PICICA: "A Saúde Pública em Brasília é um faroeste caboclo de arremedo do SUS, sem responsabilização, sem vínculo, sem prática das leis sanitárias, sem compromisso de cobertura, sem referencia e contra referencia, sem capacitação continuada de gestores. Os coordenadores de unidade não colocam em prática o que certamente aprenderam nos cursos sobre responsabilidade sanitária. Trancam-se lá dentro e se recusam a dialogar com conselhos locais ou comunitários. Não dividem a gestão com grupos locais nem criam núcleos comunitários de poder. Por outro lado a Classe média tradicional e "apolítica" que se preza também não se organiza. Pensa que tem poder de compra. Olhando isso Bárbara Starfield tinha toda razão."
A crônica da morte imprevista
Publicado em: 25/07/2012 13:25:00
Bárbara Starfield
Após fazer a leitura da "Chronicle of an unforetold death" (Crônica da morte imprevista), publicada por Neil Holtzman (1), viúvo da pesquisadora e professora Bárbara Starfield (2), o epidemiologista Heleno R Corrêa Filho, com indignação, faz uma comparação entre as situações nacionais e nos EUA em saúde. Holtzman denuncia, em sua crônica, o sistema de saúde americano e o responsabiliza pela perda da companheira Barbara Starfield, referencia internacional em estudos relacionados aos sistemas de saúde, particularmente em Saúde da Família e Cuidados Primários de Saúde. Não se trataria apenas de uma crônica, segundo Corrêa Filho, mas "de uma necropsia de nossos sistemas de saúde, onde o SUS é como uma flor que tenta crescer no pântano, escrita a partir de um país que espalha o pântano por todos os cantos onde os marines e os espiões da CIA colocam os pés".
Por Heleno R Corrêa Filho
Recebi a Crônica publicada pelo viúvo de Bárbara Starfield e fui tocado pela proximidade da pessoa e da ideia. O discurso do médico pediatra e sanitarista fala da perda da companheira e comove pela detecção de que o serviço de saúde pública nos EUA não funciona como sistema. O depoimento do marido dela é mais que uma crônica. É uma necropsia de nossos sistemas de saúde, onde o SUS é como uma flor que tenta crescer no pântano, escrita a partir de um país que espalha o pântano por todos os cantos onde os marines e os espiões da CIA colocam os pés.
O artigo de Neil Holtzman descreve em termos médico-sanitários como funciona nos EUA o neoliberalismo do estado mínimo na saúde. Nem se pode falar em sistema de saúde. Os hospitais e clínicas subnotificam eventos graves que passam despercebidos; não se realiza investigação post-mortem de rotina com necropsias; não existem prontuários unificados entre clínicos de primeira linha e especialistas de segundo nível; não são notificados efeitos colaterais de drogas de uso contínuo como o clopidogrel (anticoagulante); é precária a obtenção de informações além daquelas provenientes dos ensaios clínicos controlados (RTC) para liberar medicamentos o que compromete a avaliação posterior do uso comercial massivo favorecendo vieses potenciais no interesse das companhias farmacêuticas. Poderia a morte de Bárbara ter sido evitada pelo sistema uma vez que ela mesma era também uma médica especialista em RTCs e políticas públicas?
O viúvo dela escreve como pediatra, e certamente tem formação de saúde pública. A importância dessa "Crônica da morte imprevista" escrita em raiva e sofrimento profundo ou "anger and sorrow" como ele mesmo diz está acima de nossos sentimentos comuns pela equidade nos serviços. Merece ser lida não como crônica médica perspicaz, mas como lição humana que transcende países, sistemas econômicos e mesmo culturas.
Conheci Barbara nos anos 85-87 na Johns Hopkins School of Public Health (*) quando ela foi minha professora em um dos cursos que fiz em International Health e outro em Ensaios Clínicos Controlados (RTCs) ministrado por Curtis Meinert. Era uma pesquisadora sênior em todos os sentidos e exalava o odor de consciência sobre algo mais que não costuma circular pelos corredores daquela escola. Dada a barreira cultural e de idiomas eu não podia naquela época avaliar a importância que ela teria para a luta pela equidade em saúde em todo o mundo, pelos cuidados primários em saúde, mesmo vivendo em um país desigual onde a saúde coletiva jamais será considerada importante, onde o custo da saúde é capitalistamente desigual e iníquo. Uma pessoa que naquele ambiente tem a visão que ela teve tem importância mundial.
Digo isso por que recebemos uma vez a lição dada por nosso colega à época, Christian Köjeede, à beira do Lago Michigan, de que se alguém está circulando pelo porão daquela escola de saúde pública num país como aquele, mesmo que esteja vestindo uniforme e quepe da Navy, já é um indivíduo acima dos1% que têm a melhor consciência social e de mundo. Levamos muito tempo para aprender a respeitar isso, vivendo nosso mundo de estereótipos.
Quebrando um dos estereótipos, o da sanitarista norte-americana, sei por que li apesar de não ter presenciado, sobre uma cena protagonizada por Bárbara Starfield no Brasil em que ao ministrar conferência na USP ela teria se dirigido ao auditório com presença maciça de sanitaristas que prestigiam o SUS. Perguntou quantos dos presentes pagavam planos particulares suplementares de saúde. Ao levantar constrangido de muitos braços ela disse que enquanto nosso país fosse assim ela não acreditaria que o SUS poderia sobreviver e literalmente calou a plateia. Calou como fez o histórico atacante uruguaio que calou quarenta mil torcedores brasileiros que esperavam que o Brasil vencesse a copa de 1950 no Maracanã.
Quando comentei isso despertei outra provocação de um colega de lutas sanitárias alertando para não passar no discurso uma simplificação reducionista que mata as utopias e os pensamentos avançados acusando os que lutam agora de ceder de antemão pagando o privado quando deveriam defender o público. O amigo me diz, solidário, embora não lhe tenha pedido permissão para citá-lo nominalmente:
"É preciso cuidado com essa história de pagar ou não convenio... À custa desse tipo de pergunta, o liberalismo toma conta de nossos discursos e as utopias engolem métodos complexos de pensamento. Nada mais conveniente do que a expressão de um tempo hegemonicamente liberal para pensarmos como liberais. Desamarrarmo-nos desse tipo de utopias é fundamental para retomarmos as lutas. Estou aberto ao debate".
Assim fui eu também provocado de maneira instigante primeiro pelo desafio deixado por Bárbara Starfield e depois pelo novo desafio do colega que apelava para não matar as utopias. Concluí que deveria fazer um mergulho e chafurdar na lama do SUS do DF para pensar os planos suplementares de saúde.
Eu sou um cidadão que paga UNIMED. Não tenho a dúvida entre discurso e prática. A UNIMED em Brasília é fracionada em quatro subgrupos de UNIMED sendo três com o adjetivo "Nacional" com origens em Rio, SP, e Porto Alegre, competindo entre si como qualquer grupo privado não solidário.
Defendo o SUS, mas em Brasília se eu não pagar hoje um plano suplementar privado acontecerá comigo e minha família o que aconteceu com o ex-secretário executivo do Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão. Morreu sem atendimento na porta de um hospital privado. Era negro, intelectual de renome, ético, formado nas políticas de base, modesto embora alguns digam autoritário, não arrotava poder, e tinha um plano público de atendimento em co-pagamento subsidiado pelo patrão federal chamado GEAP - que é uma antiga Gerência Executiva de Assistência Previdenciária do funcionalismo público federal transformada em Fundação.
A Geap é um plano patronal subsidiado do governo federal desde 1945 que não desapareceu junto com o IPASE nem foi engolido pelo SUS. Foi só moída pela jiboia dos planos privados que lhe tiraram o fôlego financeiro enquanto os preços hospitalares subiram nos últimos 40 anos. Sem hospital próprio, o GEAP serve a funcionários públicos das gerações mais velhas e optantes novatos de salários mais baixos que descontam 4% adicional no salário. Como o SUS a GEAP contrata seus "serviços complementares" privados pagando por procedimentos. É lógico que paga tabelado e os hospitais pressionam a clientela para não usar nenhum serviço ambulatorial ou de internação. Em maior ou menor medida a GEAP é o que são todos os planos privados das UNIMEDS e demais convênios.
A luta em Brasília é pré 1988. Aqui estamos ainda nas AIS e não chegamos ao SUDS. A cidade inteira do "Plano Piloto" com 600 mil habitantes tem ao todo QUATRO centros de saúde mal equipados de gente, sem planejamento, sem atendimento universal, e que usam a "adscrição de clientela" pedindo contas de luz para evitar atender moradores de cidades satélites que tentem "invadir a praia" da tranquilidade da classe média na tentativa de buscar assistência em um prédio que não está caindo aos pedaços. Os demais Dois milhões de habitantes moram em áreas das cidades satélites onde os CS são um para cada cem a duzentos mil habitantes, deteriorados, e tendendo a serem substituídos pela nova marca das UPAS, sem nenhuma extensão forte de cuidados primários de saúde.
A Saúde Pública em Brasília é um faroeste caboclo de arremedo do SUS, sem responsabilização, sem vínculo, sem prática das leis sanitárias, sem compromisso de cobertura, sem referencia e contra referencia, sem capacitação continuada de gestores. Os coordenadores de unidade não colocam em prática o que certamente aprenderam nos cursos sobre responsabilidade sanitária. Trancam-se lá dentro e se recusam a dialogar com conselhos locais ou comunitários. Não dividem a gestão com grupos locais nem criam núcleos comunitários de poder. Por outro lado a Classe média tradicional e "apolítica" que se preza também não se organiza. Pensa que tem poder de compra. Olhando isso Bárbara Starfield tinha toda razão.
A marca de assistência pública à saúde no DF é atendimento de hospitalar e de emergência. São três hospitais públicos sendo dois semiespecializados e um quarternário de referencia para MG-Goiás-Bahia, e Brasília. Existe um quarto hospital militar que vem estendendo serviços para convênios civis ainda muito restritos. São mais de VINTE hospitais privados, a maioria de qualidade péssima a pior, pendurados como bombas nas pontas das asas de um avião bombardeiro - o avião do desenho urbanístico do Plano Piloto de Niemeyer e Lúcio Costa. O Governo do DF está asfixiado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Não contrata servidores suficientes para saúde, educação e segurança. O governador e os cidadãos do DF são vítimas dos policiais civis e da PM, que têm organização e conduta mafiosa com vínculos políticos no entulho autoritário da ditadura e na nova corrupção como Cachoeira e Roriz, e querem ganhar mais que todos os outros funcionários do país. Pior que Brasília só RJ e Maceió.
Todo secretário de saúde de Brasília é quase sempre egresso de um dos hospitais privados que tem interesse em não deixar o SUS funcionar. Quando o Secretário não é o próprio dono de hospital os patrões colocam um gestor na FUNDAÇÃO HOSPITALAR DO DF que controla tudo por que não tem controle social nem presta contas de metas de saúde. Só presta contas financeiras ao TCU-DF onde tá tudo dominado desde o grupo do Roriz. Nada mudou no TCU-DF em quarenta anos. Persegue quem paga políticas públicas justas e aprova contas de quem rouba.
O antigo governador petista Cristovam Buarque chegou a implantar um arremedo de PSF, e foi também quem implantou o respeito às faixas de pedestre. O sucessor Roriz demoliu em três meses o que Cristovam levou quatro anos para implantar. Demitiu todos os Agentes Comunitários de Saúde que embora concursados tivessem contrato CLT. Na prática todos foram substituídos por cabos eleitorais do dono da bezerrinha de três milhões de reais.
Antes e depois disso aqui em Brasília não adianta dar o “carteiraço” de médico e pedir para falar com o plantonista. Nessa terra todo mundo "se acha" e o cidadão comum não tem vez. Vejam que Ana Costa, sanitarista, ginecologista, homeopata e Presidente do CEBES teve que levar a filha com leucemia para ser tratada em hospital privado senão esperaria quatro meses na fila. Leiam a entrevista dela no Blog do CEBES Nacional ou no Página12. Na entrevista Ana descreve o que acontece nas cidades onde não permitem que o SUS possa nascer. Teve que recorrer ao serviço suplementar. Pior que o SUS de Brasília só os do Rio e de Maceió e a classe média não se dá conta morando na única cidade brasileira onde um aceno de braços pode fazer com que motoristas parem seus carros para o pedestre atravessar a rua. Meu cachorrinho já aprendeu. Abana o rabinho na faixa, espera que os carros parem e me puxa pela coleira atravessando depressa. Será com essa cultura que vamos implantar o SUS que queremos?
Sou meio prático, meio maniqueísta, e também meio trouxa, por que não conseguirei ir pagando a UNIMED até a velhice. É só o tempo de aprender o caminho do hospital do SUS onde irei morrer desassistido se a coisa não mudar. Acho que os cidadãos de menos de 50 anos de idade que moram em cidades como Brasília devem pagar um plano suplementar de saúde até passar dos sessenta e recalcular o que sobra da aposentadoria. Quem viaja, quem pretende engravidar, quem precisará de uma cirurgia simples de urgência, quem ainda joga futebol e pode quebrar uma clavícula e um braço, também deve pagar se puder. No dia em que a cidadania do trânsito atingir a cidadania da Saúde em Brasília aí acredito que o país vira. No resto temos que continuar fazendo um barulho danado e organizar, organizar, organizar...e de volta recomeçar a organizar.
Desejo boa leitura do artigo de Holtzman (fazer download logo abaixo):
Heleno R Corrêa Filho é epidemiologista - Professor Associado de Colaborador - UNICAMP
Referencias:
1. Holtzman NA. Chronicle of an Unforetold Death. Arch Intern Med. [Essay - Health Care Reform]. 2012 Jul 9;9 (July):1-4.
2. Bárbara Starfield, professora na Universidade Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health e diretora do Primary Care Policy Center, foi impulsionadora dos Cuidados de Saúde Primários a nível internacional e morreu no dia 10 de junho de 2011, supostamente devido a um problema coronário, enquanto nadava na piscina de sua residência, em Califórnia.
Fonte: Cebes
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