julho 01, 2014

"A organização da multiplicidade", por Bruno Cava

PICICA: "Junho de 2013 mudou qualquer coisa de essencial nas coordenadas da política. Talvez, a rigor, não tenha sido junho, mas todo um ciclo que tenha se tornando afinal incontornável, produzindo, assim como Maio de 1968 a seu modo, uma mudança irreversível dos problemas. Deleuze, Foucault e Guattari nunca estiveram tão a salvo de ser apropriados por “pós-modernismos” que, hoje, só existem na boca de seus detratores. Esses que não conseguem tirar o estado da cabeça, essa grande baleia branca que não cansam de perseguir por gerações a fio. Agora, nenhuma filosofia do tipo “cuidar do jardim” (micropolítica personalista), “família feliz” (afetos como sentimentalismo aburguesado) ou “festa do fim da história” (celebração acrítica dos fluxos, do múltiplo, da diversidade). A organização é o problema da multiplicidade."

A organização da multiplicidade

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Foto de Liliane Pelegrini

*Por Bruno Cava, blogueiro do Quadrado de Loucos e copesquisador da Universidade Nômade
Quem curte Deleuze, Guattari e Foucault na perspectiva das lutas, recomendo o artigo “Para ler Foucault e Deleuze politicamente”, por Rodrigo Orango Nunes, (disponível: http://tinyurl.com/l46j3zb). O pesquisador da PUC-Rio tem se debruçado sobre o problema da organização em várias intervenções, como, por ex., em seu livro deste ano, “Organização dos sem-organização” (PDF em inglês: http://tinyurl.com/nz8oprl) . Na produção dele, pontilhada de miudezas cativantes e lances de ironia, isto não significa falar *sobre* a organização, de cima, como algum tribunal filosófico de juízo sobre formas de organizar; mas, sim, falar da organização organizando — ou, o que dá no mesmo, organizar a luta lutando, em ressonância e mútua interferência entre falar de organização das lutas, organizar e lutar. Isso como primeira defesa ao pera-lá dos anti-intelectualistas de sentinela.

Estava outro dia conversando com o Alexandre Mendes como as jornadas de junho e todo esse ciclo que aterrissou na política brasileira em 2013 fizeram com que a acusação de “pós-moderno” praticamente desaparecesse. Antes de 2013, falar em autores como Foucault, Deleuze, Butler, Guattari, Negri em meios militantes ou partidários significava, quase ato contínuo, em ter de bancar as falas diante da catilinária de desqualificações de que seria “pós-modernismo” fraco. Basicamente, vocês, pós-modernos, traíram a luta de classe propugnando pela proliferação de frontes, dissolução de sujeitos, relativização dos valores humanistas e, máxima exprobação, ideias fora do lugar e do tempo que contribuem para a globalização predatória, o neoliberalismo, e o avanço da direita sobre uma esquerda fragmentada e dispersa. Tudo isso, desde o levante de 2013, e principalmente entre os mais jovens, parece ter se tornado uma problematização ultrapassada.

O Rodrigo elabora no sentido de problematizar os problematizadores, provocar os provocadores, polemizar com os polemistas, a fim de recolocar os problemas em coordenadas que, aposta-se, possam ter algum efeito prático na política radical, — um efeito que vá além de desconstruir e criticar o existente, — para ajudar a construir e repovoar os movimentos dissidentes à ordem capitalista. Duas tarefas conjugadas, já que destituir problemas falsos só faz sentido instituindo outros melhores, em que poderemos engajar ação e pensamento.

O autor mostra como, pressuposto na problematização de Deleuze, Guattari e Foucault, está um cenário de falência generalizada do socialismo real, contraposto por um esforço alegre em reconstruir-se diante do evento do Maio de 1968, que não se limita ao mês de maio de 68. Engloba um ciclo inteiro que se rizomatiza pela década seguinte e vai abranger lutas globais marcadas pela emergência dos movimentos negros, feminismos, LGBT, lutas anticoloniais, Primavera de Praga, Movimento de 77 na Itália, tropicalismo, cinema de guerrilha, pop art, Bob Dylan, sucessivas ocupações autonomistas de fábricas, teatros e universidades em vários continentes. Sem pensar na negação de formas específicas de organização — os partidos comunistas europeus, o sindicato da grande fábrica, a esquerda careta que sonha com o fordismo no terceiro mundo, certo nacional-desenvolvimentismo na ponta estatizante do anticolonialismo — sem esse plano de consistência, os conceitos deleuzianos ou foucaultianos simplesmente perdem a capacidade de gerar efeitos e se tornam, aí sim, artefatos cosméticos facilmente recuperados pelo mercado de radicalidades acadêmicas (um artigo brilhante sobre Jacques Derrida seria como um Rolex da academia).

A sacada do Rodrigo está em dizer que, quando alguém critica Deleuze, Guattari e Foucault, muitas vezes está criticando, pela via transversa, exatamente esse ciclo de lutas do evento Maio de 1968. Em nome do quê? Em nome das formas tradicionais, quais sejam: eurocomunismo, socialismo real, sindicatos etc. O abandono delas teria preparado a cama para a contrarrevolução neoliberal (ou pós-fordista) dos anos 1980, devastando a composição orgânica de classe que, talvez, algum dia deu vida às estruturas representativas dos partidos operários, sindicatos convencionais e movimentos sociais do tipo setorial. A classe trabalhadora virou suco. Isso aparece, por exemplo, numa leitura das lutas dos autonomistas italianos dos anos 1970 como fatores contribuintes para a derrocada do Partido Comunista daquele país, pavimentando a via para o horizonte grotesco da política com Berlusconi. Mas aparece, particularmente, também no Brasil, quando intelectuais ligados à “esquerda” governista, não cansam de acusar tais autores (adicionando G. Agamben) de ser inimigos do “que restou” da esquerda, abrindo a guarda, assim, aos contragolpes do grande capital (financeiro) e do avanço da direita. Seria preciso, desta forma, reinvestir nossa energia no método “lento e seguro” do partido no governo (do PT, do PCI, do PCF, dos democratas nos EUA etc), contra o método “rápido e sujo” dos novos movimentos.

Mas Rodrigo explica como ninguém “abandonou” a luta de classe em prol de políticas identitárias, da multiplicidade, da micropolítica difusa e molecular. Em primeiro lugar, porque quando Deleuze e Guattari falam em multiplicidade, eles não estão falando em desorganização. Multiplicidade é organizada, e sendo multiplicidade e organizada, consegue dirigir politicamente a potência no sentido da transformação do mundo — de qual? da utopia? — deste mundo. O capitalismo trabalha pela fragmentação e dispersão, por transformar a classe trabalhadora em suco; o movimento revolucionário irrompe dessa situação diaspórica vetores de reorganização e, diria Antonio Negri, recomposição de um comum. É organizar na multiplicidade mesma, orientado pelo critério da ação: a capacidade de gerar efeitos, não só de subverter o poder, mas de destituí-lo e reinstituí-lo noutros termos, noutros problemas. Isto não está “apenas” nos conceitos; mas no plano de consistência (Maio de 1968) em que estão pressupostos. Os movimentos eram organizados, mas com uma organização de novo tipo.

Em segundo lugar, não “abandonou” porque Maio de 1968 não foi recuperado na contrarrevolução neoliberal dos anos 1980 sem passar pelas mesmas formas representativas do estado e do mercado contra o que os movimentos sessentoitistas se insurgiam. A potência dos movimentos negro, LGBT, feministas, terceiromundistas, arte-ativistas, estudantis autônomos etc, isso teve de ser reconhecido. Certamente, o poder constituído preferiria não. Foi uma vitória. Mas a luta de classe não estaciona. No instante seguinte, o capitalismo global tratou de reacomodá-los num novo consenso, numa nova forma de governança em que pudessem ser pacificados. Daí o acionamento das velhas formas representativas para espalhar instâncias de mediação pelos novos territórios (novos modos de sentir, habitar) que Maio de 1968 constituiu. Apareceram mercados segmentados, interlocutores privilegiados cuja tarefa é anular a potência subversiva desses territórios, enquanto convertem suas riquezas biopolíticas em valor econômico, eleitoral, turístico, de diversidade, enfim, escolha a métrica.

Mas é mais do que isso. No capitalismo, os códigos tradicionais são dissolvidos e você não precisa acreditar nele. Nesse sentido, o capitalismo não é uma religião. Você pode circular o capital e realizar o valor, e até ficar rico, no mais absoluto cinismo em relação ao funcionamento do capital. Pouco importa, pro giro do dinheiro, se você é coxinha, mulher honesta, comerciante de boa fé, ou um grande canalha sem escrúpulos… Diante dessa evacuação de sentido do capitalismo, no que Deleuze e Guattari chamam de “axiomática”, o estado para continuar existindo — e, paradoxalmente, continuar sustentando a axiomática — precisa provocar uma enxurrada de cacos, pedaços de códigos e todo tipo de elemento de crença e fundamento transcendente, com seu correlato componente de cinismo. Não há nenhum progressismo na desterritorialização capitalista, na medida em que, ao dissolver códigos e desbloquear fluxos, ela liberta forças potentíssimas que podem, tranquilamente, convergir no fascismo, na guerra, na destruição ambiental. Isso já aparece nos romances cyberpunk dos anos 1980 e 1990, na paisagem futurista coabitada por alta tecnologia e arcaísmos fundamentalistas.

É o que Bruno Latour, menos anticapitalista, chamaria de “modernidade”: o momento histórico em que os “modernos” decidem se distinguir do resto do mundo, ao denunciá-lo sistematicamente de mundo daqueles que creem. A operação moderna por excelência consiste em dizer: eles creem (códigos tradicionais), nós sabemos (axiomática, sem fundo), até o ponto em que os modernos passam a denunciar a si mesmos depurando sem parar as crenças implícitas nos saberes racionais, até a vertigem do pós-modernismo, noutras palavras, a realização do modernismo, um hipermodernismo. Citado um pouco sem nuances, no texto do Rodrigo, o debate do aceleracionismo tem derivado, nos últimos 2 anos, precisamente, em como reterritorializar os fluxos libertos e as forças produtivas desbloqueadas, *noutros termos*, sem simplesmente negar a potência, o desejo. Porque é de desejo que se trata a luta no e contra o capitalismo. Acelerar é variação da velocidade, quer dizer, variação da variação: é um diferencial.

Portanto, para concluir, sim, com Foucault e Deleuze (e não contra eles), as identidades constituídas são vitórias a ser reconhecidas. Mas ainda é pouco. A questão não é opor identidade x diferença, mas problematizar o que fazer quando as identidades, desde pelo menos a década de 1980, vêm sendo reacomodadas em modos pacificados de existência, cancelando a potência subversiva e a capacidade de impactar a política de maneira dissidente. A questão é: pensar a partir do ponto de vista da identidade — fortalecer laços de pertencimento, reconhecimento e patrimônio conquistado — ou do ponto de vista da diferença — capacidade de hibridizar, reapropriar-se de estruturas de poder, pensar a partir do fora, do que ainda não se é, da ampliação do escopo de ação e transformação. Isto depende não de algum esquema metapolítico de teoria radical, uma espécie de dogmática, mas, como pontua o Rodrigo, de uma discussão no nível tático e estratégico, que saiba alternar modos de ação, envolvimento e libertação das amarras representativas, em função das circunstâncias concretas, das oportunidades e capacidades.

Junho de 2013 mudou qualquer coisa de essencial nas coordenadas da política. Talvez, a rigor, não tenha sido junho, mas todo um ciclo que tenha se tornando afinal incontornável, produzindo, assim como Maio de 1968 a seu modo, uma mudança irreversível dos problemas. Deleuze, Foucault e Guattari nunca estiveram tão a salvo de ser apropriados por “pós-modernismos” que, hoje, só existem na boca de seus detratores. Esses que não conseguem tirar o estado da cabeça, essa grande baleia branca que não cansam de perseguir por gerações a fio. Agora, nenhuma filosofia do tipo “cuidar do jardim” (micropolítica personalista), “família feliz” (afetos como sentimentalismo aburguesado) ou “festa do fim da história” (celebração acrítica dos fluxos, do múltiplo, da diversidade). A organização é o problema da multiplicidade.

Fonte:  Indisciplinar

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