PICICA: "Para aqueles que privilegiam o caráter
político e assumem os desafios mais profundos da cultura, que englobam
inclusive a luta pelas condições materiais de sobrevivência, é
importante ter em conta que, da parte das grandes empresas capitalistas e
dos governos, há enorme interesse em usufruir dos serviços prestados
pelos novos empreendedores da cultura. Ainda que muitas vezes se
posicionem contra setores mais conservadores da sociedade,
empresas-coletivos como o Fora do Eixo fornecem às instâncias de poder
elementos importantes para que estes aperfeiçoem sua engenharia de
controle social."
Existe consenso em SP? Reflexões sobre a questão da cultura (2ª parte)
Os novos empreendimentos culturais
em São Paulo atuam em simbiose com as obras dos velhos agentes do
capital imobiliário, conferindo uma roupagem colorida a um processo que é
segregador e violento. Por Passa Palavra
Os novos capitalistas da cultura e a velha especulação imobiliária
As cidades brasileiras permitiram uma
degradação dos seus centros. Agora nós fazemos o esforço inverso, de
valorizá-lo. A saída para isso é gerar um programa de eventos durante
todo o ano. A cidade tem mais de 10 milhões de habitantes, é hoje o
maior destino turístico do Brasil. (Juca Ferreira, novo secretário de Cultura de São Paulo, aqui)
Há
um momento em que os interesses do novo empresariado da cultura entram
em sintonia com os interesses dos bons e velhos capitalistas de sempre.
Na dia-a-dia da cidade, isso se faz
sentir pela escolha que parte de novo empresariado da cultura faz por
atuar em localidades em vias de gentrificação. Para quem não sabe,
gentrificação designa um processo de modificações urbanas que se
destinam a banir a população pobre que tradicionalmente ocupa uma região
da cidade e, assim, valorizar o seu entorno. Sobre isso, mais uma vez,
os últimos acontecimentos na Praça Roosevelt, em São Paulo, são bastante
significativos.
Desde 2004, pelo menos, agentes do velho
capital imobiliário (incorporadoras, construtoras, imobiliárias e poder
público) atuam em conjunto para promover a valorização daquela área,
que compreende a região também chamada de Baixo Augusta. Nesse sentido, a
própria reforma da praça, inaugurada pela Prefeitura no final do ano
passado, foi um primeiro passo importante. Para tanto, precisou usar de
diversos expedientes violentos, como a expulsão dos moradores de rua e a
retirada de uma tradicional feira que acontecia há 60 anos no local.
Apesar de alguns protestos, o projeto mostrou-se bem sucedido e já
começa a produzir os efeitos desejados. A reforma promoveu uma elevação
geral do preço dos aluguéis, de forma que pequenos comerciantes e
antigos moradores vêem-se obrigados a sair do local por não suportarem
os novos custos. (ver aqui)
“A Augusta está mudando de perfil. Daqui
a um tempo, com essas obras entregues, terá o seu entorno valorizado. A
boate vai melhorar a fachada, o bar vai virar restaurante e a padaria,
uma butique de pães”, disse a diretora de atendimento da imobiliária
Lopes a uma reportagem da Folha de S. Paulo, poucos dias após a realização do festival Existe Amor em SP.
O curioso é que atuam também em favor do processo de gentrificação
justamente estas novas empresas do ramo cultural alternativo — dentre
elas, o próprio Studio SP, que se afirma como uma atração noturna que
“se transformou em um dos pontos de referência mais importantes da
revitalização da área que ficou conhecida como Baixo Augusta”. (ver aqui)
É
que a consolidação do local enquanto referência de balada [noitada] e
atrações culturais alternativas introduz na região uma espécie de aura cult que
pressiona pela elevação geral dos preços não só dos aluguéis, mas de
todo e qualquer serviço ou mercadoria oferecidos na região; repelindo,
agora por via pacífica, aquela parcela da população da cidade que não
possui condições de arcar com este padrão de consumo.
Em sentido muito parecido apontam as
ações do Festival Baixo Centro, realizado pela Casa da Cultura Digital
(outra agremiação empresarial mais voltada para área da comunicação e
cujas parcerias são muito esclarecedoras (ver aqui),
que diz pretender ocupar com festa os espaços públicos e
“ressignificar” outros bairros da região central da cidade, por sinal,
também em vias de gentrificação.
Como a fala do novo secretário de
Cultura de São Paulo deixa entrever, no conjunto, existe uma corrida
para marcar posição na nova setorização que está em curso na cidade, uma
vez que a realização da Copa de 2014 deverá consolidar o lugar de São
Paulo no circuito de capitais turísticas mundiais. Por trás destas ações
com nuances um pouco diferentes, mas sobretudo complementares, está em
jogo uma verdadeira transformação urbanística que tende a fazer de todo o
centro da cidade um polo empresarial especializado em cultura e
entretenimento; tal como o concebido pelo inaugurador de museus Andrea
Matarazzo. Assim, por mais irônico que pareça ser, os novos
empreendimentos culturais paulistanos atuam em simbiose com as obras dos
velhos agentes do capital imobiliário, conferindo uma roupagem colorida
a um processo que é, como sabemos, segregador e violento.
Se coletivos como o Fora do Eixo atuam
como organizações empresariais que fazem uso da produção simbólica
alheia para barganhar com governos e empresas financiadoras o
mapeamento, a articulação e a mobilização de grupos e pessoas, ora, nada
mais vantajoso do que irem buscar a matéria-prima de seus negócios
diretamente na fonte, ou seja, no universo dos movimentos sociais.
Afinal, sejam pequenos, médios ou grandes, estes “territórios em rede”,
no linguajar de Capilé, constituem plataformas prontas ou semiprontas
para a exploração de todos aqueles elementos essenciais para a sua
atividade.
Em primeiro lugar, porque, apesar de
todos os seus problemas e limites, a esquerda (principalmente a sua
juventude) se caracteriza por ser um meio social bastante profícuo para a
geração de símbolos, expressões e anseios de mudança. Como para o Fora
do Eixo pouco importa a base concreta de surgimento destes símbolos,
estes podem ser apropriados abundantemente. Seja Che Guevara, maconha,
ecologia, Maradona, amor livre, causa indígena, MST, Hugo Chávez,
cineclubismo, Jimi Hendrix, periferia ou carnaval de ruas — tanto faz.
Só que, tão importante quanto este
agregado confuso de significantes, interessa aos expropriadores de
cultura apoderarem-se também do conjunto de saberes operacionais,
mapeamentos, informações sobre o terreno de atuação, redes de relações
políticas e contatos acumulados pelas mais variadas experiências de
movimentos sociais. É isso que, novamente na linguagem dos nossos novos
empreendedores culturais, chama-se “tecnologia social”.
Não é à toa, portanto, que, tão logo
tenha aportado nesta capital, a militância empreendedora do Fora do Eixo
tenha já percorrido uma variedade de movimentos sociais, populares e/ou
de cultura com o intuito de colocá-los sob o seu guarda-chuva; fazendo o
mesmo em âmbito nacional. E, dessas experiências, não são poucos os
relatos de que sua aproximação tenha sido problemática; mas também não
são poucos os casos em que parecem ter obtido bastante sucesso.
Tendo em mãos essa riqueza simbólica
aliada à “tecnologia social” extraída das iniciativas de luta, o Fora do
Eixo pode, então, oferecer seus serviços a empresas e governos em troca
dos editais de financiamento.
Nem todos os grupos e pessoas que aderem
aos projetos dos novos empresários da cultura o fazem por convicção ou
clareza política — e aqui referimo-nos apenas às pequenas organizações
de esquerda, pois as demais sabem muito bem os caminhos que optaram por
trilhar.
O Fora do Eixo e seus congêneres
encontram um terreno bastante fértil de reprodução entre aquela
juventude que carrega consigo algum sentido de indignação, crítica e
protesto contra o atual estado de coisas, mas não encontra um projeto
político-estético no qual possa se empenhar. Pesa também a carência de
grande parte dos coletivos e pessoas ligados à cultura, que dependem
materialmente da sua atividade para a própria sobrevivência.
Paralelamente, há já algum tempo que as
organizações de esquerda não conseguem construir canais de diálogo
eficientes e duradouros para viabilizar estruturas para este feito,
tampouco comunicar e exprimir o seu ideário através deles. E isso não
acontece só porque tenhamos perdido o senso de humor (e ainda bem que
nem todos perdemos, veja aqui) .
Ao contrário, esta situação é reflexo do fato de grande parte de nós, à
esquerda, termos abandonado a capacidade de ler as transformações
políticas, sociais, econômicas e tecnológicas que acontecem diante de
nossos olhos, e então expressá-las artisticamente. E se considerarmos o
significativo grau de crescimento por que passa a economia brasileira
(em que pesem os usos políticos que são feitos deste dado, vide o mito
da nova classe C), mais agravante se torna a questão. Com sua visão
empreendedora, Capilé fala para “o jovem brasileiro” que “está tão
animado que está gastando o que não tem”; nós, se não nos repensarmos
profundamente, corremos o risco de continuar batendo cabeças.
É neste quadro que deve ser pensada a realização do evento intitulado Existe diálogo em SP, (que não por acaso parafraseava o slogan do
evento da Praça Roosevelt), convocado pelo novo secretário municipal de
Cultura da cidade de São Paulo, Juca Ferreira, nomeado pelo
recém-empossado prefeito, Fernando Haddad. Juca e sua equipe convidaram
artistas, produtores, realizadores, ativistas e articuladores culturais
para uma reunião aberta em que seriam apresentadas propostas para a
construção de políticas públicas para a área.
Para quem não sabe, Juca Ferreira foi
secretário-executivo do ministério de Gilberto Gil (2003-2008) e, em
seguida, ele mesmo ministro da Cultura do governo Lula (2008-2010).
Durante o tempo que ficaram no comando do MinC estimularam, sobretudo,
as políticas em torno da cultura digital e dos Pontos de Cultura. Tais
foram as bases que alimentaram o crescimento e a expansão dos
empreendimentos do Fora do Eixo.
Uma rápida olhada na movimentação das
redes sociais à véspera do encontro, e pesquisando um pouco quem são as
pessoas que foram chamadas a compor o atual gabinete, é suficiente para
sacar que os membros do Fora do Eixo terão papel importante nesta nova
gestão, e com eles a constelação de novos empresários culturais que
atuam na cidade.
Um dos objetivos anunciados do diálogo
foi o de abrir um primeiro contato para mapear demandas e sugestões dos
grupos culturais paulistanos com vistas a constituir um Conselho
Municipal de Cultura, que ajude a formular um Plano Municipal de Cultura
e a rever diretrizes do Plano Diretor da cidade.
Eis que pesa sobre os fazedores de
cultura da cidade, neste momento, o desafio de bem avaliar o significado
político desta convocatória e definir seu posicionamento perante ela;
ressaltando que definir um posicionamento não implica necessariamente
optar pela participação ou pela não participação. Mais relevante do que
isso é ter clareza do que se tem por objetivo e de como se relacionar
com o assunto.
Uma primeira questão que se coloca diz
respeito às condições e à concepção dos próprios coletivos e agentes
culturais. Acreditam eles que os entraves da cultura estão ligados
apenas a problemas de gestão e financiamento ou se relacionam a embates
políticos mais amplos?
Para
aqueles que têm como horizonte único tomar posição mais vantajosa no
repasse das verbas destinadas à cultura, parece-nos que lhes será
favorável participar destes espaços conciliatórios sem maiores
reflexões. Afinal, uma Prefeitura do PT em São Paulo tende a ser “a
menina dos olhos” do governo federal e, certamente, com a pasta da
Cultura, cuidará de distribuir verbas suficientes ao ponto de reduzir
bem os níveis de queixa. Porém, não é a estes que nos dirigimos.
Para aqueles que privilegiam o caráter
político e assumem os desafios mais profundos da cultura, que englobam
inclusive a luta pelas condições materiais de sobrevivência, é
importante ter em conta que, da parte das grandes empresas capitalistas e
dos governos, há enorme interesse em usufruir dos serviços prestados
pelos novos empreendedores da cultura. Ainda que muitas vezes se
posicionem contra setores mais conservadores da sociedade,
empresas-coletivos como o Fora do Eixo fornecem às instâncias de poder
elementos importantes para que estes aperfeiçoem sua engenharia de
controle social.
Desde
há muito que o capitalismo não se reafirma como forma social unicamente
através da repressão. De tempos em tempos, as técnicas de poder
precisam ser renovadas. E, ao contrário do que se poderia supor, a
principal característica destas novas (ou não tão novas) engenharias de
controle consiste não em manter os dominados imóveis e apáticos frentes
aos problemas sociais. Ao contrário, tanto mais ela funcionará quanto
mais mantiver os de baixo engajados e participativos, contanto que isto
aconteça dentro de espaços políticos pré-estabelecidos. É trazendo para a
luz iniciativas que antes ocorriam à sombra que as empresas e os
governos asseguram a manutenção de seus privilégios. E, em se tratando
de forças renovadoras, a atuação sobre a juventude ganha especial
importância.
Isso talvez explique a utilidade que
empresas como a Vale, por exemplo, enxergam em patrocinar projetos do
Fora do Eixo e compartilhar com o coletivo “tecnologias sociais”. E
talvez explique também por que órgãos governamentais progressistas têm
recebido de bom grado a intermediação do Fora do Eixo e similares para a
proposição de políticas públicas voltadas para a área da cultura.
Para os que, sem ignorar estas
contradições, ainda assim acreditam que a participação nestes espaços
abrirá possibilidade para que trabalhadores e fazedores de cultura em
geral ao menos ampliem o seu poder decisório sobre assuntos mais
abrangentes do planejamento da cidade, convém lembrar que estão sendo
chamados a opinar sobre apenas 0,9% do orçamento total do município,
talvez 2%, na melhor das hipóteses. Dentro dos quais, boa parte já está
amarrada a gastos regulares no setor e ao pagamento de dívidas. Ou seja,
são chamados a decidir sobre uma parcela irrisória; simbólica, se
preferirem. Lembremos ainda que outras pastas decisivas no que diz
respeito ao destino da cidade, como a da Habitação, por exemplo, foram
deixadas aos cuidados dos tradicionais grupos políticos que há décadas
determinam e se beneficiam dos investimentos imobiliários e turísticos —
e não há indícios de que por aí ocorram inovações ou aberturas
participativas efetivas.
A estes, cabe refletir seriamente se a
eventual participação representará avanços na luta para pôr em xeque as
engrenagens que criticam ou apenas um convite a celebrar o casamento
entre o velho cinzento capital e o novo multicolorido empresariado da
cultura.
Finalmente, uma questão-chave: o que as experiências passadas nos dizem sobre isso?
Leia aqui a 1ª parte deste artigo
A partir de algumas questões que foram levantadas nos comentários e discussões a estes artigos, publicaremos uma 3ª parte na semana que vem.
Fonte: Passa Palavra
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