abril 08, 2016

Devir-Animal. Escrito por Rafael Trindade (RAZÃO INADEQUADA)

PICICA: "Deleuze e Guattari partem do conceito de devir para expor o devir-animal. Sim, claro, existem alguns animais solitários, mas nós aqui estamos falando dos animais capazes de compor bandos, andar em grupo. Há neles uma lógica de propagação: ele vão para o norte, vão para o sul, os leões seguem as zebras pela savana, há a mudança de estações. Um bando se compõe com seu ambiente e suas relações internas. Pensar em um devir-animal, nos ensinam Deleuze e Guattari, é aprender a pensar as multiplicidades." 
 
“Num devir-animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com um multiplicidade” – D&G, Mil Platôs 4, p. 20
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Deleuze e Guattari partem do conceito de devir para expor o devir-animal. Sim, claro, existem alguns animais solitários, mas nós aqui estamos falando dos animais capazes de compor bandos, andar em grupo. Há neles uma lógica de propagação: ele vão para o norte, vão para o sul, os leões seguem as zebras pela savana, há a mudança de estações. Um bando se compõe com seu ambiente e suas relações internas. Pensar em um devir-animal, nos ensinam Deleuze e Guattari, é aprender a pensar as multiplicidades.

Há uma dinâmica muito maior que a do animal solitário, encontra-se nas matilhas, nos bando, nas alcateias, nos enxames uma riqueza enorme do organismo múltiplo que se comporta como um na hora da caçada. Como os lobos sabem qual presa atacar? Como eles se entendem movendo-se pela floresta? Existe uma inteligência coletiva, uma comunicação sutil. Não se devém animal sem um fascínio pelo enxame, pela multidão. O mais interessante aqui é o modo de expansão, como um contágio, se espalhando, borbulhando. Todo devir-animal é um fascínio pela matilha, pela multiplicidade. Ao invés de perguntar: “o que é isso?”, é necessário perguntar-se “como isso funciona?”.
Quando uma rede disseminada ataca, investe sobre o inimigo como um enxame: inúmeras forças independentes parecem atacar de todas as direções num ponto específico, voltando em seguida a desaparecer no ambiente” – Negri e Hardt, Multidão, p. 130
Não estamos sonhando, tudo isso é perfeitamente real. Sem metonímias, nem metáforas, o homem realmente devém animal, sem que cresçam pelos, nem caninos. Tal devir é possível quando, através desta zona de vizinhança, ele se modifica e suas partículas entram em outra relação de movimento e repouso. Todo devir é um portal que precisamos atravessar, um porto do qual partimos para um mar nunca antes navegado. Por isso é possível dizer que o devir é uma aliança. O devir-lobo do homem e o devir-homem do lobo, dupla captura. Alianças não filiativas, involuções criativas, enfim, criação de um bloco que segue por entre os dois termos.

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Imitar o animal limitaria o devir, seria um ponto de parada que atrasaria todo o processo. Sim, sim, pode-se imitar o animal, mas apenas para mais facilmente entrar nesta zona de convergência e encontrar seu próprio devir-animal. É preciso traçar uma tangente, estar na periferia. Não estamos falando de analogias: uso minhas mãos como os lobos usam suas patas (o estruturalismo não dá conta dos devires). Trata-se de uma desterritorialização, que só pode ser forçada, só pode ser violenta, vir de fora e arrastar a forma-homem.
Trata-se de fazer corpo com o animal, um corpo sem órgãos definido por zonas de intensidade ou de vizinhança” – D&G, Mil Platôs 4, p. 69
E para que fique claro, não estamos falando de cachorrinhos nem de gatinhos, muito menos de direitos dos animais. O devir-animal não é vestir seu poodle com roupinha e sapatinho. Pelo contrário, estes animais são os mais neuróticos e precisam de um divã tanto quanto seus donos. “Meu devir é real, inclusive e sobretudo se vocês não podem julgá-lo, porque vocês são cachorrinhos domésticos” (Lawrence). O perigo do devir-animal é sempre imitar o animal doméstico. Dupla morte do devir: imitação e o familismo.

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Por toda parte onde há multiplicidade, você encontrará também um indivíduo excepcional, e é com ele que terá que fazer aliança para devir-animal” – D&G, Mil Platôs 4, p. 26
Ao encarar o bando, sempre encontraremos um animal anômalo. Ele é a ponta de desterritorialização da matilha, é o movimento que se destaca e se lança em outros devires, é o batedor que corre na frente. A anomalia é a forma pela qual a natureza cria. Podemos pensar em Moby Dick, de Melville, em Josefina, de Kafka, Buck em Caninos Brancos, de London.

Não estamos falando do anormal, que já contém uma conotação moral. O anômalo é aquele que ainda não tem nome, não foi territorializado, codificado, o feiticeiro, o demônio. Encontramos o anômalo na beira das florestas, na favela, na periferia, onde o Poder não chega. Nem indivíduo, nem espécie, o anômalo é o que escapa. Há sempre um corte na multiplicidade, e neste corte as forças ativas são anômalas, é com elas que se faz alianças e se entra em devir. Encontramos assim as possibilidades que jamais encontraríamos se não entrássemos na zona de vizinhança de um animal qualquer: um rato, um macaco, um carrapato, um lobo. Encontrar a anomalia na multiplicidade é lidar com intensidades ainda não reconhecidas. Gregor Samsa, por exemplo, resiste quando devém barata. É uma fuga ativa, uma fuga intensa. Fugindo, criam-se armas. Fuga não é sinônimo de medo, é preciso fazer fugir, o tédio, a culpa, o medo, o marasmo. A fuga é também aquela que faz fugir.

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Há toda uma política dos devires-animais, como uma política da feitiçaria: esta política se elabora em agenciamentos que não são nem os de família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles exprimiriam antes grupo minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas, mais secretos, ainda por serem extrínsecos, em suma anômicos” – D&G, Mil Platôs 4, p. 31
Nossa intenção? Encontrar uma lógica viral, que se propague pelo campo, que se amplie, se divida, contagie. O vírus é um Cavalo de Troia, ele entra na célula e sua suas próprias ferramentas contra ela. Desterritorialização e reterritorialização. Contágio e incorporação, este território agora nos pertence, nós marcamos seus cantos, mijamos nas paredes, roçamos nossos corpos nos portões de entrada. Esta terra é minha, esta escola é minha, esta praça é minha. A matilha dá ao seu território o seu cheiro.

Operar somente por contágios e matilhas que se juntam para buscar e constituir novos territórios. É difícil de identificá-los dentro de normas e regras porque eles estão sempre se desterritorializando quando os territórios se tornam inférteis. Todo devir-animal é uma nomadização do cachorrinho de madame. O vira-lata está mais próximo dos devires que o poodle no carrinho de bebê passeando pelo shopping. As multidões compõem mais devires, mais pontes, em seu movimento contínuo. E neste devir, quantas vezes elas não se afastam dos partidos! A autonomia é a ordem do dia, a máquina partidária não sabe o que isso significa. O devir-animal é a possibilidade de uma esquerda anômala.

Nós que já falamos tanto nesta página da capacidade de compor territórios, podemos apostar em um devir-animal para fazer isso. Sempre criando alianças, sempre encontrando aliados. A alcateia é composta por vários lobos, eles se movem como um organismo vivo pela floresta, eles encontrar sinais na casca das árvores, rastros na neve. Mesmo que o macho alfa não veja algo, o resto do bando vê. São vários olhos, várias orelhas, vários focinhos, todos funcionando em conjunto. É desta forma que eles se misturam com a floresta, se espalham, se estendem, criam um território onde vivem e se proliferam. A mesma coisa vale para cardumes, enxames, manadas.

Sebastião Salgado
Sebastião Salgado

Mesmo com todas as dificuldades, mesmo estando em um cubículo apertado de escritório, é possível devir-animal. As linhas de fuga são capazes de vazar pelas paredes claustrofóbicas e encontrar outros fluxos (vale lembrar as possibilidades da internet). O que é vivo sempre vaza, sempre extrapola. Por isso a importância das alianças, a necessidade de se fazer aliados. O devir-animal cria rizomas, encontra Zonas Autônomas Temporárias, invade, ocupa, para constituir territórios. No devir-animal, a luta acontece nas bordas. Todo animal sabe comer pelas beiradas.
Devir animal é precisamente fazer o movimento, traçar a linha de fuga em toda a sua positividade, ultrapassar um limiar, atingir um continuum de intensidades que só valem por si mesmas, encontrar um mundo de intensidades puras, em que todas as formas de desfazem” – D&G, Kafka – por uma literatura menor, p. 27
> Texto da série: Ética dos Devires <

Sebastião Salgado
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Escrito por Rafael Trindade

Artesão de mim, habito a superfície da pele, atento para o que entra e sai. 

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