julho 02, 2014

"Uma praxe obscena", por Muniz Sodré

PICICA: "Já há algum tempo, certamente devido à proximidade do período eleitoral, políticos, jornalistas e colunistas vêm repetindo expressões como “orgia”, “bacanal”, “suruba” e “pornopolítica” para referir-se às últimas conseqüências do toma-lá-dá-cá fisiológico da política brasileira ensejado pela infidelidade partidária.

Em princípio, não haveria aí surpresa alguma, já que infidelidade é marca registrada dessa “coisa” posta no mercado, denominada “classe política”. A questão, porém, é aquilo que um editorial designou como “o estilhaçamento do quadro partidário do país, diante de um eleitorado sem entender como adversários históricos, com desavenças que resvalaram para o plano pessoal, aparecem aos abraços para constituir palanques regionais que nada têm a ver com entendimentos nacionais. Ou vice versa” (O Globo, 26/06/2014).

O problema daquele conjunto variado de expressões é a sua equívoca conotação sexual, que pode acrescentar um tom pitoresco ao texto jornalístico, mas nenhum esclarecimento cívico a propósito da gravidade do pano de fundo fisiológico."

 Amazonino Mendes (PDT), Francisco Praciano (PT), Eduardo Braga (PMDB) e Rebeca Garcia (PP)


JORNALISMO POLÍTICO

Uma praxe obscena

Por Muniz Sodré em 01/07/2014 na edição 805

Já há algum tempo, certamente devido à proximidade do período eleitoral, políticos, jornalistas e colunistas vêm repetindo expressões como “orgia”, “bacanal”, “suruba” e “pornopolítica” para referir-se às últimas conseqüências do toma-lá-dá-cá fisiológico da política brasileira ensejado pela infidelidade partidária.

Em princípio, não haveria aí surpresa alguma, já que infidelidade é marca registrada dessa “coisa” posta no mercado, denominada “classe política”. A questão, porém, é aquilo que um editorial designou como “o estilhaçamento do quadro partidário do país, diante de um eleitorado sem entender como adversários históricos, com desavenças que resvalaram para o plano pessoal, aparecem aos abraços para constituir palanques regionais que nada têm a ver com entendimentos nacionais. Ou vice versa” (O Globo, 26/06/2014).

O problema daquele conjunto variado de expressões é a sua equívoca conotação sexual, que pode acrescentar um tom pitoresco ao texto jornalístico, mas nenhum esclarecimento cívico a propósito da gravidade do pano de fundo fisiológico.

Lugar próprio

O termo “obscenidade” seria mais adequado se houvesse real intenção de evidenciar a falência da representatividade política, que transparece no fenômeno. “Obsceno” em seu sentido radical – aquilo que se mostra à frente (ob) do que aparece (scena) sem qualquer mediação de natureza cognitiva ou moral. E o obsceno não é mesmo o estilhaçamento dos partidos e sim da própria política com um todo.

Talvez não seja absurdo sugerir ao jornalismo político uma pausa nas colunas de gracejos e fofocas sobre o comportamento dos políticos profissionais para dar lugar ao esclarecimento público quanto à temática da morte cívica da política. Talvez não seja também um vão academicismo fazer chegar ao público as ideias de Carl Schmitt, um dos maiores pensadores políticos do século passado que, embora pertencente à “alta” direita alemã, costuma ser lido por muitos luminares da esquerda mundial.

Schmitt preocupou-se, e muito, com o que significa política. Ele parte de uma pressuposição básica: a diferença entre o “mundo” amigo e o inimigo. A sua dicotomia está próxima da ideia de mundo como um “nós”, uma pluralidade de semelhantes, à qual se pode contrapor uma pluralidade diferente, um “Outro” opositivo – nosso mundo contra o mundo do outro.

Clássica e atual, a hipótese reporta-se etimologicamente ao grego e ao latim, línguas que fazem a diferença entre “inimigo” (polémios, hostis) e “adversário” (ekhtrós, inimicus). Para o politólogo, amigo/inimigo não são metáforas ou símbolos, mas termos a serem tomados em seu sentido concreto como um critério radical de agrupamento dos povos, distintos dos conceitos de “concorrente” ou “adversário”. Frisa ele que a redução do conceito de inimigo ao de concorrente é uma conseqüência do dilema liberal entre espírito (ética) e economia, uma vez que, no domínio do econômico, não há inimigos, mas apenas concorrentes.

Em suma, para Schmitt, trata-se de um antagonismo concreto que se verifica entre um Estado e outro (por exemplo, durante uma guerra) ou no interior de um Estado, quando se produzem conceitos “secundários” de política a exemplo da política partidária, política social etc. Mas, a rigor, só se as representações têm um sentido polêmico – como na guerra ou na revolução, onde se manifesta o agrupamento amigo/inimigo – é que se encontra a essência do político. A possibilidade real de luta deveria estar sempre presente quando se fala de política. Mas neste ponto ele tem um insight particularmente agudo: “Num mundo totalmente moralizado e eticizado talvez apenas restem adversários de discussão”.

Não se pode deixar de ver antecipada nesta observação a realidade da política (em extinção) no espaço da mídia contemporânea. O que seria então um mundo sem política? Nesta linha argumentativa, seria a absoluta indistinção entre posições diversas (matizes da dicotomia amigo/inimigo) no embate pelo controle do Estado. Até mesmo a apreciação estética do fenômeno político pode ser acolhida por intermédio dessa oposição básica. O critério amigo/inimigo transforma qualquer outra contraposição (econômica, religiosa, estética) em antagonismo político.
Quando Alexis de Tocqueville, a propósito dos norte-americanos, afirma que “a religião é a primeira de suas instituições políticas”, está dizendo na verdade que a sua grande motivação para uma causa cívica ou política é a convicção religiosa, presente, à maneira de um pacto social, em sua forte tradição puritana. O político pode estar em qualquer âmbito, já que não tem lugar próprio. É apenas “o grau de intensidade de uma associação ou dissociação entre os homens”, cujos motivos podem variar – tradicionalmente, segundo a diferença representativa dos partidos.

Conselho de candidato

Um dos aspectos mais evidentes da moderna crise da política está precisamente no desaparecimento progressivo dessa diferença, que leva a democracia representativa a não mais representar a suposta soberania popular. Um crítico mordaz da sociedade contemporânea como Jean Baudrillard afirmou mais de uma vez que a classe política é a única a acreditar na representação política, assim como os publicitários seriam os únicos a acreditar na publicidade.

Seria assim uma fração minoritária – mas certamente uma “intelligentsia cultural, tecnicista, racionalista e humanista” – a responsável pelo enquadramento dessas ficções em conceitos universalistas (a “grande política”, por exemplo) que tentam tapar o sol com a peneira, ou seja, tentam esconder a profunda indiferença das massas frente às instituições em decadência do Poder.
Mas isso sempre se soube, são inúmeros os cientistas sociais de todas as latitudes que se esfalfam em compêndios volumosos para demonstrar o fim da democracia representativa. Esta persiste, entretanto, como uma entidade semimorta, porque as alternativas revelam-se pavorosas. É um fenômeno parecido com aquele velho conhecido pelos estrategistas de mercado jornalístico: uma revista, por exemplo, pode não ter mais nenhum sentido editorial, mas pode continuar a ser durante algum tempo um bom suporte publicitário com vistas a um público específico.

Algumas tecnodemocracias ocidentais conseguem mais ou menos ocultar o vazio da representatividade. Noutras isso se torna uma evidência obscena exatamente porque já caíram todos os véus, todos os discursos de mediação institucional. Daí essa espontaneidade onomástica que tem posto em circulação as variedades semânticas da pornografia. Em vez de ideias ou propostas, ainda que mínimas (afinal, joga-se com próxima Presidência da República), propaga-se uma barafunda de coligações, adesões e dobradinhas não mais realmente à sombra de partidos, mas de “chapas” com aumentativos fantasiosos (talvez deflagrados pelo nome “Pezão”) que levam “Aezão” a competir com “Dilmão”.

É possível que as massas eleitorais permaneçam (como no fundo sempre estiveram) indiferentes ao que as almas mais castas vêm chamando de falta de vergonha pública e acabem elegendo – forçadas que são a comparecer às urnas – o que lhes der na telha no último momento. Mas nunca foi tão forte quanto agora a evidência do estilhaçamento do espírito público e da disseminação das mazelas e das mamatas.

Qual foi mesmo o conselho daquele candidato a seus acólitos virtuais? “Suguem, suguem e depois venham para mim!”

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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro 

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