PICICA: "Há um momento em que o escritor entra em
devir-escritor. Já falamos tanto de devires, por que falar de mais um?
Qual seria a importância de se falar de um devir escritor? O mundo é tão
prático, as notícias de internet estão sempre nos informado rapidamente
do que precisamos saber. O devir-escritor é um dos modos de resistência
criativa (dentre os vários outros devires), mas com uma diferença:
trata-se de uma viagem imóvel."
Devir-escritor
Há um momento em que o escritor entra em
devir-escritor. Já falamos tanto de devires, por que falar de mais um?
Qual seria a importância de se falar de um devir escritor? O mundo é tão
prático, as notícias de internet estão sempre nos informado rapidamente
do que precisamos saber. O devir-escritor é um dos modos de resistência
criativa (dentre os vários outros devires), mas com uma diferença:
trata-se de uma viagem imóvel.
Não existe devir-sedentário, claro, então
precisamos considerar a importante possibilidade de compreender o
leitor como um viajante. Há na leitura e na escrita um processo tão
intenso que podemos falar de um devir-leitor e devir-escritor. Jorge
Amado falava de quando seus dedos digitavam mais rápido que sua mente,
os personagens como que se moviam pelo papel antes dele conseguir
planejar o que fariam; Henry Miller era um ótimo datilógrafo, digitava
muito bem, e podia escrever muitas páginas de seu romance em um só dia;
Kerouac também nos conta deste frenesi da escrita, quase um estado zen,
meditativo, suspenso. Seu corpo era mais rápido que sua mente, seus
dedos, mais rápidos que os olhos. Uma Razão Inadequada, razão corporal.
Um Corpo sem Órgãos
nasce da escrita e da leitura, um processo intenso que pode ser obtido
no sofá da sala. Lembremos de Deleuze, é preciso sempre se perguntar:
“isso funciona?”. Se não, pare de escrever ou para de ler! Em seus
livros, o desejo pode alçar voo e encontrar outros territórios. Uma
frase, uma lembrança, um lugar, é difícil saber onde o desejo encontrará
um campo livre para povoar de multiplicidades.
A escrita é uma ferramenta de criação de
intensidades. Não se escreve para fugir da vida, por falta de vida, como
fuga. A escrita é uma arma, uma vitamina que potencializa, ensina e
torna mais capaz de viver. O escritor monta uma máquina de guerra que
opera na realidade, livros são armas!, pensamentos são um modo de
resistir e atuar na realidade concreta. O escritor nômade entra em
contato com os fluxos, seu corpo se torna um canal, ele abre os poros
buscando por algo que se passe em sua superfície. Uma escrita
experimental, que não procura interpretar; nômade é aquele que abandona a
si mesmo no processo, volta, e já é outro!
Buscamos uma geografia das relações, e o
devir-escritor é nosso batedor, explorador de sensações, vanguardista do
acontecimento: o escritor cria linhas de fugas, ele entra em contato
com a diferença pura pois abandona todos os modelos. O livro não é um
manual, é um atestado, a prova de uma vivência. A bíblia não é a palavra
de deus, é a doença dos homens. Joguemos no lixo todos os manuais. Só
queremos, de agora em diante, encontrar livros mapas, livros afetos,
livros acontecimentos. O devir-escritor é este processo, sem imitações,
sem analogias. Os livros de Miller são um bom exemplo, uma cartografia
das vivências pelas quais passou: mapas de linhas e devires. A escrita é
um dispositivo para organizar ideias, ou seja, organizar o corpo,
desembaralhar pensamentos, desembrulhar conceitos, viver.
É preciso aproximar-se cuidadosamente da
escrita. Pensá-la sempre como um processo inacabado, sempre em vias de…,
só assim o fluxo da escrita permite entrar em devir. Da mão do escritor
para o papel, novas conexões se fazem; das palavras no papel para os
olhos do leitor, devires inesperados acontecem; da leitura para a vida,
ainda mais novas possibilidades. Sempre aberto, sempre abrindo,
escancarado, explícito: a escrita se abre novas veredas. Lembrando maio de 68, a escrita precisa voltar a ser perigosa!
Todo leitor, enquanto está lendo, é o leitor do seu próprio eu. O trabalho do escritor é simplesmente uma espécie de instrumento ótico oferecido ao leitor para lhe permitir distinguir o que, sem o livro, ele talvez nunca fosse vivenciar em si mesmo. E o reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o livro diz é a prova da sua veracidade” – Proust.
Para
uma boa leitura, é necessário cantar junto, solfejar, não pensando em
uma peça ideal, mas compondo junto. Quando Deleuze interpretava seus
filósofos favoritos, muitas vezes colocava palavras em sua boca, os
enrabava. Não é para ler a partitura ao pé da letra, isso torna a música
sem graça, sem se misturar no processo, sem se doar, é impossível
entrar em devir. A escritura se torna uma possibilidade de vida, ela
arrasta para lugares inéditos, sensações nunca antes experimentadas. E
se pensarmos o livro como um trampolim para a vida? Uma entrada,
múltiplas saídas. Percebemos que fracassamos quando caímos na imitação,
todo devir é um portal que precisamos atravessar.
Aquele que escreve, (tanto quanto aquele
que lê) dá passagem às vibrações corpóreas. O pensamento se movendo por
entre os dedos do escritor. Escrever não é apenas descrever o mundo,
representá-lo, cuidado com os espelhos, eles distorcem e enganam, quem
carrega um livro como uma fonte de representação, faz mau uso de suas
potencialidades, torna a escrita algo medíocre. Livro = arma =
ferramenta. Deixemos de lado os escritores planônicos, porque uma Razão
Inadequada busca por simulacros, não trocaremos a realidade por espelhos
bem polidos! Quando um livro transforma-se em bíblia, em regulamento,
em dicionário, em espelho da realidade, em palavra intocada, a
ferramenta perde sua multiplicidade e torna-se um ídolo, ídolos que
devem ser adorados, mas para nós, o tempo dos Ídolos acabou, Deus está morto.
Destruir os Ídolos, o que é um escritor
que não faz mal a ninguém? O que é um escritor que busca o
reconhecimento? A celebridade? Escritores ressentidos e desesperados,
rancorosos “não veem como sou bom, um dia eles verão“. Um
pensamento precisa afetar, para o bem ou para o mal. Um escritor precisa
escrever com seu sangue. Não apenas quando vai bem… escrever é uma
forma de melhorar também! Não seria no devir-escritor a grande expressão
da liberdade? A possibilidade de filtrar todo ressentimento? A força de
expressão que dá provas de sua potência e singularidade? No
devir-escritor, o corpo encontra sua força própria para realizar seus
encontros, autopoiésis, ele mostra sua capacidade de efetuar-se e transforma-se neste ato. O escritor se cansou de olhar o rio, agora ele quer ser o rio. E no devir-escritor, ele conquista esta proeza.
Texto da série: Ética dos Devires
Fonte: RAZÃO INADEQUADA
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