PICICA: "“Um homem não teria a ideia de
escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na
humanidade.” A frase está na Introdução de “O segundo sexo”, o clássico
da filósofa francesa Simone de Beauvoir, e não chegou a ficar famosa
como “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, mas carrega nela uma
incômoda constatação: a ideia de que a escrita feminina tem a
especificidade de tratar de temas de interesses específicos das
mulheres, e portanto secundários. O lançamento da tradução e edição
comentada de Reivindicação dos direitos da mulher (Boitempo
Editorial, tradução de Ivania Pocinho Motta) da filósofa inglesa Mary
Woolstonecraft, com excelente prefácio de Maria Lygia Quartin de Moraes,
mostra como o pensamento sobre “a condição da mulher” foi
historicamente classificado como desimportante."
“Um homem não teria a ideia de
escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na
humanidade.” A frase está na Introdução de “O segundo sexo”, o clássico
da filósofa francesa Simone de Beauvoir, e não chegou a ficar famosa
como “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, mas carrega nela uma
incômoda constatação: a ideia de que a escrita feminina tem a
especificidade de tratar de temas de interesses específicos das
mulheres, e portanto secundários. O lançamento da tradução e edição
comentada de Reivindicação dos direitos da mulher (Boitempo
Editorial, tradução de Ivania Pocinho Motta) da filósofa inglesa Mary
Woolstonecraft, com excelente prefácio de Maria Lygia Quartin de Moraes,
mostra como o pensamento sobre “a condição da mulher” foi
historicamente classificado como desimportante.
Alguns problemas discutidos por Woolstonecraft me parecem remanescentes nos difíceis tempos que correm. O primeiro foi percebido pela historiadora Joan Scott: embora as mulheres tenham sido classificadas por Rousseau como “naturalmente dóceis”, o mesmo filósofo argumenta ser absolutamente indispensável uma educação que ensinasse a mulher a ser submissa ao seu marido. Ora, se fôssemos mesmo naturalmente dóceis, não seria assim tão difícil nos fazer abaixar a cabeça e obedecer. Olympe de Gouges e Mary Woollstonecraft foram exemplos do que pregavam, insurgentes contra os poderes dominantes, como ainda hoje são inúmeras mulheres que estão nas ruas protestando contra a pauta conservadora e machista do Congresso Nacional.
Essa suposta submissão decorre de um segundo problema, o entendimento da diferença sexual como fator de subalternidade do elemento feminino – encarnado na mulher, mas inferiorizado mesmo quando manifesto nos homens, de onde vem a dificuldade de aceitar que uma mulher ocupe lugares de poder. Para além de todas as críticas ao governo Dilma Roussef, a misoginia em relação à presidente da República faz parte de todos os discursos de oposição. Ouve-se nas ruas e nos gabinetes uma desqualificação pessoal que é inaceitável. As pautas discriminatórias, como o figurino, o corte de cabelo, a dieta para emagrecer, deram lugar ao mais ridículo ataque pessoal, usando a velha figura da mulher descontrolada e histérica, como se apenas mulheres se descontrolassem ou carregassem o privilégio do sintoma da histeria.
São dois problemas marcados pelo que Woollstonecraft, Olympe de Gouges, e no Brasil, do mesmo período, a também pioneira Nísia da Floresta, autora de uma “tradução livre” dos textos da inglesa, identificaram como um dilema ainda insolúvel. Reivindicar direitos iguais, apesar da diferença biológica entre os corpos? Ou mobilizar, a partir da diferença biológica entre os corpos, a vulnerabilidade das mulheres a fim de exigir proteção?
Woolstonecraf tinha uma resposta: “Desejo honestamente ver a superioridade do sexo destruída na sociedade, a não ser onde o amor motive a conduta. Pois tal superioridade é, estou firmemente persuadida, a base da fraqueza de caráter atribuída à mulher; é a causa pela qual o intelecto é negligenciado, enquanto talentos são adquiridos com cuidadoso esmero; e a mesma causa faz com que elas prefiram a elegância antes das virtudes heróicas. (...) Quando ouvimos falar de mulheres que, saindo da obscuridade, valentemente chamam por respeito devido a suas habilidades ou virtudes intrépidas? Onde elas podem ser encontradas”.
Hoje, no Brasil, podem ser encontradas em inúmeros lugares, do campo às cidades, das universidades ao mercado de trabalho, das ruas à política, da planície ao planalto.
Olympe de Gouges (1748-1793) e Mary Woolstonecraft (1759-1797)
Escrito na Inglaterra do século XVIII, o livro dialoga com os problemas filosóficos e morais do Iluminismo, mas também pode ser lido à luz da misoginia contemporânea. Woolstonecraft discute com os grandes filósofos do seu tempo, como o também britânico David Hume e o alemão Immanuel Kant, e discute questões que chegam até nós, herdeiros das Luzes e de uma certa narrativa moderna, digamos assim, vitoriosa, mas nem por isso menos questionável. Filha de um patriarca violento, Mary e seu Reivindicação dos direitos da mulher entraram para a história como uma das fundadoras do pensamento feminista europeu, posto que divide com a francesa Olympe de Gouges, a autora de Declaração dos direitos da mulher e da cidadã e relevante adversária das idéias de outro filósofo das Luzes, Jean-Jacqjues Rousseau. Ambas têm em comum o enfrentamento dos principais temas do seu tempo – como a discriminação da mulher no espaço público e seu confinamento à esfera doméstica – e colocam em pauta, numa modernidade marcada pelo privilégio do masculino, o problema ético-político de usar a diferença sexual para inferiorizar a mulher. Nunca foram consideradas filósofas, apenas pensadoras de temas femininos.Alguns problemas discutidos por Woolstonecraft me parecem remanescentes nos difíceis tempos que correm. O primeiro foi percebido pela historiadora Joan Scott: embora as mulheres tenham sido classificadas por Rousseau como “naturalmente dóceis”, o mesmo filósofo argumenta ser absolutamente indispensável uma educação que ensinasse a mulher a ser submissa ao seu marido. Ora, se fôssemos mesmo naturalmente dóceis, não seria assim tão difícil nos fazer abaixar a cabeça e obedecer. Olympe de Gouges e Mary Woollstonecraft foram exemplos do que pregavam, insurgentes contra os poderes dominantes, como ainda hoje são inúmeras mulheres que estão nas ruas protestando contra a pauta conservadora e machista do Congresso Nacional.
Essa suposta submissão decorre de um segundo problema, o entendimento da diferença sexual como fator de subalternidade do elemento feminino – encarnado na mulher, mas inferiorizado mesmo quando manifesto nos homens, de onde vem a dificuldade de aceitar que uma mulher ocupe lugares de poder. Para além de todas as críticas ao governo Dilma Roussef, a misoginia em relação à presidente da República faz parte de todos os discursos de oposição. Ouve-se nas ruas e nos gabinetes uma desqualificação pessoal que é inaceitável. As pautas discriminatórias, como o figurino, o corte de cabelo, a dieta para emagrecer, deram lugar ao mais ridículo ataque pessoal, usando a velha figura da mulher descontrolada e histérica, como se apenas mulheres se descontrolassem ou carregassem o privilégio do sintoma da histeria.
São dois problemas marcados pelo que Woollstonecraft, Olympe de Gouges, e no Brasil, do mesmo período, a também pioneira Nísia da Floresta, autora de uma “tradução livre” dos textos da inglesa, identificaram como um dilema ainda insolúvel. Reivindicar direitos iguais, apesar da diferença biológica entre os corpos? Ou mobilizar, a partir da diferença biológica entre os corpos, a vulnerabilidade das mulheres a fim de exigir proteção?
Woolstonecraf tinha uma resposta: “Desejo honestamente ver a superioridade do sexo destruída na sociedade, a não ser onde o amor motive a conduta. Pois tal superioridade é, estou firmemente persuadida, a base da fraqueza de caráter atribuída à mulher; é a causa pela qual o intelecto é negligenciado, enquanto talentos são adquiridos com cuidadoso esmero; e a mesma causa faz com que elas prefiram a elegância antes das virtudes heróicas. (...) Quando ouvimos falar de mulheres que, saindo da obscuridade, valentemente chamam por respeito devido a suas habilidades ou virtudes intrépidas? Onde elas podem ser encontradas”.
Hoje, no Brasil, podem ser encontradas em inúmeros lugares, do campo às cidades, das universidades ao mercado de trabalho, das ruas à política, da planície ao planalto.
Carla Rodrigues
Carla Rodrigues é professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ. Fez especialização, mestrado e doutorado em Filosofia na PUC-Rio e pós-doutorado no IEL/Unicamp. É coordenadora do laboratório de pesquisa Escritas - filosofia, gênero e psicanálise.
Fonte: BLOG DO IMS
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