abril 18, 2016

Homem na estrada: ainda sobre a pobreza como caso de polícia. POR César Gandhi (OBVIOUS)

PICICA: "Em 1993, os Racionais MC’s lançaram LP que marcaria a vez e a voz desse Brasil até então capa apenas dos noticiários de polícia: a periferia. Uma das canções,“Homem na estrada”, mais de 20 anos depois, ainda traduz o retrato pungente da gestão penal da pobreza. Negro, pobre, favelado e ex-presidiário, a esse “homem” a sociedade (nós) ainda se apresenta da mesma forma, como dizia Darcy Ribeiro: “um moinho de gastar gente”." 


Homem na estrada: ainda sobre a pobreza como caso de polícia


Em 1993, os Racionais MC’s lançaram LP que marcaria a vez e a voz desse Brasil até então capa apenas dos noticiários de polícia: a periferia. Uma das canções,“Homem na estrada”, mais de 20 anos depois, ainda traduz o retrato pungente da gestão penal da pobreza. Negro, pobre, favelado e ex-presidiário, a esse “homem” a sociedade (nós) ainda se apresenta da mesma forma, como dizia Darcy Ribeiro: “um moinho de gastar gente”.

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O palco da história contada por Mano Brown permite as mais amplas e específicas abordagens: a carência de políticas públicas para a periferia, a perpetuação da pobreza e a falta de horizontes entre determinados grupos sociais, a quase morte social do ex-presidiário, a discussão acerca da regulamentação do consumo de entorpecentes, os pesos e as medidas da justiça criminal em relação aos seus “clientes”, entre tantas outras. 

Por outro lado, após tantos anos nas entranhas da burocracia estatal, do presídio à Justiça, ainda considero que “Homem na estrada” é uma história acerca do tratamento da pobreza como caso de polícia. A partir da música, façamos esforço pra dialogar com as ideias envolvidas; afinal, é preciso ir ganhando repertório na vida; ouvir/ler pode ser uma das dimensões desse exercício.

1. Releituras do cárcere

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Muitos morreram sim, sonhando alto assim, me digam quem é feliz, quem não se desespera, vendo nascer seu filho no berço da miséria.
 
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios), existem hoje no Brasil mais de 700 mil indivíduos cumprindo pena em regime de encarceramento, o que nos “premia” com a terceira colocação no ranking mundial de população atrás das grades.

A nossa política de encarceramento em massa, noutro sentido, alimenta um ciclo de violências epistêmicas e reais sobre aqueles alcançados pela pena. As unidades penitenciárias, salvo raras exceções, são porões de humilhação, prontas a sugar qualquer réstia de humanidade ainda presente naqueles ali submetidos (http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/pj-mutirao-carcerario/relatorios).

Nesse mesmo caldeirão, adicione-se o déficit de 354 mil vagas no sistema, além de 373.991 mandados de prisão em aberto, o que elevaria a população carcerária para mais 1 milhão de pessoas

Cristian Dunker, em artigo publicado no livro Bala perdida, edição Carta Maior/Boitempo, analisa o que chama de mal-estar, ou seja, o conjunto de impasses traduzidos na lembrança perene de nossa condição trágica de existência.

O nosso mal-estar envolve todo esse contexto de violência, polícia e cárcere, traduzido nas opções que fazemos por meio do sistema jurídico-penal. Nesse ponto, é preciso resgatar a ideia de que o Direito Penal, como instrumento de repressão e proteção a bens jurídicos relevantes, existe antes como construção social arbitrária do que, ontologicamente, como expressão natural do “progresso” e da organização da vida.

Dito em outras palavras, a Justiça Criminal age de maneira institucionalizada (de acordo com o que foi decidido politicamente, afinal as leis são discutidas e aprovadas no Parlamento) num determinado sentido, não meramente casual. Tomemos um exemplo prático: atualmente, o indivíduo que furta um carro e uma semana depois o devolve ao dono, antes do recebimento da denúncia pelo Juiz, poderá ter a pena reduzida de um a dois terços, ainda assim não escapando da sanção (art. 16 do Código Penal).

Já o larápio que sonega milhões de reais em tributos e depois de descoberto o delito, mas antes do recebimento da denúncia, quita-os, terá extinta a sua punibilidade, como se nada tivesse ocorrido (Art. 34 da Lei 9249/95).

Repare: o mal-estar reside justamente na ambiguidade com que o jogo político/jurídico se perfaz. Um inquérito policial na delegacia de polícia expressa necessariamente inúmeras ausências: falhou a família, falhou o Estado, falhou a Igreja, falhou o cidadão/indivíduo. O Direito Penal, como última fronteira, surge então como panaceia para todo esquema de violências anteriores.
Curiosamente, o resultado se traduz no encarceramento em massa de uma população majoritariamente jovem (entre 18 e 30 anos), pouco escolarizada (ensino fundamental incompleto), masculina, pobre e parda/negra. Quanta coincidência, não?

2. Mas e a vítima, ninguém pensa nela?

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Acharam uma mina morta e estuprada, deviam estar com muita raiva. "Mano, quanta paulada!". Estava irreconhecível, o rosto desfigurado. Deu meia noite e o corpo ainda estava lá, coberto com lençol, ressecado pelo sol, jogado. O IML estava só dez horas atrasado.
 
Em 2013, aproximadamente 50 mil pessoas tiveram suas vidas ceifadas em crimes violentos (homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte). Desse total de ações delituosas, apenas 8% foram devidamente elucidadas e encaminhadas ao Poder Judiciário. Também, estima-se que cerca de 143 mil estupros tenham ocorrido no mesmo ano no Brasil.

Se forem levados em consideração todos os outros milhares de casos de delitos de roubo, furto, tráfico de drogas etc., que estampam a vida urbana, perderíamos a contagem de todos os rostos, raivas e frustrações das pessoas subjugadas aos pés da violência.

Diante disso, a senha poderia ser facilmente digitada: “bandido tem mais é que se foder, mesmo!”, “pau neles!”, “tranca tudo e joga a chave fora, deixa eles se danarem lá!”. Por que gastar tanta energia intelectual com gente da pior espécie, poderiam perguntar? 

Bem, mesmo sem carregar olhos encardidos de certezas sobre a vida, prefiro dimensionar que não acordamos do jeito que somos por que queremos, mas por que estruturalmente a sociedade vai nos moldando assim, na sua alquimia energizante. Se a ordem pública se rompe quando um cidadão tomba diante da violência, não se pode fazer disso o grito simplista para enforcamentos coletivos e extermínios de “homens maus”.

Como dizia Shakespeare, “ser sábio é saber que não somos inocentes”. Somos parte dos micro e dos macroprocessos de violência que se perpetuam na sociedade. Será que nesse abismo de culpas coletivas vale a pena continuar permeando nosso imaginário da colonização de ideias como higienização social, racismo, machismo e fanatismo religioso? Quem afinal merece estar atrás das grades?

3. Polícia para quem precisa?

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Não confio na polícia, raça do caralho. Se eles me acham baleado na calçada, chutam minha cara e cospem em mim é...

Como aponta Fernanda Mena, no mesmo Bala Perdida [edição Carta Maior/Boitempo], no Brasil emprega-se um reducionismo no conceito de segurança pública, traduzindo-o como sinônimo apenas de “polícia”; e não raras vezes de Polícia Militar.

E aí reside o ponto de inflexão, pois a imensa maioria dos desafios enfrentados pela polícia ostensiva exige estratégias inviáveis na estrutura militar. O antropólogo Luiz Eduardo Soares aponta que o policial é um gestor local da segurança pública; pensar, analisar, dialogar e decidir e não apenas cumprir ordens.

Aliás, o próprio Soares estruturou a hoje Proposta de Emenda à Constituição 51/2013, ainda em trâmite, acerca da desmilitarização da polícia e da criação de um novo desenho institucional [a discussão aqui travada transborda em muito os limites do texto, mas fica a referência e a reflexão].

Não duvido que existam grupos de militares impregnados de ideias humanistas e coerentes com a realidade social, entretanto, sendo a face mais visível da mão repressora do Estado, não se pode invizibilizar a violência praticada pela polícia a par de argumentar que a sociedade, estruturalmente, também elege [em diferentes níveis da estrutura administrativa, de todos os Poderes] aqueles que vão merecer melhor tratamento e aqueles que devem se contentar com a precariedade.

Em muitas regiões da periferia, aquela que primeiro chega como política pública é a polícia, justamente aquela de quem a comunidade geralmente tem ojeriza, pelo seu histórico de repressão. É inegável a face consciente ou inconsciente de utilização das forças policiais e do Direito para gerir a miséria.

Casos como o de Cláudia Silva Ferreira e Amarildo Dias de Souza, entre tantos outros, ainda são simbólicos desse racismo institucionalizado.

Soares aponta um caminho, ainda sem previsão no curto prazo: a melhor forma de tratar a violência ascendente no Brasil de hoje, bem como seu afeto sintomático, que é o ódio, está na retomada da palavra como experiência de reconhecimento. Se nossos policiais trocassem duas ou três palavras antes de atirar, deixaríamos de ser a polícia que mais mata ao sul de Gaza.

4. A estrada e o homem

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Empapuçado ele sai, vai dar um rolê. Não acredita no que vê, não daquela maneira, crianças, gatos, cachorros disputam palmo a palmo seu café da manhã na lateral da feira. Molecada sem futuro, eu já consigo ver, só vão na escola pra comer, apenas nada mais, como é que vão aprender sem incentivo de alguém, sem orgulho e sem respeito, sem saúde e sem paz.
O meu lugar de fala contempla anos de vivência ao redor de situações de conflito com a lei, do presídio ao sistema judiciário. Ainda assim, ele é limitado, mas se preza a dialogar com o maior número de fontes e a jogar na cara da sociedade o compromisso que queremos de fato assumir com os linchamentos, os cartazes “Bandido bom é bandido morto”, o racismo/preconceito em relação aos programas de transferência de renda e tudo o mais. 

Não existem soluções cirúrgicas, mas tenho certeza que o espaço público de debate não abre espaço para inocências demasiadas. Isto porque, inexoravelmente, aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína (Caetano Veloso). Flertamos com essa constatação a cada esquina.

Como alguém já teve a oportunidade de conclamar como mais propriedade, pense você, leitor, do seu lugar de visualização do problema, e reflita como será seu (o nosso) país quando for governado por crianças que jamais colocaram os pés nas ruas de suas cidades; que veem o mundo pelas grades de seus jardins ou pelos vidros escuros de seus carros, e só conseguem vê-lo de dentro dos shoppings ou das escolas por causa do tamanho dos muros que os rodeiam. Pense também como será o seu país de vier a ser governado pelos que cresceram do outro lado do muro, carregando desejos não realizados, mágoas aumentadas.

Fique à vontade para me contar o resultado da reflexão!



césar gandhi

Brasiliense por resistência. Pai de uma menina-flor. Mestrando em Ciências Sociais no ICS/CEPPAC/UnB. Considera o mundo um lugar rochoso, mas não se cansa de ir derramando água quente por onde passa, na tentativa de torná-lo mais maleável.

Fonte: OBVIOUS

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