fevereiro 13, 2013

"Embriagar-se com água pura.", por Bruno Cava

PICICA: "“Embriagar-se com água pura”, máxima de Henry Miller retomada várias vezes pelo filósofo Gilles Deleuze, leu-me profundamente. Ser capaz de ficar bêbado com água, que bela imagem. Por quê?


Acredito que, para viver livre, é necessário estar sempre bêbado." 


De vez em quando, lemos uma frase, um pensamento, uma citação, e ela nos parece estranhamente íntima. Como se já a conhecêssemos de longa data. Como se partilhássemos de seu significado como uma intuição antiga, porém inarticulada. Ao escutá-la a primeira vez, vemos nós mesmos sem roupa nas palavras do outro. Sentimos então misto de vergonha e narcisismo, como quando uma carta privada sem querer vai parar em mãos indesejadas.

“Embriagar-se com água pura”, máxima de Henry Miller retomada várias vezes pelo filósofo Gilles Deleuze, leu-me profundamente. Ser capaz de ficar bêbado com água, que bela imagem. Por quê?

Acredito que, para viver livre, é necessário estar sempre bêbado. 

Não se trata de intoxicação pura e simples, de um estado objetivo da consciência induzido por narcóticos. Nem de vaga embriaguez de vida, ou de vinho, poesia e virtude, como no poema. Soa egocêntrico quem abusa de tais expressões para cantar o embebedamento de si mesmo, em regozijo por parcas conquistas e pequenas vaidades. Assim como o viciado, Narciso mergulha em si mesmo e, em vez do barato, afunda no buraco do isolamento. “Como o viciado” porque este também vê um fim em si mesmo na substância em que se reflete, espelho traiçoeiro que quer sugá-lo. 

Mas a grande embriaguez não tem objeto. A sua vitalidade dispensa o juízo a posteriori, que depende de uma coisa externa, de uma droga específica. Daí a experimentação do grande bêbado é antes tonificante e nômade, do que claudicante e habitual. Não visa à overdose, mas à desmedida. Não deprime o corpo, potencializa-o. Não traz a solidão, mas o teatro. O grande bêbado prefere a água pura ao vinho (que importa para o homem entusiasmado o vinho?), o poliamor ao adultério, o nomadismo bárbaro ao sedentarismo romano, a multidão democrática à massa fascista. 

A embriaguez está mais desperta do que a insônia. Multidão de pensamentos e afetos que salta da cabeça, armada de escudo e gládio como um exército de deusas e demônios. Tal qual literatura beatnik, vem inteira e cósmica, e verte a turbulência de palavras até a esquizofrenia, o mal do dopado, ou seja, com excesso de dopamina. 

A embriaguez está do outro lado da angústia. Se esta é um medo sem objeto, a embriaguez é um desejo que não se coisifica. Ambos os existenciais possibilitam a liberdade através do estranhamento. Dilaceram o universo percebido das coisas finitas e desvelam o horizonte de infinito despercebido. Das coisas isoladas, pela embriaguez se chega à malha contínua do ser. Ocaso da metafísica, tudo está em tudo. É hora de patinar sobre as palavras: nada há acima ou atrás delas, os sentidos são agora libertinos, superficiais, dançarinos.

O ébrio percebe mais do que as coisas porque percebe o que está entre elas, o que as compõe como tais no seu movimento e sua combinação. Dissolvem-se as coisas e também os indivíduos, em moléculas. Daí prorrompe a imanência em que coisas e indivíduos acontecem: o plano das palavras e dos personagens, dos fluxos e multiplicidades, plano do homem do subsolo, de Leopold, de Sal Paradise, de Macabéia e de Vittorio. Drogar-se sem droga também pode delirar um mundo de sons e cores até então inaudito e invisível, e descobrir o movimento íntimo nunca-inconsciente da roda da consciência.

Embebedar-se é mais do que um sonho, e seu mundo apolíneo de imagens e sombras. Dioniso não se resolve no hedonista de primeira hora. Como a música dissonante de Stravinsky, desorganiza-se e reorganiza-se, sempre outra vez. O deus dos sátiros, ninfas e libações é o mesmo que se faz pão e vinho, que ressuscita, que converte água em vinho e dança em seu próprio casamento com a terra. Nesse Deus posso acreditar. Deus da metamorfose. Sua embriaguez não cessa de criar a noite, na qual quero nadar até perder-me de mim, desorientado. Até reencontrar-me renascido, de ressaca na lucidez do mundo.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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