PICICA: "“Embriagar-se
com água pura”, máxima de Henry Miller retomada várias vezes pelo
filósofo Gilles Deleuze, leu-me profundamente. Ser capaz de ficar bêbado
com água, que bela imagem. Por quê?
Fonte: Quadrado dos Loucos
Acredito que, para viver livre, é necessário estar sempre bêbado."
De
vez em quando, lemos uma frase, um pensamento, uma citação, e ela nos
parece estranhamente íntima. Como se já a conhecêssemos de longa data.
Como se partilhássemos de seu significado como uma intuição antiga,
porém inarticulada. Ao escutá-la a primeira vez, vemos nós mesmos sem
roupa nas palavras do outro. Sentimos então misto de vergonha e
narcisismo, como quando uma carta privada sem querer vai parar em mãos
indesejadas.
“Embriagar-se
com água pura”, máxima de Henry Miller retomada várias vezes pelo
filósofo Gilles Deleuze, leu-me profundamente. Ser capaz de ficar bêbado
com água, que bela imagem. Por quê?
Acredito que, para viver livre, é necessário estar sempre bêbado.
Não se
trata de intoxicação pura e simples, de um estado objetivo da
consciência induzido por narcóticos. Nem de vaga embriaguez de vida, ou
de vinho, poesia e virtude, como no poema. Soa egocêntrico quem abusa de
tais expressões para cantar o embebedamento de si mesmo, em regozijo
por parcas conquistas e pequenas vaidades. Assim como o viciado, Narciso
mergulha em si mesmo e, em vez do barato, afunda no buraco do
isolamento. “Como o viciado” porque este também vê um fim em si mesmo na
substância em que se reflete, espelho traiçoeiro que quer sugá-lo.
Mas a
grande embriaguez não tem objeto. A sua vitalidade dispensa o juízo a
posteriori, que depende de uma coisa externa, de uma droga específica.
Daí a experimentação do grande bêbado é antes tonificante e nômade, do
que claudicante e habitual. Não visa à overdose, mas à desmedida. Não
deprime o corpo, potencializa-o. Não traz a solidão, mas o teatro. O
grande bêbado prefere a água pura ao vinho (que importa para o homem
entusiasmado o vinho?), o poliamor ao adultério, o nomadismo bárbaro ao
sedentarismo romano, a multidão democrática à massa fascista.
A
embriaguez está mais desperta do que a insônia. Multidão de pensamentos e
afetos que salta da cabeça, armada de escudo e gládio como um exército
de deusas e demônios. Tal qual literatura beatnik, vem inteira e
cósmica, e verte a turbulência de palavras até a esquizofrenia, o mal do
dopado, ou seja, com excesso de dopamina.
A
embriaguez está do outro lado da angústia. Se esta é um medo sem objeto,
a embriaguez é um desejo que não se coisifica. Ambos os existenciais
possibilitam a liberdade através do estranhamento. Dilaceram o universo
percebido das coisas finitas e desvelam o horizonte de infinito
despercebido. Das coisas isoladas, pela embriaguez se chega à malha
contínua do ser. Ocaso da metafísica, tudo está em tudo. É hora de
patinar sobre as palavras: nada há acima ou atrás delas, os sentidos são
agora libertinos, superficiais, dançarinos.
O
ébrio percebe mais do que as coisas porque percebe o que está entre
elas, o que as compõe como tais no seu movimento e sua combinação.
Dissolvem-se as coisas e também os indivíduos, em moléculas. Daí
prorrompe a imanência em que coisas e indivíduos acontecem: o plano das
palavras e dos personagens, dos fluxos e multiplicidades, plano do homem
do subsolo, de Leopold, de Sal Paradise, de Macabéia e de Vittorio.
Drogar-se sem droga também pode delirar um mundo de sons e cores até
então inaudito e invisível, e descobrir o movimento íntimo
nunca-inconsciente da roda da consciência.
Embebedar-se
é mais do que um sonho, e seu mundo apolíneo de imagens e sombras.
Dioniso não se resolve no hedonista de primeira hora. Como a música
dissonante de Stravinsky, desorganiza-se e reorganiza-se, sempre outra
vez. O deus dos sátiros, ninfas e libações é o mesmo que se faz pão e
vinho, que ressuscita, que converte água em vinho e dança em seu próprio
casamento com a terra. Nesse Deus posso acreditar. Deus da metamorfose.
Sua embriaguez não cessa de criar a noite, na qual quero nadar até
perder-me de mim, desorientado. Até reencontrar-me renascido, de ressaca
na lucidez do mundo.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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