PICICA: "Seria possível realizar hoje, nos
Estados Unidos, dentro dos parâmetros do cinema comercial, um drama
enxuto, adulto e inteligente, que não resvale para o previsível e
convencional? Mais forte que bombas, do norueguês Joachim Trier, atesta que sim."
Seria possível realizar hoje, nos
Estados Unidos, dentro dos parâmetros do cinema comercial, um drama
enxuto, adulto e inteligente, que não resvale para o previsível e
convencional? Mais forte que bombas, do norueguês Joachim Trier, atesta que sim.
Uma sinopse precária, pois incapaz de dar conta das inúmeras linhas de força do enredo, diria o seguinte: três anos depois da morte prematura da fotógrafa internacional de guerra Isabelle Reed (Isbelle Huppert), seu viúvo, o professor e ex-ator Gene (Gabriel Byrne) busca um equilíbrio possível com seus dois filhos, o jovem adulto Jonah (Jesse Eisenberg) e o adolescente Conrad (Devin Druid).
Trata-se, portanto, da tentativa de reconstituição de laços familiares esgarçados pela distância (Jonah, pai recente, é professor universitário em outra cidade) e por circunstâncias geracionais (Conrad, aos 14 anos, vive a plena ebulição dos hormônios juvenis, da saturação de informações, das crises de autoafirmação). Para acirrar esse quadro, haverá uma exposição de obras da fotógrafa, e um colega dela escreve um artigo para o New York Times revelando que sua morte não foi acidental, e sim um suicídio.
O que importa é o modo como o diretor Joachim Trier costura esses pontos de tensão, numa narrativa descontínua que dá espaço para cada um dos personagens revelar facetas insuspeitadas e contraditórias. Ao contrário do que ocorre nos melodramas convencionais, nenhum personagem é unidimensional, nenhum deles parece estar “pronto”, mas se constrói a cada cena.
Afeto oblíquo
Já o início do filme dá uma pista sobre seu modo de encarar as relações humanas como um jogo entre verdade e aparência. Nos corredores do hospital em que sua mulher acaba de dar à luz, Jonah encontra uma antiga namorada e, no diálogo entrecortado que os dois estabelecem, a moça entende que ele acaba de ficar viúvo. A cena termina sem o esclarecimento do mal-entendido, com um abraço afetuoso entre os dois ex-namorados.
O afeto oblíquo, refratado, fugidio, é a marca de todas as relações entre os personagens e determina também o método de construção narrativa e de mise-en-scène. Um exemplo eloquente é a sequência em que o pai segue à distância o filho mais novo, observa-o sozinho num parque, depois entrando numa lanchonete e por fim prostrando-se diante de um túmulo no cemitério. A mesma cena é mostrada depois do ponto de vista do próprio garoto, revelando a contrapelo a falsidade das conclusões a que o pai certamente tinha chegado.
Abismo adolescente
O personagem “mais crucial”, se é possível dizer isso, é justamente o de Conrad, o filho adolescente. No meio do filme, numa conversa com o irmão mais velho, ele mostra que, por trás do esquisitinho meio nerd, existem profundezas insondáveis de inteligência e sensibilidade. Isso não é tanto explicitado no diálogo, mas dado a ver principalmente numa colagem “ensaística” em que entram imagens de noticiários, fotos, clipes, games, computação gráfica, documentários científicos, quase como num filme de Jorge Furtado.
Tamanha delicadeza e respeito na abordagem do universo adolescente só se encontra, no cinema americano recente, em certos filmes de Gus Van Sant ou, talvez, de Paul Thomas Anderson. Mas os personagens de meia-idade – o pai professor, a mãe fotógrafa (que reaparece em flashbacks) – também têm zonas de sombra que só são iluminadas aos poucos, e nunca de modo completo.
As locuções em off, sempre na voz de algum personagem, jamais são redundantes: não raro, contradizem ou matizam aquilo que estamos vendo. E a colocação e os movimentos de câmera nunca são gratuitos, estão sempre a serviço da observação de um personagem ou de uma atmosfera. Destaca-se o uso preciso e comedido da câmera na mão, que Carlos Reichenbach qualificava de “o mais perturbador do cinema”.
A sensação que permeia o filme e que prevalece no final é a da vulnerabilidade de cada indivíduo e do caráter precioso, único, de todo relacionamento humano. Estamos distantes, aqui, do universo raso de winners e losers que infesta a produção convencional de Hollywood.
Sorrentino entre o estilo e a afetação
Os filmes do italiano Paolo Sorrentino (Il divo, Aqui é o meu lugar, A grande beleza) costumam suscitar reações apaixonadas no seio da crítica e dos espectadores. Uns o consideram um grande artista, dono de um estilo próprio e original, outros o veem como um pomposo diluidor de Fellini, mais preocupado com o efeito do que com a consistência de suas imagens extravagantes, suntuosas e bizarras.
Digo logo que me sinto mais próximo dos últimos, mas penso que um crítico deve tentar manter sob controle suas idiossincrasias e predisposições, de modo a conceder a todo filme, a qualquer filme, a possibilidade de desarmá-lo, de convencê-lo, de conquistá-lo.
Com esse espírito fui ver Juventude, a nova obra de Sorrentino. Com grande elenco internacional, ambientado num hotel-estância nos Alpes suíços, o filme entrelaça histórias cômico-dramáticas de vários personagens díspares, entre hóspedes e empregados, tendo como fio condutor uma reflexão sobre a passagem do tempo, os projetos de vida, a juventude perdida etc.
Fellini está presente, claro. Se a matriz óbvia de A grande beleza era A doce vida, desta vez a principal referência é Oito e meio, ambientado igualmente num hotel-estância de luxo. Aqui também há um diretor de cinema famoso (Harvey Keitel) às voltas com os impasses de seu próximo filme, que ele vê como uma espécie de testamento estético e existencial.
Mas o protagonista, se há algum, é outro artista veterano, o compositor e regente Fred Ballinger (Michael Caine), que medita sobre sua arte e sobre “a vida que poderia ter sido”, suspirando pela energia vital da juventude, um pouco como o Gustav von Aschenbach de Morte em Veneza.
Fauna heterogênea
Em torno desses dois velhos amigos trafega uma fauna heterogênea, incluindo um gordíssimo Diego Maradona (Roly Serrano), um monge oriental supostamente capaz de levitar e um ator (Paul Dano) cansado de ser conhecido apenas por ter encarnado um robô, mais ou menos como o Michael Keaton de Birdman.
A sombra felliniana aparece em cenas como a da sauna repleta de corpos nus na névoa e na contraluz, na performance de uma artista circense que molda no ar imensas e multiformes bolhas de sabão e numa cena belíssima num prado em que o velho maestro “rege” os ruídos ambientes: mugidos de vacas, cincerros, cantos de pássaros, o vento nas árvores, feito um Hermeto Paschoal dos Alpes.
A cenografia suntuosa, os enquadramentos pictóricos, a iluminação deslumbrante, tudo isso faz de Juventude um espetáculo visual que ameaça sufocar a substância humana do drama, situando-se sempre na fronteira entre o estilo e a afetação, entre o grande cinema e um comercial da M. Officer dos anos 1990. A intenção de beleza é tão ostensiva que chega a pesar. Sorrentino, de certa forma, “perfuma a flor”, para usar a expressão que João Cabral de Melo Neto empregava para falar dos poetas que tentam embelezar o que já é belo.
Uma coisa, entretanto, é inegável: o prazer de ver em cena atores formidáveis como Michael Caine, Harvey Keitel e Jane Fonda. Só eles já valem o ingresso.
Uma sinopse precária, pois incapaz de dar conta das inúmeras linhas de força do enredo, diria o seguinte: três anos depois da morte prematura da fotógrafa internacional de guerra Isabelle Reed (Isbelle Huppert), seu viúvo, o professor e ex-ator Gene (Gabriel Byrne) busca um equilíbrio possível com seus dois filhos, o jovem adulto Jonah (Jesse Eisenberg) e o adolescente Conrad (Devin Druid).
Trata-se, portanto, da tentativa de reconstituição de laços familiares esgarçados pela distância (Jonah, pai recente, é professor universitário em outra cidade) e por circunstâncias geracionais (Conrad, aos 14 anos, vive a plena ebulição dos hormônios juvenis, da saturação de informações, das crises de autoafirmação). Para acirrar esse quadro, haverá uma exposição de obras da fotógrafa, e um colega dela escreve um artigo para o New York Times revelando que sua morte não foi acidental, e sim um suicídio.
O que importa é o modo como o diretor Joachim Trier costura esses pontos de tensão, numa narrativa descontínua que dá espaço para cada um dos personagens revelar facetas insuspeitadas e contraditórias. Ao contrário do que ocorre nos melodramas convencionais, nenhum personagem é unidimensional, nenhum deles parece estar “pronto”, mas se constrói a cada cena.
Afeto oblíquo
Já o início do filme dá uma pista sobre seu modo de encarar as relações humanas como um jogo entre verdade e aparência. Nos corredores do hospital em que sua mulher acaba de dar à luz, Jonah encontra uma antiga namorada e, no diálogo entrecortado que os dois estabelecem, a moça entende que ele acaba de ficar viúvo. A cena termina sem o esclarecimento do mal-entendido, com um abraço afetuoso entre os dois ex-namorados.
O afeto oblíquo, refratado, fugidio, é a marca de todas as relações entre os personagens e determina também o método de construção narrativa e de mise-en-scène. Um exemplo eloquente é a sequência em que o pai segue à distância o filho mais novo, observa-o sozinho num parque, depois entrando numa lanchonete e por fim prostrando-se diante de um túmulo no cemitério. A mesma cena é mostrada depois do ponto de vista do próprio garoto, revelando a contrapelo a falsidade das conclusões a que o pai certamente tinha chegado.
Abismo adolescente
O personagem “mais crucial”, se é possível dizer isso, é justamente o de Conrad, o filho adolescente. No meio do filme, numa conversa com o irmão mais velho, ele mostra que, por trás do esquisitinho meio nerd, existem profundezas insondáveis de inteligência e sensibilidade. Isso não é tanto explicitado no diálogo, mas dado a ver principalmente numa colagem “ensaística” em que entram imagens de noticiários, fotos, clipes, games, computação gráfica, documentários científicos, quase como num filme de Jorge Furtado.
Tamanha delicadeza e respeito na abordagem do universo adolescente só se encontra, no cinema americano recente, em certos filmes de Gus Van Sant ou, talvez, de Paul Thomas Anderson. Mas os personagens de meia-idade – o pai professor, a mãe fotógrafa (que reaparece em flashbacks) – também têm zonas de sombra que só são iluminadas aos poucos, e nunca de modo completo.
As locuções em off, sempre na voz de algum personagem, jamais são redundantes: não raro, contradizem ou matizam aquilo que estamos vendo. E a colocação e os movimentos de câmera nunca são gratuitos, estão sempre a serviço da observação de um personagem ou de uma atmosfera. Destaca-se o uso preciso e comedido da câmera na mão, que Carlos Reichenbach qualificava de “o mais perturbador do cinema”.
A sensação que permeia o filme e que prevalece no final é a da vulnerabilidade de cada indivíduo e do caráter precioso, único, de todo relacionamento humano. Estamos distantes, aqui, do universo raso de winners e losers que infesta a produção convencional de Hollywood.
Sorrentino entre o estilo e a afetação
Os filmes do italiano Paolo Sorrentino (Il divo, Aqui é o meu lugar, A grande beleza) costumam suscitar reações apaixonadas no seio da crítica e dos espectadores. Uns o consideram um grande artista, dono de um estilo próprio e original, outros o veem como um pomposo diluidor de Fellini, mais preocupado com o efeito do que com a consistência de suas imagens extravagantes, suntuosas e bizarras.
Digo logo que me sinto mais próximo dos últimos, mas penso que um crítico deve tentar manter sob controle suas idiossincrasias e predisposições, de modo a conceder a todo filme, a qualquer filme, a possibilidade de desarmá-lo, de convencê-lo, de conquistá-lo.
Com esse espírito fui ver Juventude, a nova obra de Sorrentino. Com grande elenco internacional, ambientado num hotel-estância nos Alpes suíços, o filme entrelaça histórias cômico-dramáticas de vários personagens díspares, entre hóspedes e empregados, tendo como fio condutor uma reflexão sobre a passagem do tempo, os projetos de vida, a juventude perdida etc.
Fellini está presente, claro. Se a matriz óbvia de A grande beleza era A doce vida, desta vez a principal referência é Oito e meio, ambientado igualmente num hotel-estância de luxo. Aqui também há um diretor de cinema famoso (Harvey Keitel) às voltas com os impasses de seu próximo filme, que ele vê como uma espécie de testamento estético e existencial.
Mas o protagonista, se há algum, é outro artista veterano, o compositor e regente Fred Ballinger (Michael Caine), que medita sobre sua arte e sobre “a vida que poderia ter sido”, suspirando pela energia vital da juventude, um pouco como o Gustav von Aschenbach de Morte em Veneza.
Fauna heterogênea
Em torno desses dois velhos amigos trafega uma fauna heterogênea, incluindo um gordíssimo Diego Maradona (Roly Serrano), um monge oriental supostamente capaz de levitar e um ator (Paul Dano) cansado de ser conhecido apenas por ter encarnado um robô, mais ou menos como o Michael Keaton de Birdman.
A sombra felliniana aparece em cenas como a da sauna repleta de corpos nus na névoa e na contraluz, na performance de uma artista circense que molda no ar imensas e multiformes bolhas de sabão e numa cena belíssima num prado em que o velho maestro “rege” os ruídos ambientes: mugidos de vacas, cincerros, cantos de pássaros, o vento nas árvores, feito um Hermeto Paschoal dos Alpes.
A cenografia suntuosa, os enquadramentos pictóricos, a iluminação deslumbrante, tudo isso faz de Juventude um espetáculo visual que ameaça sufocar a substância humana do drama, situando-se sempre na fronteira entre o estilo e a afetação, entre o grande cinema e um comercial da M. Officer dos anos 1990. A intenção de beleza é tão ostensiva que chega a pesar. Sorrentino, de certa forma, “perfuma a flor”, para usar a expressão que João Cabral de Melo Neto empregava para falar dos poetas que tentam embelezar o que já é belo.
Uma coisa, entretanto, é inegável: o prazer de ver em cena atores formidáveis como Michael Caine, Harvey Keitel e Jane Fonda. Só eles já valem o ingresso.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: BLOG DO IMS
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