PICICA: "Apesar de ter sido feito em 1949, o filme não perde nada em intensidade
e suspense para as produções atuais. Esqueça os exagerados efeitos
especiais, a obsessão por 3D, explosões ou twists
inacreditáveis, todos tão comuns hoje em dia. A direção segura de Carol
Reed aproveita a atmosfera sombria do pós-guerra e se concentra em
contar uma história muito bem escrita. Destaque para a bela Alida Valli,
Orson Welles e o maravilhoso tema de abertura do filme que toca em
qualquer evento público em Viena até hoje."
Cidade das Sombras
Suspense estrelado por Orson Welles retrata a Viena do pós-guerra. Filme capta bem o espírito tenso da capital austríaca após a divisão das quatro zonas de influência
Bruno Garcia
O terceiro homem.
Dir. Carol Reed, Reino Unido, 1949.
Em janeiro de 1961, John Kennedy e Nikita Kruschev agendaram um encontro para junho do mesmo ano, em Viena. A ideia era por em ordem as principais querelas entre as duas grandes potências, como o controle do arsenal nuclear e o futuro do mapa europeu. A Guerra Fria começava a esquentar, a situação de Berlim dividida e em constante tensão não estava clara e a ameaça de um conflito iminente expunha a necessidade de diálogo. Apesar dos muitos sorrisos e apertos de mão, após dois dias o que se viu foi uma das negociações mais desastrosas que se tem noticia.
É provável que ambos tenham sido muito bem avisados sobre os riscos de uma reunião dessa importância na capital austríaca: “Viena tem ouvidos demais”, era o que diziam na época. Mesmo não gozando do mesmo simbolismo de Berlim, nenhuma outra cidade abrigou tantos espiões de tantas nacionalidades na segunda metade do XX. A presença de algumas instituições como a Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) e a Agencia Internacional de Energia Atômica ainda hoje são resultado dessa internacionalidade de Viena.
Ocupada pelos aliados entre 1945 e 1955, a Áustria e sua capital também foram divididas em quatro zonas, correspondente a cada um dos aliados vitoriosos. Como o historiador britânico Tony Judd observou: “a Guerra Fria atribui à Áustria uma identidade por associação – ocidental, livre, democrática”, localizada entre leste o oeste, a fronteira da Cortina de Ferro, onde os dois lados se encontravam secretamente.
Foi esse clima de suspense e insegurança que inspirou o diretor britânico Carol Reed a realizar o que para muitos ainda é a melhor produção cinematográfica da Inglaterra. O terceiro homem, de 1949, conta a história de Holly Martins, um escritor norte-americano, autor de pequenos westerns, que chega a Viena para encontrar seu amigo de infância que lhe prometera um trabalho. Ao chegar à cidade, descobre que Harry Lime, vivido por ninguém menos que Orson Welles, morrera atropelado em estranhas circunstâncias. Martins chega a tempo do funeral e logo de cara percebe que por trás da morte do amigo há muitas perguntas sem resposta.
Como dentro de uma de suas historias, Martins se vê imerso em uma teia de intrigas. Quando encontra Anna Schmidt, a namorada de Lime, começa a duvidar que o atropelamento tenha sido um acidente. Ao contrário do que foi dito aos policiais, testemunhas confessam para Martins que Harry Lime morreu imediatamente e que seu corpo foi transportado por três homens, não dois. Constantemente aconselhado a sair da cidade, o escritor resolve procurar o porteiro que dizia ter mais informações, mas alguém o assassina antes que possa dizer qualquer coisa. Ao investigar o desconhecido terceiro homem que presenciara o atropelamento, Martins descobre o passado recente do amigo e percebe que está envolvido em uma rede de eventos muito maior do que um mero acidente.
Apesar de ter sido feito em 1949, o filme não perde nada em intensidade e suspense para as produções atuais. Esqueça os exagerados efeitos especiais, a obsessão por 3D, explosões ou twists inacreditáveis, todos tão comuns hoje em dia. A direção segura de Carol Reed aproveita a atmosfera sombria do pós-guerra e se concentra em contar uma história muito bem escrita. Destaque para a bela Alida Valli, Orson Welles e o maravilhoso tema de abertura do filme que toca em qualquer evento público em Viena até hoje.
Capital de um estado neutro no coração da Europa e centro da Guerra Fria, a cidade ainda nas ruínas da Guerra abrigou uma quantidade sem igual de serviços de inteligência, organizações internacionais e serviu de campo de mediação entre os dois lados do conflito. A importância foi reconhecida tanto por americanos, que destinaram à Áustria um dos maiores montantes dos investimentos para reconstrução da Europa - o Plano Marshall - quanto pela União Soviética, que pretendeu durante um bom tempo que o país fosse incorporado integralmente à zona de influência. Em meio a tudo isso, existe a população que se acostumou ao submundo do mercado negro, estrangeiros suspeitos e episódios que raramente tinham alguma boa explicação. Era o clima perfeito para um filme noir.
Viena se identifica tanto com O terceiro homem que ainda hoje é possível encontrar pelas ruas da cidade ao menos uma sala de cinema exibindo o longa-metragem, quase sempre acompanhado de um tour organizado pelas locações mais destacadas da produção. Nada mal para um filme realizado há mais de seis décadas.
Assim, fica fácil entender por que ali não era exatamente o melhor lugar para se decidir o futuro do mundo. Menos de 40 dias depois do encontro entre os Chefes de Estado, soviéticos começaram a construir o Muro de Berlim e retomaram os testes nucleares. A escalada do conflito levaria os dois países ao limite, no ano seguinte, com a Crise dos Mísseis. Tudo culpa de Viena.
Fonte: Revista de História
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