fevereiro 19, 2013

"A proteção ao cinema francês", por Eugenio Renzi

PICICA: "Ao tornar reconhecido o direito dos Estados de definir livremente sua política cultural, a batalha travada contra o Acordo Multilateral de Investimento (AMI) da OCDE, em 1998, endossou a exceção cultural. Os dispositivos que protegem o cinema francês são a ilustração mais célebre. Mas eles cumprem bem seu papel?" 

POLÍTICA CULTURAL
A proteção ao cinema francês
 
Ao tornar reconhecido o direito dos Estados de definir livremente sua política cultural, a batalha travada contra o Acordo Multilateral de Investimento (AMI) da OCDE, em 1998, endossou a exceção cultural. Os dispositivos que protegem o cinema francês são a ilustração mais célebre. Mas eles cumprem bem seu papel?

por Eugenio Renzi


(Cena do filme Os Intocáveis, sucesso de bilheteria rejeitado pela crítica francesa)

Há um escândalo no ar e, sobretudo, uma exceção cultural em perigo. Ao contrário do que se passou em 2012, quando a Comissão Europeia mais uma vez atacou o sistema francês de apoio ao cinema, sem com isso causar qualquer comoção midiática em especial, o artigo publicado em dezembro no Le Monde pelo produtor e distribuidor Vincent Maraval1 – atacando o fato de o cinema francês se “assentar em uma economia cada vez mais subsidiada” e mostrando-se espantado com o salário de certas celebridades – teve grande repercussão. Em ambos os casos, o sistema atacado é representado principalmente pelo Centro Nacional de Cinema e – há alguns anos – Animação, mais conhecido como CNC, o qual foi criado e desenvolvido com o objetivo de proteger uma indústria nacional, e uma arte.

Ele nasceu em 1946, em parte para tentar conter os acordos Blum-Byrnes, que perdoavam parte da dívida francesa para com os Estados Unidos sob a condição de uma abertura quase total das salas de cinema do país aos filmes norte-americanos. Após negociação, as películas francesas passaram a contar com exibições uma semana por mês.2 Em 1948, o papel do CNC foi incrementado com a criação de um fundo de apoio financiado por uma Taxa Especial Adicional (TSA, na sigla em francês), que capta 10,72% do volume de negócios das bilheterias e os reinjeta na produção. Em 1959, o novo Ministério de Assuntos Culturais, dirigido por André Malraux, introduziu um auxílio seletivo, o adiantamento sobre receitas, cujo objetivo é apoiar criações que a indústria não estaria inclinada a abraçar, por serem de alto “risco”. Finalmente, quando a televisão começou a capturar o público, no início dos anos 1980, o ministro da Cultura Jack Lang obrigou as redes a participarem dos fundos de apoio. Ele também criou as Sociedades de Financiamento da Indústria Cinematográfica e Audiovisual (Sofica), que constituem uma espécie de adiantamento sobre receitas financiado por fundos privados, por meio de incentivos fiscais.

Atualmente, o espírito dessa política – tirar dos difusores para redistribuir aos criadores – permanece. Melhor ainda, a captação de fundos alcançou o vídeo e, em março de 2007, também as assinaturas de internet. Em 2011, de uma receita total de 806,29 milhões de euros, 143,07 milhões vinham da TSA, 631,04 da taxa sobre editores e distribuidores de TV, e 31,96 milhões da taxa sobre o vídeo. Uma pequena mina de ouro... É compreensível que a Comissão Europeia se comova diante de tão persistente heresia, que ousa modernizar-se tributando também os provedores de acesso. E, nessa comoção, ataca outra característica do dispositivo: a territorialização desses auxílios, que implica que o produtor não gaste mais de 20% do orçamento do filme em outros Estados da União Europeia − para proteger (de novo!) o ofício do cinema no território nacional.

Essa política protecionista é de um êxito incontestável. Com o objetivo de “corrigir os efeitos nefastos de um mercado um pouco agressivo demais”, como lembra o diretor do CNC, Eric Garandeau,3 ela permitiu efetivamente que o cinema francês não fosse engolido pelos filmes estrangeiros, sobretudo norte-americanos − um caso único na Europa. Da mesma maneira, o fato de o dinheiro público ser “redistribuído de grandes filmes para os filmes de autor, para os filmes da diversidade”,4 confirma o desejo de uma exceção ao mercado, cujo mérito é incontestável. Mas a aplicação, ao longo dos anos, das condições dessa exceção sofreu algumas distorções.

Cisne negro e Intocáveis

O cinema francês goza de uma vitalidade rara: mais de duzentos filmes são produzidos por ano. Alguns alcançam grande sucesso: em 2011, foi Intocáveis, de Eric Toledano e Olivier Nakache, o filme de maior bilheteria na França. Mas em que ele difere de um filme hollywoodiano como Cisne negro, de Darren Aronofsky, Leão de Ouro no Festival de Veneza, que também está entre os dez mais vistos no país, no mesmo ano? De grande orçamento e elenco internacional, Cisne negro é um filme para um grande público, mas também exemplo de uma narrativa clássica brilhantemente transformada em cinema experimental. Nas palavras do editor do periódico Cahiers du Cinéma (fev. 2011), Aronofsky é impulsionado pela “busca da perfeição”. E o mesmo jornalista compara o filme francês mencionado a um “marshmallow repugnante” (nov. 2011).

Essa preferência expressa uma opinião que parece pouco contestável: o cinema comercial francês é, de maneira geral, de menor qualidade que seu equivalente norte-americano. Mas a estrutura de Intocáveis segue sabiamente as regras de ouro da indústria hollywoodiana,5 dos primeiros cinco minutos, quando o problema psicológico e moral do filme é colocado, até a dupla revelação do desfecho. A diferença cultural entre as duas indústrias não aparece, portanto, no cinema de “grande público”. Mas deveria ser visível nos filmes que contam com o símbolo constituído pelo avanço sobre as receitas – com o qual, aliás, Intocáveisnão contou.

Para o CNC, cujo estatuto foi reformado em 2009, o cinema é apenas parte de sua área de intervenção, ao lado da criação audiovisual, da multimídia e do jogo eletrônico. O apoio ao cinema chega a 155 milhões de euros. Concedido em nome do “interesse público”, ele acompanha toda a cadeia produtiva, da concepção à produção e distribuição. E toca todos os gêneros de filme, do curta ao longa-metragem, da ficção ao documentário. Entre os vários dispositivos de auxílio, o adiantamento, que distribui entre 20 milhões e 30 milhões de euros, pode parecer pouco, especialmente quando se sabe que ele atinge apenas cinquenta projetos e só permite que metade de seu orçamento seja financiada. No entanto, ele continua sendo o coração do sistema, pois traduz a vontade nacional de proteger a criação.

Mas que criação? Pelos diretores que recebem sistematicamente o adiantamento, podemos ter uma ideia: Jacques Doillon, Philippe Garrel (que só foi recusado uma vez, para Amantes constantes, e foi um escândalo), Olivier Assayas, Bruno Dumont, Costa-Gavras, Michael Haneke, Avi Mograbi... Já os nomes dos recusados revelam os limites do financiamento: a rigorosa dupla Jean-Marie Straub e Danièle Huillet; René Allio (Les Camisards, ou, junto com Michel Foucault, Eu, Pierre Rivière...); Jean-Claude Biette, cuja obra ganhará uma retrospectiva na Cinemateca no próximo verão francês; ou ainda o impressionante Luc Moullet. O produtor Thomas Langmann, dizendo em voz alta aquilo que muitos mantêm apenas em pensamento, chamou a comissão de “comitê de compadres”.6 É verdade que ela abriga, ao lado de membros do CNC, pessoas escolhidas entre os vários setores do cinema e muitas vezes ligadas aos candidatos por relações de amizade ou interesse. Mas o mais importante é que parece que o principal local de seleção do cinema francês não é regido por critérios muito claros. Assim, entre os beneficiários de 2011, encontram-se tanto o bastante retrô Cherchez hortense, de Pascal Bonitzer, como o Retour à Beyrouth, de Avi Mograbi, um dos maiores artistas da atualidade.

Há, no entanto, um modelo implícito do que deveria ser um filme de autor, de acordo com o CNC: é O último metrô(1980), de François Truffaut, que reinventou uma “qualidade francesa” considerada exemplar – a mesma que Truffaut acusara de academicismo e sujeição aos roteiristas. As escolhas da comissão são sempre baseadas no roteiro. Mas, passadas três décadas, essa predominância do roteiro acabado como ponto de partida do processo criativo, acentuada pela necessidade de privilegiar uma forma acadêmica, centrada na história e nos diálogos, conduziu a uma certa uniformização. Podemos lembrar, por exemplo, que para Nanni Moretti parte das filmagens pode preceder a escrita: Palombella Rossa(1989), Caro diário(1994)...

O peso da televisão

Para minorar essa tendência, dispositivos de correção foram recentemente colocados em prática. Alguns defensores de um cinema livre das estruturas narrativas tradicionais – Virgil Vernier, Thomas Salvador, Larry Clark – estão entre os premiados de 2012. Mas essa “normalização”, que pode se manifestar por temáticas bastante monótonas, como a da obsessão narcisista pelas ameaças que pesam sobre a herança do cinema – os filmes de Assayas são um exemplo –, também está ligada ao peso da televisão. Desde 1985, a lei obriga as redes de TV a participarem da produção, dedicando uma porcentagem de seu orçamento à pré-compra de filmes cinematográficos. Mas elas voltam-se cada vez mais a filmes de custo médio (entre 4 milhões e 8 milhões de euros), destinados a compor o grupo dos filmes para TV e do cinema comercial: atores populares, intrigas sem surpresa, arte cinematográfica reduzida à sua mais simples expressão. E quem se atreve a uma proposta muito distante das regras dominantes corre o risco de ser marginalizado.

Alguns filmes ainda conseguem se manter quase completamente protegidos do mercado, graças às Sofica ou à autoprodução. Mas esse sistema ultrarradical acaba gerando a impossibilidade – em razão da não conformidade de seu modo de produção – de obter a aprovação do CNC, essencial para a atribuição do apoio financeiro. Desse modo, ele fabrica objetos que permanecem confidenciais, como a magnífica obra de Jean-Claude Rousseau, autor entre outros de De son appartement – prêmio de melhor filme no Festival Internacional do Documentário (FID) de Marselha em 2009 –, celebrada há quinze anos nos mais importantes festivais do mundo e que continua desconhecida.

Parece, portanto, que o essencial a partir de agora seria concentrar os recursos em um cinema mais sensivelmente “diferente”. Apoiando-o, obviamente, mas também procurando limitar o poder do cinema comercial, especialmente no que concerne a seu orçamento de publicidade. Isso daria mais espaço e possibilidades a todo o setor, até à crítica. A falta de exigência e criatividade afeta os dois cinemas. Isso parece mais grave quando se trata de cinema de autor, que deveria sacrificar a rentabilidade econômica no altar da cultura. Contudo, a mediocridade do cinema comercial deveria suscitar a mesma inquietação. O CNC pode continuar se escondendo atrás daquilo que funciona corretamente − a economia geral dessa indústria − e ignorar suas dificuldades, que não são apenas econômicas. Essa pode ser uma tática, mas não uma estratégia. A longo prazo, será cada vez mais difícil defender a exceção industrial em nome de uma exceção cultural tornada quase invisível.

Eugenio Renzi 
Redator da revista de cinema Independencia


Ilustração: Divulgação

1 Le Monde, 29 dez. 2012.
2 Ler Geneviève Sellier, “Le précédent des accords Blum-Byrnes” [O precedente dos acordos Blum-Byrnes], Le Monde Diplomatique, nov. 1993.
3 “Garandeau: ‘Nous avons un cinéma riche et puissant’” [Garandeau: “Temos um cinema rico e poderoso”], 3 jan. 2013. Disponível em: <http://www.lefigaro.fr/>.
4 France Inter, 3 jan. 2013.
5 John Truby, L’anatomie du scénario. Cinéma, littérature, séries télé [A anatomia do roteiro. Cinema, literatura, séries de TV], Le Nouveau Monde Éditions, Paris, 2010.
6 Le Figaro, Paris, 4 jan. 2013.



Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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