PICICA: "Deleuze
e Guattari partem do conceito de devir para expor o devir-animal. Sim,
claro, existem alguns animais solitários, mas nós aqui estamos falando
dos animais capazes de compor bandos, andar em grupo. Há neles uma
lógica de propagação: ele vão para o norte, vão para o sul, os leões
seguem as zebras pela savana, há a mudança de estações. Um bando se
compõe com seu ambiente e suas relações internas. Pensar em um
devir-animal, nos ensinam Deleuze e Guattari, é aprender a pensar as
multiplicidades."
“Num devir-animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com um multiplicidade” – D&G, Mil Platôs 4, p. 20
Deleuze
e Guattari partem do conceito de devir para expor o devir-animal. Sim,
claro, existem alguns animais solitários, mas nós aqui estamos falando
dos animais capazes de compor bandos, andar em grupo. Há neles uma
lógica de propagação: ele vão para o norte, vão para o sul, os leões
seguem as zebras pela savana, há a mudança de estações. Um bando se
compõe com seu ambiente e suas relações internas. Pensar em um
devir-animal, nos ensinam Deleuze e Guattari, é aprender a pensar as
multiplicidades.
Há uma dinâmica muito maior que a do
animal solitário, encontra-se nas matilhas, nos bando, nas alcateias,
nos enxames uma riqueza enorme do organismo múltiplo que se comporta
como um na hora da caçada. Como os lobos sabem qual presa atacar? Como
eles se entendem movendo-se pela floresta? Existe uma inteligência
coletiva, uma comunicação sutil. Não se devém animal sem um fascínio
pelo enxame, pela multidão.
O mais interessante aqui é o modo de expansão, como um contágio, se
espalhando, borbulhando. Todo devir-animal é um fascínio pela matilha,
pela multiplicidade. Ao invés de perguntar: “o que é isso?”, é
necessário perguntar-se “como isso funciona?”.
Quando uma rede disseminada ataca, investe sobre o inimigo como um enxame: inúmeras forças independentes parecem atacar de todas as direções num ponto específico, voltando em seguida a desaparecer no ambiente” – Negri e Hardt, Multidão, p. 130
Não estamos sonhando, tudo isso é
perfeitamente real. Sem metonímias, nem metáforas, o homem realmente
devém animal, sem que cresçam pelos, nem caninos. Tal devir é possível
quando, através desta zona de vizinhança, ele se modifica e suas
partículas entram em outra relação de movimento e repouso. Todo devir é
um portal que precisamos atravessar, um porto do qual partimos para um
mar nunca antes navegado. Por isso é possível dizer que o devir é uma
aliança. O devir-lobo do homem e o devir-homem do lobo, dupla captura.
Alianças não filiativas, involuções criativas, enfim, criação de um
bloco que segue por entre os dois termos.
Imitar o animal limitaria o devir, seria
um ponto de parada que atrasaria todo o processo. Sim, sim, pode-se
imitar o animal, mas apenas para mais facilmente entrar nesta zona de
convergência e encontrar seu próprio devir-animal. É preciso traçar uma
tangente, estar na periferia. Não estamos falando de analogias: uso
minhas mãos como os lobos usam suas patas (o estruturalismo não dá conta
dos devires). Trata-se de uma desterritorialização, que só pode ser
forçada, só pode ser violenta, vir de fora e arrastar a forma-homem.
Trata-se de fazer corpo com o animal, um corpo sem órgãos definido por zonas de intensidade ou de vizinhança” – D&G, Mil Platôs 4, p. 69
E para que fique claro, não estamos
falando de cachorrinhos nem de gatinhos, muito menos de direitos dos
animais. O devir-animal não é vestir seu poodle com roupinha e
sapatinho. Pelo contrário, estes animais são os mais neuróticos e
precisam de um divã tanto quanto seus donos. “Meu devir é real, inclusive e sobretudo se vocês não podem julgá-lo, porque vocês são cachorrinhos domésticos” (Lawrence). O perigo do devir-animal é sempre imitar o animal doméstico. Dupla morte do devir: imitação e o familismo.
Por toda parte onde há multiplicidade, você encontrará também um indivíduo excepcional, e é com ele que terá que fazer aliança para devir-animal” – D&G, Mil Platôs 4, p. 26
Ao encarar o bando, sempre encontraremos
um animal anômalo. Ele é a ponta de desterritorialização da matilha, é o
movimento que se destaca e se lança em outros devires, é o batedor que
corre na frente. A anomalia é a forma pela qual a natureza cria. Podemos
pensar em Moby Dick, de Melville, em Josefina, de Kafka, Buck em
Caninos Brancos, de London.
Não estamos falando do anormal, que já
contém uma conotação moral. O anômalo é aquele que ainda não tem nome,
não foi territorializado, codificado, o feiticeiro, o demônio.
Encontramos o anômalo na beira das florestas, na favela, na periferia,
onde o Poder não chega. Nem indivíduo, nem espécie, o anômalo é o que
escapa. Há sempre um corte na multiplicidade, e neste corte as forças
ativas são anômalas, é com elas que se faz alianças e se entra em devir.
Encontramos assim as possibilidades que jamais encontraríamos se não
entrássemos na zona de vizinhança de um animal qualquer: um rato, um
macaco, um carrapato, um lobo. Encontrar a anomalia na multiplicidade é
lidar com intensidades ainda não reconhecidas. Gregor Samsa, por
exemplo, resiste quando devém barata. É uma fuga ativa, uma fuga
intensa. Fugindo, criam-se armas. Fuga não é sinônimo de medo, é preciso
fazer fugir, o tédio, a culpa, o medo, o marasmo. A fuga é também
aquela que faz fugir.
Há toda uma política dos devires-animais, como uma política da feitiçaria: esta política se elabora em agenciamentos que não são nem os de família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles exprimiriam antes grupo minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas, mais secretos, ainda por serem extrínsecos, em suma anômicos” – D&G, Mil Platôs 4, p. 31
Nossa intenção? Encontrar uma lógica
viral, que se propague pelo campo, que se amplie, se divida, contagie. O
vírus é um Cavalo de Troia, ele entra na célula e sua suas próprias
ferramentas contra ela. Desterritorialização e reterritorialização.
Contágio e incorporação, este território agora nos pertence, nós
marcamos seus cantos, mijamos nas paredes, roçamos nossos corpos nos
portões de entrada. Esta terra é minha, esta escola é minha, esta praça é
minha. A matilha dá ao seu território o seu cheiro.
Operar somente por contágios e matilhas
que se juntam para buscar e constituir novos territórios. É difícil de
identificá-los dentro de normas e regras porque eles estão sempre se
desterritorializando quando os territórios se tornam inférteis. Todo
devir-animal é uma nomadização do cachorrinho de madame. O vira-lata
está mais próximo dos devires que o poodle no carrinho de bebê passeando
pelo shopping. As multidões compõem mais devires, mais pontes, em seu
movimento contínuo. E neste devir, quantas vezes elas não se afastam dos
partidos! A autonomia é a ordem do dia, a máquina partidária não sabe o
que isso significa. O devir-animal é a possibilidade de uma esquerda
anômala.
Nós que já falamos tanto nesta página da
capacidade de compor territórios, podemos apostar em um devir-animal
para fazer isso. Sempre criando alianças, sempre encontrando aliados. A
alcateia é composta por vários lobos, eles se movem como um organismo
vivo pela floresta, eles encontrar sinais na casca das árvores, rastros
na neve. Mesmo que o macho alfa não veja algo, o resto do bando vê. São
vários olhos, várias orelhas, vários focinhos, todos funcionando em
conjunto. É desta forma que eles se misturam com a floresta, se
espalham, se estendem, criam um território onde vivem e se proliferam. A
mesma coisa vale para cardumes, enxames, manadas.
Mesmo com todas as dificuldades, mesmo
estando em um cubículo apertado de escritório, é possível devir-animal.
As linhas de fuga são capazes de vazar pelas paredes claustrofóbicas e
encontrar outros fluxos (vale lembrar as possibilidades da internet). O
que é vivo sempre vaza, sempre extrapola. Por isso a importância das
alianças, a necessidade de se fazer aliados. O devir-animal cria rizomas,
encontra Zonas Autônomas Temporárias, invade, ocupa, para constituir
territórios. No devir-animal, a luta acontece nas bordas. Todo animal
sabe comer pelas beiradas.
Devir animal é precisamente fazer o movimento, traçar a linha de fuga em toda a sua positividade, ultrapassar um limiar, atingir um continuum de intensidades que só valem por si mesmas, encontrar um mundo de intensidades puras, em que todas as formas de desfazem” – D&G, Kafka – por uma literatura menor, p. 27
> Texto da série: Ética dos Devires <
Nenhum comentário:
Postar um comentário