PICICA: "Vamos tentar sacudir um pouco
tudo que aprendemos e nos condicionamos a utilizar, para ver se conseguimos
atirar longe conceitos de construção, soluções e espaços inadequados, substituindo-os
com criatividade, segurança e coragem por outros adequados a nossa região para
benefício das pessoas que aqui vivem e moram nas casas que aqui fazem."
ARQUITETURA DE MORAR (por Severiano Porto)
Transcrição
de um importante texto que o arquiteto Severiano Mário Porto havia
datilografado para uma discussão sobre os saberes e o modo de construção
das habitações na Amazônia, logo quando chegou na região, o discurso
foi apresentado em 1984, durante o seminário Visual de Artes da
Amazônia.
Casa flutuante no Rio Negro-AM. Foto Keyce Jhones 1999. |
Questionar a casa, a habitação,
os seus elementos construtivos e a região onde se situa, as pretensões e a
necessidade de seus moradores e um tema importante e interessante.
Abordaremos alguns aspectos do
mesmo mais direcionados a nossa região e ao tema geral deste evento.
Quando aqui chegamos cerca de
vinte anos, chamou-nos a atenção de imediato, a casa, a morada que tem como
necessidade maior abrigar a família.
Era comum visitarmos pessoas de
certa posição social, que moravam em casas simples de madeira, de duas águas,
piso elevado de tábuas pintadas, etc. ,com aspectos semelhantes ao do homem
ribeirinho ou do interior, Este fato nos chamou atenção, pois de um centro
urbano maior, onde a ideia de casa sempre vem acompanhada das necessidades de
ser duradoura, permanente, a fim de que significasse o futuro garantido juntamente
com a aposentadoria, dinheiro em banco, jóias e não simplesmente abrigo,
morada.
Este aspecto aliado a outros como
por exemplo, dos homens que habitavam e habitam toda esta imensa Amazônia, nas
regiões mais distantes, junto aos rios e igarapés, como também distante dos
mesmos, no meio das matas (os caboclos de terra firme, seringueiros, mateiros,
caçadores e outros), que nos impressionavam toda a vez que tínhamos
oportunidade de voar para o interior de mono motor em vôos diretos de três e
meia a quatro horas de viagem. E aí nos púnhamos a pensar sobre a coragem e
autoconfiança deste homens, a certeza de obtenção de recursos para a sua subsistência,
o conhecimento de plantas, raízes, que lhe permitia fazer chás e remédios
caseiros como se fosse mais um dos seus sentidos, que os habitantes das cidades
tivessem perdido por atrofia. E a imagem desse homem rapidamente muda de dentro
de nós.
De analfabeto e ignorante, imediatamente
assume a postura de um gigante, de um profundo conhecedor da região, integrado
a ela, sabedor de como construir a morada no local correto de acordo com as
necessidades ecológicas e com os seus recursos técnicos.
Nós que chegávamos precisávamos
aprender. Substituir nossos conceitos, chegamos a dizer a um grande amigo em
janeiro de 65, quando subíamos o rio Amazonas, que alfabetizar este homem
naquele momento a nosso ver seria um mal maior de que deixá-lo ir absorvendo
estes ensinamentos, transmitidos de geração a geração e que não constam em
livros, pois estes eram tão importantes neste região quanto a necessidade do
homem nas cidades ler, escrever, tirar cursos e ter diplomas.
E aí encontramos as casas bem
situadas e bem orientadas. Construídas de madeira, de palha e até mesmo de alvenaria.
Encontramos a casa flutuante,
construída sobre troncos de madeiras de balsas, exemplo de solução ecológica
adequada às condições de nossos rios, onde a variação de seus níveis anualmente
atingem a média de 10 a 12 metros, transportando as suas margens a centenas de
metros de distância.
E a casa se desloca e acompanha
estas margens.
Na cidade víamos e vemos bem
forte a presença desse homem e dos seus recursos para trabalhar a madeira,
afeito que é ao processo construtivo de embarcações e nos bairros de população
ribeirinha e nos de menos recursos encontramos as soluções mais criativas,
ricas de elementos construtivos importantes como varandas, treliças,
passadiços, sanefas (fechando a noite áreas abertas durante o dia), etc.
Em algumas casas vemos os seus
proprietários desejando dentro de seus conceitos de "evoluir" atingir
a primeira frase de transformação das casa de madeira para a de alvenaria,
substituir a sua fachada principal antes de madeira por outra feita com tijolos
e cimento.
A criatividade, a espontaneidade,
o domínio do processo construtivo torna o seu proprietário apto a qualquer
momento e muitas vezes em horas, introduzir alterações na mesma, abrindo vãos,
criando cômodos, evidenciando desse forma o domínio absoluto do espaço em que
vive.
Contrastando com essa
flexibilidade construtiva, vemos todo o restante das habitações, cujo exemplo
maior são os conjuntos habitacionais, onde os seus altos custos, as suas
soluções e elementos construtivos são em sua maioria inadequados a região.
Há que se questionar a habitação
seriamente em todos os seus níveis e elementos componente de suas soluções.
Grades, elementos vazados, brises
verticais ou horizontais, treliças, venezianas fixas ou reguláveis, jalousie,
devem ser usados fartamente e corajosamente sempre que necessário.
A ventilação cruzada deve ser uma
preocupação constante bem como a proteção das fechadas com beirais generosos,
pérgolas, vegetação e outros elementos.
Vamos tentar sacudir um pouco
tudo que aprendemos e nos condicionamos a utilizar, para ver se conseguimos
atirar longe conceitos de construção, soluções e espaços inadequados, substituindo-os
com criatividade, segurança e coragem por outros adequados a nossa região para
benefício das pessoas que aqui vivem e moram nas casas que aqui fazem.
SEMINÁRIO "ARTES VISUAIS NA
AMAZÔNIA"
09 DE NOVEMBRO DE 1984
ARQUITETO SEVERIANO MÁRIO PORTO
Fonte: Studio Blog
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