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A formação dos conceitos – Arqueologia do Saber
Da série “Arqueologia do Saber“.
Após dar conta das modalidades enunciativas (clique aqui para ler) e dos objetos (clique aqui para ler), Foucault se volta à formação dos conceitos. Será possível definir o discurso a partir do edifício conceitual que ele forma?
O filósofo percebe que, ao tomar longos
períodos da construção de diferentes disciplinas (como a gramática, a
economia ou o estudo dos seres vivos), os conceitos não se sistematizam
formando uma linha contínua e harmônica. Pelo contrário, muitas vezes se
opõem.
Sendo assim, não parece mais plausível
investigar a lei que explica, para além de sua superficial coerência, a
emergência de conceitos discordantes? Ou seja, não parece mais produtivo
encontrar um sistema de ocorrência entre os conceitos que não seja uma
sistematicidade lógica?
Para Foucault, é necessário descrever a organização de um campo enunciativo e então analisar os conceitos a partir dela.
A organização de um campo enunciativo compreende:
- As formas de sucessão de enunciados, contando com a disposição das séries enunciativas: ordem de sucessão de enunciados, de raciocínios demonstrativos, inferências ou implicações dedutivas, assim como a “ordem das descrições, esquemas de generalização ou especificação progressiva aos quais obedecem”, revela Foucault.
- Os tipos de correlação entre os enunciados: como a correlação “hipótese-verificação; asserção-crítica; lei geral-aplicação particular”, exemplifica o autor.
- Esquemas retóricos de como os enunciados se encadeiam: as maneiras como as deduções, descrições e definições são feitas, por exemplo.
A história natural pode ser utilizada
para mostrar que, na passagem do século XVI para o século XVII, os
conceitos se modificaram completamente: uns deixaram de ser usados
enquanto outros surgiram e o que determinou a emergência de novos
conceitos e de novos usos de antigos conceitos foi a “disposição geral
dos enunciados e sua seriação em conjuntos determinados; é a maneira de
transcrever o que se observa e de reconstituir, no fio dos enunciados,
um percurso perceptivo”. A história natural, portanto, para além de ser
uma forma de conhecimento, é “um conjunto de regras para dispor uma
série de enunciados”.
Voltando ao campo enunciativo, ele também compreende uma configuração própria com formas de coexistência particulares.
- Entre as formas de coexistência, primeiramente se delineia um campo de presença. Este campo de presença reúne enunciados admitidos como verdade, criticados, rejeitados e excluídos. É nesse campo as relações de ordem de verificação experimental, validação lógica e repetição pura e simples, justificada pela autoridade ou tradição, ou até mesmo da ordem da análise do erro e do significado oculto são instauradas.
- Diferente do campo de presença, há o campo de concomitância. Ele se constitui pelos enunciados de outros discursos e que se referem a outros domínios, mas que se relacionam com os enunciados do discurso analisado.
- Por fim, delineia-se um campo de memória. São enunciados que não são mais discutidos e nem admitidos como verdade, mas que formam um corpo de enunciados em que se estabelecem “laços de filiação, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica”, explica Foucault.
Enfim, os enunciados um campo enunciativo podem receber diferentes procedimentos de intervenção,
que variam conforme a formação discursiva. Na verdade, são os próprios
procedimento que permitem, também, delinear uma formação discursiva.
Eles são:
- Técnicas de reescrita, como “as que permitiram aos naturalistas do período clássico reescreverem descrições lineares em quadros classificatórios que não têm as mesmas leis nem a mesma configuração das listas e dos grupos de parentesco estabelecidos na Idade Média ou durante o Renascimento”.
- Técnicas de transcrição de enunciados;
- Modos de tradução dos enunciados quantitativos em qualitativos e vice-versa;
- Técnicas de aproximação de enunciados, o que os refinaria e aumentaria sua exatidão (como a análise estrutural para Tournefort, que conseguiu aproximar cada vez mais os enunciados descritivos);
- A maneira pela qual o domínio da validade dos enunciados se delimita: como eles se transferem de um campo para outro.
- Métodos de sistematização de proposições formuladas anteriormente ao discurso, mas em separado, ou até mesmo métodos da redistribuição de enunciados já ligados, os recombinando em um conjunto sistemático novo.
Até aqui, é possível perceber, como nas
seções anteriores da Arqueologia do Saber, que todos os elementos
analisados são heterogêneos. Eles não constituem um grupo coerente,
Mas o que pertence propriamente a uma formação discursiva e o que permite delimitar o grupo de conceitos, embora discordantes, que lhe são específicos, é a maneira pela qual esses diferentes elementos estão relacionados uns com os outros: a maneira, por exemplo, pela qual a disposição das descrições ou das narrações está ligada às técnicas de reescrita; a maneira pela qual o campo de memória está ligado às formas de hierarquia e de subordinação que regem os enunciados de um texto; a maneira pela qual estão ligados os modos de aproximação e de desenvolvimento dos enunciados e os modos de crítica, de comentários, de interpretação de enunciados já formulados etc. É esse feixe de relações que constitui um sistema de formação conceitual [Michel Foucault, Arqueologia do Saber, p. 70-71].
Não se trata de tentar identificar as
ligações manifestas dos conceitos, levantando exaustivamente seus traços
em comum, mas sim de verificar os esquemas de seriação, agrupamento,
modificações recíprocas, que os fazem pertencem a um mesmo discurso. Segundo Foucault, sua análise está num campo pré-conceitual, já que trata do conjunto de regras que possibilitam a coexistência dos conceitos.
Para exemplificar a análise pré-conceitual da formação dos conceitos, Foucault explica o trabalho que fez em As Palavras e as Coisas,
ao analisar a gramática geral dos séculos XVII e XVII, que é
caracterizada a partir de quatro “esquemas teóricos”: atribuição,
articulação, designação e derivação.
Esses esquemas, que não designam conceitos utilizados pelos gramáticos, permite descrever:
- Os diferentes tipos de análises gramaticais, as diferentes formas de sucessão na análise dos verbos, nomes, adjetivos e etc. São as relações de dependência entre os quatro esquemas teóricos que prescrevem as diferentes ordens possíveis de análise;
- O domínio de validade de seus enunciados, para definir quais são verdadeiros ou não; o domínio de normatividade, que define quais enunciados são ou não relevantes para discussão, quais são excluídos e marginais no discurso;
- As relações que a gramática geral mantém com outros discursos que o rodeiam, como a mathesis, a análise filosófica da representação e as teorias dos signos, assim como com a história natural e a análise das riquezas. Quando se demarca essas relações, é possível entender a movimentação dos enunciados entre cada domínio. Os quatro esquemas, por sua vez, não delineiam todos os conceitos, mas mostram onde eles nascem e como se transformam.
- A possibilidade da existência de cada regra gramatical e sua sucessão e desenvolvimento, assim como as distinções entre conceitos a respeito de um mesmo fenômeno.
Segundo Foucault, “O ‘pré-conceitual’
assim descrito, em lugar de delinear um horizonte que viria do fundo da
história e se manteria através dela, é, pelo contrário, no nível mais
‘superficial’ (no nível dos discursos), o conjunto das regras que aí se
encontram efetivamente aplicadas”.
Como já vimos, a análise da formação dos
objetos não exige que os fixem nas coisas nem os relacione com as
palavras, assim como a análise das modalidades enunciativas não pede
foco no sujeito cognoscente, nem à individualidade psicológica
supostamente determinante. Da mesma maneira, na análise da formação dos
conceitos, não é necessário relacioná-los a um ideal ou a um curso
empírico de desenvolvimento, é necessário entender as regras que
possibilitam sua emergência em cada campo específico.
Fonte: COLUNAS TORTAS
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