abril 27, 2016

O golpe de Estado por trás do “Governo Temer”. Por Victor Martins Pimenta (JUSTIFICANDO)

PICICA: "Pelas mais diversas razões, está crescendo a compreensão dentro da sociedade brasileira e da imprensa internacional de que a deposição da presidenta Dilma Rousseff por meio do processo de impeachment em curso é, na verdade, um golpe de Estado. De um lado, a condução do processo na Câmara dos Deputados pelo seu presidente, Eduardo Cunha, cuja falta de legitimidade é talvez a única unanimidade nacional nos dias de hoje, somada ainda aos diversos deputados acusados de envolvimento em desvios de recursos públicos e por outros crimes, mas que se utilizaram do discurso de “combate à corrupção” para dar seguimento à denúncia contra a presidente. De outro lado, um vice-presidente da República que articula abertamente votos no Congresso para viabilizar a cassação de Dilma Rousseff, o que lhe permitiria sentar na cadeira presidencial do Palácio do Planalto – motivo pelo qual muitos, inclusive a presidenta, já o acusam de “traidor” e “conspirador”. Além disso, ainda que sem o destaque devido, algumas reportagens já dão conta da articulação para que, com a cassação de seu mandato, Dilma sirva de “bode expiatório”, encobrindo movimentos voltados a abafar os processos de investigação em curso na operação Lava Jato e a assegurar a continuidade do mandato de Eduardo Cunha, hoje em questionamento perante a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados e perante o Supremo Tribunal Federal, por iniciativa do Procurador-Geral da República (AC nº 4070, sob relatoria do Min. Teori Zavascki)."

O golpe de Estado por trás do “Governo Temer”

 
  • Victor Martins Pimenta
    Mestrando em Direitos Humanos na Universidade de Brasília (UnB)

Pelas mais diversas razões, está crescendo a compreensão dentro da sociedade brasileira e da imprensa internacional de que a deposição da presidenta Dilma Rousseff por meio do processo de impeachment em curso é, na verdade, um golpe de Estado. De um lado, a condução do processo na Câmara dos Deputados pelo seu presidente, Eduardo Cunha, cuja falta de legitimidade é talvez a única unanimidade nacional nos dias de hoje, somada ainda aos diversos deputados acusados de envolvimento em desvios de recursos públicos e por outros crimes, mas que se utilizaram do discurso de “combate à corrupção” para dar seguimento à denúncia contra a presidente. De outro lado, um vice-presidente da República que articula abertamente votos no Congresso para viabilizar a cassação de Dilma Rousseff, o que lhe permitiria sentar na cadeira presidencial do Palácio do Planalto – motivo pelo qual muitos, inclusive a presidenta, já o acusam de “traidor” e “conspirador”. Além disso, ainda que sem o destaque devido, algumas reportagens já dão conta da articulação para que, com a cassação de seu mandato, Dilma sirva de “bode expiatório”, encobrindo movimentos voltados a abafar os processos de investigação em curso na operação Lava Jato e a assegurar a continuidade do mandato de Eduardo Cunha, hoje em questionamento perante a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados e perante o Supremo Tribunal Federal, por iniciativa do Procurador-Geral da República (AC nº 4070, sob relatoria do Min. Teori Zavascki).

Em uma disputa bastante apartada desses temas, a linha adotada pela defesa jurídica da presidenta Dilma Rousseff no processo de impeachment está centrada no argumento da inexistência de crime de responsabilidade. De fato, os argumentos da defesa são fortes e consistentes, uma vez que a denúncia recebida contra a presidenta se circunscreve a duas questões extremamente frágeis do ponto de vista técnico e de baixa densidade democrática, pois não dialogam com a população, que sequer tem conhecimento sobre o que está em discussão. O relatório da comissão da Câmara dos Deputados, aprovado em plenário no último dia (17), autoriza o seguimento do processo contra a presidenta por duas razões: pela edição de decretos de suplementação orçamentária e pelas alegadas “pedaladas fiscais”.

Não pretendo aqui aprofundar na análise sobre esses aspectos. Para quem tiver interesse, sugiro a leitura da acusação, da defesa e do relatório final da comissão, este último aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados na “histórica” sessão marcada por homenagens a filhos, netas e maridos, além de saudações a torturadores da ditadura civil-militar. São documentos públicos e estão acessíveis na internet, a partir da página do Senado Federal, para cada um tirar suas próprias conclusões.

A respeito desta discussão, saliento apenas que a simples existência de amplo debate jurídico a respeito da caracterização do 'crime de responsabilidade', no qual predomina a posição pela inexistência de qualquer ato típico, já é por si razão para se afastar completamente a legitimidade do impeachment. Não se cassa o mandato de um presidente da república com base em teses jurídicas produzidas sob encomenda e sem precedentes no Brasil ou no mundo, sobretudo quando há amplo questionamento quanto ao real interesse dos parlamentares no resultado do processo.

Todavia, há outro aspecto tão ou mais grave do que a discussão a respeito da existência ou não de crime de responsabilidade, e que tem sido pouco debatido em termos políticos ou jurídicos. É sobre esse tema que quero trazer algumas reflexões.

Temos visto, nas últimas semanas, diversas manifestações do vice-presidente, Michel Temer, anunciando as propostas para o novo governo que formará a partir do impedimento da presidenta Dilma Rousseff. A cada dia o vice-presidente anuncia na imprensa um novo pacote de medidas a serem adotadas ou apresenta os nomes que estarão a frente de diversas pastas, em substituição aos Ministros que hoje desempenham essas funções.

Observa-se, com isso, o objetivo de demonstrar o distanciamento do vice-presidente em relação ao atual governo, sinalizando para a sociedade, e sobretudo para setores específicos, que formará um novo governo, composto por um novo programa (que já tem inclusive nome, a “Ponte para o Futuro”) e conduzido por novas lideranças. A sinalização do distanciamento foi cuidadosamente construída e implementada passo a passo, inclusive com manifestações públicas e “vazamentos” bastante seletivos, primeiro de uma carta do vice-presidente direcionada à presidenta, depois com um áudio que antecipa os compromissos do novo governo com diversos setores. Esse novo governo, conforme está sendo divulgado, seria constituído por uma coalização que conferiria papel central a partidos derrotados nas últimas eleições e que se apresentam hoje, formalmente, como oposição ao governo no Congresso Nacional.

É importante compreender que esse processo político, que causa um estranhamento profundo em todos nós, tem um sentido jurídico bastante denso e que deve ser corretamente nominado. Essa sensação de desconforto que perpassa por toda a sociedade brasileira, gerando uma incompreensão sobre o que acontecerá em seguida caso a presidenta eleita seja deposta, essa sensação tem nome. Também o sentimento generalizado de que haveria uma “traição” por parte do vice-presidente tem qualificação no campo do Direito. Há, nesse estado de coisas que vivemos, uma grave ruptura constitucional.

Assim ocorre porque, no sistema político-eleitoral vigente no país, consagrado pela Constituição Federal de 1988, a legitimidade do vice-presidente é subordinada ao presidente. A última eleição em que presidente e vice-presidente concorreram por partidos ou coligações distintas, com apresentação de programas de governo apartados, se deu em 1960, em sintonia com o sistema político vigente à época. Pela Lei nº 9.504, de 1997, que estabelece as normas para as eleições atuais, quem é eleito é o presidente (Art. 2º, caput), sendo a eleição do vice-presidente de importância vinculada e subordinada ao presidente (Art. 2º, § 4º). O registro da candidatura presidencial deve ser instruído com a apresentação das propostas defendidas pelo candidato a presidente (Art. 11, inciso IX), estando o vice-presidente vinculado a elas, em virtude de sua legitimidade subordinada.

Nestes termos, a posse de um vice-presidente em virtude de ausência definitiva do presidente, por morte, impedimento ou qualquer outra razão, não autoriza, de forma alguma, a construção de um novo governo, um novo programa e uma nova coligação. A ele cabe, pelo contrário, dar continuidade aos projetos registrados na Justiça Eleitoral e debatidos durante o período eleitoral, com a mesma coligação que venceu as eleições e com deferência constitucional à soberania popular.

A situação difere completamente, por exemplo, de um presidente que, após a eleição, implementa políticas que parcela da população entenda como contraditórias com os compromissos de campanha. Isso porque, no processo democrático desenvolvido dentro da normalidade constitucional, o governo eleito sempre cumprirá mais, ou menos, o programa e as promessas apresentadas durante as eleições. É natural que isso ocorra, sendo a satisfação da população com as políticas implementadas aferida nas eleições seguintes, nas quais os governantes são responsabilizados diretamente pelos resultados de suas ações – é o mecanismo de accountability próprio de regimes presidencialistas.

Outra hipótese, absolutamente distinta, seria a substituição do governo eleito por outro que não se submeteu ao escrutínio eleitoral: a própria prestação de contas com a sociedade resta prejudicada, na medida em que sequer há programa de governo registrado ou mesmo promessas de campanha a serem fiscalizadas e exigidas pela população. O impeachment, previsto na Constituição e com regras definidas pela Lei nº 1.079, de 1950, é, por sua natureza, sanção de natureza pessoal, resultante da apuração e condenação por crime de responsabilidade. O impeachment de presidente não se presta, portanto, a substituir o governo eleito.

Dessa forma, a aprovação de impedimento da presidenta Dilma Rousseff pelo Congresso Nacional não confere um cheque ao branco ao vice-presidente Michel Temer, como se lhe fosse autorizado rifar o programa de governo defendido pelo partido que encabeça a coligação eleita pela população, ao arrepio das normas eleitorais e da legitimidade democrática. Entendimento contrário caminharia frontalmente contra o princípio da soberania popular, inscrito no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.

É nesse sentido que o processo atualmente em curso, que visa substituir o governo eleito por outra coalização e por outro programa que não foram aprovados no escrutínio eleitoral, se constitui juridicamente como uma grave violação à ordem constitucional e ao Estado Democrático de Direito. Em sentido político, se apresenta como um golpe de Estado, que visa trazer ao governo federal projetos e setores que foram derrotados nas eleições.

O risco de ruptura constitucional se mostra ainda mais evidente diante das declaradas intenções do vice-presidente, Michel Temer, de desconstituir totalmente o atual governo, substituindo-o por um novo governo já durante o período de afastamento temporário da presidenta Dilma Rousseff, em caso de recebimento do processo pelo plenário do Senado Federal, o que pode ocorrer com maioria simples dos senadores.

Esse movimento visa consolidar, com a nomeação de equipe ministerial e consequente substituição dos ministros atuais, uma verdadeira transição governamental, o que, repita-se, não se admite no ordenamento jurídico brasileiro como resultado de um impeachment de presidente. Busca-se, ainda, com a formação de um governo de transição, ampliar os custos políticos e administrativos da não aprovação do processo pelo Senado Federal, quando do julgamento efetivo, que dependerá de apuração de pelo menos 54 votos favoráveis ao impedimento da presidenta. Enfim, busca-se criar todo um custo de transação relativa a uma nova mudança governamental, para o caso de não cassação da presidenta Dilma Rousseff ao fim do julgamento, de modo a influenciar o resultado do processo.

Obviamente, atos de presidente em exercício realizados com o intuito de consolidar uma situação de ruptura constitucional são eivados de desvio de poder e caracterizam afronta à moralidade administrativa. Nesse sentido, podem ser revisados judicialmente, cabendo, inclusive, a impetração de ação popular contra atos de nomeação de Ministros de Estado que porventura venham a ser praticados conforme os planos anunciados pelo vice-presidente, sobretudo durante eventual período de afastamento provisório da presidenta Dilma Rousseff, no qual o desvio de poder é nítido.
Em suma: em nosso ordenamento jurídico, o vice-presidente que assume a presidência não tem legitimidade para constituir um novo governo, em substituição àquele que foi eleito. Quando o vice-presidente Michel Temer anuncia que pretende fazê-lo, deixa claro, por mais esta razão, estarmos diante de ruptura constitucional que configura, em sentido jurídico-político, verdadeiro golpe de Estado.


Victor Martins Pimenta é graduado em Direito pela USP e em Ciência Política pela UnB e mestrando em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade de Brasília (UnB).
 
Fonte: JUSTIFICANDO

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