrodeado de gente boa (Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré, Jackson do Pandeiro, Paulo Freire, Padre Cícero, Severino Pinto, Antônio Conselheiro, José de Alencar, João Ubaldo Ribeiro, Darcy Ribeiro, Padre Ibiapina, Inácio da Caatingueira, Glauber Rocha, Jorge Amado, Dona Ciça do Barro Cru, Gilberto Freire, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, Mestre Vitalino, Rachel de Queiroz e João do Vale, entre centenas de outros… Gente que não acaba mais), diante da sua Santa Compadecida – que compreende e perdoa os pequenos pecados dos homens, contando causos e dando boas gargalhas.

Acho que hoje, no céu, a lua deve estar clara e deve fazer frio, são tão frias as noites no céu… Daí esta fogueira que arde com a luz da arte e ilumina o mundo. Sei que a saudade dói, mas num se avexe não, minha gente… Vez por outra, Ariano virá dar umas voltinhas pelo sertão… Quererá alumiar e se achegar às pessoas e coisas mais amadas que por ali sem querer deixou… Só conseguirão vê-lo aqueles que têm na alma os olhos abertos para a poesia… Ele virá encantado e alumioso, como Dom Sebastião, e aparecerá, nos lençóis maranhenses e nas dunas do Cumbe, com seu exército alumioso formado por violeiros, cantadores, mamulengueiros, rabequeiros, xilógrafos, cordelistas, escritores, brincantes de reisados, dançarinos, mascarados, artistas plásticos, romeiros, músicos, vaqueiros e milhares de palhaços de circo feito Chicós e Joões Grilos, anti-heróis sertanejos resgatados da Comédia dell’arte e das brumas dos séculos, pela alma generosa do povo mestiço, que tudo reinventa e alimenta. Ele também surgirá sozinho nos corredores da casa bonita (na rua do Chacon, no bairro de Poço de Panela, em Recife), de mansinho, leve com uma pluma, apenas para se achegar a Dona Zélia e dizer (delicadamente em forma de saudade), no seu ouvido: – “Zélia, meu amor, aí que saudade d’ocê”.

Salve, Mestre Ariano, de todos os sertões do mundo, teu nome faz mais bonito o Brasil!

Fortaleza, 23 de julho de 2014

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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