PICICA: "Miguel, finalmente, vai ao cerne, quando enxerga em Django
uma crítica radical e imanente à estrutura da história. Não exi por esse valor. Move-se, em verdade,
por seu efeito produtor e reprodutor do presente. O passado, no fundo,
não é passado. O presente estrutura o passado à semelhança da ordem
social, reflexivamente. Não teria a mesma força, portanto, opor uma
visão histórica à outra, um conjunto de valores a outro. Este seria um
filme de Spielberg, Amistad (ou Lincoln), que condena
uma América rural, escravocrata e atrasada somente para preitear os
Estados Unidos modernos, republicanos e democráticos, a True America.
Mais fundo do que isso, para Miguel, é necessário questionar a própria
estrutura da história que, de uma forma ou de outra, sustenta a ordem
social dominante em que o racismo continua noutros termos.ste
fidedignidade histórica nos filmes? Ora, a história, o modo como ela
realmente funciona não é animado
Miguel volta ao filme anterior, Bastardos inglórios. Nele,
reescreve-se a história da vitória norte-americana sobre o mal absoluto,
libertando os judeus e outros povos subjugados. É essa a história na
mira de Tarantino. Se a URSS aparecesse, estaríamos em outra referência,
estaríamos disputando versões da história. Na esteira da contracultura
dos anos 1960 e do pensador marxista Walter Benjamin, a verdadeira luta é
disputar o próprio sentido da história. Se simplesmente fosse reescrita
a história noutra versão, estaríamos distanciados dos efeitos de
verdade, gosto e poder com que se construiu a nossa, a
sociedade ocidental do pós-guerra, em meio ao que nós mesmos fomos
constituídos como membros dessa comunidade de valores. Mais do que
discutir a verdade, em jogo nesse cinema está disputar o regime de
produção das verdades. Sabotá-lo, apropriar-se dele. O poder de verdade
que a história e o cinema invocam é proliferante e autossubversivo. No
interior do que um cineasta como Tarantino sabe conferir novos usos,
cruzando referências, signos e gêneros, para gerar monstros.
Aí uma arte maravilhosa e perigosa que o “cinema subdesenvolvido” conhece pelo menos desde Gláuber."
Django: o negro do negro de Spike Lee a Tarantino
Em seu filme A hora do show (2000), por exemplo, Pierre Delacroix é um roteirista negro que trabalha para uma grande rede de televisão. O personagem vê seus roteiros rejeitados um depois do outro. Textos com protagonistas negros em papéis inteligentes não são considerados de apelo. Em vez disso, o patrão branco espera dele um material que não fuja das expectativas, sem “inventar muito”, ou polemizar. Em protesto, Pierre redige um show completamente racista, com piadas estereotipadas, caricaturas e ofensas diretas, abusando da palavra nigger. Para surpresa dele, no entanto, que esperava nada menos do que a demissão pela empresa, a proposta do show é endossada com entusiasmo e produzida. Pior, acaba colhendo o sucesso dos espectadores. Surpreendemente, Pierre é aclamado e ganha um prêmio televisivo. Em vez de abrir o jogo e revelar a verdadeira intenção, Pierre resolve abraçar o programa e o prestígio decorrente. O protagonista passa a se justificar ressaltando o caráter satírico da produção. A ironia estaria no subtexto, em escancarar o racismo inquestionado na TV e seu público, criticando assim a própria “naturalização” do racismo. Na conclusão, Spike Lee faz passear na tela uma sucessão de cenas com conteúdo racista do cânone de Hollywood.
Lee gosta de forçar limites. Em A hora do show, a repetição de piadas e estereótipos dura tanto tempo, e é apresentada com tanta habilidade (inteligência?), que é difícil não colher a cumplicidade “humorística” do espectador, especialmente do espectador branco. Rimos quase sem querer, aceitando de uma maneira ou de outra o jogo proposto pelo diretor. Põe-se em xeque a nossa própria inocência, a propria lógica em que racista é sempre o outro. O filme nos interpela a participar do show, do mesmo modo que comediantes “politicamente incorretos” e outros representantes da cultura pop. Afinal, é só uma “brincadeira”: eu rir de uma piada racista não significaria ser racista… É aí que o corrosivo cineasta não perdoa Pierre, muito menos o espectador cúmplice, que só estaria atrás de um pouco de distração e lazer. Não adianta Pierre anotar para si e os próximos uma “reserva mental”, que no fundo o propósito seja irônico. Na prática, o show de Pierre acaba participando de um conjunto de engrenagens que reforça e legitima o “mundo branco”, um mundo em que o negro ocupa um lugar subalterno, senão ridículo. Ele não será perdoado por isso e o roteiro cuidará de matá-lo no derradeiro plano.
A hora do show critica o refúgio, muitas vezes automático, na “ironia pós-moderna”. Spike Lee problematiza a abertura de sentido dos enunciados ao redor da raça. Nomear a raça pode tanto reforçar o racismo quanto erodi-lo, uma diferença que está nas sutilezas. Tudo depende de como é feito. Lee enfrenta esse problema mediante uma autoconstrução como diretor negro “implicado”, tendo se constituído autoralmente ao redor da resistência negra. Daí não deixar de firmar em seus filmes, claramente, uma instância crítica entre o que é mostrado e a posição do autor. Como ele é o Spike Lee, ele pode fazer isso, sua função-autor lhe permite. Se sucedem ambiguidades e contradições nos seus filmes, elas servem ao propósito crítico, menos do que para desgastá-lo. Existe aí certa dialética, que é distanciar-se do “mundo branco”, impregnado na cultura pop, para então atacá-lo impiedosamente.
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Spike Lee sempre vai ser lembrado ao lado de Django livre (2012). Muitos fãs de Tarantino gostariam de contornar os espinhos, mas eu acredito que mereça desenvolvimento a reação raivosa de Spike. Ele já tinha problemas com o branco Tarantino desde os anos 1990, quando criticara o excesso de palavras nigger na trilogia da malandragem. Estou falando dos três primeiros longas dirigidos por Quentin: Cães de aluguel (1992), Pulp fiction (1994) e Jackie Brown (1997). Os niggers na boca de personagens negros, como Jules (Samuel L. Jackson) ou Jackie (Pam Grier), não teriam a mesma conotação do que nos filmes do cineasta negro. Nos filmes de Tarantino, faltaria o grau de “implicação” necessário para distanciar-se do “mundo branco” e exercer a crítica. Nigger, no “mundo branco”, é sempre pejorativo. Ainda que sirva para afirmar certa concepção de negritude, como uma espécie de credencial ao “mundo negro” das ruas e malandragem. Seria este o propósito de Tarantino. Como o branco que emula gestos e gírias para tentar se aproximar do negro, como se não fosse igualmente um estereótipo, uma “identidade boa” atribuída ao outro.
Django, em especial, vai mais longe. Além de reproduzir o racismo na boca de brancos e negros, ainda faz humor com a escravidão. Spike acusou-o de desrespeitoso e disse que não iria vê-lo. Talvez pense que o escravo Django se preste a um papel parecido com o de Pierre. Ao se disfarçar de negro vendido, Django humilha seus pares e chega a ser cúmplice da brutalidade e do assassínio. Pouco importam proclamados propósitos maiores se, na prática, ele participa do show. O que define sua posição é o que você faz, e não “reservas mentais” dentro da cabeça. Pode-se dizer que o espectador “consciente” compreenda o jogo de que Django participa. Porém, pela mesma razão, também se poderia dizer que um racista vibraria com o bad nigger que perversamente maltrata os semelhantes. Além disso, o propósito não era tão maior assim. Neste ponto da narrativa, era salvar a amada Brunhilda e não destruir a Casa Grande (o que resulta, ao fim e ao cabo, da contingência de Dr. Schultz ter perdido a cabeça).
Dá pra entender o ponto de Spike, quando sugere que Tarantino está se autopromovendo nas costas da questão racial. O cineasta não se limitaria a pegar referências do blaxploitation, — um gênero frequentemente parodiado na filmografia tarantinesca, — com cenas empanturradas de sexo e sangue com negros. Quentin estaria ele mesmo blaxplorando.
A grande maioria, inclusive admiradores de Spike Lee, achou que ele errou a mão. Tachado de chato a ressentido a “politicamente correto”, de defender uma “reserva de mercado”, quase ninguém poupou-o. Lee todavia entende de boicotes. Ele próprio é sistematicamente boicotado pelos oligopólios de exibição no Brasil, onde seus filmes raramente chegam às salas de cinema nos shoppings e roxys, isto é, no “mundo branco”.
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Minha leitura de Django vai muito ao encontro de Hugo Albuquerque, no blogue O Descurvo, de Rodrigo Guerón, publicada no Facebook, e de Miguel Mellino, cuja tradução publiquei no post anterior.
Hugo realça o valor militante do filme. Quem reduz Django à mera peça de entretenimento perdeu algo de essencial. A verdadeira crítica articula o juízo de gosto com o juízo político. Não são autônomos, embora muitas vezes seja difícil articulá-los além dos esquemas. Para Hugo, o ataque de Django, no final, acaba sendo contra a sociedade escravocrata simbolizada pela Casa Grande. Vai às causas materiais da própria escravidão, à razão sistêmica. O racismo não está só na cabeça dos racistas: é um sistema de disciplina, coerção e punição operando na prática, nos espaços, na organização do tempo, nos gestos, olhares, sorrisinhos. Um sistema que precisa ser destruído materialmente. Na base de tudo isso, como bem explica Hugo, está um funcionamento afetivo: a servidão voluntária, teorizada de La Boétie a Negri, passando por Spinoza.
Servidão voluntária, obviamente, não significa que os negros eram passivos objetos da vontade dos brancos. Eles se rebelavam, fundavam quilombos, organizavam revoltas sanguinárias. O medo existia nos dois lados e o Haiti nunca deixou de lançar sombra sobre os escravocratas do século 19. Simplificando, servidão voluntária significa que cada indivíduo ou grupo social já é desde o princípio dividido em dois. De um lado, o negro construído afetivamente pelo “mundo branco”: submisso, mentalmente inferiorizado, comportado e diligente, que precisa e até gosta de autoridade para ter utilidade e sentido na vida. O exemplo máximo desse negro é Stephen, o “negro da casa” vivido por Samuel L. Jackson. Do outro lado, o negro como recusa não só aos brancos racistas, mas ao “mundo branco” como um todo, ao racismo institucional. É o negro que explode a dialética do senhor e do escravo para libertar o mundo e que, portanto, importa a todos aqueles que lutam pela transformação desse mundo. A luta de libertação se dá, permanentemente, no interior de cada um. É preciso extricar o negro do negro, o limiar interno que faz o “negro da casa” explodir, trazendo à tona a força bárbara da recusa, liberdade e criação de mundo.
Tarantino problematiza a servidão voluntária sem maniqueísmo. O negro vendido, ou “negro da casa”, na figura do capataz Stephen, é orgânico à violência sistemática contra os da própria raça. Mas também poderia ser um policial, um psicólogo, um juiz negro. Enquanto um branco europeu, Dr. Schultz, se transforma ao longo do filme e termina por aderir à causa de Django, ao ponto de cometer um assassinato por motivo político.
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Paradoxalmente, em Django, a resistência ao sistema encarna na figura do cowboy: o homem de ação, o solitário, intrépido, incorreto e ultraviolento herói americano. O cowboy, destemido o suficiente para atravessar vastos espaços e grandes perigos, vingar-se e salvar a amada. A figura do cowboy que, até pelo menos os anos 1960, investia o desejo de homens e mulheres brancos (e conservadores) da América. Que reforçava os altos valores republicanos desse país de fortes e destemidos, até que Sam Packimpah e o faroeste-espaguete começaram a contar a história de uma maneira diferente.
Algumas belas almas de sensibilidade, digamos, mais progressista, até gostariam de ver um Django engajado num esforço coletivo de emancipação racial, com o discurso e a bandeira mais corretos. Mas por que é que, quando o cowboy é negro, ele tem que ser um ativista? Temos o direito de exigir-lhe isso? Por que não pode haver revolta sendo precisamente o que ele quer ser? Um cowboy negro?
Para Rodrigo, Tarantino surfa no imaginário dominante de Hollywood, o “mundo branco” como diria Spike Lee, para despedaçar o misto de culpa e impotência de que é feito. Culpa e impotência que fazem parte da carne das imagens. Está falando de um ataque cinematográfico além da instância crítico-discursiva, que faz a descida antropofágica à base de afetos e investimentos desejantes. A força do filme consiste em torcer essas imagens-carnes por dentro, em forçá-las a acusar o golpe, sem negar o desejo que esse imaginário e essa indústria colonizam. Contorna-se, assim, uma dialética entre o que é mostrado e a posição do autor, uma relação de negação ao representado. A cumplicidade com o “enunciado”, — que Spike Lee geralmente condena como perigosa ou desrespeitosa demais, — é abertamente assumida.
O caso, com Tarantino e outros subversivos do pop, é aceitar o mundo dos idiotas. Não há outro, afinal. Por que não viver? Tarantino é demente e seu cinema demencial o bastante para fazê-lo, sem medo de dissolver-se acriticamente. O caso é libertar o mundo das mãos e olhares dos idiotas, o que nele nos incita a desejar e com o que desejamos, sem inocentar os idiotas. O racismo deve ser destruído neste mundo. Isto significa não recair nalgum niilismo típico de “ironia pós-moderna”, como se acolher a ambiguidade disseminada dos signos não permitisse assumir posição dentro do caldo. Quer dizer, uma coisa é demonstrar e admitir o artifício da História, como existente num estatuto em nada superior, — sobretudo jamais moralmente superior, ao artifício do cinema. Outra seria igualar todos os artifícios à indiferença, ao indecidível do sem-sujeito. Ora, os patrões brancos são deliciosamente trucidados numa vingança justa, inclusive a mocinha branca mais humanista; a Casa Grande é dinamitada, a amada negra salva. Django toma partido. Toma partido, com justiça, do incorreto cowboy.
Se tem uma pedagogia em Django, não está em edificantes mensagens de conscientização sobre o terror da escravidão e a condição de vítima dos negros. Esse é outro filme. Mas este não deixa de ser um filme sobre luta e resistência. O pedagógico talvez esteja em que podemos, de fato, gozar com a luta contra os opressores. Podemos efetivamente investir o nosso querer na destruição do fascismo, em todas as formas afetivas. Não é pouca coisa em nosso contexto, quando boa parte da dita esquerda se limita a culpar o governo por seus problemas. Quando se limita a proclamar-se, quase neuroticamente, sempre “mais à esquerda”, sempre mais pura, obscurecendo a própria impotência de endereçar e se envolver com o problema principal: a organização e a mobilização coletivas neste mundo.
E não admira a convergência cada vez menos camuflada com a direita progressista, cujo discurso monotônico passa invariavelmente pela corrupção/falta do estado. Quando foi que esta esquerda sucumbiu à chantagem capitalismo ou barbárie!, e acabou por transigir com os “bons capitalistas”?, esses liberais e humanistas para quem o essencial na política é institucionalizar uma atitude pacífica, tolerante, plural e “aberta ao diálogo”?, para que nada mude verdadeiramente, ou que mude no dia de São Nunca? Será que não teríamos perdido a incorreção de atitude no meio do caminho? Renunciado à verve, ao tesão de agredir, lutar, destruir? Sim, o “politicamente correto” é uma tese-espantalho fincada pela direita, mas será despida de qualquer pertinência?
Possivelmente isso tenha acontecido no momento em que a esquerda, no desencanto generalizado dos anos 1990, acabou por degenerar no discurso anódino dos direitos humanos ou no “politicamente correto”. Hoje, quando aquilo que se apresenta como razão universal ou consenso não passa de uma paixão amortecida, voltada a nos desmobilizar e a induzir a servidão; a violenta paixão de resistir, erigida à razão do filme, não pode deixar de nos atingir por todos os lados como uma bomba. Daí que, talvez, o nosso juízo de gosto sobre a sanguinolência de Django seja tão desmedido, e até incompreensível para nós mesmos.
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Miguel, finalmente, vai ao cerne, quando enxerga em Django uma crítica radical e imanente à estrutura da história. Não exi por esse valor. Move-se, em verdade, por seu efeito produtor e reprodutor do presente. O passado, no fundo, não é passado. O presente estrutura o passado à semelhança da ordem social, reflexivamente. Não teria a mesma força, portanto, opor uma visão histórica à outra, um conjunto de valores a outro. Este seria um filme de Spielberg, Amistad (ou Lincoln), que condena uma América rural, escravocrata e atrasada somente para preitear os Estados Unidos modernos, republicanos e democráticos, a True America. Mais fundo do que isso, para Miguel, é necessário questionar a própria estrutura da história que, de uma forma ou de outra, sustenta a ordem social dominante em que o racismo continua noutros termos.ste fidedignidade histórica nos filmes? Ora, a história, o modo como ela realmente funciona não é animado
Miguel volta ao filme anterior, Bastardos inglórios. Nele, reescreve-se a história da vitória norte-americana sobre o mal absoluto, libertando os judeus e outros povos subjugados. É essa a história na mira de Tarantino. Se a URSS aparecesse, estaríamos em outra referência, estaríamos disputando versões da história. Na esteira da contracultura dos anos 1960 e do pensador marxista Walter Benjamin, a verdadeira luta é disputar o próprio sentido da história. Se simplesmente fosse reescrita a história noutra versão, estaríamos distanciados dos efeitos de verdade, gosto e poder com que se construiu a nossa, a sociedade ocidental do pós-guerra, em meio ao que nós mesmos fomos constituídos como membros dessa comunidade de valores. Mais do que discutir a verdade, em jogo nesse cinema está disputar o regime de produção das verdades. Sabotá-lo, apropriar-se dele. O poder de verdade que a história e o cinema invocam é proliferante e autossubversivo. No interior do que um cineasta como Tarantino sabe conferir novos usos, cruzando referências, signos e gêneros, para gerar monstros.
Aí uma arte maravilhosa e perigosa que o “cinema subdesenvolvido” conhece pelo menos desde Gláuber.
É possível, portanto, assumir o artifício dessa história e estrutura, em seu solo afetivo, para atacá-lo por dentro? Um procedimento diverso de Spike Lee, decerto mais difícil e arriscado, do que firmar logo uma instância crítica “implicada”. Não bastaria, neste cinema, tomar o partido contra os nazistas, e reafirmar a condição de vítima dos judeus, apenas para legitimar com o final feliz a história da vitória da civilização capitalista americana. O processo irônico passa antes pela aceitação e devoração do inimigo, que é assumido como imanente ao mundo em que se vive, o “mundo ocidental do pós-guerra” onde as forças bárbaras lhe são minoritárias e latentes. Não à toa, Miguel invoque o capeta contra todo o “politicamente correto”. Ao diabo com essa história como um todo: desrespeitemos a estrutura inteira, os nazistas (mal absoluto), os judeus (vítimas sacrificiais) e os americanos (heróis libertadores).
Agora, com Django, foi a vez da escravidão. Não é, de jeito nenhum, que Tarantino esteja mostrando a escravidão de maneira desrespeitosa e achatada. Afinal, o que seria respeitar uma história? Ele simplesmente aderiu às verdades da cultura pop em que ela é assim mostrada. O diretor leva ao extremo essa representação, realçando os lugares comuns, os clichês e os estereótipos. Django só é a exceção, o negro especial em 10.000, porque é assim que essa história tem sido contada. Daí o desfile de negros submissos e ignorantes da própria condição, ao longo do filme. Ora, ao diabo com esses negros! São os negros internos ao mundo branco, os negros do branco, o negro como não-branco. São, afinal, produtos de um artifício histórico-político, e nem um pouco neutro. O cinema de Tarantino não deixa de trabalhar desse ponto de vista, entre a história e o cinema, entre a representação e sua explosão irônica. Por isso, essa construção é mais complexa. Não pode ser igualada ao show de Pierre Delacroix, de A hora do show. A ironia não se reduz à “reserva mental”, em que a intenção insondável absolveria o protagonista. Que é a própria tese de Spike Lee! que deveria ver o filme…
Django se apropria das regras de gênero e, em tour de force, massacra todos os brancos, não poupa o “negro da casa” (em didática incorreta), e destroça a Casa Grande. Em Django, como em Bastardos inglórios, o pastiche é mobilizado para potenciar o lado político, o negro do negro, o devir-negro contra qualquer niilismo pós-moderno.
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Não custa lembrar que, no clássico Do the right thing (1989), a revolta atinge o ponto de ebulição quando Mookie (interpretado pelo próprio Spike Lee) atira uma lata de lixo contra a vitrine da pizzaria em que era explorado pelos patrões brancos. No filme, a atmosfera escaldante de coabitação das raças é tensionada ao extremo, mas não deixa de ser um ato individual que serve de estopim para a insurreição. Negritude ali não é ficar repetindo nigger e outras gírias para dar uma de malandro de rua, mas recusar o papel de empregado submisso e agredir diretamente o lugar e o tempo de sua opressão. Um ato que também exprime um ânimo político e coletivo, ou não seria tão contagiante. Mookie faz a panela de pressão transbordar sem o discurso negro-engajado de Buggin’ Out (Giancarlo Esposito). O inflamado Buggin´Out havia fracassado em organizar um boicote à mesma pizzaria, embora tenha, inadvertidamente, desencadeado os eventos que culminariam na revolta.
Quantas revoltas não acontecem da mesma maneira?
E mais: não estaria Spike Lee no mesmo papel de Buggin´Out, na ideia do boicote a Django, jogando lenha na fogueira para provocar posturas racistas, inclusive do próprio rival Tarantino?
É verdade que tão fácil quanto dirigir sermões, é hypar o último filme de Tarantino, reproduzindo os bordões de sempre apenas para dizer que contém os marcadores autorais de Tarantino então se trata mesmo de um filme de Tarantino e que por ser um filme de Tarantino é genial. E assim ignorar a força do filme em dinamitar a boa consciência com que se diz, age e justifica o racismo do “mundo branco”. Com efeito, a disputa ao redor de um filme não se exaure na projeção. Continua como uma tensão da memória, uma disputa de captura vs libertação dos signos potentes que o filme compõe. É certo, no entanto, que, como o melhor cinema de Spike Lee, Django força limites, ousa dar o passo impensável.
O ímpeto centrífugo de Django, nesse sentido para além da representação, funciona como um despertador, que sobressalta pelo imprevisto ruidoso. Não é só o escravo enjaulado que esboça um sorriso, diante da cena apoteótica do cowboy negro cavalgando rumo ao banho de sangue. De certa forma, também somos esse escravo, pacificados pela força e o medo, no entanto desejosos de novamente acreditar neste mundo, e sorrir, e lutar. Django desperta-nos do torpor do chamado “debate público”, — essa arena maceteada que reúne esquerda e direita no consenso que o problema do Brasil é a falta/corrupção do estado/governo, e para quem racismo, luta de classe ou feminismo não fazem mais sentido histórico. O importante seria salvaguardar a pluralidade do debate e conviver com a diferença.
Mas Django não se preocupa com civilidade, polidez, bom tom, com “abertura para o debate”. Django não transige, não negocia e não está nem aí para a recompensa. Ao fim e ao cabo, vibramos e gozamos ao ver um negro atrevido trucidando os patrões brancos sem dó nem humanismo, cruel, fashion, exibindo-se ao som do Rap. Gostaríamos de ser ele.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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